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PUC-SP
MESTRADO EM TEOLOGIA
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MESTRADO EM TEOLOGIA
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador Prof. Doutor Antonio Manzatto pela sua valiosa orientação, pelo
seu companheirismo e amizade;
Agradeço a Profa. Doutora Maria Freire da Silva por sua atenção, sua presença singela e
fraterna;
Agradeço a Regina, minha amada esposa, que prontamente sempre está ao meu lado,
acreditando nos meus sonhos;
Agradeço a todos os meus colegas e alunos que partilharam comigo esta importante etapa da
minha vida.
RESUMO
The aim of this work was to present the importance and possibility of dialogue
between theology and literature, based on anthropological reflection from the work A hora da
estrela by Clarice Lispector. In this work the author portrays the “absence” of Macabéa, a
human being as a victim of a society marked by a capitalist social structure that dehumanizes
and enslaves, it excludes those who cannot join. It is these concerns that lead Clarice writing
her last novel full of social protest and waiting for response, so unfinished. More than
denounce the “tecnocolor” model that subjugate, the author awaits new directions, because it
is not possible to keep on living this way. As she says: “This story takes place in a state of
emergency and public calamity”. From this reality portrayed by Clarice, I sought to develop a
response to questions about the future in a society, as current as society today, marked by
consumerism that trivializes and relativizes beliefs and values. I believe the answer can be
given from Christology.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
2. Literatura ...................................................................................................................... 21
2.4.5 Linguagem...................................................................................................... 33
4. Conclusão ..................................................................................................................... 43
4.2 O silêncio............................................................................................................... 58
8. Conclusão ..................................................................................................................... 81
INTRODUÇÃO
A teologia é um discurso sobre Deus que nasce da fé. A elaboração deste discurso é
feita de modo rigoroso e com metodologia própria, caracterizando-a como ciência. Porém,
deve-se reconhecer que a teologia como ciência é sui generis, pois seu fundamento
(Revelação) difere dos fundamentos dos outros saberes científicos. Ressalta-se que a
elaboração teológica apresenta uma diversidade muito grande de métodos e temas oriundos a
maneira de teologizar de cada época.
A literatura como mediação para a reflexão teológica pode soar estranho. Diferente,
sim! Mas, possível! Esta possibilidade é verificada no fato de a literatura como obra de ficção
ter como inspiração a vida. Logo, ela comunica importantes elementos da sociedade e da
personalidade do autor. Por meio da literatura pode-se ter certa compreensão do mundo, assim
como pelas ciências, a diferença está na maneira de transmitir os seus dados, pois a literatura
por sua força simbólica é capaz de aquecer o coração do seu interlocutor.
A literatura, enquanto obra de ficção, não tem a intenção de ser um relato jornalístico;
ela parte da realidade e se expressa por meio de símbolos. A obra literária, por meio da sua
força simbólica, permite o seu interlocutor captar certa representação do mundo, uma
cosmovisão, um olhar sobre a existência humana e uma determinada compreensão da vida e
de seus valores. Neste sentido, a literatura é antropocêntrica, e este antropocentrismo é
interessante para a teologia, principalmente pelo fato de ela também ser “antropologia”.
12
Falar de literatura é falar de um campo muito vasto e com várias escolas. Esta pesquisa
se limitará ao gênero do romance na obra A hora da estrela, de Clarice Lispector. Trata-se de
uma autora de peso da literatura nacional, que tem como objeto central da sua escrita o ser
humano. Na obra A hora da estrela, a autora aponta para o ser humano desumanizado pela
força capitalista-tecnicista: ele é miserável, inconsciente e vítima do seu contexto social.
Clarice faz o seu leitor se deparar com um processo desumanizador, e a teologia, ao se
aproximar da literatura clariceana, buscará anunciar a salvação oferecida por Deus a todos os
homens, proclamando a boa notícia do Reino de Deus, contrapondo-se à realidade de
indiferença e desprezo conhecida pela personagem da trama, a desinteressante alagoana
Macabéa.
O segundo capítulo, Sempre é tempo de pensar A hora da estrela, procura fazer uma
análise profunda da obra, dando ênfase à denúncia social e à caracterização do ser humano ali
presente.
A teologia1 é um discurso sobre Deus que nasce da fé. Ela é a busca do crente que
deseja aprofundar aquilo que crê. Segundo a clássica definição de Santo Anselmo, a teologia
é: “A fé que deseja saber”.2 Na fé encontra-se uma vontade de verdade que seduz a razão,
então, nasce a teologia. Por conseguinte, teologia é a fé de olhos abertos, inteligente e crítica.
O teólogo Roger Haight apresenta a essência da fé como um compromisso dinâmico da
liberdade humana em ação. Para ele, “a fé só é real à medida que caracteriza uma efetiva
reação e resposta humana à realidade”. 3 Logo, pode-se fazer uma relação direta entre fé e
racionalidade a partir da experiência humana, como assinala Clodovis Boff: “Nessa linha, é
impossível que haja fé sem que haja um mínimo de reflexão sobre ela, sem que o espírito
deixe de pensar sobre o conteúdo. Esse é um movimento natural, espontâneo. Por isso, toda
pessoa de fé é também teóloga, pelo menos em grau mínimo”. 4
1
A teologia é um termo pré-cristão. Este termo aparece pela primeira vez na obra A República de Platão (Rep.
379a). Outros filósofos trabalham com o termo teologia, porém, o estoicismo é que fundamenta a teologia como
disciplina filosófica. O cristianismo aos poucos assume este termo e a partir dos pensadores da escola de
Alexandria reivindica-se o discurso cristão como a verdadeira teologia. Cf. LACOSTE. Jean-Yves. (dir.)
Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas e Loyola, 2004. p. 1707.
2
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 25.
3
HAIGHT, Roger. Dinâmica da teologia. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 38.
4
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. Op.cit. p. 27.
14
5
HAIGHT, Roger. Dinâmica da teologia. Op.cit. p. 238.
6
A ciência em nossos dias é entendida como um conhecimento certo e válido a partir de uma dedução lógica.
Sua verdade se apoia na racionalidade das experiências através de métodos específicos, que são aceitos pela
comunidade científica. Este conceito de ciência não se aplica à teologia, a verdade teológica tem como ponto de
partida os dados da Revelação que vão orientar o teólogo na elaboração e sistematização dos seus pensamentos.
Cf. LIBANIO, J. B; MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 8. ed. rev. ampl. São
Paulo: Loyola, 1996, p. 68-74.
7
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos
romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p. 39.
8
Segundo Wagner Lopes Sanches, a palavra ruptura sintetiza este processo denominado moderno. Foram
diversas as rupturas impulsionadas pela modernidade. Este processo de derretimento afetou diretamente a Igreja
15
Porém, como este modelo não foi capaz de responder às necessidades humanas, inicia-se um
novo modelo chamado pós-modernidade.
Segundo Bruno Forte, a sociedade atual vive um profundo vazio das razões que
motivam o sentido de viver. Sua visão sobre o nosso tempo pode ser exposta como uma
falência:
Diante do vácuo causado pela efemeridade da vida, o teólogo Bruno Forte afirma a
atualidade da teologia, pelo fato de que ela levanta as questões fundamentais da existência
humana, buscando o sentido radical do viver em todas as épocas e apresentando o valor e a
dignidade da vida humana. Para Clodovis Boff, a atualidade da teologia é perene. 11 A
atualidade teológica se constrói através da hermenêutica da fé, que reinterpreta e organiza os
dados revelados, vividos e compreendidos pela comunidade eclesial, em diferentes contextos
com o seu caráter sacral e absoluto, que será questionado pelo advento da historicidade. Cf. SANCHES, Wagner
Lopes. Teologia Cristã e modernidade: confrontos e aproximações. In BATISTA, Paulo Agostinho N;
SANCHES, Wagner Lopes. (orgs). Teologia e Sociedade: Relações, dimensões e valores éticos. São Paulo:
Paulinas, 2011. p. 57-62.
9
BARREIRO, Álvaro. SJ. A eclesialidade da fé cristã nos novos contextos socioculturais. In. KONINGS, Johan.
(org). Teologia e Pastoral: Homenagem ao Pe. Libanio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 123-145. (Coleção CES).
10
FORTE, Bruno. Teologia em diálogo: Para quem quer e para quem não quer saber nada disso. Tradução:
Marcos Marcionilo. São Paulo: Loyola, 2002. p. 10. (Coleção CES-14).
11
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. Op.cit. p 408.
16
socioculturais e históricos.12 Deste modo, ela assume uma contramão cultural. Fundada na
Palavra Soberana, ela assume a criticidade no momento histórico, adotando o seu papel
profético, conforme nos propõe o Concílio Vaticano II:
O Vaticano II, como um todo, é um gigantesco esforço para adaptar-se aos problemas
e desafios contemporâneos. A teologia pós-conciliar não mais consistirá em repetir apenas a
riqueza proveniente dos séculos passados e fixada uma vez por todas em fórmulas teológicas.
Ela interrogará e responderá; aceitará a pesquisa dos homens e não recusará receber alguma
coisa dela proveniente14, depois da Constituição Pastoral Gaudium et Spes a teologia não pode
deixar de olhar para a realidade dos seres humanos. 15 Ela deve ser companheira do ser
humano na história assumindo a aventura humana. 16
12
LIBANIO, J.B, MURAD. Afonso. Introdução à Teologia... Op.cit. p. 336.
13
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. “Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo
de hoje”. In Compêndio do Vaticano II - constituições, decretos, declarações. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. n.
4. Doravante a Constituição Pastoral Gaudium et Spes será citada pela sigla GS.
14
GS 44.
15
MANZATTO, Antonio. O teólogo, responsável pelo mundo. Disponível em:
<http/ciberteologiapaulinas.org.br/ciberteologia/index.php/notas/o-teologo-responsavel-pelo-mundo/> Acesso
em 15 novembro 2012, 23:37:15.
16
A resposta da teologia ao homem moderno segundo o Concílio Vaticano II passará pela atenção religiosa do
momento histórico no qual a humanidade está inserida. Os sinais dos tempos são as marcas características de
uma época. Verifica-se que é uma análise ou leitura da atualidade histórica. M. D. Chenu proporciona uma
importante interpretação sobre a temática em questão. O teólogo francês entende que a história humana é lugar
teológico, Logo, os tempos, devem ser entendidos como sinais que servirão de elementos para uma análise
sociológica. Estes elementos sociológicos se tornam material para a análise teológica. Assim sendo, teologia
partirá da vida assumindo o método indutivo. Cf. BOFF, Clodovis. Sinais dos Tempos: Princípios de Leitura.
São Paulo: Loyola, 1979. p. 115-144. (Coleção Fé e Realidade – V).
17
Salienta-se que a cultura contemporânea apresenta-se cada vez mais complexa. Esta
complexidade é um desafio à criticidade teológica, que não deve procurar respostas prontas
ou fáceis. Por ser ciência e estar limitada ao seu contexto histórico, a teologia terá sempre
uma resposta provisória e apresentará um pluralismo inevitável. Logo, o diálogo com o
mundo e com a sua vasta complexidade implica atenciosa relação com o seu tempo,
reconhecendo os problemas humanos que também são os seus problemas. Pensar a relação
entre a teologia e sociedade é problematizar as relações entre um determinado tipo de saber,
oriundo da fé religiosa e que toma em conta uma dimensão específica da realidade – a
17
LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes: Texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 17.
18
CONGAR, Yves. Situação e tarefas atuais da teologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p. 87-88. (Coleção
Revelação e Teologia).
19
FORTE, Bruno. Teologia em diálogo... Op.cit. p. 38.
18
É por isso que a teologia – escuta pensante do Outro em Seu falar e em Seu
calar, palavra salutarmente “ferida” pelo acolhimento da revelação – pode
contribuir de modo singular para a pesquisa em torno da fundação da ética e
interpelar seu potencial de memória crítica do Deus que vem e da capacidade
de discernimento dos traços do Último nos rostos dos outros a serviço do
crescimento da qualidade de vida para todos [...].20
Toda teologia é contextual e histórica, marcada pelo seu tempo. Assim sendo, ela
sofrerá os limites produzidos pelo contexto no qual está inserida. “Uma teologia que se
fechasse ao diálogo e que restringisse a uma recitação de teses em monólogo não pode ser boa
teologia nem teologia eclesial propriamente dita”.21 O diálogo da teologia com o mundo de
hoje deve ser um diálogo vivo, capaz de interrogar, ensinar e servir.
20
FORTE, Bruno. Teologia em diálogo... Op.cit. p. 16.
21
MYSTERIUM SALUTIS: Compêndio de dogmática histórico-salvífica. Tradução portuguesa. Vol I/1. Rio de
Janeiro: Petrópolis, 1971. p. 23.
22
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. Op.cit. p. 495.
23
GS 44.
19
Para realizar a sua tarefa, a teologia se aproxima de outros saberes. Ela serve-se dos
recursos apresentados por outras áreas do conhecimento. E sua relação é de respeito e de
reconhecimento da autonomia das demais áreas do saber. Segundo Clodovis Boff, é um
equívoco pensar que a teologia precisa abordar questões referentes a outras ciências. Ela
possui o seu tema próprio, contudo, para realizar sua missão, ela necessita aproximar-se do
conhecimento humano, em particular da filosofia e das ciências humanas. Sendo entendida
como um discurso humano sobre Deus, a teologia pode utilizar os outros saberes para agregar
ao seu conhecimento sobre a realidade. Outro aspecto importante é que o mistério de Deus é
revelado no mundo e na história. O diálogo entre criador e criatura acontece na história
humana com todos os desafios que a história comporta.
O teólogo não pretenderá substituir os especialistas dos vários campos e não hesitará
em deixar-se provocar por eles, reconhecendo o valor das suas propostas e percebendo a força
24
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. Op.cit. p. 368.
20
A teologia não existe para si. Sua raiz está na fé, e a fé não é ato isolado. Assim sendo,
a teologia é uma ciência feita para a vida. O objeto de estudo da teologia é Deus, e Deus não é
somente verdade. Ele é também vida. As verdades reveladas são para serem conhecidas, sim,
mas para serem finalmente vividas. Elas esclarecem, mas também aquecem. Mas a teologia
não fala somente de Deus, ela fala também do ser humano.26 Por isso, ela precisa lançar um
olhar atento às condições na qual a vida humana se desenvolve, e fazer o processo de forma
indutiva em que “os problemas surgem da vida, de baixo, pela via da indução. Vai da
experiência ao dogma. O primeiro momento de tal teologia é ver. Ver os problemas que tocam
a vida dos fiéis e, num segundo momento, refletir sobre tais questões à luz da revelação”. 27
25
O documento eclesial que sintetiza a reação católica frente à modernidade é a Encíclica Quanta Cura, de Pio
IX (1846-1878).
26
GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. Tradução: Carlos Felício da Silveira. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 5.
(Coleção Deus para pensar; 2).
27
LIBANIO, J.B, MURAD. Afonso. Introdução à Teologia... Op.cit. p. 103.
28
Usarei a palavra escutar, mantendo assim a nomenclatura clássica do fazer teológico, que destina a escuta
voltada a busca da elaboração já realizada pela Tradição, mas ao mesmo tempo utilizarei o mesmo verbo com a
intenção de ouvir/ver/ perceber os clamores da vida, assim não se trata de voltar à tradição somente (auditus
fidei), mas também indagar a realidade na esperança de uma intelecção capaz de responder as necessidades
surgidas por este ouvir.
21
isso ainda hoje ela é atual. Enquanto Revelação, tecnicamente falando, terminou com a morte
do último apóstolo, mas, como mensagem, há que ser atualizada 29 para que o homem de hoje
também tenha a possibilidade de fazer este encontro com Deus. “A teologia, ao fazer-se
companheira, quer contar-lhe as estórias de Deus que lhe permitem encontrar sentido para
esta aventura tão breve entre os infinitos do ontem e do amanhã”.30
2. Literatura
A primeira etapa desta pesquisa teve como objeto a teologia. Após uma pequena
introdução sobre como nasce a teologia, o texto apresentou a necessidade da ciência da fé em
assumir-se como participante do momento presente. Para cumprir sua missão, a teologia
deverá dialogar com outras áreas do conhecimento, como a literatura. Nesta segunda etapa,
refletir-se-á sobre literatura como meio de construção social e instrumento de humanização,
capaz de revelar os mais profundos anseios antropológicos. Esta capacidade da arte será
terreno fértil para o teólogo poder examinar o contexto no qual a vida se desenvolve.
Na mentalidade moderna é muito comum pensar que tudo o que é verdadeiro está
relacionado ao labor científico, deste modo, a literatura seria considerada como falsa, devido a
sua força ficcional. Este pensamento pode ser entendido como um preconceito, depreciação,
pois, embora a literatura seja ficção, ela está ligada a uma tradição na qual o seu autor está
inserido, assim seu ponto de partida será a vida.
29
A transmissão viva da Palavra de Deus é mediada pela Igreja que a interpreta na fé, na acolhida humilde, para
si e para os outros em cada momento da história. LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da
modernidade. São Paulo: Loyola, 1992. p. 17 (Coleção Fé e Realidade - 31).
30
LIBANIO, J.B; MURAD. Afonso. Introdução à Teologia... Op.cit. p. 36.
22
A arte imita a vida. Com ela, temos certa compreensão do mundo, do humano e da sua
significação. A literatura também pode fazer com que a vida imite a arte, anunciando novas
possibilidades de construir a sociedade. Esta possibilidade criativa da literatura em meio à
vida cotidiana é profundamente reveladora, estar diante do provisório é captar e valorizar a
vida como uma história da qual fazemos parte e na qual podemos assumir um papel novo
31
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos
Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p .17.
32
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: aproximações pela antropologia. Disponível em:
http://<www.alalite.org/pt/coloquios/brasil2007/comunicacoes.html>. Acesso em: 9 dezembro 2011, 10:05:15.
33
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 165.
34
LAJOLO, Marisa. O que é literatura? 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 43.
35
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa 2: A configuração do tempo na narrativa de ficção. Tradução: Márcia
Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 33.
23
diante dos mais variados desafios, como nos assinala Massaud Moisés: “[...] o romance
encerra uma visão macroscópica da realidade, em que o narrador procura abarcar o máximo,
em amplitude e profundidade, com as antenas da intuição, observação e fantasia”. 36
Nenhuma obra nasce por si só, ela deve ser construída, planejada, por isso o autor é o
construtor da obra; ele tem como ponto de partida o seu referencial de vida, ela nasce das
memórias, dos sentimentos, dos questionamentos vividos. Desta maneira, a obra é um
conjunto de percepções que o autor vai reunir ao longo da sua caminhada de vida. As
lembranças narradas são composições racionais dos sentimentos vividos pelo autor, e esses
sentimentos nos revelam marcas da condição social e cultural em que o mesmo está inserido,
consequentemente, por trás de toda obra literária há uma antropologia a ser descoberta.38
Afirmar que o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, objeto desta pesquisa,
é profundamente marcado pela ficção é também afirmar que: “a própria criação da utopia se
nutre sempre de uma imaginação ancorada na realidade”.39 Destarte, temos que a obra de
ficção parte da realidade. A imaginação tornou-se um caminho que não apenas nos permite
captar o real, mas vai além, permitindo-nos projetar novas perspectivas da realidade. Desta
forma, encontramos o processo imaginativo na fantasia, na elaboração de projetos, nas
expressões simbólicas, nas ideologias e nas mais variadas emoções que nos afetam
diariamente. Neste sentido, esta pesquisa teológica buscará se aproximar da realidade vivida,
tendo como mediação ou instrumento de captação a obra clariceana.
François Laplantine e Liana Trindade, na obra O que é imaginário, nos diz que: “O
imaginário em liberdade, que rompe os limites do real, consiste na explosão que propicia o
36
MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 165.
37
RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro: Forense-Universitário, 1969. p. 35.
38
Destaca-se que o termo “antropologia a ser descoberta” está relacionado à compreensão do sentido do humano
apresentado na obra literária. Ou seja, num primeiro momento buscar-se-á a partir da obra literária os elementos
que constituem a vida dos personagens e somente depois é que estes elementos serão analisados.
39
LAJOLO, Marisa. O que é literatura? Op.cit. p. 46.
24
início de uma nova época ou apenas o tempo efêmero e extraordinário de uma festa [...]”. 40
Esta explosão provocada pela literatura tem como ponto de partida a tradição, que envolve o
autor. Por tradição deve-se entender o diálogo de tudo, o passado, o presente da configuração
das experiências vividas. A obra é a reelaboração do passado no presente, e o passado se
atualiza através da linguagem. 41 Segundo Vicente Ataíde, a literatura toca e revela o profundo
do ser humano: “O objeto da especulação literária é a realidade, tomada em sentido amplo,
absorvendo as regiões mais fundas do sujeito e as mais exteriores [...]. Através de palavras, o
sujeito da comunicação quer dizer o que observou, o que sentiu, o que intuiu [grifo do
autor]”.42
O romance, por ser obra de ficção, não se preocupa em retratar a verdade dos fatos.
Ficção está diretamente ligada à imaginação, trata-se de um texto irreal, mas o fato de ser
ficção não significa que seja falso. Como já foi apresentada acima, a literatura parte da
realidade, mas a sua maneira de expressar a realidade é metafórica, usa-se da força simbólica
para apresentar o contexto, e esta simbologia possibilita não só a atualização dos sentimentos
do autor, mas também a reinterpretação por parte do leitor. É exatamente neste ponto que se
situam as questões da verdade da literatura, o real é o inspirador, a vida é a potência, ou seja, a
possibilidade de novas interpretações da realidade. Nesse contexto, podemos até falar da
literatura como “filosofia imaginativa”, influenciada pelo social.
40
LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário? São Paulo: Brasiliense, s/ ano. p. 2.
(Coleção Primeiros Passos).
41
LAJOLO, Marisa. O que é literatura? Op.cit. p. 49.
42
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Curitiba: Ed. Dos professores, 1972. p. 4.
25
Os símbolos estão vivos, falam de mim, de você, da nossa família, do nosso grupo, da
nossa casa e, por estarem vivos, podem carregar negação ou aceitação de tudo aquilo que
representam. A linguagem simbólica é usada quando se esgotam as expressões comuns. É
como ponte que permite ao leitor ultrapassar os seus limites. A literatura é altamente
simbólica, os símbolos são construções humanas, portanto, por trás do simbólico existe um
ser humano que deseja relacionar-se.
O símbolo não cristaliza uma emoção; deve ser visto como uma moldura que não
possui uma definição de contornos; ele é livre como numa pintura. A moldura serve de
aparato para a verdadeira expressão que é a pintura, logo, entende-se que a obra de arte, em
especial a literatura, é uma obra aberta, aberta a um mundo de possibilidades. Esse universo
simbólico apresentado pela literatura proporciona uma enorme possibilidade de transgredir os
limites, construindo novas maneiras de ver o mundo. Transcender é a potencialidade do ser
humano para buscar alternativas que ofereçam sentido a sua existência. Isso não significa sair
correndo sem rumo... Trata-se de buscar sentido (direção e significado) para si mesmo
(consciência); compreender seu tempo no presente, através do passado, e poder construí-lo no
futuro.44
43
NASSER, Maria Celina de Q. Carreira. O que dizem os símbolos? São Paulo: Paulus, 2003. p. 11.
44
Idem. Ibidem.
45
Ibidem. p. 21.
26
O recurso simbólico é utilizado com um objetivo muito claro: ele deseja desinstalar o
leitor, levá-lo a lugares profundos e distantes da vida cotidiana. O símbolo é capaz de tocar no
homem interior. Por ter excesso de sentido, pode criar grandes mudanças no leitor. Segundo
L. A. Schökel, esta relação produzida pela força simbólica é verdadeiramente uma
iluminação: “A obra literária ilumina e descobre nossos pensamentos mais íntimos, torna-nos
conscientes de sua profundidade. Lendo nós mesmos, à luz do autor e da sua obra; e, nos
conhecendo melhor, podemos chegar à ação ou à conversão necessária”.46
46
SCHÖKEL, Luís Afonso. La parole inspirée. Ecriture Sainte à la lumiére du langage et de la littérature. Apud
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos
Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p. 81.
47
NASSER, Maria Celina de Q. Carreira. O que dizem os símbolos? Op.cit. p. 25.
27
A obra de ficção não cessa de fazer a transição entre a experiência antes do texto e a
experiência depois do texto48, afinal, o tempo fictício nunca está cortado do tempo vivido. A
obra literária projeta um mundo no qual as personagens realizam uma experiência fictícia do
tempo, nos apresentando um horizonte. Conclui-se que a ficção não pode romper as suas
amarras com o mundo prático, do qual procede e depois retorna. 49 Este processo apresentado
por Ricoeur é descrito por Antonio Manzatto da seguinte forma: “O autor compõe a obra e
por ela influencia o leitor; a obra influencia, em uma relação dialética, o sujeito que a criou e
aquele que a lê; o leitor dá um sentido e realidade à obra e, assim, influencia o autor”. 50
Paul Ricoeur trabalha a questão sobre o mundo da obra como uma projeção capaz de
fornecer um espaço de confrontação entre o mundo do autor e do leitor. Contudo, esta
confrontação só é possível após uma releitura da obra. É na sua interação com o leitor que
surge a obra como possibilidade narrativa e construtiva. Na perspectiva metafísica, a obra é
uma potência inacabada e a releitura será a atualização da obra.52 O mundo da obra tende ao
mundo do leitor. Sem a participação do leitor a literatura está incompleta. Seria como revelar
os segredos mais profundos a ninguém, seria como discursar sem plateia jogando palavras ao
vento.
A hipótese de Ricoeur tem como base o caráter comum da experiência humana, que é
articulado no tempo - “tudo o que narra acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o
que se desenvolve no tempo pode ser contado”.53 Assim acontece a relação entre ficção,
história e tempo. Deste modo, o texto será entendido como uma unidade linguística entre o
tempo vivido e o ato de narrar. A narração será elaborada por um conjunto de ações
48
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa... Op.cit. p. 125.
49
Ibidem. p. 130.
50
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura... Op.cit. p. 36.
51
Ibidem. p. 30.
52
Ibidem. p. 31
53
RICOEUR. Paul. Do texto a ação: ensaios de hermenêutica. Portugal: Rés-editora, s/d. p.24.
28
54
RICOEUR. Paul. Do texto a ação: ensaios de hermenêutica. Op.cit. p. 26.
55
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa... Op.cit. p. 132.
56
RICOEUR. Paul. O único e o singular. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Unesp, 2002. p.
19.
29
esperança, e este poder simbólico é também verificado na relação cultual das diversas
religiões.
A narração faz parte do patrimônio cultural de todos os povos. Ela pode ser escrita ou
oral. Narrar é relatar um determinado acontecimento, que pode ser real ou inventado. Logo, a
narração não deve ser um amontoado de fatos; deve ser organizada e estruturada, de forma a
apresentar os acontecimentos ocorridos de maneira significativa. 57 O papel da narração não é
apenas o de informar acontecimentos. Deve também mostrá-los, ao ponto de criar interesse ao
leitor. Ressalta-se que “por trás” de uma narração existe uma fabricação de ideias dispostas
que darão sentido à história. Este sentido que norteia a narração é denominado de tema.
57
CABRAL, Isabel Cristina M; MINCHILLO, Carlos Alberto C. A narração: teoria e prática. [coord] Ubaldo L
de Oliveira, 9. ed. São Paulo: Atual, 1989. p. 12.
58
Ibidem. p. 18.
59
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 3.
60
Ibidem. p. 4.
30
2.4.1 O enredo
Afirmar que a literatura parte da realidade significa aceitar que existe um momento,
um fato, uma lembrança, um episódio que serviram como base para a elaboração do artista. A
partir deste acontecimento, o autor fará a construção da história, que deverá ser coerente e
organizada. O enredo será a construção da trama de maneira coerente, na qual todas as partes
da obra estarão conectadas. Uma boa obra literária possui esta conexão, pois será através
desta conexão entre os episódios que a trama indicará um caminho, mostrando ao leitor a
proposta do texto, conforme relata Vicente Ataíde: “Os episódios e acontecimentos são o
conjunto de elementos vividos pelas personagens. Deve haver uma coerência própria entre os
acontecimentos e quem os vive”.62
Será considerado como um bom texto ficcional aquele no qual o público poderá fazer
a experiência do suspense. Este texto deve permitir ao leitor olhar tanto para o protagonista
como para sua vida, e enxergar uma série de variáveis possíveis. Para que o leitor faça esta
experiência, cabe ao autor usar das ferramentas disponíveis na elaboração da sua arte. Os
recursos devem ser agudos e intensos com o objetivo de prender a atenção do leitor, criando
um momento de interação com a obra, que será instigada por meio da riqueza de cada
episódio.
Verifica-se que, devida a sua importância, o enredo não deverá ser de forma alguma
um ajuntamento de fatos sem qualquer ligação. Nele deve haver qualidades da
verossimilhança. Entende-se esta verossimilhança como narração não do que aconteceu, mas
do que poderia ter acontecido. Em outras palavras, trata-se da reconstituição da realidade a
partir da realidade.
61
MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 167-69.
62
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 22.
31
2.4.2 A personagem
As personagens são seres que atuam como atores numa narrativa de ficção.65 Levando-
-se em conta que todo enredo é história articulada, a obra narrativa apresenta suas
personagens como pessoas que vivem dramas e situações parecidas com a maioria da
população, sendo como um espelho da sociedade. Massaud Moisés ressalta a importância da
percepção de que a literatura é o reflexo projetado da vida: São “‘representações’, ‘ilusões’,
‘sugestões’, ‘ficções’, ‘máscaras’ [...]”.66
63
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 26.
64
Ibidem. p. 28.
65
Ibidem. p. 37.
66
MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 226.
32
interligada à principal, mas enquanto pano de fundo. Por fim, a personagem irrelevante, que
aparece de maneira esporádica e com fraca atuação.67
67
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 41.
68
MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 234.
69
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 43.
33
que o espaço assume a condição de ambiente, ele apresenta uma atmosfera que envolve a
personagem.
2.4.5 Linguagem
A linguagem é um elemento muito importante da vida humana. Ela não é uma questão
qualquer à existência humana. Ela permite a fundação da consciência e construção do
entendimento de sua história. A linguagem assume o profundo do ser humano, nela encontra-
se o mistério da existência humana. A literatura como discurso artístico perscruta o mundo
humano, daí a importância do tema para a teologia.71
A linguagem pode ser falada ou literária. A falada é livre, enquanto a literária assume
um conjunto de regras, constituindo-se em linguagem lógica. Assim sendo, o romance não
reproduz o mundo, ele usa da linguagem, mas não da maneira como se fala, não é reprodução
dos fatos, como uma narração jornalística. Os principais expedientes romanescos - diálogo,
narração, descrição, dissertação - espelham essa discrepância entre linguagem falada e escrita
artística. Querer igualar a linguagem falada à linguagem escrita é errar o alvo.
70
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 55.
71
VILLAS BOAS, Alex. A essência da linguagem. Disponível em:
<http://www.teoliteraria.com/edicoes/ed002/port/pdf port/05 11 txt00 editorial.pdf> Acesso em: 9 dezembro
2011, 20:42:15.
34
Ressalta-se que esta aproximação da ciência teológica com a arte literária não é
exclusividade da teologia. Outras ciências, como a psicologia, também têm se aproximado da
literatura como mediação do seu pensamento. Igualmente, destacam-se a filologia, a
72
MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 242.
73
Destaca-se o IV Colóquio Latino Americano de Teologia e Literatura, sob o tema Literatura e Teologia em
diálogos e provocações. Organizado pela Alalite (Associação Latino Americana de Literatura e Teologia) em
conjunto com o grupo de pesquisa Lerte da PUC-SP, foi realizado na PUC-SP entre os dias 1 e 3 de outubro de
2012, e contou com mais de cem participantes de várias regiões do Brasil e do exterior.
74
Esta possibilidade de aproximação entre teologia e literatura ainda não possui caminhos definidos, por isso,
Alex Villas Boas usa a expressão “o caminho se faz caminhando” como um processo de elaboração e de
aprofundamento nesta relação. Cf. VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia: A busca de sentido em meio às
paixões em Carlos Drummond de Andrade como possibilidade de um pensamento poético teológico. São Paulo:
Crearte, 2011. p. 21-22.
35
linguística e a sociologia. Segundo Alejo Carpentier, esse interesse tem seu start no fato de a
literatura ultrapassar os limites da narração: “Por aí pode-se perceber que o romance vai além
da narração, do relato, ‘além do próprio romance’, e engloba os contextos social, econômico,
racial, religioso, político, cultural, ideológico e torna-se então interessante, como campo de
pesquisa, para várias ciências”.75
Tanto teologia como literatura são produtos humanos, são produções intelectuais. A
teologia é marcada pela reflexão à luz da fé, enquanto a literatura, por ser expressão artística,
é obra da imaginação, que, por sua vez, também possui seu viés de racionalidade.
Pela ficção ou poesia, a literatura põe em cena o homem vivo, com suas
questões, seus sonhos, seus problemas e seus sentimentos em face do
mundo da natureza, em face dos outros homens e diante de si mesmo. Ela
interessa-se por tudo o que é humano, de tal modo que se pode dizer que a
literatura é tão grande quanto o humano. 77
A partir da ótica do artista, a literatura pode apresentar sua visão do mundo, podendo
afirmá-lo ou criticá-lo. Esta visão apresentada pela arte, no caso específico desta pesquisa, o
romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, pode fazer com que a vida imite a arte,
dependendo da compreensão do ser humano e da sua significação ali apresentada. A literatura,
pela sua configuração simbólica, convida a vida a imitar a arte, anunciando novas
possibilidades de construir a sociedade. A obra de ficção pode afirmar ou contestar a história
75
CARPENTIER, Alejo. Literatura e consciência política na América Latina. Apud MANZATTO,
Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos romances de Jorge
Amado, São Paulo, Loyola, 1994. p. 64.
76
O termo tri-vial reporta ao conceito de trivialidade e faz referência à organização da cidade antiga em três vias
principais. Estas vias deviam convergir num único ponto. Neste ponto comum, os cidadãos se encontravam e
discutiam aspectos da vida que se impunham à existência humana. Ao usar este conceito de convergência,
destaca-se o antropológico como lugar de encontro entre teologia e literatura. Cf. BOFF, Leonardo. João Batista
Libanio: Teologia Peregrina: Pequeno ensaio de teologia “tri-vial”. In. KONINGS, Joham. (org). Teologia e
Pastoral: Homenagem ao Pe. Libanio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 43 (Coleção CES).
77
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura... Op.cit. p. 63.
36
em que o autor está inserido, conforme assinala Antonio Manzatto: “Inclusive a obra de
ficção, completamente outra e falsa com relação ao presente, se configura em confirmação ou
crítica do mundo real atual, pois se baseia na experiência vivida mesmo coletivamente, e
apresenta uma proposta de organização do mundo”.78
Isto porque o símbolo toca em núcleos, pontos internos nossos que remetem
a campos e áreas profundos e amplos. Esses campos são os lugares que
contêm histórias que um dia vivemos, imagens que criamos, emoções que
tivemos e, ao serem tocados, ressurgem e expressam o mistério da
vida/morte.79
A teologia possui uma configuração diferente da literatura. Ela não se preocupa com a
questão estética. Por meio da racionalidade a teologia articula as verdades das suas
afirmações. Deste modo, ela usa das palavras como um meio de expressão dos seus conceitos.
Em vista disso, sua linguagem é analógica. A fonte primeira e decisiva da teologia é a Palavra
de Deus, narrada na Sagrada Escritura. É ela que dá a possibilidade de existir à teologia,
portanto, a palavra não é estranha à teologia, pelo contrário, é constitutivo do seu ser. Embora
a palavra para teologia e para a literatura tenha características diferentes, “pois uma é de
78
MANZATTO, Antonio. Pequeno panorama de teologia e literatura. In. MARIANI, Ceci Baptista; VILHENA,
Maria Angela, (orgs). Teologia e Arte: Expressões de transcendência, caminhos de renovação. São Paulo:
Paulinas, 2011. p. 88.
79
NASSER, Maria Celina de Q. Carrera. O que dizem os símbolos? Op.cit. p. 6.
37
Antonio Magalhães expõe esta ligação da palavra com a teologia ao dizer que: “O
cristianismo é uma religião do livro”.81 Ao fazer esta afirmação, ele deseja ressaltar a força
dos pilares do anúncio cristão, que foram forjados através de múltiplas formas narrativas.
“Boa parte de seu poder reside no fato de ser literatura e exatamente por ser literatura possui
relevância na vida sociocultural”. 82
Esta força da Palavra, que Magalhães destaca na obra Deus no Espelho das Palavras,
fica mais evidente quando as narrativas das personagens bíblicas são incorporadas pelas
diversas culturas. Isso se dá na medida em que as missões avançam. Aliás, o sucesso do
cristianismo está no fato de assumir a literatura como veículo de evangelização, e não as
formulações dogmáticas. 83
Palavras são espelhos que refletem nossas imagens, que nos ajudam ver
melhor, nós mesmos e o próximo. São elas também que fazem repousar em
si a proximidade e a distância da verdade [...] ao falarmos de verdade,
falamos de Deus e de nossa experiência com o mistério doador de nossas
vidas. A literatura é companheira desse diálogo e dessa busca.85
80
MANZATTO, Antonio. Pequeno panorama de teologia e literatura. Op.cit. p. 89.
81
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 9.
82
Ibidem. p. 22.
83
Idem, Ibidem.
84
MANZATTO, Antonio. Pequeno panorama... Op.cit. p. 90.
85
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras. Op.cit. p. 25.
38
Alex Villas Boas, na obra Teologia e Poesia, aponta para o fato de não se ter um
método definido para esse encontro entre teologia e literatura. Verifica-se a possibilidade para
novas investidas hermenêuticas, pois a obra pode refletir muitas reações, dependendo de cada
leitor. “Apesar de já se estabelecer de modo bastante concreto como área de pesquisa, o
encontro entre teologia e literatura não possui um modo bem definido e consensual de como
podem caminhar juntas”.88
86
GOPEGUI, Juan A. Ruiz de. Experiência de Deus e Catequese Narrativa. São Paulo: Loyola, 2010. p. 14-15.
(Coleção Theologica).
87
Ibidem. p. 32.
88
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia... Op.cit. p. 23.
39
teologia e a literatura. Ressalva-se que ao nomear esses três métodos não se tem a intenção de
apresentá-los como algo fechado, pelo contrário, a questão metodológica está aberta a novos
caminhos e trabalhos. 89
Antonio Manzatto atribui ao primeiro bloco o nome de métodos antigos. Este modo de
aproximação busca encontrar na obra literária os elementos teológicos que ali estão. Neste
modelo de aproximação “a literatura seria simples lugar no qual se discutem temas de teologia
ou no qual diferentes correntes teológicas se encontram”. 90 Este método entende a literatura
como uma simples expressão do religioso.
89
MANZATTO, Antonio. Pequeno panorama... Op.cit. p. 92.
90
Idem. Ibidem.
91
Ibidem. p. 93.
92
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia... Op.cit. p. 45.
93
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras. Op.cit. p.174.
40
É exatamente o elemento antropológico revelado pela obra literária que será o ponto
de reflexão da teologia. Por conseguinte, nesta aproximação entre a teologia e a literatura,
busca-se o lugar do encontro, que é a revelação do antropológico, do sujeito social com todas
as suas marcas e complexidades. Nessa perspectiva, a relação entre teologia e literatura não
será feita com bases em uma análise literária propriamente dita. Procurar-se-á entender o
autor literário e a realidade em que está inserido, e a pergunta a ser feita não está voltada
diretamente ao sentido da obra, mas, sim, sobre o sentido da vida apresentado pelo autor no
conjunto da sua obra.96
94
Para um maior aprofundamento Cf. VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia... Op.cit. p. 44-46.
95
. MANZATTO, Antonio. Pequeno panorama... Op.cit. p. 96.
96
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia... Op.cit. p. 15.
97
MANZATTO, Antonio Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos
Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. Esta obra é resultado da sua tese doutoral apresentada em
1993, na Faculdade de Teologia Católica, na Universidade Católica de Louvaina, na Bélgica.
41
dos Milagres, de Jorge Amado. Elabora a sua reflexão a partir do ser humano e de todo o
contexto no qual o mesmo está inserido. “Neste concreto substrato antropológico da obra de
Jorge Amado, ele reflete sobre o Deus da Revelação que vem ao encontro dessa condição
humana”. 98
Salienta-se que o termo “aproximação” utilizado por Manzatto tem como objetivo
evidenciar que esta relação entre a teologia e a literatura não é uma necessidade, pois uma
área é independente da outra. Desta forma, percebe-se o desejo de aproximação de maneira
livre, e esta aproximação é possibilitada pelo seu caráter antropocêntrico 99, logo que esta
aproximação, a partir da literatura nacional, possibilita à teologia dialogar com o social, no
qual estamos inseridos. Ao assumir o ser humano revelado pela obra, o teólogo elabora a sua
teologia na busca de respostas aos desafios enfrentados por esse modelo de existência
apresentado na obra. Nota-se que a teologia assume o contexto da humanidade.
Magalhães entende que a teologia católica apenas repete o que já fora dito no passado.
Por essa visão, a literatura seria uma mera pergunta antropológica. Magalhães pretende
superar a instrumentalização da literatura pela teologia. Segundo Alex Villas Boas, essa
98
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia... Op.cit. p. 27.
99
Ibidem. p. 29-30.
100
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras. Op.cit. p.105.
42
Verifica-se que a abordagem feita por Antonio Manzatto está em consonância com o
atual pensamento teológico da Igreja, que tem como inspiração o Concílio Vaticano II. A
Revelação, por ser história, implica superação de uma possível instrumentalização, logo ela
deve estar direcionada à vida concreta e dialogar com a obra literária.
A teologia, tendo como interlocutora a literatura, não perde nada da sua metodologia
ou da sua cientificidade, pelo contrário, ela se enriquece ao ter que se fazer sensível à
realidade das personagens da obra e do mundo que elas apresentam. Deste modo, ela será uma
teologia viva e atenta à realidade da humanidade e, em especial, do povo latino-americano,
mantendo a marca teológica deste continente.
Esta aproximação entre teologia e literatura enriquecerá muito nosso continente, pois
ambas possuem um discurso que parte da realidade e buscam criar novos espaços, novos
conceitos, nos quais possibilitam a fecundidade da vida, seja no contexto pessoal, seja no
social. O papel do teólogo é o de constantemente contextualizar a mensagem cristã para a
sociedade do seu tempo. Para essa finalidade, o pensador deve dialogar com a realidade em
101
VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia... Op.cit. p.32.
102
Ibidem. p. 37.
43
que está inserido. Nesse quesito, a obra artística tem uma relação imediata com a
problemática histórico-social em que foi produzida. Assim, a literatura, como expressão
artística, desponta como ferramenta útil e eficaz.
4. Conclusão
A teologia como ciência da fé se faz atual uma vez que reinterpreta a realidade
histórica buscando o sentido radical do viver em todas as épocas e apresentando o valor e a
dignidade da vida humana. Com o objetivo de realizar esta tarefa, a teologia é incentivada
pelo Concílio Vaticano II, em especial na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, a estar
atenta à condição humana, perscrutando os sinais dos tempos e respondendo a cada geração
sobre o sentido da vida. Para o desafio de aproximar-se da realidade, reinterpretá-la e
responder aos seus anseios, a teologia sabe que pode se valer da expertise de outros saberes.
A aproximação entre teologia e literatura se torna rica de sentido, pois a literatura, que
não se afasta do real, apresenta-se como um lugar revelador da realidade na qual se
desenvolve a vida do ser humano. Desta forma, a teologia aproxima-se do real vivido e do
homem com todas as suas questões. E, por sua vez, o teor literário dá à teologia ocasião para
uma reflexão sobre a Palavra de Deus, não a partir do espaço eclesial, mas a partir do mundo,
e até mesmo fornece-lhe o material para a inculturação da fé, na medida em que desvela o
homem, a sociedade e a cultura, incentivando a busca pela compreensão do que significa ser
humano neste mundo.
Em seu diálogo com a literatura e com essa proposição, a teologia não abrirá mão de
seus valores e da sua identidade, daquilo que lhe é intrínseco. Por outro lado, a literatura
também não perderá aquilo que lhe é peculiar. A relação entre ambas deve ser dialógica.
Nesta pesquisa teológica, buscar-se-á a convergência entre a Palavra Eterna de Deus revelada
ao homem e o momento histórico no qual este mesmo homem está inserido, tendo como
instrumento de mediação a obra literária, em especial o romance A hora da estrela, de Clarice
Lispector, que será apresentada no próximo capítulo.
44
O primeiro capítulo desta pesquisa teve como enfoque principal a relação dialogal
entre a teologia e a literatura. A literatura por seus procedimentos próprios aproxima seus
interlocutores da vida real, sendo, portanto, uma importante mediação na análise da
compreensão do ser humano. Logo, à medida que a teologia se aproxima da literatura,
aproxima-se também da vida real. Destaca-se que este diálogo entre teologia e literatura se
desenvolverá a partir dos dados antropológicos contidos no romance A hora da estrela, de
Clarice Lispector, que, por sua vez, possibilitará novos horizontes para a reflexão teológica.
103
LISPECTOR 1973, p. 14. Apud KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: Entre o biográfico
e o literário: uma ficção possível. São Paulo: EDUC, 2003. p. 19.
45
Em dezembro de 1920105, nasceu Haia/Chaia, que em hebraico quer dizer vida “e que,
devido a semelhanças fonéticas com Clara, suscitou uma versão em português do nome da
menina Clarice”.106 Sua cidade natal é Tchetchélnik, na Ucrânia, que na época ainda pertencia
ao Império Russo. Esta cidade era considerada como um “típico lugar encardido onde, até a
virada do século XIX para o XX, vivia a maior parte dos judeus do mundo [...]. O lugarejo
tinha cerca de 8 mil habitantes, um terço dos quais era judeu”.107 O cenário da época não era
dos melhores: a Rússia ainda vivia sob o impacto da Primeira Grande Guerra e amargava as
consequências da Revolução dos bolcheviques. E a Ucrânia da década de trinta é marcada
pelas perseguições aos judeus, que encontravam na cidade natal de Clarice seu lugar de
refúgio. “Reza a lenda que a raiz da palavra Tchetchélnik, Kaçan lik é a palavra turca para
refugiado”.108 Esses acontecimentos motivaram a família de Clarice a buscar melhores
condições de vida, por isso, decidiram emigrar para a América. 109
104
WALDMAN, Berta. Clarice Lispector: a paixão segundo C.L. 2. ed. ver. ampl. São Paulo: Escrita, 1992. p.
14.
105
Em Clarice nada é tão simples. Não é somente a sua escrita que possui um ar de mistério, a datação do seu
nascimento também traz controvérsias. A certidão original escrita em ucraniano apresenta a data de nascimento
no dia 10 de dezembro de 1920 e a data da emissão do documento é de 14 de novembro de 1921. Porém, num
passaporte russo, a data é de 10 de outubro de 1920. Cf. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se
conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 32-36.
106
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 37.
107
MOSER, Benjamim. Clarice, uma biografia. Tradução: José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
p. 27.
108
Ibidem. p. 29.
109
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. Op.cit. p. 41.
46
A viagem de navio durou cerca de um mês. Seu pai Pedro 111, sua mãe Marieta, as duas
irmãs Elisa e Tania e a recém-nascida Clarice (Chaia) chegaram ao Brasil no ano de 1922,
mais especificamente na cidade de Maceió, no Estado de Alagoas, onde passaram a residir. A
casa da família Lispector ficava afastada do centro. Pedro trabalhava como mascate e
fabricante de sabão, mas os ganhos eram parcos. Já em 1925, a família mudou-se para Recife
por motivos de trabalho, como relata o escritor e tradutor americano Benjamim Moser:
Era uma atividade comercial, mas bem diferente [...] Ele percorria as ruas
dos bairros mais pobres do Recife com um carrinho de mão e anunciava
gritando com seu sotaque de estrangeiro e sua voz cansada: “Compa
rôpaaaaa, compa rôpaaaaa” [...] Ele adquiria roupas velhas, usadas, e as
revendia para comerciantes da cidade [...] até hoje eu guardo aqui no meu
ouvido a voz de Clarice imitando o pai [...].112
O trabalho de mascate era intercalado com o de lavrador, mas isso também não era
suficiente. A pobreza ainda era marcante, conforme nos relata Nádia Battella Gotlib: “Havia
muita pobreza. Era muito pobre, muito pobre. Filha de imigrantes”.113 A vida da família é
bem simples; a mãe sofria de paralisia progressiva, doença que a levou a morte em 21 de
setembro de 1930, aos 41 anos de idade. Clarice tinha apenas 9 anos.
Por volta de 1935 a família deixou Recife e se transferiu para o Rio de Janeiro, para
uma casa antiga, no bairro de São Cristóvão, e dali partiu para a Tijuca. Em 1937, Clarice
passou a lecionar aulas particulares de português e matemática. 114 No ano de 1939, iniciou o
curso de Direito na Universidade do Brasil. A iniciativa teve influência dos outros, conforme
110
LISPECTOR, Clarice. “Esclarecimentos – Explicação de uma vez por todas”. Apud MOSER, Benjamim.
Clarice, uma biografia. [trad. José Geraldo Couto]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 32.
111
Somente no Brasil a família adotou nomes brasileiros, o pai Pinkhas passou a ser chamado de Pedro, a mãe
Mania passou a ser chamada de Marieta, sua irmã Leah adotou Elisa e Chaia virou Clarice. Cf. MOSER,
Benjamim. Clarice, uma biografia. [trad. José Geraldo Couto]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 71.
112
LERNER, Julio. Clarice Lispector, essa desconhecida. São Paulo: Via Lattera, 2007, p. 44-45; “Compaaaaa
rôpaaaaa”, entrevista com Olga Borelli. Apud MOSER, Benjamim. Clarice, uma biografia. [trad. José Geraldo
Couto]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 27.
113
LISPECTOR, Clarice. Entrevista, MIS-RJ, 20 out. 1976. Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida
que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011 p. 59.
114
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. Op.cit. p. 146.
47
ela mesma nos conta: “Quando eu era pequena, eu era muito reivindicadora de direitos [...]
Então, me diziam: ela vai ser advogada. Então isso ficou na cabeça. E como não tinha
orientação de espécie nenhuma sobre o que estudar, eu fui estudar advocacia”. 115
Com a morte do pai em 26 de agosto de 1940, aos 55 anos de idade, Clarice passou a
morar com a irmã Tania, que já era casada. No mesmo ano, Clarice iniciou a carreira de
jornalista. Em 1941, começou seu namoro com Maury Gurgel Valente que, mais tarde, em
1943, se tornaria seu marido. Naquele mesmo ano, Clarice lançou o primeiro romance
chamado Perto do Coração Selvagem116. No ano seguinte (1944), a obra faturou o prêmio
Graça Aranha como o melhor romance de 1943. Ainda em 1944, seu marido assumiu a função
de vice-cônsul na Itália, e ambos foram morar em Nápoles.
A obra O Lustre foi publicada em 1945 pela editora Agir, e divulgada no ano seguinte,
quando o casal passou a residir na Suíça, mais precisamente na cidade de Berna, onde ficara
até 1949. O ano de 1948 foi muito produtivo: Clarice terminara a obra A Cidade Sitiada, após
três anos de trabalho. Ela escreveu também outros contos como: Laços de Família, Mistério
em São Cristóvão e O crime do professor de matemática. No mesmo ano, o dia 10 de
setembro torna-se uma data marcante para ela, pois nasce seu primeiro filho, Pedro.
O retorno ao Brasil ocorreu no ano de 1950, mas logo Clarice retorna ao continente
europeu, mais precisamente na Inglaterra, onde permanece por seis meses. Dois anos depois a
família muda-se para Chevy Chase, cidade próxima a Washington, nos Estados Unidos, onde
nasce seu segundo filho, Paulo (10 de fevereiro de 1953).
O ano de 1959 é marcado pela separação do casal e pela volta de Clarice ao Brasil
com os dois filhos, porém, a oficialização da separação conjugal só ocorrerá em 1964, mesmo
ano que é publicada a novela A paixão segundo G. H. que, no ano seguinte, ganhará ensaios
críticos de Benedito Nunes, José Américo Mota, entre outros.117 Sua primeira obra a virar
peça de teatro será Perto do Coração Selvagem, exibida no teatro Maison de France, no Rio
de Janeiro.
115
LISPECTOR, Clarice. entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, em 20 out, 1976.
Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011
p.164.
116
Ibidem. p. 613.
117
Ibidem. p. 623.
48
Nesta busca das origens por meio das palavras, Clarice faz referência à tradição
judaico-cristã, que tem como fonte da sua fé a Revelação. Entende-se essa Revelação como
percepção; o ser humano capta na sua história aquilo que Deus lhe apresenta; esse aspecto
118
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. Op.cit. p. 627.
119
KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector... Op.cit. p. 19.
120
Ibidem. p. 20-21.
49
deriva da escuta atenta da vida. É isso que a linguagem clariceana faz, ela exige do leitor um
momento de escuta para poder captar a vida e, assim, nesta nova percepção de caráter
revelador, ele, o leitor, poderá interagir com a sua realidade.
Pois bem, na obra clariceana, segundo minha leitura, há uma ênfase bastante
grande na relação oral versus [grifo do autor] escrito, cujo sentido mantém
semelhança com a tradição bíblica. A conversão dos fiéis, a fé, a cura, no
contexto bíblico são devidos à escuta da palavra divina e, antes disso, a
criação, no Gênesis, se dá pela palavra dita. Na obra clariceana, a palavra
escrita assume caráter fundamental, semelhante ao bíblico, de criação e
transformação. Portanto, Clarice reivindicará em relação ao seu texto, não
uma leitura pura e simples, mas uma escuta, querendo marcar com isso um
efeito particular, o da transformação gerada pela palavra, a qual se
concretiza, não apenas na escrita, mas sobretudo na fala, ou seja, na palavra
dita e escutada.121
Como judia, Clarice sabe muito bem o significado do Êxodo, a libertação não só de
um povo, mas de toda humanidade e seus escritos remetem a essa libertação, a esse sentido de
busca de liberdade. Gradativamente, a narrativa de Clarice assume uma nuance libertadora
diante do leitor, ajudando-o a sair de suas possíveis alienações. Assim sendo, a narrativa
clariceana será o resgate da história de ambos, autora e leitor.
Ressalta-se que o fato de Clarice ser judia não significa que em sua obra se
encontrarão elementos do judaísmo, como sinagogas ou templos. É exatamente no não dito,
fora dos lugares comuns, que se percebe a literatura da fugitiva-estrangeira, que está em
constante movimento, que deseja encontrar o significado do seu nome: vida. Portanto, à
medida que se mergulha no texto se encontram os traços da trama da vida da autora.
121
KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector... Op.cit. p. 22-23.
122
Ibidem. p. 36.
50
Como seu texto, que instiga o leitor a iniciar um processo de rupturas com os padrões
convencionais, também a tessitura clariceana representa uma inovação no País, capaz de
sacudir os padrões conformistas e arcaicos da literatura da época. “O surgimento de Clarice
Lispector (1920-77) no cenário literário brasileiro dos anos 40 representou um verdadeiro
choque para críticos e leitores da época”.124 A primeira obra de Clarice Lispector, Perto do
Coração Selvagem, significou uma enorme transformação na literatura nacional, que até então
era marcada pelo regionalismo 125, que geralmente procurava retratar as injustiças ocorridas no
Brasil, em especial no Nordeste, conforme o apontamento de Márcia Lígia Guidin: “Num
segundo momento do nosso modernismo, a literatura brasileira tratava principalmente das
relações do homem com a seca e com a miséria. Denunciavam-se as relações de favor e o
coronelismo”. 126
123
MOISÉS, Massaud. p. 17. Apud SILVA, Evandro César Cantaria da. O judaísmo encalacrado: mística e
religião em A hora da estrela. 2006. 146 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Universidade
Metodista de São Paulo, São Paulo. p. 25.
124
ROSENBAUM. Yudith. Folha Explica: Clarice Lispector. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 8.
125
Ressalta-se que esta revolução não é obra apenas de Clarice Lispector. Na verdade estava em andamento uma
verdadeira revolução artística que tinha como base inúmeras propostas estéticas. Estas propostas estéticas
afetaram vários campos da arte como: arquitetura, pintura, publicidade, música, etc.. Cf. VIEIRA, Telma Maria.
Clarice Lispector: uma leitura instigante. 1996. 122 p. Dissertação (Mestrado: Comunicação e Semiótica),
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. p. 15-16.
126
GUIDIN. Márcia Lígia. A Hora da Estrela: Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1994. p. 13.
127
Ibidem. p. 13.
51
Uma das primeiras vozes da crítica a saudar a obra de Clarice foi Antonio Candido.
Em 1944, ele analisa Perto do Coração Selvagem, e destaca a rara capacidade de vida interior
da autora. O renomado crítico continua sua avaliação salientando que Clarice não caminha
por terreno batido; sua escrita é uma aventura, num ritmo diferente, em que por meio da
linguagem a autora apresenta a sua visão de mundo. Segundo o crítico, a escrita de Clarice
Lispector faz da descoberta do cotidiano uma profunda aventura.
Outra crítica importante foi elaborada por Sérgio Milliet no seu diário crítico, volume
II, datado de 15 de janeiro de 1944. Sérgio reage de maneira positiva à estreia de Clarice.
Mais que isso, ele não contém a surpresa e comemora a descoberta assinalando:
128
Para Dany Al-Behy Kanaan este romper de Clarice com o modelo regionalista refere-se à inserção da autora
no contexto social em que ela vive, marcado por uma sociedade fragmentada, dado característico da sociedade
moderna. Cf. KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: Entre o biográfico e o literário: uma
ficção possível. São Paulo: EDUC, 2003. p. 60.
129
ROSENBAUM. Yudith. Folha Explica: Clarice Lispector. Op.cit. p. 19.
130
Ibidem. p. 19.
131
Esta pesquisa não tem a intenção de fazer uma análise da crítica sobre Clarice Lispector. Por ser uma pesquisa
teológica em diálogo com a obra A hora da estrela deixar-se-á a questão técnica e crítica àqueles que são mais
competentes nesta área. Ao trabalhar de forma singela a questão sobre a relação da crítica e a autora, não se tem
aqui a preocupação de resgatar as discussões e divergências da crítica literária. O objetivo deste tópico é o de
apontar a mobilização da crítica diante de uma autora singular no plano da linguagem.
132
MILLIET, Sérgio. Diário crítico (1944). Apud SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ;
Lorena-SP: Vozes e Faculdades Integradas Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 24.
52
Sérgio ainda destaca o imprevisto chocante do sentido das palavras da autora, que tem
como objetivo levar o leitor a compreender melhor as reações das personagens. Ele aponta o
estilo de Clarice como um desmaio ou êxtase. Porém, para Sérgio, na obra A Cidade Sitiada
de 1949, a autora se perde nos ornamentos, dificultando o entendimento da obra. Mas este
apontamento não o faz mudar de opinião sobre a escritora. Pelo contrário, como nos mostra
mais esse elogio:
Apesar disso, reafirma ser Clarice Lispector uma escritora de grande talento,
cujo estilo se desdobra a serviço de um temperamento feito de curiosidade
sensual e de sensibilidade angustiada [...] Sua inteligência não analisa, não
observa, apenas exprime, em imagens inesperadas e sutis, aquilo que os
sentidos apreendem. 133
Para Sérgio, a técnica de Clarice é como um grito de café fresco. Ele se refere ao grito
como algo repentino feito o cheiro do café, numa analogia à arte de viver de Clarice. Trata-se
de imagens alicerçadas na linguagem que buscam atingir o profundo do ser humano.
O crítico Álvaro Lins também não economiza elogios à autora. Em seu entender, a
literatura clariceana é lírica e pertencente à tradição de Joyce ou de Virginia Woolf.134 Álvaro
Lins assim define a literatura de Clarice devido o seu entendimento sobre o lirismo como uma
apresentação da realidade, por meio do sonho: “[...] realidade não fica escondida ou sufocada,
porém é levada para os seus planos mais profundos, mais originais, nas fronteiras entre o que
existiu de fato e o que existiu pela imaginação”.135 Álvaro entende que Clarice rejeita a forma
tradicional do romance, mas alia esse estilo de escrever à jovialidade da autora, apostando
que, com o passar dos anos, sua escrita irá amadurecer.
Gilda de Mello e Souza percebe que Clarice apresenta a sua visão do mundo por meio
do mito. De acordo com Olga de Sá, ela parte dos limites dos gêneros literários regidos por
certas normas estéticas. Por isso, ela não é adepta do empréstimo de um gênero ao outro, no
caso do barroco, em relação ao requinte. Já para Sérgio Buarque de Holanda existe uma
aproximação entre Oswald e Clarice. Ele os coloca como renovadores do romance
133
MILLIET, Sérgio. Diário crítico (1944). Apud SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ;
Lorena-SP: Vozes e Faculdades Integradas Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 26-27.
134
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ: Vozes; Lorena-SP: Faculdades Integradas
Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 29.
135
LINS, Álvaro. A experiência incompleta: Clarice Lispector. In: Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos
(1940-1960). RJ, Civilização Brasileira, 1963, p. 188. Apud SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector.
Petrópolis-RJ; Lorena-SP: Vozes; Faculdades Integradas Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 29.
53
Assis Brasil, num artigo denominado A volta de Clarice, de 1960, aponta para o fato
de a autora ser desconhecida do público brasileiro exatamente por escrever de maneira nova:
Nos nossos dias, já ninguém duvida de que a história do mundo deve ser
reescrita de tempos a tempos. Esta necessidade não decorre, contudo, da
descoberta de numerosos fatos então desconhecidos, mas do nascimento de
opiniões novas, do fato de que o companheiro do tempo que corre para a foz
chega a pontos de vista de onde pode deitar um olhar novo sobre o passado
[...].138
A história, portanto, deve ser olhada como algo que poderia ter sido, e não uma
verdade absoluta, logo, o texto literário, por ser rico em simbolismo, toca a realidade, fazendo
a comunicação do convencional e a projeção de algo maior. Para alcançar este objetivo,
Massaud Moisés aponta o tempo como fator determinante:
136
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p. 33.
137
SOUZA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: Figuras da escrita. Braga: Universidade de Minho/Centro de
Estudos Humanísticos. 2000. p. 74.
138
SCHAFF, Adam. História e Verdade, p. 219. Apud KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada: O social
em Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Editora Liberdade, 1999. p. 25.
54
Percebe-se que a literatura brasileira até Clarice, embora rica e com brilhantes
escritores, não havia ainda explorado a expressão literária e o uso linguístico como ela.
Conforme ressalta Olga de Sá: Clarice “retorna aquela linguagem de invenção, dos raros que
fizeram (exploração das palavras), como Oswald e Mário; daí a surpresa que provoca”.140
Verifica-se que a obra de Clarice busca fazer da ficção uma forma de conhecer o mundo, por
meio da expressão, agindo sobre a língua como instrumento, criando imagens e associações
incomuns.
Nesse (romance de aproximações) ela cria uma rara tensão psicológica, que
se reflete numa espécie de tensão linguística: vocábulos que perdem o
sentido comum e ganham expressão sutil [...] o que leva Antonio Candido
afirmar que as palavras do texto se transformam em valores e não somente
141
sons e sinais.
Eduardo Portella, em um dos seus artigos, entende que o estilo de Clarice apresenta a
complexa intimidade humana; seu estilo é capaz de criar sensações derivadas da intensa carga
emocional que se encontram em seus vocábulos, simbolizando um novo estágio da cultura
brasileira.142
4. A escritura clariceana
139
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p. 192. Apud SÁ, Olga de. A
escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades Integradas Tereza D’Ávila (FATEA),
1979. p 190.
140
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 102.
141
Ibidem. p. 103.
142
Ibidem. p. 42.
55
Esta relação de transformação profunda pode ser percebida na obra A hora da estrela,
quando o narrador Rodrigo S.M apresenta a sua relação com a personagem nordestina. O
texto relata Macabéa olhando-se no espelho e num instante (num rufar de tambor) acontece
uma troca, pois o rosto que aparece no espelho não é mais de Macabéa e sim do narrador. 145
Esta intertroca narrador/personagem, segundo Evando Nascimento, indica um tornar-se outro.
Este poder de acometer o leitor causado pelo texto clariceano tem como uma das
características básicas a metalinguagem. Entende-se a metalinguagem como exploração da
palavra que provoca surpresa, conforme relata Olga de Sá:
143
NASCIMENTO, Evando. Clarice Lispector: uma leitura pensante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012. p. 26. (Coleção Contemporânea).
144
Ibidem. p. 32.
145
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 28. Doravante a obra A hora da
estrela será citada com a sigla HE.
146
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 130.
56
Destaca-se que o termo epifania não aparece explicitamente na obra de Clarice. Olga
de Sá, na sua renomada obra A escritura de Clarice Lispector, apresenta a pertinência deste
termo em relação à escrita clariceana148. Olga faz uma ponte entre a obra de Joyce e de
Clarice: “Clarice privilegia este momento da obra de Joyce na sua própria inauguração como
romancista. Jamais usa o termo epifania e se tem consciência deste processo, não o demonstra
explicitamente”.149
147
PICCHIO, Luciana Stegagno. Epifania de Clarice. In REMATE DE MALES, Campinas, (9): p. 17-20, 1989.
148
Olga de Sá apresenta vários exemplos sobre a epifania nos textos clariceanos. Cf. SÁ, Olga de. A Escritura de
Clarice Lispector. 3. Ed. Petrópolis- RJ: Vozes, 1979. p. 192-206.
149
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 194.
150
HOLANDA, 1975, p. 541. Apud MORAES, Rozania Maria Alves de. Epifania e “crise” uma análise
comparativa em obras de Clarice Lispector e Marguerite Ruas.
<http://periodicos.ufrn.br/index.php/odisseia/article/view/2056/1490> Acesso 29 janeiro 2013, 10:00:20.
151
SANT’ANNA, Afonso Romano de. 1973, p. 187. Apud MORAES, Rozania Maria Alves de. Epifania e
“crise” uma análise comparativa em obras de Clarice Lispector e Marguerite Ruas. Disponível em:
<http://periodicos.ufrn.br/index.php/odisseia/article/view/2056/1490> Acesso 29 janeiro 2013, 10:00:20.
57
Evidencia-se que Clarice utiliza os recursos da linguagem para criar uma tensão
psicológica. Esta tensão gera um momento imprevisível, capaz de romper com o comum da
vida ou com os clichês criados pela sociedade que impedem o equilíbrio do homem moderno
justamente por gerar angústias e desconfortos. A crítica brasileira considera o termo epifania
como um instante existencial, um retirar o véu; trata-se de uma revelação interior ou um
momento explosivo, porém silencioso, um instante interior advindo dessa tensão psicológica.
Clarice inaugura uma nova práxis da escrita, e não um conceito novo. Sua práxis deseja
exprimir as sensações da vida que serão submetidas às palavras.
Nesse “romance de aproximação”, ela cria uma rara tensão psicológica, que
se reflete numa espécie de tensão lingüística: vocábulos que perdem o
sentido comum e ganham uma expressão sutil, de tal forma que a língua
adquire o mesmo caráter dramático do enredo. Clarice permite ao leitor
respirar uma atmosfera de grandeza [...].153
152
Para um maior aprofundamento confira: RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 2. ed. Tradução: Dion Davi
Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.
153
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 130.
154
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada: O social em Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Editora
Liberdade, 1999. p. 26.
58
Este processo de ficcionalização da palavra, utilizado por Clarice, faz com que o leitor
se surpreenda com o texto que, por sua vez, flui por meio de “flashes”, ou instantes
epifânicos. Esses flashes permitem ao leitor um profundo questionamento sobre a vida, sobre
sua realidade, desencadeando uma reflexão sobre seus problemas existenciais e éticos. A
escrita de Clarice pode ser considerada uma verdadeira maiêutica socrática, pois realiza no
leitor aquilo que a palavra maiêutica significa: um parto.
4.2 O silêncio
155
BATHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética, p.94. Apud KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura
Dissimilada: O social em Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Editora Liberdade, 1999. p. 34.
156
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada... Op.cit. p. 41.
157
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p. 212.
59
sem palavras, como a própria autora aponta: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma
fotografia muda. Este livro é um silêncio”.158
4.3 O grotesco
Na obra A paixão segundo G.H. (1964), nota-se claramente esse processo de surpresa
causado pela metalinguagem. A obra relata uma personagem que vive num mundo
organizado, embora este mundo não fosse tão bom. Observa-se que, ao deparar-se com uma
barata, a vida desta personagem não será mais a mesma. Ocorreu uma experiência marcante
que levou a protagonista a perceber que perdeu sua terceira perna; sua vida fora afetada,
desinstalando-a do comodismo e desorganizando-a.
158
HE, p. 16-17.
159
AV, p 33.
160
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada... Op.cit. p. 44.
60
5. O social em Clarice
Embora a obra de Clarice esteja voltada para a linguagem que, por sua vez, é
fragmentada e desarticulada, ela está ancorada na realidade. A escrita clariceana fundada na
ficcionalização da palavra possibilita ao leitor se deparar com um processo de rupturas com os
padrões convencionais. Segundo Neiva Pitta Kadota, o fato de a narrativa clariceana ser
fragmentada acabou provocando em alguns de seus leitores e críticos a ideia de que a autora
seria subjetiva e intimista. Para Neiva, esta classificação da obra de Clarice é inadequada.
Segundo ela, Clarice toca as questões sociais por meio das palavras ficcionalizadas:
De acordo com Olga de Sá, Clarice não faz literatura engajada. Deve-se entender
engajada como uma escrita que explicitamente trata de justiça social ou de lutas de classes.
Como fundamento do seu argumento, Olga cita a própria Clarice:
Olga classifica a obra A hora da estrela como um conto paralelo (paródia), mas um
conto que, por meio da personagem principal (Macabéa), é capaz de fazer uma grande
denúncia do contexto social nacional:
161
SÁ, Olga de. Clarice Lispector: A travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1993. p. 99.
162
Ibidem. p. 20.
163
LE, p.149. Apud SÁ, Olga de. Clarice Lispector: A travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1993. p.243.
61
Esta denúncia social apontada por Olga de Sá pode ser dividida em três tipos distintos:
Suzi Frankl Sperber, no seu artigo intitulado Jovem com ferrugem, que trata da obra A
hora da estrela, faz as seguintes observações sobre a temática social: “‘Clarice Lispector
apresenta a estrutura interna do ser humano – massacrado. Com este processo, aparentemente
de pura introspeção e de pura fabulação filosófica, ela questiona o mundo organizado e a
cultura dominante, resgatando do preconceito os ofendidos e humilhados’”. 166
164
SÁ, Olga de. Clarice Lispector: A travessia do oposto. Op.cit. p. 244.
165
Idem. Ibidem.
166
SPERBER, Suzi Frankl, “Jovem com ferrugem”. In Os pobres na literatura Brasileira; Roberto Schwarz. SP,
organizador, SP, Brasiliense, 1983, p. 160. Apud SÁ, Olga de. Clarice Lispector: A travessia do oposto. São
Paulo: Annablume, 1993. p. 246.
62
A obra A hora da estrela possui uma profunda denúncia social. Clarice nos revela
esses elementos por meio do seu projeto metalinguístico. Para Ana Aparecida Arguelho de
Souza, o processo de desumanização em A hora da estrela caracteriza de forma marcante as
personagens, especialmente Macabéa. É por meio dela que Clarice denuncia a alienação da
sociedade. A abordagem social também é destacada por Márcia Lígia Guidin. Para ela, a obra
defronta a miséria e a desigualdade: “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas
por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam
sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam”. 168
A narrativa enfrenta a dura problemática do país nos anos 70, evidencia a contradição
da sociedade que, junto com o avanço tecnológico, produz igualmente a miséria humana e
social.
O narrador considera Macabéa como uma pessoa inapta à vida. Ela é o avesso da
cultura moderna e fruto de obra burguesa orquestrada que marginaliza as pessoas:
167
ROSSONI, Igor. Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma leitura de vida e como vida. São
Paulo: UNESP, 2002. p. 144.
168
HE, p.18.
169
GOTLIB, Nádia B. Clarice: uma vida que se conta. Op.cit. p. 70.
170
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector: Um estudo social em A hora da
estrela. São Paulo: Musa Editora, 2006. p. 12.
63
Há, portanto, em HE uma norma burguesa que define por oposição o que é
não ter e não ser. Nem bonita, nem culta, nem inteligente, nem independente
financeiramente, nem ligada amorosamente a um homem que a conduzisse e
amparasse, Macabéa percorre o romance acumulando camadas descritivas e
narrativas dessa negação. Clarice Lispector, que tanto se parece com suas
personagens anteriores, se debruça agora sobre a mulher de outra classe e
condição para dela extrair uma feminilidade outra, virtualmente
desconhecida.171
A obra A hora da estrela, sendo a última obra de Clarice, tratará de uma denúncia
clara da alienação que se vivia na época, conforme relata Ana Aparecida Arguelho:
Clarice trabalha com o cotidiano, com o comum, com a vida que se realiza nos becos,
nas vielas, nas cidades, nos jardins, com a vida que passa despercebida, que simplesmente
escorre. A sua protagonista é uma das milhares de pessoas que passam despercebidas; aí está
a sua sensibilidade: denunciar aquilo que o comum finge que não vê, mas que está presente.
Esta obra trata das confluências entre o projeto estético de A hora da estrela
[grifo do autor], de Clarice Lispector, e a ideologia nela subjacente, que pode
ser apreendida por meios dos recursos utilizados na escritura da obra, com os
quais a autora põe em pauta a natureza social do Homem. A centralidade do
projeto escritural de A hora da estrela [grifo do autor] é o Homem. A marca
do humano reside na capacidade de linguagem e consciência do homem. [...]
A linguagem de Clarice Lispector, pela voz do narrador Rodrigo, revela sua
171
GUIDIN. Márcia Lígia. A hora da estrela: Clarice Lispector. Op.cit. p. 37.
172
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 13.
173
Ibidem. p. 12.
64
Portanto, como relato mimético, a obra A hora da estrela acaba sendo uma denúncia
da situação social. Trata-se de uma busca da existência por meio da linguagem, em que a
autora assume o seu status social de cidadã comprometida com o seu país, com o seu tempo e
com a vida. Nesta mesma linha, pode-se relacionar o seu engajamento como participação no
projeto do êxodo. Não se trata apenas de relatar o contexto social em que a obra foi escrita,
mas busca-se por meio da interação obra-leitor uma alternativa de vida que possibilite a
libertação do ser humano massacrado por este modelo cultural. Optar pela denúncia social
contida na obra A hora da estrela é uma tentativa de conduzir o ser humano a “novas terras”,
terras onde a sua humanidade seja fortalecida.
6. A hora da estrela
Clarice apresenta A hora da estrela como uma história tecnicolor, justamente porque
quer indicar aos seus leitores os sintomas da sociedade técnica e reprodutiva. Segundo a
própria autora, trata-se de uma obra que pretende fisgar o seu leitor: “A dor de dentes que
perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa [...]”.177 A autora busca, por
meio da obra, invadir o seu leitor, com o objetivo de fazê-lo perceber a precariedade e a falta
do essencial que envolve toda a trama e, em especial, a personagem Macabéa.
174
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 15.
175
Ibidem. p. 25.
176
HE, p. 10.
177
HE, p. 11.
65
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com
tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante
de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos
de geleia trêmula. Será essa história um dia meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada –
que cada um reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem
não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe
faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado
essencial. 178
Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira,
respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula
com o seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais que uma
invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E
dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida [...] Sei que há
moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em
vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem
corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a
ninguém. 181
O narrador ressalta que está se aquecendo para falar da moça nordestina, mas o
material que ele utilizará - “as palavras” - será o mais simples possível. Trata-se de um
trabalho de carpintaria com o objetivo de captar e apresentar ao leitor a realidade delicada da
vaga existência da jovem.
178
HE, p. 12.
179
HE, p. 13.
180
Idem. Ibidem.
181
Idem.
66
[...] limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda
feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido
de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o
terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar
lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater a
máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora,
ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava
a letra linda e redonda do amado chefe a palavra “designar” de modo como
em língua falada diria: “desiguinar”.182
Aos poucos, como que em conta-gotas, o narrador Rodrigo S.M. vai apresentando
aspectos da moça nordestina: “Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o
pior e nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando
[...]”.186 Evidencia-se que A hora da estrela é uma obra patrocinada pelo refrigerante mais
conhecido no mundo com sabor de cola − refrigerante que reflete um “modelo cultural” que
segrega as pessoas e as coloca em camadas excludentes. A descrição continua, e Rodrigo vai
revelando detalhes da moça enferrujada, de ombros curvos, com distúrbios de tireoide, e com
o rosto marcado por manchas disfarçadas por uma grossa camada de pó branco. Raramente a
moça tomava banho, por isso é descrita como encardida.
Esta descrição até aqui relatada da protagonista de A hora da estrela pode ser
confundida com a história de muitos brasileiros. Trata-se de um retrato de ser humano, não
um retrato feito pelas modernas lentes, ou pelas lentes de fotógrafos, mas de uma escritora
que deseja anunciar o retrato da miséria.
182
HE, p. 15.
183
Idem. Ibidem.
184
HE, p. 16.
185
HE, p. 17.
186
HE, p. 23.
67
A jovem Macabéa nascera raquítica e aos dois anos de idade ficou órfã de pai e mãe.
Após um longo período, ela se mudou de “lá onde o diabo perdera as botas ”187 para Maceió, e
passou a morar com a tia, sua única referência familiar, mas que somente a maltratava.
Uma vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando
cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça devia ser,
imaginava a tia, um ponto vital. [...] A menina não perguntava por que era
sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte
importante de sua vida.188
A noite da jovem alagoana era marcada por constante tosse, advinda de um resfriado
que perdurava por mais de um ano. Antes de dormir sentia fome e “ficava meio alucinada
pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e
engolir”.190 Quando dormia ela sonhava que sua tia lhe batia na cabeça. Durante o dia sentia
fome e às vezes ela comia um ovo duro. Destaca-se que suas noites não eram apenas
marcadas pela solidão. Ela tinha uma constante companhia, era um rádio-relógio emprestado
por uma amiga, e que ela escutava todas as madrugadas.
[...] ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente
para a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”, e nenhuma música, só
pingava em som de gotas que caem – cada gota de minuto que passava [...]
Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era chamado
Carolus.191
187
HE, p. 28.
188
Idem. Ibidem.
189
HE, p. 30.
190
HE, p. 31.
191
HE, p. 37.
68
Ao descrever alguns aspectos da jovem nordestina, o narrador não lhe poupa atributos
como: Ela é feia, ignorante culturalmente, semianalfabeta, ingênua, virgem e profundamente
solitária, ser humano desprovido de relacionamentos sociais, ameaçada constantemente de
perder o seu trabalho de datilógrafa devido a sua falta de capacidade. O narrador classifica
esta moça como “parafuso descartável” diante de uma sociedade técnica. Ela não era mendiga
e nem doente mental, trata-se de um ser humano que pertence a um grupo inumano
denominado subclasse “de gente mais perdida de fome”. 192
Diante desse quadro miserável apresentado por Rodrigo, surge uma nova luz. A
miséria não tira o desejo de viver da jovem alagoana. Um dia esta moça desajeitada e solitária
resolve faltar ao emprego, para isso ela inventa uma mentira dizendo ao seu patrão que vai ao
dentista arrancar um dente.194 Seu patrão acreditou e, a partir daquele instante, ela fez uma
experiência que ainda não havia feito:
[...] ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão.
Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem
uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a
tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se
tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do
rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as
Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a
dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo
se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se
consigo própria era um bem que ela até então não conhecia [...].195
Na tarde deste dia de “folga”, Rodrigo S.M. relata o encontro entre Macabéa e
Olímpico de Jesus: “O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois
192
HE, p. 30.
193
GUIDIN. Márcia Lígia. A hora da estrela: Clarice Lispector. Op.cit. p. 22.
194
HE, p. 41.
195
HE, p. 42.
69
nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam”.196 Olímpico de Jesus era paraibano,
trabalhava na área metalúrgica e não tinha casa ou sequer morava de aluguel, na verdade
morava de favor numa guarita de um canteiro de obras, que roubava quando podia. Macabéa
toda ingênua achava que “formavam um casal de classe na cidade grande: ele metalúrgico, ela
datilógrafa”.197
Mas Olímpico sonhava alto, tinha sonhos de grandeza demoníaca, gostava de ver
sangue. Trazia consigo o desejo de ser deputado pelo Estado da Paraíba. As poucas conversas
entre os dois giravam em torno de carne-de-sol, farinha e rapadura.198 Seus encontros se
davam em praças, bares, cafés e foram até ao zoológico. 199 Na verdade, Olímpico não
demonstrava nenhuma satisfação em namorar Macabéa; o relacionamento entre os dois era
muito ralo.
A solidão parece ser a grande companheira da vida de Macabéa. Um dia após ir à casa
de Glória e ter tomado um copo de chocolate “[...] de verdade e misturado com leite e muitas
espécies de roscas açucaradas, sem falar num pequeno bolo”201, ela começa a passar mal.
196
HE, p. 43.
197
GUIDIN. Márcia Lígia. A Hora da Estrela: Clarice Lispector. Op.cit. p. 23.
198
HE, p. 47.
199
Sobre as conversas entre o casal confira: HE, p. 47-55.
200
HE, p. 59.
201
HE, p. 66.
70
“Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate”. 202 Seu mal-estar leva a
jovem a procurar um médico pela primeira vez, médico de pobre, é claro! Rodrigo ressalt a
que o médico detesta a pobreza, por isso, a trata com desdém.
Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medicina era apenas para ganhar
dinheiro e nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava
a pobreza coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles.
Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade alta à qual também ele
pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades
clínicas mas para pobre servia [...].203
Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor,
porque é da maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e
muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a
partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra.
Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor
casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou
melhor e não vai mais lhe despedir!205
202
HE, p. 66.
203
HE, p. 67-68
204
HE, p. 76.
205
Idem. Ibidem.
71
Pela primeira vez Macabéa vislumbrou um amanhã. As coisas seriam diferentes, ela
teria um marido, o que por si só já seria suficiente para quem vive na solidão, mas sua
previsão vai além: um marido rico e estrangeiro.
Macabéa sai da casa da cartomante nocauteada, pois pela primeira vez vê que sua vida
era miserável. O narrador Rodrigo exibe uma mulher transformada ao dizer: “Macabéa ficou
um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada
por palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era
outra pessoa”.207
Mas ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, Macabéa foi
atropelada por um Mercedes-Benz amarelo. Ela bate com a cabeça na quina da calçada e um
fio de sangue começou a correr no meio-fio, enquanto algumas pessoas em meio à garoa
olhavam a moça agonizando. “Batera com a cara na quina da calçada e ficara caída
mansamente voltada para a sarjeta”.208 Macabéa ainda pensa que as predições estavam se
realizando ao perceber o carro de luxo; ela vai lutar para viver, encolhe-se como um feto,
olhando o capim da sarjeta. Ela morre só e ignorada pelo mundo urbano que não a acolheu.
Clarice encerra sua obra apelando ao leitor diante da morte cruel da personagem: “Ela estava
enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque
acabo de morrer com a moça”.209
206
HE, p. 77.
207
HE, p. 79.
208
HE, p. 80.
209
HE, p. 86.
72
7. Análise da obra
A obra A hora da estrela foi escrita na década de 70, período marcado pela instauração
do regime militar. Verifica-se neste regime uma profunda dependência do país em relação ao
capital internacional. Ressalta-se que Clarice não pretende santificar ou demonizar o modelo
capitalista/tecnicista. A autora simplesmente quer apresentar os efeitos deste modelo sobre o
ser humano. A ditadura militar, incentivada pelo mercado internacional, apoia este projeto e
não vai tolerar nenhuma oposição, que será rapidamente entendida como comunismo e, por
isso, o opositor poderá ser punido com o exílio.
Analisar a obra A hora da estrela não é algo simples. Trata-se de uma busca por meio
de um projeto estético com uma latente inquietação social. Para Clarice, escrever é a sua
forma de amar e de fazer algo pelas pessoas. Segundo o relato de Waldman Berta, a
preocupação social sempre esteve presente na vida de Clarice Lispector: “[...] o fato social
teve nela importância maior do que qualquer outro; e que, em Recife, os mocambos foram a
sua primeira verdade. ‘Muito antes de sentir arte, senti a beleza profunda da luta’”.211
A hora da estrela proporciona um enredo simples, e com essa simplicidade Clarice faz
uma importante denúncia. O título da obra pode dar ao leitor a ideia de que se trata de uma
obra charmosa. Entretanto, quando a autora vale-se do método da desconstrução, ela cria no
leitor a percepção para uma nova ótica sobre a existência humana.
[...] Clarice leva a cabo uma comovente obra sobre o Homem em sua
condição social, de vivente de uma sociedade que o alija da sua condição
humana. É muito claro que, ao explicitar contradições sociais, o projeto
escritural contraria a ideologia vigente que supõe possibilidades de
humanização do homem na “sociedade tecnológica”. O termo é utilizado por
210
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 32.
211
BERTA, Waldman. Clarice Lsipector: a paixão Segundo C.L. p. 28-36. Apud SOUZA, Ana Aparecida
Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector: Um estudo social em a hora da estrela. Op.cit. p. 25.
73
A autora trata das contradições sociais produzidas pelo modelo cultural denominado
tecnicista, que fere a dignidade humana ou nega o próprio humano.213 O nome Macabéa já
indica resistência a um modelo cultural.214 Porém percebe-se na jovem alagoana uma
profunda incapacidade em resistir. Ela é o avesso da saga bíblica dos irmãos macabeus 215,
pois aceita tudo passivamente, não possui forças para lutar, apenas permanece viva. Esta
incapacidade em resistir advém das suas poucas referências culturais oriundas do rádio-
relógio, que por sua vez representa a cultura de massa industrializada. Trata-se, portanto, de
um processo urbano que acelera a degradação do ser humano, conforme relata Kátia Queiroz
Alencar citando Ortega y Gasset:
Ortega y Gasset, no texto A chegada das Massas [grifo do autor], diz que a
divisão da sociedade não é a divisão em classes sociais, mas em classes de
homens. A massa sente-se feliz por ser igual a toda gente, pois não atribui
valor a si mesmo e não exige nada de si. Portanto, para a “massa ou maioria”
há uma consciência de desejos, ideias e modos de vida nos indivíduos que as
constituem [...].216
A diferença entre Macabéa e os macabeus aumenta à medida que eles (os macabeus)
se deixavam guiar por sua fé, já Macabéa faz parte de uma sociedade na qual os valores estão
212
BERTA, Waldman. Clarice Lsipector: a paixão Segundo C.L. p. 28-36. Apud SOUZA, Ana Aparecida
Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector: Um estudo social em a hora da estrela. Op.cit. p. 27.
213
A sociedade moderna apesar de tantos avanços em vários setores apresenta um alto índice de pessoas
excluídas ou incluídas indevidamente. Esta exclusão pode ser verificada em várias áreas da vida humana como:
trabalho, saúde, educação, alimentação, moradia e etc.. Verifica-se na exclusão social a exclusão da dignidade
humana, e esta exclusão constrói uma enorme massa de pessoas descartáveis. Este empobrecimento globalizado
perceptível na vida da maioria das pessoas do planeta faz com que muitos vivam, ou melhor, teimem em viver
em condições de vida inferiores ao mínimo necessário. Ressalta-se que a denúncia feita por Clarice é pertinente,
pois este modelo capitalista tecnicista possui unicamente a lógica do lucro, deslocando a sociedade do eixo da
alteridade para o eixo da individualidade. Este modelo consumista globalizado acaba sendo um verdadeiro ídolo
que consome os seres humanos mais enfraquecidos. Trata-se do sacrifício exigido pelo sistema neoliberal para
alimentar as suas próprias veias. Cf. SELLA. Adriano. Globalização neoliberal e exclusão social:
alternativas...? são possíveis! 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003. (Coleção Temas da atualidade).
214
O nome Macabeu em grego (makkabaios) significa martelo. O livro de 1º Macabeus faz referência a uma
oposição do povo hebreu frente ao rei Antíoco Epifanes. Os macabeus são o símbolo da resistência de um povo
ao helenismo trazido por Antíoco que tinha como foco a dominação cultural por meio da força militar, pela
política e religião. Resistir significava manter a sua identidade própria. Cf. McKENZIE, John L. Dicionário
Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983. p. 564.
215
A obra A hora da estrela é uma adaptação da história dos macabeus ao mundo contemporâneo representado
pela cidade do Rio de Janeiro. Cf. VIEIRA, Nelson H. A expressão judaica na obra de Clarice Lispector. In
REMATE DE MALES, Campinas, (9), p. 207-209, 1989. Disponível em:
<http://scholar.google.com.br/scholar?start=80&q=clarice+lispector&hl=pt-BR&as_sdt=0> Acesso em: 29
janeiro 2013, 09:36:15.
216
ALENCAR, Kátya Queiroz. A hora da estrela e a indústria cultural: o despertar das massas. Disponível em:
<http://www.ufjf.br/darandina/files/2010/01/Katya-Queiroz-Alencar.pdf> Acesso em: 24 janeiro 2012, 17:20:10.
74
[...] Todo o livro é um traçado sinuoso dessa “vida primária, que respira,
respira, respira” e essa corporeidade vai nos tirando o fôlego devagar e nos
deixando em suspenso, com um grito calado na garganta e uma dor funda no
peito. É assim que Clarice tece a contraideologia, sem piedade, nem da
personagem, nem do leitor.
A obra não apenas expõe, de forma contundente e dramática, a condição
social de uma das tantas nordestinas pobres que “andam por aí aos montes”.
Mais do que isso, A hora da estrela [grifo do autor], a julgar pelo estado de
emergência em que é tecida, e pela forma como atinge a natureza social do
homem, pode ser a história da própria autora e de todos nós, a história do
homem em um mundo que barbariza e expõe a situações de miséria [...]
Trazendo ao centro do espetáculo uma personagem do quilate de Macabéa.
Clarice instaura a contradição quando derruba por terra a concepção de
homem difundida pela burguesia [...].220
217
KUSCHEL, Karl-Josef. Sobre a força destrutiva e libertadora do riso: Aspectos antropológicos e teológicos.
In CONCILIUM, Petrópolis, n. 287, p. 122-129.
218
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada, São
Paulo, 2011. p. 9.
219
Ibidem. p. 133.
220
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 30.
75
Como foi exposto até aqui, a contradição ao modelo cultural vigente na sociedade é o
alvo da obra A hora da estrela. Segundo Ana Aparecida Arguelho de Souza, este modelo
cultural é marcadamente burguês. Ana parte do conceito de ideologia apresentado por Terry
Eagleton, que considera dois pontos relevantes. O primeiro expõe a ideologia como relações
vivenciadas que se consolidam e passam a ser uma visão do mundo. O segundo aspecto,
apresentado por Terry e citado por Ana, ressalta que a ideia de ideologia não é oriunda dos
interesses de uma classe dominante, mas de uma classe que em um determinado momento
histórico assume a representatividade e os interesses da sociedade. 221
Este modelo burguês denunciado por Clarice e apresentado por Ana Aparecida
Arguelo de Souza teve início no pensamento de John Locke, que afirmava ser cada indivíduo
responsável pela sua existência, e sua existência lhe é outorgada pelo seu trabalho. Este
modelo ideológico ganha mais força à medida que a revolução industrial se consolida nas
diversas sociedades. Verifica-se também que o fordismo e taylorismo empenhados em
aumentar a produção, passam a organizar o mundo do trabalho.
A forma que Clarice Lispector utiliza para denunciar esta situação social é a da
desconstrução; trata-se de um desvio estético, uma contradição, com objetivo de destacar a
urgência da situação. Por isso, verifica-se na obra um retrato medonho da jovem alagoana.
Desta maneira, o projeto estético da obra A hora da estrela assinala a contramão da ideologia
vigente na sociedade.
A abordagem social da obra A hora da estrela é sugerida pelo próprio narrador, que
faz menção às características de Macabéa e à sua relação com tantas outras moças espalhadas
pelos cortiços do Brasil. “Há, portanto, em HE uma norma burguesa que define por oposição
221
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 18.
222
Ibidem. p. 32.
76
o que é não ter e não ser [grifo do autor]”.223 Macabéa é a figura do ser humano marginal, que
vive à margem da sociedade.
Destaca-se também a desconstrução da humanidade de Macabéa, uma vez que ela vai
se sujeitando à superficialidade produzida por este modelo cultural. Ela se alimenta de hot-
dogs e Coca-Cola, isso demonstra o abandono dos traços culturais nordestinos. Macabéa
assume o modo de vida ditado pela cultura de massa muito bem representada pelo rádio-
relógio “A inacessibilidade aos bens materiais e culturais, a condição de pária social fazem
dela um ser inacabado pela impossibilidade de desenvolvimento adequado. Em suma,
Macabéa não é um ser humanizado em sentido profundo, e essa é a fratura que o livro procura
expor”.224
A peregrinação do não ser desta pobre coitada não a impede de ter um caso de amor
com seu namorado Olímpico. Evidencia-se que este relacionamento é truncado: Olímpico é
arrogante e agressivo e deseja crescer na vida, isto é, fazer parte da elite. O relacionamento
fracassa, pois Macabéa não faz o estilo de Olímpico. Já sua amiga Glória...
223
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada... Op.cit. 37.
224
ARÊAS, Vilma. 2005, p. 81. Apud SPINELLI, Daniela. A construção da forma n’A Hora da Estrela, de
Clarice Lispector. 2008. 132 p. Dissertação (Programa de Estudos de pós-graduados em Literatura e Crítica
Literária) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. p. 32.
225
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada... Op.cit. p. 44.
77
Embora o nome Macabéa faça relação aos irmãos macabeus esta aproximação
acontece somente no sentido semântico. Na prática, os macabeus possuem consciência da sua
identidade e têm objetivos de vida, por isso, lutam contra a tirania que lhes deseja tirar a
liberdade – bem ao contrário de Macabéa, apresentada pela autora como um ser humano sem
vigor para a luta justamente por lhe faltar encontrar um sentido para a vida.
226
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 87.
227
Ibidem. p. 88.
228
Ibidem. p. 110.
78
229
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 119.
230
Ibidem. p. 94.
231
FUKELMAN, C. Escrever estrelas (ora, direis). Apud SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em
Clarice Lispector: Um estudo social em A hora da estrela. São Paulo: Musa Editora, 2006. p. 95.
79
contraste das atividades de Olímpico. Ao mesmo tempo em que é metalúrgico, ele esculpe
santos em madeira. Era um artista e nem se dava conta desse ofício.
Já a personagem Carlota faz referência ao descarte que a sociedade pode fazer com o
ser humano que não é capaz de produzir. Enquanto era atraente ela servia para seus clientes;
com o passar dos anos, ela perde o seu poder de atração, o seu vigor, o seu apelo, e é
descartada, tendo que assumir um novo papel periférico.
232
DIAS, A. M. A hora da estrela e o corpo cariado. Tempo Brasileiro, n. 82, 1985, p.107. Apud SOUZA, Ana
Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector: Um estudo social em A hora da estrela. São Paulo:
Musa Editora, 2006. p. 98.
233
HE, p. 67-68.
234
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 99.
80
[...] Glória era mais que uma conexão, ela era o próprio mundo contra o qual
Macabéa travava uma luta perdida. À Aspirina [sic] ??? e ao dinheiro
somava-se um certo artificialismo na colega de trabalho. Os cabelos
oxigenados, o desejo de confundir-se com o cinema americano contrastavam
com a presença incômoda das raízes negras sempre à mostra, espécie de
alusão ao sangue dos seus antepassados [...].235
Glória é uma personagem que carrega a ambiguidade de dois mundos: o primeiro faz
menção às raízes negras de um passado de escravidão; o segundo indica a sujeição de Glória à
modernização alicerçada nas promessas do consumo. A ferocidade do mundo moderno
representado por Glória pode ser verificada na amizade fingida desta com Macabéa. Ela é
uma perfeita caricatura da banalidade do ser humano, voltado para si, vive a vida à la carte.
Ela representa uma sociedade sem as megaideologias; sua relação com o mundo se dá por
meio do cuidado com a beleza, representando o narcisismo da atualidade.
Além de o romance finalizar com a palavra "sim", também inicia com esta
mesma palavra, o que o torna circular. Trata-se da resposta positiva da
autora, pois, mesmo diante de todas as preocupações socioexistenciais
exploradas no espaço literário através de uma total negatividade da
linguagem, essa circularidade aproxima o leitor do seu alimento essencial, os
235
SPINELLI, Daniela. A construção da forma n’A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. 2008. 132 p.
Dissertação (Programa de Estudos de pós-graduados em Literatura e Crítica Literária) Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo. p. 37.
<http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6868 >Acesso 03 janeiro 2013, 15:54:12.
236
HE, p. 79.
237
HE, p. 5.
238
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 138.
81
Macabéa enfim está livre! Livre de nós. Somente rompendo com este modelo que
desumaniza o ser humano é que a jovem Macabéa poderá encontrar o sentido primário da
existência. O vermelho do morango indica a possibilidade de algo novo, pois ela poderá
buscar a vida que tanto lhe foi negada. A obra A hora da estrela, após fazer um relato da
desconstrução da vida humana representada por Macabéa, termina com a esperança de que
algo novo pode acontecer - as últimas palavras do texto indicam essa possibilidade: “Não
esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim”. 240
A obra A hora da estrela faz uma importante denúncia sobre a situação de exploração
e alienação de Macabéa. Trata-se da explosão da falência deste modo de vida, alimentado pela
banalidade do consumo e dos relacionamentos descartáveis. Ao apresentar o subtítulo
“.Quanto ao futuro.”, verifica-se que a obra é uma denúncia e não uma resposta. Trata-se de
uma obra aberta à procura de resposta, à procura de leitor atento que tocado pelas forças das
palavras possa ajudar aos milhares de Macabéas e Glórias e desprezados em sua busca por
mais dignidade na vida. Mas que fique registrado que neste modelo social vigente não é
possível viver. Afinal, “esta história acontece em estado de emergência e de calamidade
pública. Trata-se de um livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero
que alguém no mundo ma dê. Vós? [...]”.241
8. Conclusão
239
LANZA, Sonia Maria. A Hora da Estrela: Fragmentos de um texto plural. 1996. 142 p. Dissertação
(Mestrado em Comunicação e Semiótica) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. p. 125.
240
HE, p. 87.
241
HE, p. 10.
82
objetivo de criar um instante já. Trata-se de uma tensão psicológica capaz de fazer com que o
leitor rompa com os modelos preestabelecidos pela sociedade.
Embora a obra clariceana esteja voltada para a linguagem, pode-se perceber nela uma
inquietação social, como pode ser verificada nesta obra aqui em análise. Seu texto desvela as
contradições sociais oriundas de um modelo social tecnicista que desumaniza. Esta
desumanização se faz perceptível em todos os personagens da obra, mas em especial na jovem
Macabéa.
A hora da estrela é uma obra aberta. A relevância do seu texto (enquanto rede de
significados) não deixa o leitor indiferente à saga de Macabéa. Ao contrário, instiga-o a
buscar (e a construir) respostas diante das mazelas provocadas por um modelo social que se
auto intitula “moderno”, mas que alija, escraviza os que, como a nordestina de Clarice
Lispector, não ‘encontram o jeito de se ajeitar’ ao predisposto modelo capitalista/tecnicista,
do qual somos todos partícipes. Como nos convida a pensar a própria Clarice, trata-se de uma
obra em estado de calamidade pública à procura de respostas.
83
Antes de ser tratada a relação entre antropologia e teologia vamos relembrar o que já
foi comentado nos capítulos anteriores sobre o método utilizado neste estudo, o método do
diálogo entre a teologia e a literatura. Conforme Alex Villas Boas, não existe um único
procedimento para este diálogo, portanto, a metodologia utilizada nesta pesquisa privilegia o
elemento antropológico revelado pela obra, e a partir deste elemento será elaborada a reflexão
teológica. 243
242
GS 19.
243
Confira sobre a questão do método no primeiro capítulo p. 24-33.
84
revisitação ao sagrado nos dias atuais, talvez para fazer frente a uma sociedade
particularmente complexa no que diz respeito à crescente injustiça e à pobreza
desumanizadora que resultam de forças geradoras de riquezas incapazes de promover uma
distribuição mais justa, mais igualitária. Conforme Adolphe Gesché, esta volta ao sagrado
parece indicar um desejo de ouvir novamente a fé:
Na medida em que o ser humano revisita a fé, abre-se novamente um espaço para a
teologia refletir e contribuir com a sociedade atual. Certamente seu discurso será sobre Deus,
mas não se trata de um Deus distante, pelo contrário, a teologia reflete sobre um Deus
próximo do ser humano e que se comunica com ele, chamando-o ao diálogo. A teologia “[...]
em grande parte pensa Deus para pensar o ser humano. Ela é uma espécie de antropologia,
pois pensa o ser humano por meio dessa chave à qual dá o nome de Deus”. 245
Segundo o pensamento de Karl Rahner, “a teologia dogmática deve tornar-se hoje uma
antropologia teológica, que este ‘antropocentrismo’ é necessário e fecundo”. 247 Nesta
perspectiva apresentada por este importante teólogo, os problemas dos seres humanos estão
diretamente ligados à teologia. Não se trata de deslocar Deus da reflexão teológica,
exatamente por não existir teologia cristã sem Deus. “A tese não contradiz o caráter
teocêntrico de tôda [sic] teologia (por exemplo, a doutrina de Sto. Tomás, segundo a qual
244
GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. Tradução: Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 6.
(Coleção Deus para pensar; 2).
245
Ibidem. p. 6.
246
GESCHÉ, Adolphe. O Cristo. Tradução: Carlos Felício da Silveira. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 8. (Coleção
Deus para pensar; 6).
247
RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p. 13.
85
Deus como tal é o objeto formal da teologia da Revelação). Desde que se considere o homem
como absoluta transcendência orientada para Deus [...]”.248
O discurso rahneriano sobre Deus admite a real possibilidade do ser humano de captar
a presença divina e com Ele travar um diálogo. Este diálogo entre Deus e o ser humano está
constituído na amizade como um convite para que este participe da vida divina. A Revelação
como um diálogo supõe que o ser humano seja um ouvinte. Todo diálogo conjectura uma
resposta, e a fé é a resposta à Revelação de Deus. Assim a teologia radicada na Palavra de
Deus é uma ação humana. Este fato por si só já apresenta o aspecto antropológico da
teologia. 249 Compreende-se que a Revelação está presente em todas as épocas bíblicas e se
esconde na história humana, ou melhor, a Revelação acontece por vontade divina nos
caminhos humanos, assim toda história do mundo é história da salvação e de Revelação.250
248
RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. Op.cit. p. 13.
249
MANZATTO, Antonio Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos
Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p. 222.
250
BLANK, Renold J. Deus na história: centros temáticos da Revelação. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 10.
251
MONDIN, Battista. Antropologia teológica: História - problemas - perspectivas. 2. ed. São Paulo: Paulinas,
1984. p. 191.
252
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura... Op.cit. p. 222-223.
253
SALLES, Walter Ferreira. Antropologia, lugar de toda teologia. In HIGUET, Etienne A. (org.). Teologia e
Modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005. p. 143.
86
se mostrar relevante para o mundo, e, por isso, procura compreender o sentido existencial
“escondido” na realidade estrutural deste mundo, seja ela quase transfigurada pela sua beleza
ou desfigurada pelas contingências históricas, até assumindo formas desumanizadas. Procura-
-se partir da realidade do ser humano, por um lado reafirmar a pertinência dos conteúdos da fé
cristã e da sua aplicabilidade ao contexto atual, e por outro acolher os novos horizontes
provocados pelo encontro com o mesmo ser humano. O fato de ter o existencial como ponto
de partida obriga a teologia a abrir-se diante da realidade do mundo, e tomar sua posição, não
sendo possível uma reflexão teológica fria, descomprometida ou abstrata.
Esta aproximação entre teologia e antropologia se faz necessária, e para o teólogo Jon
Sobrino é uma questão de “[...] responsabilidade do teólogo para com o mundo e para com
Deus”.254 Este confronto com a realidade mediado pela literatura permite à teologia não
apenas aproximar-se do contexto social, mas nele interferir para que o rosto de um Deus
compassivo se revele e seja reconhecido. Confrontar-se com a realidade é também encontrar-
se com o negativo presente na história. Este encontro com a negatividade histórica é
profundamente reveladora para a teologia e também para a literatura. Desse ponto de vista,
percebe-se que a literatura clariceana percorre o caminho da linguagem, na qual a autora
apresenta uma vida escondida, um momento de estranheza que afeta o leitor.255 Clarice usa do
caos, do grotesco, da desordem e do negativo para afetar o seu leitor, criando a possibilidade
de confronto entre o leitor e a obra. A obra A hora da estrela é uma construção literária feita
por meio de flashes, que geram reflexões e questionamentos sobre a existência humana e cabe
à teologia fazer uso dela para que realmente cumpra seu papel de ajudar a transformar
realidades.
254
SOBRINO, Jon. O princípio da misericórdia: descer da cruz os povos crucificados. Tradução: Jaime A.
Clasen. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. p. 48.
255
Confira o segundo capítulo p. 12.
87
A teologia, ao fazer opção de ver a realidade a partir das vítimas (negativo), procura
vencer o perigo da apatia social. Entende-se o termo apatia como um estado de
insensibilidade, impassibilidade e indiferença ao sofrimento alheio. O modelo social atual
profundamente individualista gera uma sociedade de pessoas apáticas, capazes de sofrer suas
dores e não ser sensível ao sofrimento alheio. “Experimentam a dor, porém ‘estão satisfeitos’,
ela não os comove”.257
O sofrimento nessa perspectiva teológica será sempre entendido como algo provocado,
não existindo espaços para os fatalismos. Esta reflexão teológica que parte da antropologia
presente na obra literária tem como opção preferencial as vítimas encontradas na obra A hora
da estrela e se colocará como oposição ao modelo social ali exposto (capitalista-tecnológico).
Buscar-se-á na força dos pobres/vítimas a verdade da realidade. Na compreensão do teólogo
Jon Sobrino, as vítimas deste mundo permitem enxergar a realidade cruel que afeta o ser
humano, e estes desumanizados são os prediletos de Deus.
Jon Sobrino está convencido de que a perspectiva das vítimas deste mundo
oferece uma luz específica para compreender o objeto de teologia: Deus,
Cristo, a graça, o pecado, a justiça, a esperança, a utopia. E estabelece uma
relação de reciprocidade, um círculo hermenêutico: de um lado, a
perspectiva das vítimas ajuda a entender os textos cristológicos e a conhecer
256
SOBRINO, Jon. O princípio da misericórdia... Op.cit. p. 51.
257
SÖLLE, Dorothee. Sofrimento. Tradução: Antonio Estevão Allgayer. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996. p. 46.
258
Ibidem. p. 48.
88
Por conseguinte, esta pesquisa terá como ponto de partida os dados antropológicos
colhidos da obra A hora da estrela de Clarice Lispector que serão confrontados com aspectos
cristológicos. Trata-se de um reencontro, de deixar-se guiar pela verdade que veio a este
mundo (Jo1,9), que não veio falar de si, mas falar de Deus e do humano, conforme relata a
Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
1.2 A teologia
259
BOMBONATTO, Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem segundo a cristologia de Jon Sobrino.
São Paulo: Paulinas, 2002. p. 194. (Coleção ensaios teológicos).
260
GS 22.
261
FERRARO, Benedito. Cristologia. 4. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. p. 20. (Coleção Iniciação Teológica).
89
Sendo a humanidade de Jesus reveladora de Deus, ela não pode ser considerada um
mero detalhe. A relação entre cristologia e antropologia realça a ideia que o
antropológico/histórico de Jesus é revelador do ser de Deus. De acordo com o pensamento de
Jürgen Moltmann, este modelo de cristologia pode ser chamado de Jesuologia:
questão. Sabendo que ela representa as vítimas de um sistema sociocultural, e essas vítimas
não possuem forças para lutar contra a dominação que lhes é imposta, faz-se necessário saber
qual é o comportamento de Jesus diante das forças que oprimem o ser humano no seu tempo.
O ser humano apresentado na obra A hora da estrela é vítima do seu contexto social.
Ele é alienado265 e vive uma profunda crise266, não possuindo forças para opor-se ao sistema
cruel que lhe oprime. Clarice exibe Macabéa como um ser humano massacrado, mas ao
mesmo tempo a jovem alagoana teima em continuar viva, mesmo inconscientemente ela luta
pela vida.267 Destarte, a morte prematura de Macabéa é provocada por um sistema sacrificial
que não deve continuar, por isso, Clarice faz uma indagação importante a este modelo, por
meio da expressão “.Quanto ao futuro.”. Este questionamento perpassará toda a reflexão
teológica. Mesmo como pano de fundo ele estará presente, pois faz referência aos
questionamentos feitos por muitos povos diante da calamidade em que viviam.
2.1 O messianismo
Este sentimento de falta de esperança relatado na obra A hora da estrela, pode ser
percebido em outros povos e cultura através do termo messianismo. O termo está diretamente
relacionado ao projeto do Reino de Deus, e por muito tempo esteve ligado ao judaísmo. Hoje,
já se sabe que o messianismo faz parte da história de muitos povos que geralmente
apresentam a ideia típica do herói redentor. “Neste caso o messianismo seria uma resposta
clara e inequívoca dos grupos oprimidos para enfrentarem os aspectos críticos da vida”.268
Percebe-se, portanto, que a resposta messiânica é uma resposta sociológica, capaz de fazer
uma leitura da realidade com o objetivo de analisar os desnivelamentos que ali se
apresentam.269
265
Pode-se interpretar o conceito de alienação como o divórcio de si mesmo. Cf. CODO. Wanderley. O que é
alienação? 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. p. 19.
266
Segundo Arlindo Ferreira Gonçalves Júnior o termo crise é uma marca característica da sociedade
tecnológica. Cf. GONÇALVES JR, Arlindo Ferreira. (org), Ética e crise na sociedade contemporânea,
Aparecida, 2008, p. 7.
267
HE, p. 84.
268
ROSSI, Luiz Alexandre S. Messianismo e modernidade: repensando o messianismo a partir das vítimas. São
Paulo: Paulus, 2002. p. 18. (Coleção estudos antropológicos).
269
QUEIROZ, M.I.P. O messianismo no Brasil e no mundo, São Paulo, Ed. Alfa e Ômega, 1977. p. 24. Apud
ROSSI, Luiz Alexandre S.. Messianismo e modernidade: repensando o messianismo a partir das vítimas. São
Paulo: Paulus, 2002. p. 25. (Coleção estudos antropológicos).
91
270
ROSSI, Luiz Alexandre S. Messianismo e modernidade... Op.cit. p. 18.
271
SOBRINO, Jon. Jesus o Libertador: A história de Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 124. (Coleção
Teologia e libertação: Deus que liberta seu povo- Sér. 2).
272
KASPER, Walter. Jesus, El Cristo. 2. ed. Salamanca: Sigueme, 1978. p. 96.
92
Como já citado, Jesus e Macabéa são vítimas de modelos sociais sacrificiais. Salienta-
se que a morte de Jesus não é expressão de um desejo cruel e grosseiro do Pai273, mas de uma
reação violenta por parte de estruturas poderosas (religiosas e civis) que sufocam e matam
aqueles que defendem a vida.
A jovem alagoana protagonista da obra A hora da estrela vive uma vida inconsciente,
sem projeto de vida; enquanto Jesus conscientemente e deliberadamente desenvolve a sua
missão, despertando a consciência dos seus ouvintes. Ao mesmo tempo é cônscio das
consequências das suas opções, até o risco de morte (Jo12,22-25). O centro da sua pregação e
proclamação é o Reino de Deus, conforme exposição do evangelista Marcos: “Cumpriu-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc1,14-15).
Ao proclamar o Reino de Deus (centro da sua pregação), Jesus faz uma pesada crítica
ao modelo sócio-religioso da sua época. A proclamação do Reino é uma alternativa ao modo
de viver que não favorece a vida das pessoas e nem está em consonância com a vontade de
Deus. Logo, este modo de viver deve acabar. Segundo Walter Kasper, o Reino de Deus é a
personificação da esperança e a realização de um ideal de um soberano justo sobre a terra,
capaz de libertar os oprimidos dos opressores, trata-se da esperança da salvação.274
273
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo: Predileções sobre o Símbolo Apostólico. 2. ed. São
Paulo: Loyola, 2005. p. 172-174.
274
KASPER, Walter. Jesus, El Cristo. Op.cit. p. 79-80.
93
Portanto, o Reino de Deus não é território fora do mundo, nem limitado no interior do
homem. Entende-se este o projeto do Reino como um acontecimento, uma ação na qual Deus
manifesta o seu ser e o seu atuar no mundo. Clarice Lispector destaca na obra A hora da
estrela que a vida moderna é vazia e solitária e profundamente mergulhada no individualismo,
contrária, portanto à proclamação do Reino de Deus ao longo de toda a história, um Reino que
tem como alvo homens e mulheres que se propõem a uma conversão, conversão esta que
passa primeiro pelo compromisso com a realidade das vítimas de um sistema social e
econômico desumanizador.
[...] Por isso, o Reino de Deus, que inspira a vida de Jesus e que ele anuncia,
diz alguma coisa sobre Deus na sua relação com a humanidade, e ao mesmo
tempo fala sobre nossa relação com Deus. É uma realidade experienciada,
tanto teológica quanto antropologicamente. De fato, uma realidade [grifo do
autor], porque para o próprio Jesus o Reino de Deus não é apenas um
conceito ou doutrina, mas em primeiríssimo lugar uma realidade da
experiência.277
275
GESCHÉ, Adolphe. A destinação. Tradução: Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 24.
(Coleção Deus para pensar; 5).
276
BINGEMER, Maria Clara L. Jesus Cristo: servo de Deus e Messias glorioso. São Paulo: Paulinas, 2008. p.
58. (Coleção livros básicos de teologia; 8).
277
SCHILLEBEECKX, Edward. Jesus, a história de um vivente. Tradução: Frederico Stein. São Paulo: Paulus,
2008. p. 136.
94
A atuação de Jesus não é neutra, ela manifesta o ser de Deus e convida o ser humano a
uma constante revisão de vida. Esta revisão também pode ser compreendida como conversão.
Este chamado à conversão é marca característica da presença do anúncio de Jesus (Mt3,2). A
conversão expressa a possibilidade de transformação da vida, e esta transformação é
explicitada pelo vocabulário bíblico essencialmente por meio da ideia de retorno. O verbo
hebraico shoûv significa voltar ao ponto de partida. Ao aplicar esta ideia ao plano moral tem-
se a conotação de mudança de comportamento. Trata-se de voltar-se para Deus e afastar-se do
mal. 278 Verifica-se, portanto que a proclamação do Reino de Deus também é a proclamação
da desfatalização da história. Dito de outra maneira, o mal que desumaniza o ser humano é o
alvo da ação de Jesus.
Para Gesché, o mal é aquilo que mais gera revolta no mundo, provocando uma série de
indagações e inquietações. Essas inquietações podem ser percebidas na obra A hora da estrela
à medida que o narrador Rodrigo S. M relata a sua incapacidade para falar da vida de
Macabéa (dificuldade oriunda de uma vida sem atrativo algum). Esta mesma inquietação com
relação ao mal é percebida também na Sagrada Escritura. Gesché relata que Deus é o primeiro
a se opor ao mal “porque se encontra diante de algo que não pertence de modo algum ao seu
plano e ele se preocupa em combatê-lo como uma adversidade com a qual não há aliança
possível”. 279
[...] o mal que não pode encontrar sua justificação em uma racionalidade
última. Está claro, ao se ler os relatos do Gênesis, que Deus não concorda de
maneira alguma com o mal. No jardim do Éden, assim como no do
Getsêmani, diante do torvelinho de Babel, assim como diante do dilúvio ou
no caminho de Sodoma e Gomorra, dir-se-á que Deus fica “desanimado”
(são Francisco de Sales): é verdade esse clamor que subiu até o céu (cf.
Gn18,20-21)?[...].280
278
LACOSTE, Jean-Yves. (dir.). Dicionário crítico de teologia. Tradução: Paulo Meneses...(et al.). São Paulo:
Paulinas; Edições Loyola, 2004. p. 457. (Verbete conversão)
279
GESCHÉ, Adolphe. O mal. Tradução: Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 30. (Coleção
Deus para pensar; 1).
280
Idem. Ibidem.
95
da sua prática histórica uma constante contestação dos sistemas que desumanizam. Conforme
aponta Maria Clara L. Bingemer: “Jesus assume a conflitividade da vida humana e se
posiciona em favor dos excluídos, mostrando um Deus que está em contradição à situação
religiosa sustentada pelos sacerdotes e doutores da lei”.281
A morte de Jesus deve ser entendida como consequência da sua vida. O quarto
evangelho denomina a subida de Jesus rumo a Jerusalém como a sua “hora” (que Jesus
conhece, espera e aceita). Paralelamente, Macabéa também tem a sua hora, refere-se à hora do
espetáculo, pois a obra A hora da estrela é tecnocolor e patrocinada pelo refrigerante sabor
cola, fiel representante do modelo cultural atual.
281
BINGEMER, Maria Clara L. Jesus Cristo: servo de Deus e Messias glorioso. Op.cit. p. 58.
282
SOUZA, Glaucio Alberto Faria de. O ser humano Imago Dei na Gaudium et Spes: uma abordagem da
Doutrina Social da Igreja. 2013. p. 32. TCC (Pós-graduação Lato Sensu em Doutrina Social da Igreja)
Faculdade Dehoniana de Taubaté-SP.
96
E mais:
283
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo... Op.cit. p. 48.
284
SOUZA, Glaucio Alberto Faria de. O ser humano Imago Dei na Gaudium et Spes... Op.cit. p. 33.
285
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo.... Op.Cit. p. 72.
97
A hora de Macabéa é a sua morte. Ali ela se torna estrela, uma celebridade passageira
que logo será esquecida. Com este relato Clarice expressa a ambiguidade de nossa sociedade
atual, pois ao mesmo tempo em que universaliza um modo de viver voltado para o consumo,
determina quem dele pode usufruir. O carro de luxo que atropela a jovem alagoana representa
a pertença a um grupo, é um elemento de definição de partilha de valores apenas entre os que
não estão preocupados com as Macabéas que teimam em sonhar e viver.
286
Confira o segundo capítulo p. 29.
287
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo.... Op.cit. p. 86.
288
BINGEMER, Maria Clara L. Jesus Cristo: servo de Deus e Messias glorioso. Op.cit. p. 100.
98
características servem de eixo no qual ele concentra a sua atenção. Para Ratzinger, o essencial
da hora de Jesus são a passagem e o amor.
289
BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressureição. Tradução: Bruno Bastos Lins.
São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. p. 60.
290
MATEOS, Juan. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético. Tradução Alberto
Costa. São Paulo: Paulus, 1999. p. 576. (Coleção grande comentário bíblico).
291
Homilia do Santo Padre Francisco. Missa pelas vítimas dos naufrágios. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/francesco/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130708_omelia-
lampedusa_po.html>. Acesso em: 10 julho 2013, 10:05:15.
99
Clarice, por meio da sua escrita, busca clarificar a existência humana e fala do
triângulo amoroso entre Olímpico-Macabéa-Glória. Estes “relacionamentos” são relatados por
Clarice como uma relação de gratificação imediata. O que Olímpico busca não é o amor, e
sim oportunidade de realização pessoal, ele quer a melhor opção para satisfazer seus anseios.
Ao apontar esses modelos de relacionamentos pensa-se que Clarice denuncia uma
compreensão arbitrária da palavra amor. A hora de Jesus resgata a compreensão do amor no
plano divino. Na concepção bíblica o termo ágape exprime a experiência do encontro, da
descoberta do outro. Trata-se do amor que “não se busca a si próprio, não busca a imersão no
inebriamento da felicidade; procura em vez disso o bem do amado: tornando-se renúncia
[...]”.293
4. Existe esperança?
A hora da estrela apresenta um ser humano sedento por viver. Mesmo submetida a
uma vida de sofrimento e solidão, Macabéa não perde a esperança e deseja um futuro
diferente. Seu encontro com dona Carlota (a cartomante) a deixa cheia de esperança, ela está
292
BLANCHARD, Yves-Marie, São João. Tradução: Mariana N. Ribeiro. Echalar. São Paulo: Paulinas, 2004. p.
62. (Coleção Bíblia e história).
293
BENTO XVI. Deus caritas est. Carta Encíclica, 2006. São Paulo: Loyola; Paulus, 2006. p.13.
100
grávida (fértil) de futuro, enfim, ela vai ser amada e terá felicidade. Mas, esta felicidade não
dura muito; num momento de êxtase é atropelada (pisada, desprezada, empurrada, empuxada,
preterida) pelo símbolo do luxo que é marca desta cultura desumanizante. Diante deste fato,
Clarice questiona: “.Quanto ao futuro.”. No segundo capítulo desta pesquisa, esta expressão
foi trabalhada como algo fechado, ou seja, neste modelo de vida denunciado pela obra a vida
dos mais fracos está por um fio. Deste modo, as coisas não podem continuar.
Segundo Adriano Sella, o modelo cultural regido pelo mercado promove um intenso
sacrifício humano por meio da fome e da miséria. Trata-se de uma transfusão de sangue, no
qual se retira o sangue do ser humano até a morte e o aplica no sistema neoliberal. 294 Para o
economista e cientista social Franz J. Hinkelammert, o império do mercado é demoníaco,
sendo comparável ao próprio Lúcifer. 295 Percebe-se que Clarice tem razão em colocar este
“.Quanto ao futuro.” de forma fechada, pois desta maneira não é possível continuar. Não há
como reformar este modelo cultural econômico, é preciso uma alternativa. Para Clarice, a
morte de Macabéa será a sua liberdade; nela ela terá uma alternativa de vida: enfim estará
livre! Embora Clarice trabalhe a questão do futuro como algo fechado, não significa dizer que
ela é negativa. Ela apresenta a morte de Macabéa como a sua liberdade e indica ao seu leitor
que é tempo de morangos (possibilidade de algo novo).296 Clarice nutre a esperança de um
recomeço, tanto para Macabéa como para a sociedade.
A morte de Jesus é resultado da sua prática. Ele sabe que vai doar a sua vida e também
possui consciência de que vai retomá-la (Mc9,31); Macabéa é o oposto de Jesus, ela não
resiste, não tem consciência e não doa vida alguma. Jesus foi uma verdadeira resistência
294
SELLA. Adriano. Globalização neoliberal e exclusão social: alternativas...? são possíveis! 2. ed. São Paulo:
Paulus, 2003. p. 23. (Coleção Temas da atualidade).
295
Ibidem, p. 53.
296
Confira o segundo capítulo p. 38-39.
101
diante dos dominadores da época e, por esse motivo, Ele enfrentou dois processos, um
religioso e o outro político. Em ambos Ele foi condenado à morte, na cruz. Por conseguinte,
há de se entender o que significa a cruz no Império Romano. A morte na cruz é uma morte
lenta, prolongada. Trata-se de um espetáculo, de um exemplo, para demover as pessoas de
fazerem a mesma coisa. Destaca-se que a cruz é um castigo reservado aos criminosos
políticos; por meio dela o Império Romano deseja dissuadir os seguidores de Jesus de
qualquer adesão ao Reino que já chegou.
Para muitos, falar sobre a cruz na atualidade é algo negativo, pois estes a entendem
como a negação do bem-estar da vida. “Há quem a julgue perversa por impedir os homens de
perseguirem sem remorso a plena expansão, gozarem da vida”. 297 Porém a morte de Jesus
revela que é preciso levar com seriedade o amor ao próximo. Sua morte violenta atesta a
desumanidade da sociedade, retratada no livro de Clarice pelo atropelamento de Macabéa. E
mais, Jesus denuncia a ilusão de existir um “paraíso” enquanto se zomba dos mais fracos.
Segundo Duquoc: “A cruz põe a nu a ilusão em que desejamos manter-nos, supondo que o
humano é já dado: existe o desumano; o humano está ainda por cumprir-se, é uma tarefa a
realizar; e se o seu nascimento é doloroso, é porque o desumano nos cerca por todos os
lados”.298 A cruz associada à vida de Jesus revela que toda sua ação é salvífica, toda sua
prática é um caminho de solidariedade, de nascimento, de reestruturação do humano e, por
isso, é resposta a todas as vítimas, ao mesmo tempo em que ilumina as ações desumanizantes.
297
DUQUOC, Christian. A loucura da cruz e o humano. In CONCILIUM Revista Internacional de Teologia 175,
(1982/5), p. 109.
298
Idem. Ibidem.
102
Porém, é exatamente esta proposta alternativa de vida que leva Jesus à morte. Jesus
crucificado para os discípulos era sinal de derrota, no meio deles também surgiu a pergunta:
Quanto ao futuro? Verifica-se que os apóstolos também fizeram a experiência de uma morte
desconcertante, ao ponto de fugirem (Mc14,27). Percebe-se a frustração dos discípulos no
relato do caminho de Emaús (Lc24,21). A morte de Jesus se torna mais escandalosa pelo fato
de os judeus entenderem que a pessoa crucificada é abandonada por Deus. Então acabou a
esperança? Todos os seus ensinamentos foram em vão?
A ressurreição demonstra que não, nada foi em vão! Ela é a confirmação da fidelidade
de Deus, é a realização de todas as utopias humanas, é também aprovação da vida de Jesus
como vida que vale a pena ser vivida. Para Macabéa, ao contrário, a esperança de uma
mudança radical de vida surge apenas em seus últimos instantes de vida. E a mudança de vida
se dá quando lhe é interrompida a vida, pois, de outro modo, isso não lhe seria possível. Se
Macabéa tem a sua história interrompida pela morte, a vida de Jesus continua. Ele está vivo!
Esta é a grande afirmação cristã, a ressurreição o situa no hoje de nossa história, o que
implica, portanto, na inserção definitiva do eterno na história. A história é o lugar de Deus.
Não se diz que Jesus foi embora, se diz que ele está vivo entre nós.
mortos”.299 Segundo Gesché, a ressurreição é a vitória de Jesus que sai da morada dos mortos
e não do túmulo vazio. Crer na ressurreição de Jesus é acreditar que a morte pode ser vencida
no seu território, que o amor que impulsionou toda a vida de Jesus (Jo3,16) é mais forte que a
morte.
5. Quanto ao futuro?
Não basta ouvir o grito dos pobres e o grito da terra. Não é suficiente
defender a vida de todos e todas e a vida da natureza. Também não é
suficiente dar um testemunho profético, ético e anti-idolátrico em favor da
vida. Tudo isso é necessário, é tarefa permanente. Hoje é urgente
reconstruir a esperança e propor alternativas. As palavras-chave, hoje em
dia, entre os pobres, são Esperança e Alternativas. É urgente passar do
protesto para a proposta. A opção preferencial pelos pobres deve nos
acumular de Espírito e Liberdade na busca de alternativas concretas e
acreditáveis para os pobres e excluídos. A opção pelos pobres que a Igreja
faz só tem sentido num horizonte concreto de esperança, em que apareça a
possibilidade de uma sociedade sem exclusão e sem destruição da natureza
[grifo do autor].300
299
GESCHÉ, Adolphe. O Cristo. Op.cit. p. 151-152.
300
RICHARD, Pablo. A Igreja opta pelos pobres e contra o sistema de globalização neoliberal. Em: Revista
Convergência, maio 2001. p. 207. Apud SELLA. Adriano. Globalização neoliberal e exclusão social:
alternativas...? são possíveis! 2 ed. São Paulo: Paulus, 2003. p. 76. (Coleção Temas da atualidade).
301
SELLA. Adriano. Globalização neoliberal e exclusão social... Op.cit. p. 76.
302
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo... Op.cit. p. 64.
104
Portanto, hoje é necessário superar este modelo que se impõe como pensamento
globalizado, não há como fazer alianças, a humanidade e a natureza não podem ser tratados
como instrumento descartável. É urgente a passagem de uma sociedade neoliberal para uma
sociedade solidária, capaz de resgatar os valores da proposta alternativa de Jesus presentes no
Reino de Deus.
Para construir uma nova sociedade é necessário um novo modelo social, no qual o ser
humano seja respeitado em sua dignidade, um modelo no qual o capital não seja o centro de
tudo. O primeiro passo é a construção de um projeto de solidariedade. Entende-se
solidariedade como responsabilidade pelo outro, tendo privilégio os mais indefesos da
sociedade. Falar de solidariedade para com os mais fracos é falar do Reino de Deus, é retomar
a proposta de Jesus como resposta ao individualismo atual, é não ter o outro como um
estrangeiro, mas como um concidadão (Lv19,33-34). A solidariedade assume características
próprias do amor cristão, que é o acolhimento do outro. A alteridade torna-se proximidade
diaconal e, portanto, responsabilidade com a vida de todos, como relembrou o Papa Francisco
durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) realizada no Brasil no mês de Julho de 2013,
quando reuniu com o episcopado brasileiro (sábado, 27 de julho de 2013).303
303
PAPA FRANCISCO. Visita apostólica do Papa Francisco ao Brasil por ocasião da XXVIII Jornada Mundial
da Juventude: Pronunciamentos no Brasil. São Paulo: Paulus; Loyola, 2013. p. 57-58.
105
304
PAPA FRANCISCO. Visita apostólica do Papa Francisco ao Brasil por ocasião da XXVIII Jornada Mundial
da Juventude: Pronunciamentos no Brasil. Op.cit. p. 14-16.
305
BENTO XVI, Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento integral na caridade e na verdade. Carta
Encíclica, 2009. São Paulo: Paulus; Loyola. n. 7.
106
Por fim, dar esperança é fazer-se solidário, é assumir a responsabilidade pelo outro,
pois a esperança cristã também se realiza como compromisso social, não estando fechada no
íntimo da alma. Não, ela deve transbordar-se numa resistência constante contra os
dominadores que insistem em querer dominar e escravizar o ser humano; deve transbordar-se
no acolhimento ao outro, como nos falou o Papa Francisco quando em visita à comunidade de
Varginha, na cidade do Rio de Janeiro:
306
GS 26.
307
MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura... Op.cit. p. 235.
308
PAPA FRANCISCO. Visita apostólica do Papa Francisco ao Brasil por ocasião da XXVIII Jornada Mundial
da Juventude: Pronunciamentos no Brasil. Op.cit. p. 20-22.
107
309
PAPA FRANCISCO. Visita apostólica do Papa Francisco ao Brasil por ocasião da XXVIII Jornada Mundial
da Juventude: Pronunciamentos no Brasil. Op.cit. p. 23-25
108
6. Conclusão
A reflexão teológica que procuro fazer a partir da antropologia apresentada pela obra
A hora da estrela busca traçar as semelhanças entre Macabéa e Jesus Cristo. Evidentemente
que, à primeira vista, é possível vislumbrar apenas as muitas diferenças: Macabéa é um ser
alienado, não tem um projeto de vida, e é levada, arrastada mesmo, por uma vida medíocre,
sem perspectivas. Jesus, por sua vez assume o projeto de Deus. Em Nazaré, cresce em estatura
e graça, prepara-se para o anúncio da Boa-Nova. Para realizar a missão do Pai, sai em defesa
da vida, se coloca na contramão de uma sociedade que exclui e marginaliza. Incomoda as
autoridades de sua época ao inverter os valores daquela sociedade, ao promover a partilha, a
solidariedade e a fraternidade. Acaba crucificado; entrega a sua vida para nos devolver o
direito a ela.
O cristianismo afirma que Jesus é o messias, portanto, ele é a resposta, é aquele que
traz a esperança da inauguração de um novo tempo, de um novo projeto de vida, voltado
preferencialmente para as vítimas da sociedade. Este projeto, denominado Reino de Deus, é
uma alternativa de vida e também uma resposta de Deus a todas as forças que desumanizam
109
nossa sociedade, forças tão bem representadas na obra A hora da estrela. A proposta do Reino
mostra o caminho da libertação trazida por Deus. Diante do mal, Jesus não teoriza respostas,
simplesmente assume a prática da resistência e do combate, ao mesmo tempo em que pede
que todos os que se dizem cristãos se questionem e façam o mesmo. Para atender ao chamado
de Jesus são precisos decisão e compromisso, deve haver uma mudança de vida, uma
verdadeira conversão e acreditar na Boa Nova, no Projeto do Pai que Ele assumiu.
Esta paixão pelo Reino e a resistência às forças contrárias a Jesus levaram O à morte.
A ressurreição demonstra que a vida baseada no projeto do Reino vale a pena, pois é capaz de
vencer a morte em seu território. A esperança é o primeiro passo para a transformação da
realidade, logo, as comunidades cristãs são convidadas a serem promotoras da esperança nesta
sociedade, assumindo o compromisso de ir ao encontro das Macabéas vítimas de nosso
tempo, ou seja, fazer a opção pelos pobres, tal como o fez Jesus.
110
CONCLUSÃO GERAL
A temática que envolve literatura e teologia tem sido amplamente discutida nos
últimos anos. O trabalho aqui apresentado é resultado de uma pesquisa densa, tecida não por
um literato, mas por um teólogo em construção, sedento pelo saber, ávido por entender as
nuances de uma relação dialogal entre a teologia e a literatura, em quais circunstâncias se
esbarram, se confundem, se complementam. Encontrei em Clarice Lispector o meu porto
seguro. Ela é dona de uma obra que privilegia o ser humano, e no romance A hora da estrela
revela toda a sua inquietude diante de uma realidade que desumaniza, escraviza, vitima os que
não se encaixam nos ditames de uma sociedade capitalista. Se olharmos bem, deve ser essa
mesma inquietude a tomar conta da teologia, a todo o momento, desafiada a apresentar
respostas para uma sociedade que conserva as mesmas características apresentadas pela autora
de A hora da estrela.
Na tentativa de achar os pontos de aproximação entre literatura e teologia, que são tão
distintas e particulares, busquei sustentação também em alguns escritores e teólogos. A
literatura por seus procedimentos próprios aproxima seus interlocutores da vida real, sendo,
portanto, uma importante mediação na análise da compreensão do ser humano, que é papel da
teologia. Assim, à medida que a teologia se aproxima da literatura, aproxima-se também da
vida real e pode manter com ela um diálogo profícuo, enriquecedor para ambas, mas, mais
ainda para a teologia ao abrir-lhe novos panoramas para a reflexão. A ficção muito tem de
realidade!
história da inexpressiva Macabéa. Confesso que não é necessário muito esforço para sentir
aversão pela insossa personagem. Absorto pela pesquisa, cheguei a me colocar em estado de
fastio ao ver a inabilidade de Macabéa em viver.
Talvez seja este o esforço que a teologia precisa fazer para transitar em meio aos
imensos desafios de nossa contemporaneidade – quebrar paradigmas. Mais que isso, A hora
da estrela pode ter sido o último recado de Clarice Lispector aos que se acomodam diante das
circunstâncias aparentemente banais da vida. Ela mesma diz que se trata de um livro
inacabado. Terminá-lo, dar um final feliz à trajetória de tantas Macabéas de nossos dias pode
ser uma tarefa que nós cristãos, teólogos, homens da Igreja temos que abraçar para
transformar e construir aqui na terra o Reino de Deus que Jesus inaugurou no meio de nós.
Isso só será possível a partir do momento em que, como Clarice Lispector, nos inquietarmos
mais e a ponto de sairmos do lugar para transformar realidades, superando todo e qualquer
individualismo apático. “Por que viver dessa maneira não é mais possível.”
112
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