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Departamento de Filosofia
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Curitiba
2006
NOTA INTRODUTÓRIA
O trabalho que segue visa esclarecer a distinção entre espaço e duração e a concepção de
consciência no Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência, de Henri-Louis Bergson
(1859-1941). Nitidamente ordenado numa progressão sintética, o Essai sur les Données
Immédiates de la Consciense, escrito em 1889, foi a tese francesa apresentada pelo filósofo
como conclusão de seu doutoramento na Sorbonne. Nele, Bergson mostra que, se
desembaraçamos os dados de nossa experiência interna de todas as construções através as quais
os exprimimos tanto na linguagem corrente quanto na linguagem científica, eles aparecem com
aquilo que verdadeiramente são enquanto “dados imediatos”, ou seja, como pura qualidade e não
como quantidade, não mais como justaposição de unidades homogêneas e quantificáveis, mas
como progresso na heterogeneidade e mutação contínua.
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o conhecimento aos fenômenos que acontecem naquelas “formas a priori da sensibilidade” que
seriam, igualmente, o espaço e o tempo, sem deixar nenhum acesso à realidade “em si” que os
ultrapassa e que aparece neles. É possível, segundo Bergson, ao mesmo tempo criticar a
metafísica e tentar renová-la.
O exame da noção de intensidade permite, em primeiro lugar, que Bergson faça a crítica
de uma ciência precisa, a psicologia, e que ele já aponte sua concepção da vida interior. O
primeiro capítulo do Ensaio (“Da intensidade dos estados psicológicos”) denuncia, com efeito,
tanto na linguagem comum, que fala do “estados psicológicos” em termos de “mais ou menos”,
quanto na psicologia científica nascente, na forma da psicofísica que visa calcular estas
diferenças, uma confusão fundamental. Nos dois extremos dos sentidos que a noção de
intensidade recobre, não encontramos nada em comum. Por um lado, um “grande” amor não é,
segundo ele, um amor mais amplo do que outros, ou capaz de contê-los como um recipiente mais
volumoso, e sim um amor que impregna cada vez mais “estados” aparentemente distintos dele,
nossas lembranças, nossas impressões mais insignificantes e transforma seu significado. A esse
respeito escreve: “Quando se diz que um objeto ocupa um grande espaço na alma, ou até que a
ocupa totalmente, apenas se deve entender com isso que a sua imagem modificou o matiz de mil
percepções ou recordações, e que neste sentido os penetra, apesar de não se deixar ver”
(BERGSON, 1988, p. 16). Por sua vez, uma luz maior designaria primeiro uma diferença
numericamente calculável na emissão das ondas luminosas. Ora, entre os dois sentidos opera-se
uma mistura, que falseia ao mesmo tempo a compreensão de nossos sentimentos mais profundos
e de nossas impressões mais simples. Até na sensação luminosa deve-se distinguir aquilo que
indica o aumento quantitativo da fonte externa daquilo que está ligado ao efeito progressivo do
ofuscamento experimentado. Assim, Bergson pode ao mesmo tempo entregar-se a uma crítica
cerrada das pretensões da psicofísica e introduzir sua própria concepção da vida psicológica.
Para ele, a vida psicológica não é composta de “estados psicológicos” tão nitidamente
distintos quanto os objetos no espaço. No capítulo dois do Ensaio (“Da multiplicidade dos
estados de consciência: a idéia de duração”), o filósofo mostrará que a multiplicidade dos estados
de consciência não consiste mais numa dispersão de estados atômicos, mas se reúne numa
unidade constitutiva, a consciência, ela mesma fundada na duração que, como idéia ou conceito,
deve permitir que seja pensada. De fato, é nesse capítulo que seus critérios, claramente opostos
aos do espaço, são estabelecidos. Enquanto o espaço se define como um princípio de distinção
externa, quadro homogêneo que se acrescenta às distinções internas dos objetos para colocá-los
distantes uns dos outros, a duração define-se por essas mesmas distinções internas, por uma pura
heterogeneidade sem distância, uma “interpenetração”. A duração é ao mesmo tempo o que
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muda e o que transforma algo ou alguém. Não um simples “teatro da transformação”, ele mesmo
invariável, e sim a própria variabilidade, absoluta, pelo menos no sentido em que ela constitui
um sujeito, que é ao mesmo tempo testemunha e agente (LABRUNE, JAFFRO, 1996, p. 63).
Enquanto o número pode ser aplicado ao espaço, e até mesmo o supõe, ele não pode ser aplicado
à multiplicidade da duração sem dividi-la ou desfigurá-la. Isto porque ela é contínua, indivisível,
forma um todo orgânico, “multiplicidade confusa de sensações e de sentimentos, que são a
análise distingue” (BERGSON, 1988, p. 64), como uma melodia que não pode nem ser
decomposta, nem ser tocada de trás para frente.
Na verdade, a distinção do espaço e da duração passa tanto em nós quanto entre nós e o
mundo exterior. Embora seja a duração que constitua nossa pessoa, o mais das vezes só temos
dela uma visão ela mesma ao mesmo tempo dividida, espacializada e socializada. Assim, o
terceiro capítulo do Ensaio (“Da organização dos estados de consciência: a liberdade”) tem como
função mostrar que essa confusão filosófica, mas também comum, sobre o eu, está na fonte das
aporias da liberdade, bem como de nossa servidão habitual. Primeira aplicação da distinção, a
teoria da liberdade é também a primeira ilustração da união em que ela culmina. Com efeito, ela
passa tanto pela crítica das antinomias do livre-arbítrio, quanto permite que se pense o ato livre
como aquele segundo o qual nossa duração se exprime no espaço, e que se acrescente à sua
descrição as características decisivas da imprevisibilidade, da novidade, da “criação”, que nunca
mais a deixarão (LABRUNE, JAFFRO, 1996, p. 65). Encontraremos nesse último capítulo tanto
uma crítica que se tornará a da “ilusão retrospectiva” (que pretende explicar o ato, mas que pode
apenas supô-lo realizado), quanto a descrição de uma subjetividade irredutível a toda
determinação exterior, mas capaz de inscrever nela, por sua atividade, novos significados.
Concentrando-se no problema da liberdade, Bergson indica o que caracteriza os “dados
imediatos” ou “fatos psíquicos” da consciência. A consciência, em primeiro lugar, é qualidade
pura, e se, apesar disso, somos levados a falar de “intensidade dos estados psíquicos” é apenas
porque a intensidade é o “sinal” qualitativo da quantidade (a causa dos fatos psíquicos internos
está no espaço exterior).
Em segundo lugar, a consciência é duração. Se somos levados a falar em multiplicidade
dos estados de consciência, é por convenção. Pois a noção de número está ligada ao mesmo
tempo à idéia de um espaço homogêneo (exterior) cujos termos são distintos uns dos outros, e de
um processo interior de penetração, cujas unidades se somam dinamicamente.
Por fim, a consciência é liberdade. Ela é da ordem do fato íntimo. Não seria possível
raciocinar em torno dela sem desenvolver as condições exteriormente umas às outras, no espaço,
e não mais na pura duração. Proscrever a liberdade (à maneira do determinismo) ou mesmo
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situa-la no domínio intemporal das coisas em si (Kant) provém do mesmo mal-entendido dos
antigos sofismas da Escola de Eléia: como esses sofismas, tem origem na ilusão de se confundir
sucessão com simultaneidade, duração com extensão, qualidade com quantidade; em outras
palavras, em se confundir exterioridade com interioridade.
Assim, longe de se contentar com uma crítica abstrata da ciência ou de uma intuição
direta da duração, o Ensaio aprofunda, em cada um de seus momentos a dupla vertente crítica e
genética de seu confronto.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGSON, H. Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência. Lisboa: Edições 70, 1988.
HUISMAN, D. Dicionário de Obras Filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 175-77.