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A qualidade de ensino

vinculada à democratização do acesso à escola


José Sérgio F. de Carvalho

cerca de meio século o tema da dimentos ou disciplinas, como no caso da


J qualidade
á há
de ensino – ou, para ser mais Filosofia no ensino médio, têm invaria-
preciso, a preocupação com sua “queda” velmente se mostrado incapazes de rever-
ou o temor de sua “ausência” – deixou ter a insatisfação generalizada em relação
de ser um assunto restrito aos especialis- aos resultados da escolarização.
tas e profissionais da educação para ga- Não é o caso de se entrar no mérito de
nhar a luz do debate público. Tornou-se, cada uma das alegações sobre as evidên-
desde então, objeto de atenção dos mais cias da má qualidade do ensino, nem das
variados segmentos da sociedade, com hipóteses explicativas generalizadamente
notória presença nos meios de comuni- apresentadas como suas causas. Dados a
cação de massa. Ano após ano, somos complexidade do problema e seu caráter
expostos a uma pletora de novos dados multifacetado, é muito provável que nelas
estatísticos e resultados de exames nacio- haja argumentos razoáveis para justificar,
nais e internacionais que parecem sempre pelo menos em parte, essa insatisfação.
confirmar a crença numa queda constan- Contudo, a exemplo do que acontece
te e significativa no nível de desempenho com outros “objetos” do discurso social
dos alunos, reforçando a sensação de que de ampla visibilidade política e notável
nossas escolas públicas têm sido incapa- repercussão nos meios de comunicação
zes de oferecer um ensino de qualidade à de massa, o conceito de “qualidade do
população que a elas acorre. ensino”, em seu uso corrente, oferece
As hipóteses das quais temos lançado uma série de riscos aos intelectuais e pes-
mão na tentativa de compreender as cau- quisadores que sobre ele se debruçam.
sas desse fenômeno têm sido, em geral, Dentre eles, o de ser tratado não como
monotonamente convergentes. Há déca- uma expressão polissêmica, capaz de nos
das que os diagnósticos apontam para fa- remeter a diferentes interpretações e ca-
tores como a má-formação dos professo- tegorizações de uma variedade de expe-
res e sua baixa remuneração; o abandono riências, vivências e práticas sociais, mas
das escolas e a obsolescência das políticas como uma entidade fixa e imutável, cuja
públicas e dos métodos e procedimentos presença essencial seríamos capazes detec-
pedagógicos. Vez por outra, uma medida tar – ou cuja grandeza pudéssemos medir
específica, como a progressão continuada, – de forma inequívoca e a-histórica.
passa a ser identificada como a principal Daí a importância ímpar da publicação
responsável pela baixa qualidade do ensi- de uma obra como A qualidade do ensi-
no. Contudo, como em casos anteriores no na escola pública, do professor Celso
e análogos, é muito pouco provável que de Rui Beisiegel. Nela os problemas da
sua eventual supressão possa “restaurar” qualidade do ensino público em momen-
a alegada “qualidade perdida”. Assim to algum se divorciam da compreensão
como medidas de reintrodução de proce- histórica dos processos sociais, políticos

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e institucionais que marcaram a luta pela dissociada de seu caráter altamente seleti-
universalização do acesso à educação. Ela vo, pois era fundada num mecanismo de
é, antes, pensada a partir das profundas exclusão sistemática: os “exames de ad-
transformações de que têm sido alvo e missão”. Esses funcionavam como uma
agente a instituição escolar e o público espécie de “vestibular” precoce; estima-se
que a ela acorre. Já em suas páginas ini- que negavam o acesso aos estudos secun-
ciais destaca-se que os ensaios ali reuni- dários a mais de dois terços dos alunos
dos têm por objetivo que então concluíam o ensino primário
colocar em discussão as questões de (quatro séries iniciais).
qualidade vinculadas ao processo de Assim, comparar o rendimento esco-
extensão das oportunidades educacio- lar dessas duas instituições – o “Ginásio
nais às classes populares [examinando] Público” e o “Ensino Fundamental” –
as questões relacionadas com o desem- como se uma fosse a simples continuida-
penho de alunos, professores, escolas e de degenerada da outra pode obscurecer
sistemas públicos de ensino sob a pers- “o caráter de classe” incontornavelmente
pectiva das conseqüências da conquista presente nas discussões sobre qualidade
de oportunidades escolares por setores de ensino, como afirma Beisiegel. Pois,
cada vez mais amplos das populações
sob a perspectiva dos segmentos privi-
subalternas. (p.8 – grifo do autor)
legiados da população, a escola secun-
Ora, é somente sob a perspectiva his- dária pública realmente vinha perden-
tórica dessa luta pela universalização do do qualidade à medida que se estendia
acesso à escola que se podem analisar aos setores menos favorecidos. Obvia-
adequadamente vários ajuizamentos cor- mente, essa perda já não ocorria para
rentes que, por terem se tornado lugar- esses segmentos da população, agora
comum, parecem ser aceitos de plano, acolhidos na escola anteriormente ina-
sem um exame mais minucioso de suas cessível. (p.11)
alegações e dos argumentos que os sus- A partir de observações contundentes
tentam. É o caso, por exemplo, da noção como essa, ainda que sempre temperadas
bastante difusa de que teria havido uma pela elegância de sua linguagem, os arti-
substancial “queda” na qualidade do en- gos de Celso Beisiegel acabam por nos su-
sino público a partir da década de 1970. gerir a necessidade de se pensar um “con-
Noção essa que, em geral, aparece asso- ceito de qualidade” que faça sentido para
ciada a uma certa nostalgia dos “giná- a escola básica pública contemporânea,
sios” das décadas de 1950 e 1960, tidos cujo papel social não mais é o de seleção e
como exemplos de excelência e qualidade reprodução de uma diminuta elite:
em educação pública. É inegável que o
seria perfeitamente cabível colocar uma
“rendimento escolar” dos egressos desses
questão ainda mais geral, a propósito
ginásios era certamente superior ao dos das possibilidades de comparação entre
alunos que hoje concluem o ensino fun- a qualidade de uma escola destinada
damental. Mas essa constatação, ainda à ilustração de uma pequena minoria
que verdadeira, não dá conta da comple- de jovens privilegiados e de uma ou-
xidade das transformações que se opera- tra escola, bem diferente, responsável
ram nesse contexto histórico. A imagem por importante função no processo de
de “excelência” dessa escola não pode ser construção de um povo. (p.154)

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a ignorar os desafios da luta pela quali-
dade nessa escola real que, ao longo do
século XX, passou a receber segmentos
da população que até então a ela jamais
tinham tido acesso. É evidente que a in-
corporação no ensino fundamental de
praticamente a totalidade das crianças em
idade escolar, muitas delas advindas de
condições socioeconômicas bastante des-
favoráveis, passa a reclamar das escolas e
dos sistemas de ensino a renovação de al-
guns de seus principais conceitos, proce-
dimentos, critérios e práticas pedagógicas
e avaliativas.
Ao recusarmos o desafio de pensar a
BEISIEGEL, C. de R. A qualidade
qualidade nessa nova realidade social da
do ensino na escola pública. Brasília: escola – e de nela atuar em suas condi-
Líber Livros, 2006. 167p. ções concretas –, corremos o risco de
anular, pela persistência de práticas sele-
Assim, para o autor, a qualidade de tivas e anacrônicas, os ganhos políticos
ensino da democratização do acesso à educação.
a ser alcançada pelo sistema escolar Por outro lado, é fundamental frisar que
pouco tem a ver com a idéia conser- o bem social que se almeja democratizar
vadora de recuperação da presumida com o acesso de todos à escola não é uma
excelente qualidade da escola pública vaga na sala de aula ou o acesso físico às
no passado. Aquela escola já não mais dependências da escola. Assim, qualida-
existe na situação do ensino comum da de de ensino na perspectiva de uma edu-
rede de escolas públicas no presente. cação pública não é a formação de uma
A escola pública mudou com sua expan- elite socioeconômica, mas a democratiza-
são quantitativa: são outros os seus ção do acesso aos bens culturais comuns
agentes – alunos professores, famílias que se encarnam nas disciplinas, saberes e
– e suas circunstâncias, e essa mudança valores da instituição escolar. É na busca
reformulou suas funções sociais e suas por essa articulação entre a abertura da
condições de funcionamento. (p.143 escola pública a todos os segmentos da
– grifo do autor) população, a melhoria do rendimento es-
Esse novo lugar social da escola impõe colar e a democratização das relações nas
que se repense seu significado público e instituições escolares que se situa a obra
os conceitos pelos quais compreendemos A qualidade do ensino na escola pública.
e guiamos nossas ações educativas. Por outro lado, sua publicação nos
Trata-se, pois, de evitar a adesão acrí- oferece a rara oportunidade de acompa-
tica tanto à “nostalgia de um passado nhar, pela objetividade de seus produtos,
idílico perdido” quanto a uma das Gran- a trajetória singular de um intelectual pú-
des Teorias, seja qual for seu matiz. Isso blico. Por ocasião da cerimônia de outor-
porque ambas as perspectivas tendem ga do título de Professor Emérito da Fa-

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culdade de Educação da USP, o professor
Celso de Rui Beisiegel, ao relembrar sua
vida acadêmica, fez questão de ressaltar
que uma carreira intelectual não é fruto
de um plano prévio, nem obedece a di-
retrizes invariáveis. Ao contrário, muito
dela se constrói a partir de oportunida-
des que jamais haviam sido concebidas,
de circunstâncias particulares, de deman-
das pontuais. É possível – e bem provável
– que assim o seja para o agente. Mas,
por vezes, àquele que, a uma certa dis-
tância, é dado contemplar o percurso de
uma vida acadêmica, oferece-se a opor-
tunidade de vislumbrar na obra um cer-
to sentido norteador que, à maneira de
um princípio regulador, toma diferentes
formas, mas reaparece sempre como uma
marca da vida intelectual. Em Celso Bei-
siegel, quero crer que esse princípio é a
incansável luta pela idéia de que constru-
ção de uma escola básica de qualidade só
será possível a partir “da clara compreen-
são das implicações e da plena aceitação
da legitimidade da presença das classes
populares no ensino público”.

José Sérgio F. de Carvalho é professor de


Filosofia da Educação da Faculdade de
Educação da USP. @ – jsfcusp@usp.br

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