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Título: A EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E OS ESTUDOS CULTURAIS

Área Temática: Educação em Ciências Naturais e Matemática


Autora: MARIA LÚCIA CASTAGNA WORTMANN
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Programa de
Pós-Graduação em Educação

Neste texto proponho-me a examinar como os Estudos Culturais e os


Estudos de Ciência, em suas vertentes influenciadas pelas filosofias
pós-modernas e pelo pensamento pós-estruturalista (1), levaram-me a
enxergar a área denominada “educação científica” como uma construção
processada na cultura. Considerar tal construção como um problema a ser
investigado é oportuno e necessário, porque as incursões que temos (2) feito à
história dessa área de atuação escolar e acadêmica têm mostrado que,
usualmente, tal expressão tem sido utilizada indistinta e retrospectivamente
para designar quaisquer iniciativas, procedimentos, estudos, ou investigações
direcionadas a ações educativas ligadas ao ensino das ciências qualificadas
como físicas e biológicas, e/ou naturais, em qualquer época ao longo do tempo.
Ocupo-me, nesse texto, em datar tal construção e em marcá-la como
processada em um conjunto de práticas que a diferenciaram e definiram como
área de conhecimento “limítrofe” por reunir o que tem sido caracterizado como
“conhecimentos científicos” a “teorias” e “práticas” educativas. Procuro destacar
como a educação científica foi constituída em um complexo processo que
envolveu a utilização, a reutilização, o abandono, a associação e o confronto
de enunciados. Sua emergência está associada a um discurso que sublinha o
papel do “novo” (tomado no sentido de inovador) e a necessidade de “melhoria
do ensino” frente à “ineficiência” e à “impropriedade” das propostas
pedagógicas adotadas (qualificadas como tradicionais ou como não científicas),
e que invoca argumentos ligados à epistemologia positivista-lógica. Registro,
ainda, que tais enunciados circulam com “imunidade” em propostas de ensino e
de investigação desenvolvidas em educação científica, independentemente das
compreensões de ciência e educação a que estas se vinculem.

Como os Estudos Culturais e os Estudos de Ciência conduziram-me a


olhar interrogativamente para a educação científica
Muitas das tentativas feitas para esclarecer os propósitos dos Estudos
Culturais, entre as quais está o texto “Estudos Culturais: uma Introdução
(NELSON et alii, 1995) - um dos mais referidos nos trabalhos desenvolvidos com
este enfoque no Brasil -, têm dado destaque ao caráter não disciplinar e,
especialmente, a “caraterística ativa e agressivamente antidisciplinar” desses
estudos, o que lhes têm assegurado, segundo os mesmos autores, uma
relação de permanente desconforto em relação às disciplinas acadêmicas.
Partir de tal consideração para iniciar a discussão que estou aqui focalizando –
o processo de construção da “educação científica” como área de conhecimento
independente – é importante para marcar as intenções desse estudo: não viso
através dele criticar a “criação” de tal área, ou discutir a oportunidade,
relevância ou “correção” dessa “criação”, muito menos pretendo “historiar” esse
processo para desvelar, ou denunciar, propósitos e intenções ideológicas nele
envolvidas, intenção que seria própria a uma abordagem crítica. Busco,
apenas, exercitar um modo de questionamento que os Estudos Culturais têm
permitido e que, nesse caso, envolve discutir o processo de constituição dessa
área como um novo campo de atuação acadêmico e profissional com lugar
garantido entre as áreas de conhecimento incluídas na classificação das
entidades financiadoras de pesquisa.
Persistindo em minha intenção de esclarecer como examino tal
construção lembro novamente NELSON et alii (1995), quando eles referem quão
problemática é a adoção acrítica de práticas disciplinares formalizadas na
academia, porque elas carregam uma herança de investimentos e de
exclusões disciplinares, além de uma história de efeitos sociais, que é
repudiada pelos Estudos Culturais. Registro que foram considerações como
esta que me conduziram a olhar interrogativamente para a consagrada
expressão “educação científica” e a incursionar em sua “história” para datá-la.
Ela é recente e muitas vezes usada por analogia para referir iniciativas, ações,
procedimentos e propostas relacionadas ao ensino das disciplinas científicas
em épocas passadas. Nesse texto busquei situá-la e, ao mesmo tempo,
registrar que no processo de sua constituição não interferiram, apenas, a
organização, a reorganização, a associação e a reunião de argumentos lógicos
e epistemológicos - como tem sido algumas vezes destacado. Sua produção é
cultural e processada em um movimento construtivo em que intervieram
complexas relações de poder. Atenho-me, então, a discutir como a “educação
científica” se constituiu e foi naturalizada e utilizo a história, não para buscar os
princípios sob os quais ela se organizou (o que seria próprio a uma tradição de
estudos epistemológicos, que eu mesma já empreendi em estudos anteriores),
mas para tentar ver em que instâncias culturais tal construção se processou.
Incursiono, então, um pouco mais, nos Estudos Culturais e nos Estudos de
Ciência para esclarecer como eles foram produtivos para o estudo que
empreendi.

Os Estudos Culturais

Ao ampliarem o significado do termo cultura - em um processo que HALL


(1998.) chama de “virada cultural” - os Estudos Culturais têm nos permitido
estendê-lo a uma cadeia ampla e abrangente de instituições e práticas que nos
permitem considerar, por exemplo, a existência de uma “cultura das
corporações”, de uma “cultura do lugar de trabalho”, de uma “cultura da
masculinidade”, de uma “cultura da maternidade”, de uma cultura da “família”, e
até de uma “cultura da magreza”, bem como discutir “processos de crescimento
da cultura nas empresas e nas corporações públicas e privadas” (HALL,1998).
Assim, segundo este autor (idem, ibidem), o termo cultura passou a ser aplicado
a práticas e instituições que não fazem parte da “esfera cultural”, no sentido
tradicionalmente atribuído a esta expressão - as atividades rotineiras e próprias
ao dia-a-dia dos sujeitos (culinária, compras, vestuário, compromissos,
preferências etc.) -, mas que exercem, segundo TURNER (1996), poder e uma
inquestionável influência em nossas vidas, por serem processos culturais que
nos constróem como indivíduos, como cidadãos, como membros de uma
particular classe, raça ou gênero.
Ao destacar a centralidade da cultura nos Estudos Culturais e o valor
explicativo que este conceito tem HALL (1998) também esclarece que isto não
corresponde a afirmar que não existe nada além da cultura. O que ele
argumenta é que toda prática social depende e tem relação com o significado
e, assim, consequentemente, a cultura é uma das condições constitutivas de
existência das práticas sociais. Ou seja, segundo HALL (1998), toda prática social
tem sua dimensão cultural, do que decorre que a cultura é parte constitutiva do
político e do econômico, ao mesmo tempo que estes são, também,
constitutivos da cultura e lhe impõem limites. Para HALL (1998), cultura e práticas
sociais são reciprocamente constitutivas – ou dizendo de outra forma, uma se
articula à outra. Por tudo isto, e lembrando ainda que os Estudos Culturais
processam ao mesmo tempo uma dupla articulação da cultura, pois neles ela é,
simultaneamente, o terreno sobre o qual a análise se dá (o seu objeto de
estudo) e o local da crítica e da intervenção política (NELSON et alii, 1995), cabe
ressaltar como fazem SARDAR e VAN LOON (1997), que os Estudos Culturais
podem produzir um importante impacto prático nas chamadas “realidades”.
Estes Estudos têm conduzido à ampliação da gama de temas e de
problemáticas contemporâneas investigadas principalmente por terem operado
uma importante alteração no modo de olhá-las, deslocando os focos de
questionamentos pelo aproveitamento de campos teóricos antes pouco
utilizados em um movimento que envolve a articulação das relações entre
cultura e sociedade sem, no entanto, “identificar-se com qualquer conjunto
particular de práticas culturais” (NELSON et alii, 1985).
Porém, como salientam estes mesmos autores, não é apenas este
redirecionamento de temas que caracteriza este campo de estudos.
Dizem eles:

Uma disciplina acadêmica como Literatura não pode começar a fazer Estudos Culturais
simplesmente ampliando seus domínios para abarcar formas culturais específicas
(romances ocidentais, ou séries televisivas, ou rock and roll), grupos sociais (juventude
operária, por exemplo, ou comunidades à margem, ou times de futebol de mulheres),
práticas ou períodos (cultura contemporânea, por exemplo) em oposição a trabalho
histórico). Os Estudos Culturais envolvem o como e o porque esse trabalho é feito, não
apenas seu conteúdo (NELSON et alii, 1985, p. 27).

Ou seja, os autores enfatizam o que foi apontado nos parágrafos acima -


a importância que os Estudos Culturais têm atribuído à formulação de alguns
“tipos” de indagações -, notadamente àquelas que conduzem à busca de
entendimentos sobre os processos constitutivos das “coisas”, ou de situações,
o que de certa forma me dispus a fazer relativamente à área disciplinar que
selecionei para examinar. Tais considerações também me levam a esclarecer
que não estarei apresentando neste texto “outras temáticas” para a educação
científica, destacando que este é mais um aspecto que pode ser indicado para
diferenciar uma abordagem a partir dos Estudos Culturais de análises
desenvolvidas, por exemplo, em um referencial crítico. É importante dizer, no
entanto, que apesar disso, a opção por realizar estudos sob esta inspiração
têm sempre envolvido, nos trabalhos que já desenvolvemos (3), ampliações e
redirecionamentos temáticos e metodológicos, pois os “óculos” dos Estudos
Culturais nos têm exigido a refocalização, ou o afastamento, de conceitos,
princípios, procedimentos e categorias de análises muito utilizados para
explicar as temáticas que temos examinado, em outros referências. Apenas
para explicar brevemente o que estou apontando, refiro que autores, que se
têm ocupado com o que HALL (apud TURNER, 1996) chama de “clarificação
teórica” dos Estudos Culturais, indicam que, notadamente após os anos
oitenta, as refocalizações operadas na prática desses Estudos estiveram
associadas, por exemplo, à revisão de categorias de análise utilizadas em
estudos influenciados pelas vertentes marxistas e fenomenológicas em suas
versões mais “ortodoxas”. Além disso, a convergência de métodos e conceitos
de diferentes ramos das humanidades e das artes que os Estudos Culturais
vêm operando tem permitido, também segundo TURNER (1996), a descoberta de
muitos fenômenos e de relações que estavam anteriormente inacessíveis às
disciplinas tradicionais. SARDAR e VAN LOON (1997) assinalam como esses
Estudos têm se apropriando de teorias e metodologias da Antropologia, da
Psicanálise, da Linguística, da Crítica Literária, da Teoria da Arte, da Filosofia,
da Ciência Política e da Musicologia em um processo que, segundo NELSON et
alii (1985), vem permitindo que se examinem práticas culturais do ponto de vista
de seu envolvimento com, e no interior de, relações de poder e que se explore
a categoria do “natural”, expondo a história das relações sociais que tem sido
usualmente vistas como produtos de um processo evolutivo neutro (TURNER,
1996). Ressalto que esta também se constitui em uma consideração importante,
e na qual concentrei minha atenção, para tentar explicar a direção que imprimi
a este estudo.
Antes de prosseguir cabe ainda assinalar aquilo que de certa forma já
foi dito; ou seja, que os Estudos Culturais rejeitam a equação exclusiva de
cultura como alta cultura. Dessa opção decorre a necessidade de estudar-se
todas as formas de produção cultural relacionando-as a outras práticas
culturais e às estruturas sociais e históricas. Os Estudos Culturais estão
comprometidos com todas as artes, crenças, instituições e práticas
comunicativas de uma sociedade, de onde têm eclodido diferentes direções de
estudos. Estes abrangem, por exemplo, áreas como as culturas gay, as
culturas dos jovens, as ciberculturas, as culturas pós-coloniais, as culturas
negras, as culturas coloniais, a cultura global, a cultura do rock, as variadas
formas culturais já consagradas como a literatura, a música, os filmes, a
televisão, a dança, a arquitetura e, além dessas, as imagens de mulheres, a
história da sexualidade, as políticas dos esportes e do gênero e a construção
social da ciência.
Mesmo que nesse trabalho eu não me atenha diretamente a nenhum
dos temas que acima enumerei, pois me ocupo com o particular modo de
construção de uma área de conhecimento que reúne educação e ciência, é
importante registrar que os estudos que referi (ver nota 7) - usualmente ligados
à “educação científica”, por tratarem de temáticas como natureza, educação
ambiental, educação em ciência, corpo, saúde etc. -, atentam para os
comprometimentos acima referidos, notadamente para aqueles que dizem
respeito à etnia, ao gênero, às crenças e as culturas coloniais. Aliás, foi a
inserção na vertente dos Estudos Culturais que nos permitiu ver como tais
questões estão imbricadas naquilo que anteriormente estava apenas ligado ao
“biológico”, ao “científico”, ao “educativo”, ou ao “psicológico” e, ainda, passar a
entender, também, como este “biológico”, “científico, “educativo” e “psicológico”
decorre de construções processadas na cultura.
Especialmente em relação ao que é discutido nesse texto, torna-se
importante referir, ainda, o papel que os Estudos Culturais e os Estudos de
Ciência têm atribuído ao texto e aos discursos, notadamente na última década
e a partir das teorizações de Michel FOUCAULT. Sem pretender alongar-me no
esclarecimento dessa complexa compreensão valho-me de consideração feita
por LAROSSA (1994) para indicar que FOUCAULT analisa as formações
discursivas, em uma dimensão arqueológica, como práticas que se podem
descrever com certo número de enunciados, de objetos, de conceitos e de
escolhas teóricas que obedecem a certas regras de formação. Nessas
análises, segundo o mesmo autor (LAROSSA, 1994), não se processa a simples
identificação de frases e expressões lingüísticas, nem, tampouco, a decifração
léxica de conteúdos explícitos e implícitos nos textos; também não se busca
captar tendências, ou a psicologia de autores e, muito menos, alcançar a
origem fundadora do fenômeno examinado - compreende-se os discursos
como forças históricas que têm poder construtivo. LAROSSA (1994) esclarece,
ainda, que FOUCAULT ocupou-se em suas pesquisas arqueológicas dos
monumentos mudos, dos traços inertes, dos objetos sem contexto e das coisas
deixadas pelo passado e que seus procedimentos investigativos buscavam a
descoberta do sentido que é definido quando da descrição dos elementos
intrínsecos aos registros, pois é nesse momento de elaboração do discurso
histórico descritivo (o momento da textualização) que se revelam os elementos
formadores de sentido e que se explicita a compreensão.
Destaco que foi em direção a esse tipo de abordagem analítica, na
vertente dos Estudos Culturais, que procurei examinar os discursos que
associei à constituição da “educação científica” nesse estudo. Parti de histórias
contadas em diferentes épocas, e por diferentes autores e autoras, sobre o
ensino da ciência no Brasil e a incursão que nelas fiz direcionou-se à busca
das situações de ruptura e não das “origens”, ou dos fundamentos dos
entendimentos que hoje temos.

Os Estudos de Ciência.

Estes Estudos (os Science Studies) têm operado um importante


deslocamento nas discussões conduzidas sobre a ciência e a atividade
científica em filosofias da ciência como o empirismo-lógico, o racionalismo
crítico, a filosofia analítica e a corrente historicista, por passarem a concebê-las
(a ciência e a atividade científica) como construções culturais. O deslocamento
que refiro, não se restringe às dimensões metodológica e técnica; ele se
estende às temáticas, às “teorias”, e a outras formas de explicações utilizadas
em ciência. Assim, os Estudos de Ciência não apenas olham de um outro
modo para as instâncias em que se dá a produção da ciência: eles ampliam a
gama de locais a serem vistos como participantes dessa produção “ao
penetrarem nos laboratórios”, ao incursionarem nas exposições dos museus e,
também, como refere LENOIR (1997), ao incluírem entre seus temas de interesse
os estudos literários em ficção científica e vida artificial, a retórica e as técnicas
de persuasão utilizadas nas estruturas narrativas e nas metáforas usadas nos
trabalhos científicos e a semiótica dessas narrativas, e das metanarrativas
culturais representadas pela literatura, entendendo-as como meios que
funcionam para construir e estabilizar artefatos científicos. Enquanto LENOIR
(1997) destaca o modo como os museus produzem a natureza - à luz de
interesses específicos, com seus laboratórios, salas de depósito de materiais e
equipes de artistas, curadores, taxidermistas etc -, promovendo, nesse
processo, a naturalização da natureza pela projeção dos interesses humanos
sobre ela e pela utilização de marcadores semióticos para produzir
“autenticidades”, de modo semelhante ao que é feito no turismo (4), WOOLGAR
e LATOUR (1997) ocuparam–se com os laboratórios científicos. Esses autores
consideram que a especificidade cultural dessa instância de produção de
ciência não se limita à “mitologia” proposta por aqueles que dela fazem parte (a
qual eles referem como a cultura do laboratório): o laboratório se diferencia
pela configuração particular dos aparelhos que denominaram inscritores sem
os quais nenhum fenômeno sobre os quais lá se desenvolvem estudos poderia
existir. Para esses autores, um inscritor não é apenas “um meio de obtenção
de uma substância”: ele participa do próprio processo de construção dessa
substância. Em outras palavras, para WOOLGAR e LATOUR (1997), “os fenômenos
dependem do material, sendo totalmente constituídos pelos instrumentos
utilizados no laboratório, com a ajuda dos quais se torna possível construir uma
realidade artificial, do qual os atores falam como se fosse uma entidade
objetiva”. Um laboratório possui um grande potencial de inscritores sem os
quais nenhum dos fenômenos a que se referem poderia existir. Estes
inscritores têm um longa história, rica em controvérsias, e são produzidos em
outros domínios de pesquisa; o laboratório deles se apropria e toma
emprestado saberes instituídos, incorporando-os sob a forma de uma
aparelhagem, ou de uma seqüência de manipulações. No produto final do
laboratório – a inscrição literária - ficam ocultadas as atividades de rotina lá
desenvolvidas entre as quais as várias semanas de esforços dos técnicos e os
milhares de dólares envolvidos nesta produção. Além disso, a “tribo” de leitores
e autores que dele fazem parte desenvolve, segundo estes autores,
habilidades consideráveis, tanto na arte de construir dispositivos capazes de
definir figuras, traços e inscrições fugidias no que se refere ao aspecto material,
quanto na de convencer os outros da importância do que fazem, da verdade do
que dizem e do interesse que existe no financiamento de seus projetos. A
capacidade de persuasão destes atores (os cientistas) é grande, não porque
eles estejam persuadidos, mas, porque seguem uma orientação coerente na
interpretação de dados; porque os outros estão persuadidos de que não estão
sendo persuadidos; e, ainda, porque eles não percebem a existência de
qualquer intermediação entre o que está sendo dito e a “realidade”. O
laboratório científico concebido por LATOUR e WOOLGAR (1997) é um sistema de
inscrição literária cuja finalidade é convencer a todos de que um enunciado é
um fato e de que um fato é aquilo que se inscreve em um artigo, condição esta
que lhe atribui uma qualidade que lhe permite escapar às explicações
sociológicas e históricas e ocultar a sua construção social e a própria história
de sua construção, de modo semelhante ao que se passa com os dioramas, as
cenas e os ambientes apresentados nas exposições didáticas dos museus.
Como diz LENOIR (1997) nas exposições apresentam-se elementos da “própria
vida” dos seres como representações autênticas da natureza. O autor ressalta
o quanto estas representações marcam os interesses das pessoas que as
conceberam: nelas a natureza, mesmo que apresentada em fragmentos,
insere-se na moldura do hall da exposição, “evocando a experiência do
significado e variedade da natureza de modo mais completo do que a própria
natureza” (LENOIR, 1997). É em função de tais compreensões que estes
realizadores de Estudos de Ciência ressaltam a importância de promoverem-se
desconstruções, em um dos casos, da semiótica dos museus através da
explicação da história da naturalização da produção da natureza neles
processada e, no outro, do processo de construção de fatos científicos ocorrida
nos laboratórios científicos.
Enfim, foram entendimentos como estes, alcançados a partir dos
Estudos Culturais e dos Estudos de Ciência que me conduziram a discutir a
“naturalidade” das visões que legitimaram a “educação científica”, como uma
área de conhecimento independente, unitária e articulada em suas
proposições, as quais têm sido “animadas” sistematicamente por ações que
visam conduzir ao “progresso” dessa área, caracterizadas como uma
preocupação incessante com a “inovação”.
Considerações sobre a construção da “educação científica” como uma
área de estudos

Muitas discussões realizadas sobre o ensino da ciência no Brasil


(KRASILCHIK, 1987; FRACALANZA, 1987; FROTA-PESSOA et alii, 1970) têm registrado
os principais acontecimentos relacionados à história desse ensino. Apoio-me
nelas, e em artigos e pesquisas que eu mesma desenvolvi (WORTMANN, 1992,
1997 e 1998 em Relatório não publicado) para discutir processos em que a “educação
científica” se constituiu como um campo diferenciado de estudos, de
investigações e de atuação profissional. Marco algumas situações e épocas
através de opiniões e recomendações nelas enunciadas, atendo-me
especialmente a textos publicados no Estado e no país. Ressalto, no entanto,
que não os tomei unicamente como produções locais (“criações” regionais ou
nacionais) e, nem, tampouco considerei as idéias neles apresentadas como
particulares, inéditas e originais aos sujeitos que as enunciaram (produtos de
suas construções pessoais sobre tais questões), mas, como representativas do
que circulava em diferentes âmbitos e instâncias do social em cada uma das
épocas que delimitei.

O ensino das ciências naturais – as décadas de quarenta e cinquenta

Em textos antigos sobre ensino das ciências a expressão educação


científica não aparece. Textos disponíveis na Revista do Ensino (5), publicação
editada inicialmente pela Secretaria da Instrução Pública e, depois pela
Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, como por exemplo os
escritos pelo padre Balduino RAMBO S.J (6), em 1939 e 1940, tratavam, por
exemplo, da “finalidade” do estudo das ciências naturais nos ginásios –
“subministrar um sólido conhecimento dos fatos positivos necessários ao
aperfeiçoamento profissional do educando ...para aumentar o seu patrimônio
cultural” ... e “desenvolver harmoniosamente todas as faculdades intelectuais e
morais indispensáveis à dignificação da sua personalidade ....para ampliar sua
habilidade formal” (RAMBO, 1939, p.178, adaptado pela autora) - , ou de como deveria
ser o ensino da História Natural – “organicamente orientado visando a
formação total do aluno... mas, evitando dois erros que podem prejudicar a sua
eficiência, o exagero da indução (o autor afirmava no texto a natureza indutiva
dessa ciência) e o exagero da sistemática” (ele também punha em destaque o
papel da sistemática para essa área de conhecimento) (RAMBO, 1940, p.203,
adaptado pela autora). Texto de ALARICH SCHULTZ (7), publicado na mesma Revista
em 1940, fazia sugestões sobre como deveria ser o ensino de Botânica:
defendia que fossem “aumentados os passeios científicos independentes das
aulas e dos programas”, que “o método de excursões fosse mais utilizado” e
que “fossem publicados livros com desenhos das espécies vegetais para
permitir um melhor conhecimento da flora regional”. Já José GROSSMAN (8), em
1941, fazia recomendações sobre “a necessidade de desenvolver-se um
ensino experimental em Biologia”. As considerações feitas por estes
professores envolviam comentários sobre a natureza das ciências que
praticavam, e nos dois últimos textos, bem mais do que no de RAMBO, a
sugestão de procedimentos e ações a serem seguidas pelos professores que
atuavam nessas disciplinas nas escolas. Suas considerações não
diferenciavam explicitamente o ensino dessas áreas do de outras (9). E mais:
as sugestões que continham restringiam-se ao ensino nas áreas a que se
destinavam (que não correspondem exatamente às disciplinas escolares que
hoje integram os currículos do ensino fundamental e médio), sendo
apresentadas por seus propositores como procedimentos “intrinsecamente”
próprios a elas.
Como nessa época não havia cursos universitários para à formação de
professores ou de investigadores nas áreas consideradas “científicas”, no
Estado do Rio Grande do Sul (10), tais textos da Revista, escritos por estes
professores (naturalistas e médicos detentores de bastante projeção na
comunidade educacional e científica do Estado) constituíam-se nas ações
pedagógicas eleitas como “apropriadas” para a escola (11).
Ao longo da década de cinqüenta, os artigos sobre o ensino das ciências
publicados na mesma Revista – e entre estes predominavam traduções de
textos de livros norte-americanos, franceses e argentinos, ou transcrições de
textos de professores que atuavam em outros estados do Brasil -, assumiram
um outro “tom”: passaram a incluir considerações sobre a necessidade de
destacar-se, nesse ensino, o valor da ciência – e não mais de alguma ciência
particular - como “força propulsora das civilizações” e “possibilitadora do
alcance de um ulterior bem-estar”, aspectos usados para justificar a sua grande
importância para “cada indivíduo”. Tais textos começaram a dar destaque a
processos considerados implicados na produção da ciência (o método
científico, a atitude científica) relacionando-os ao trabalho escolar e à aquisição
de atitudes “adequadas” à vida dos sujeitos, ao afirmarem, por exemplo, que
“em uma escola moderna que procura, antes de tudo, educar seus alunos para
as elevadas finalidades humanas, a experiência científica deve tender,
especialmente, a dirigir o pensamento” para que “as crianças possam alcançar
uma maior compreensão da ciência e um caminho mais largo do pensamento,
ao mesmo tempo que o espírito do inquérito e a apreciação dos fatos e coisas
afetem sua vida diária” (REVISTA DO ENSINO, Nº.8, 1952, TEXTO REFERIDO COMO
SENDO UMA TRADUÇÃO DE “SCIENCE IN THE ELEMENTARY SCHOOL DO
DEPARTEMENT OF EDUCATION DA CALIFORNIA STATES”). Falava-se, então, no
ensino das ciências, agora poucas vezes classificadas como naturais mas
algumas vezes qualificadas como experimentais, e afirmava-se que este ensino
na escola primária se destinaria “não em colocar rapazes e meninas no
caminho de futuros cientistas ou naturalistas, mas, antes, e sobretudo, em
colocá-los na situação de homens educados, humanos, conscientes, seres
pensantes” (Idem, ibidem). Os textos escritos pelos autores brasileiros (12) eram
bastante mais pontuais: apresentavam sugestões de experimentos a serem
realizados em sala de aula, traziam indicações de como organizar museus
escolares, incluíam discussões sobre os fundamentos psicológicos do ensino
das ciências naturais, ressaltavam a importância do desenho na aprendizagem
em ciências etc. (13). No entanto, todos eles (tanto as traduções, como os
textos de autores brasileiros), atribuíam aos procedimentos metodológicos
utilizados na ciência um “atributo novo”: eles não considerados importantes
apenas por promoverem a reflexão sobre como alcançar uma “correta”
compreensão da natureza epistemológica de áreas específicas de
conhecimento como a História Natural, a Botânica, ou a Biologia, participando
nesse processo da “formação integral dos educandos”, como afirmavam os
textos da década de quarenta, mas por “influírem positivamente na vida futura
dos sujeitos, ao transformarem seus modos de pensamento e atitudes” ao
longo do processo de obtenção de conhecimentos em ciências, sendo esse
mais um importante motivo para que se valorizasse a ciência. Instituiu-se,
assim, um outro discurso que não apenas circulou nos textos da Revista e que
foi associado a acontecimentos como a introdução nos currículos, das ainda
recentes licenciaturas oferecidas pelo ensino universitário (14) gaúcho, da
disciplina Didática Especial (destinada a tratar de questões pedagógicas
consideradas peculiares a diferentes áreas de conhecimento), à realização de
cursos de aperfeiçoamento em “Metodologia das Ciências” para professores,
organizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Pedagógicas (INEP) (15), e
ao início da publicação no Brasil, acompanhando um movimento que também
se instaurara nos Estados Unidos da América, de inúmeros livros dedicados
especialmente à defesa de procedimentos específicos para o ensino das
ciências na escola. Tal discurso conferia legitimidade a procedimentos tomados
de empréstimo, e considerados comuns e pertinentes à investigação nas
ciências naturais (a física, a química, a biologia), tornando-os próprios ao
ensino das ciências na escola. Ao mesmo tempo entidades como a UNESCO,
mais tarde em associação com o IBECC, instituíram nessa época outras
formas de lidar com estas questões: promoviam concursos nacionais, que
anualmente premiavam o “Melhor professor de Ciências do Brasil” (16), ou
escolhiam os “Cientistas de Amanhã”.

As campanhas para a melhoria do ensino de ciências - o ensino científico nos


anos sessenta e setenta

O livro “Como ensinar Ciências”, escrito por Oswaldo FROTA-PESSOA,


Rachel GEVERTZ e Ayrton Gonçalves da SILVA em 1970, refere a existência de
um movimento voltado a promover a melhoria do ensino das ciências no Brasil,
assumido ao longo dos anos sessenta. Nesse texto, os autores constituem e
instituem esse movimento como uma campanha reformista nacional,
ressaltando que ela também se processava em outros países. FROTA-PESSOA et
alii (1970) retomam aspectos relativos à história desse movimento, nomeando
seus “pioneiros” (17) no Brasil e dando especial destaque ao trabalho de
continuidade a ele imprimido pelo Instituto Brasileiro de Ciência e Cultura
(IBECC), criado por Isaias Raw em 1954, pelos Centros de Treinamento de
Professores de Ciências (CECIS), criados por Gildásio Amado (18) em 1965, e
pelo Grupo de Estudos do Ensino de Matemática (GEEM), núcleo
independente criado na mesma época por Osvaldo Sangiorgi. Ao
reapresentarem tais ações em seu texto, e ao defini-las como ligadas a uma
campanha, FROTA-PESSOA et alii (1970) identificaram vários pontos que
mereceriam ser “atacados”, definindo, por exemplo, aqueles/as a quem caberia
a sua “liderança” (sujeitos que “deveriam armar-se de boa-vontade e de
tolerância para juntarem esforços para explorar fecundas linhas de interação”) -
o pedagogo (o professor de didática), o mestre-escola (o professor do ensino
secundário) e o cientista (o professor universitário). Os autores também
destacaram o que consideravam ser os “méritos” e as “fraquezas” de cada um
desses “líderes” e estabeleceram qual deveria ser a “cidadela” de atuação de
cada um deles: a dos pedagogos as cadeiras de didática das Faculdades de
Educação; e a dos cientistas o IBECC-FUNBEC e os CECIS. Já os
“mestres-escola”, não teriam uma “cidadela” própria, mas transitariam entre um
grupo e o outro. Os autores também enumeraram os “problemas” que
conduziam ao ensino deficiente das ciências (o preconceito contra a didática, a
falta de bons cursos de licenciatura em ciências, a deficiência dos cursos de
licenciatura para o “ciclo colegial” e a insuficiência de recursos financeiros das
agências da “campanha” reformista) e apresentaram um “plano” detalhado para
acelerar a reforma que almejavam. Este incluía: os princípios que deveriam
orientar o planejamento do currículo (“ligar a formação científica – o ensino de
conteúdos – aos problemas do ensino em nível ginasial”, “organizar os cursos a
partir dos melhores ditames da didática” e “organizar o currículo em grupos de
disciplinas sob a responsabilidade de um coordenador de sólida formação
científica e pedagógica e com grande experiência de curso secundário”); os
grupos de disciplinas que o currículo deveria abranger (“fundamentação
científica”, “fundação matemática”, “formação pedagógica” e “prática docente”);
e a direção de estudos que estas disciplinas deveriam seguir. Na visão
destes autores a “campanha em favor da reforma” do ensino de ciências em
que se engajavam, e que buscavam promover e estender, só se generalizaria
quando os cursos de formação de novos professores se tornassem eficientes
(tarefa das Universidades) e quando os professores tivessem a oportunidade
de se aperfeiçoarem em um nível satisfatório (tarefa dos CECIS auxiliados
pelas Universidades). Além disso, ela deveria incluir a realização de cursos de
férias para professores (breves, intensivos e bem planejados) e de “cursos em
cadeia”(o primeiro seria ministrado pelos melhores líderes dos CECIS ou
universidades, o seguinte pelos participantes que se tivessem destacado nesse
curso e, assim por diante) para promover-se um processo de “depuração de
lideranças”, apoiado por “missões metodológicas”(ações das quais
participariam sempre três líderes incumbidos de percorrer juntos várias cidades
da região em que se pretendia implantar a ”reforma”), para “mobilizar o
interesse dos professores para futuros cursos de férias ou dar assistência
técnica e moral aos participantes de cursos anteriores”. Ao mesmo tempo os
CECIS e as Secretarias de Educação deveriam incentivar os professores a
encontrarem-se periodicamente para discutir problemas de ensino e propagar
“a boa doutrina” aos novos professores, passando a constituir, dessa forma, o
germe das Associações de Professores às quais “passaria a caber a maior
parte do encargo de desenvolvimento e proselitismo de idéias depois de
passada a fase aguda da campanha” (FORTA-PESSOA et alii,1970). Os autores
ainda colocavam em destaque a importância de investir-se na produção de
uma grande variedade de materiais escritos – planos de unidades, guias de
laboratório, livros de texto, manuais de metodologia - para dar cobertura ao
movimento da reforma.
Uma incursão aos textos publicados na Revista do Ensino na década de
sessenta revelou, que muitas das ações defendidas nesta “campanha” estavam
em desenvolvimento no Rio Grande do Sul. Faço tal referência, não para
marcar a existência de um movimento pioneiro - anterior ao que referi nos
parágrafos acima - nesse Estado (intenção presente em muitos textos que
como este fazem incursões à história), mas para registrar que as idéias
sistematizadas no texto de FROTA- PESSOA et alii (1970) já estavam bem
disseminados em muitas situações e locais. Reportagem publicada em Outubro
de 1960 (Revista do Ensino nº.72) traz várias informações a esse respeito.
Entre estas: a da existência de uma “Associação dos Professores de Ciências
do Rio Grande do Sul”, responsável pela edição de uma revista denominada
“Ciência”, destinada aos professores de Ciências e aos professores primários
do RS; a da realização em Porto Alegre, RS de um curso de Ciências para
professores primários, organizado pelo Centro de Pesquisa e Orientação
Educacionais – CPOE/SEC/RS e pela referida Associação, no qual atuaram
dois professores do Rio de Janeiro (19) e dois professores da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (20). Todas as ações referidas nessa
reportagem centralizavam-se em uma mesma intenção – elas colocam em
destaque o “ensino de ciências” - ao mesmo tempo que são indicativas da
ampliação do escopo das iniciativas tomadas para promovê-lo. Esta afirmação
pode ser reforçada a partir de informações encontradas no texto de
FROTA-PESSOA et alii (1970) já referido, onde está registrada a ocorrência, nessa
mesma época, de uma série de conferências interamericanas sobre educação:
a “Primeira Conferência Interamericana de Educação Matemática” (Bogotá,
Colômbia, dezembro de 1961); a “Primeira Conferência Interamericana sobre o
Ensino da Física (Rio de Janeiro, Brasil, junho de 1963); a “Primeira
Conferência Interamericana sobre o Ensino da Química (Buenos Aires,
Argentina, junho de 1965); e a “Primeira Conferência Interamericana sobre o
Ensino da Biologia (São José, Costa Rica, julho de 1965). Tais conferências,
embora direcionadas a participantes diferentes e a áreas específicas de ensino,
aproximaram-se em inúmeros pontos: instauraram uma mesma e nova
estratégia para lidar com questões ligadas ao ensino nessas áreas, marcada
pela ampliação da participação coletiva (internacional) e pela intenção de dar
maior representatividade às recomendações, sugestões e reivindicações
organizadas para direcionar decisões relativas ao tratamento a ser dispensado,
pelas instâncias educativas dos diferentes países representados nas
conferências, ao ensino e à formação de professores nessas áreas, todas elas
impregnadas por um forte “tom reformista” constituído em um “ideal” de ciência
e de conhecimento científico ligado ao empirismo-lógico e a uma compreensão
de educação, também dele aproximada, que se pautava na existência de um
“modo” pedagógico correto e científico de proceder. Embora as “Conferências”
não tenham instituído uma única forma de lidar com as questões abordadas,
delas resultou uma melhor “sintonia” entre as propostas lançadas pelas
diferentes áreas, “mobilizando” intenções para uma causa comum – o
desenvolvimento e a melhoria das ações escolares, que abrangeram, no caso
brasileiro, além das reformulações metodológicas, a proposição de outras
formas de licenciatura, alterações curriculares nos diversos níveis de ensino, a
organização de cursos de pós-graduação etc. (21). Enfim, instituía-se um modo
“científico” de ensinar que se estendia e passava a caracterizar as disciplinas
escolares ligadas às ciências naturais.
A educação científica e as “campanhas” em ação nas décadas seguintes

Na década de setenta as “campanhas para a melhoria do ensino de


ciências” passaram a incentivar intensamente a realização de ações que,
embora associadas ao trabalho escolar, eram empreendidas, ou tinham sua
culminância, “fora” das salas de aula. Tais ações, ao ampliarem os níveis e as
instâncias de participação nesse processo que estou associando à emergência
da educação científica, marcaram, com maior nitidez, as “diferenças” que as
propostas da “campanha” haviam instaurado. Criaram-se as Feiras de Ciências
regionais e nacionais, proliferam em todo o país os cursos de treinamento para
professores de ciências realizados pelos CECIS, introduziram-se outras
propostas de licenciaturas, ou modificaram-se os currículos das que estavam
em funcionamento. Além disso, instalou-se em Campinas SP um programa de
pós-graduação em ensino de ciências (22), ao mesmo tempo em que foi
intensificada a criação de “clubes de ciências”, a publicação de revistas e a
organização de simpósios sobre o ensino das ciências. Paralelamente, as
agências financiadoras de pesquisa do país passaram a dedicar recursos
específicos às investigações sobre o ensino e à formação de professores
nessa área. Foi então nesse momento, já em meados dos anos oitenta, e nos
discursos que instituíram e circularam em tais situações, que a educação
científica emergiu. Este discurso, que assumiu proposições contidas no que
instituíra o ensino científico, como as que registram a necessidade de adoção
de modos de agir orientados por regras e procedimentos ligados à verificação -
o modo científico de agir -, passou também a postular que tais procedimentos -
definidos como os melhores, os mais corretos e inovadores – fossem
apreendidos pelos jovens, não só nas salas de aula das escolas e
universidades, mas, também, fora dela. Além disso ele registrava que este
“modo” de educar contrapunha-se a outros - os não científicos -, compreensão
que já estava presente no discurso que instituíra o ensino científico (23).
KRASILCHIK (1987), desenvolvendo um estudo com propósitos distintos dos aqui
apresentados, marcou o surgimento da educação em ciência. Para ela: “foi na
busca dos caminhos que tentavam conduzir a mudanças nos currículos de
ciências, empenhadas principalmente nas décadas de sessenta e setenta, que
se formou uma nova comunidade acadêmica – a dos educadores em ciência –
que passou a atuar em uma área de fronteira entre educação e ciência,
preocupada prioritariamente com o significado das disciplinas científicas no
currículo” (KRASILCHIK,1987, p. 28). As considerações que fiz dizem respeito a
momentos anteriores a este, representados nas diferentes denominações que
registrei. A história que organizei também não segue a mesma direção, pois ela
põe em destaque as diferenças, que a análise cultural me permitiu perceber
entre estas épocas e vinculá-las aos discursos nelas circulantes. Não cheguei a
examinar nesse texto a emergência da educação em ciência, embora tenha
percebido que ela se institui na década de noventa e, ao que tudo indica, como
uma das formas de fugir da restrição que a educação científica constituíra, em
um momento em que passava a ser importante considerar se o que era dito
correspondia ao que estava sendo definido como “politicamente correto”.
Também não me ocupei com a expressão – educação para a ciência - surgida
na mesma época. Registro, no entanto que, na compreensão que estou
assumindo, e à semelhança do que registrei para as demais expressões, elas
se instituem em - e se ligam a - diferentes discursos. Aliás, saliento, mais uma
vez, que uma das intenções que me levaram a desenvolver este estudo
corresponde a tentativa de romper com o “continuum” compreensivo, com a
“falsa unidade”, a que o uso menos atento das denominações que referi tem
conduzido. E foi nesse sentido que os Estudos Culturais se configuraram como
uma opção interessante na orientação das análise, por me permitirem registrar
o papel que a cultura e que os discursos circulantes nas diferentes instâncias
do social tiveram nas construções que examinei – o ensino das ciências
naturais, o ensino das ciências experimentais – o ensino científico – e a
educação científica.

Notas
(1) É importante fazer tal indicação porque como salienta TURNER (1996) os
Estudos Culturais abrangem diversas tendências e orientações, não
constituindo um campo unificado.
(2) Refiro-me a um grupo de investigação que coordeno e no qual ainda estão
envolvidas as professoras Nádia Geisa Silveira de Souza, Eunice Aita Kindel,
Maria Cecília Braun, Elaine Dulac, Teresinha Oliveira, Rosely Rodrigues Alves,
Fátima Pilloto, Maira Ferreira, Loredana Susin, Liselle Berrutti e a bolsista
Scheila Beatriz Martim Silva. Registro, também, que os professores Leandro
Belinaso Guimarães, Luis Henrique Santos e a professora Marise Basso
Amaral já estiveram ligados a este grupo com importante participação.
(3) A investigação que conduzi sobre o processo de construção e produção do
conhecimento em ciências naturais, como pesquisadora do CNPq, e as
dissertações de mestrado da professora Marise Basso Amaral e dos
professores Luis Henrique Sacchi Santos e Leandro Belinaso Guimarães (já
concluídas), da professora Maria Cecília Braun (em fase de conclusão) e das
professoras Fátima Pilloto e Maira Ferreira (em fase de proposta).
(4) LENOIR (1997) considera os marcadores como pontos representados como
“reais” e dignos de serem vistos, os locais que, mesmo não sendo percebidos
como “marcados”- silenciosos para não chamar muito a atenção sobre eles -,
tornam-se reconhecíveis como originais e, portanto como “coisas reais”
(5) Foram examinados os textos e artigos publicados (levantamos todas as
revistas que tratavam de temáticas de ciências nos períodos em que esta
Revista foi editada e que correspondem a Setembro de 1939 – Agosto de 1941;
Agosto de 1952 – Junho de 1965; 1968 – 1978; Outubro 1989 – Fevereiro de
1994).
(6) O padre jesuíta Balduíno RAMBO teve um importante papel no
desenvolvimento do conhecimento sobre a fitogeografia da região sul do Brasil
e ocupou-se com o ensino das ciências naturais.
(7) O autor é apresentado no texto como professor do Colégio Universitário.
Acrescento que ele era botânico, formado na Alemanha e que, após a criação
da Faculdade de Filosofia na Universidade de Porto Alegre (atual UFRGS) ele
se tornou professor de Botânica no curso de História Natural, tendo publicado
muitos livros sobre a disciplina que lecionou.
(8) Apresentado no texto como professor catedrático da Universidade de Porto
Alegre, RS.
(9) RAMBO, por exemplo, sublinhava a necessidade de atentar-se para “o
desenvolvimento harmônico dos sujeitos” ao indicar que questões relativas à
natureza do conhecimento das ciências naturais o trabalho escolar deveria
considerar.
(10) Estes passaram a funcionar apenas em 1942.
(11) Muitos desses textos destinavam-se aos professores egressos da Escola
Normal e complementavam o que estava sugerido na programação oficial - o
“Programa de Estudos Naturais” publicado em 1940, que se estendia
longamente na apresentação de “objetivos” e de “normativas” que indicavam
como deveriam ser desenvolvidos os conteúdos programáticos escolares.
(12) Eram freqüentes os textos de Newton Santos (naturalista do Museu
Nacional e professor de Metodologia das Ciências do INEP e de Luiz Macedo
(professor de Metodologia de Ciências Naturais no Instituto de Educação do
Distrito Federal –Rio de Janeiro).
(13) Os textos sugeriam, principalmente, que fossem realizadas observações
(acompanhadas de desenhos) em excursões, além de pequenos experimentos
para que os/as estudantes da escola primária apreendessem a amar a
natureza. As visitas a museus e a organização de coleções que pudessem
permitir a organização de museus escolares também constituia-se em tema de
muitos artigos nesse mesmo período.
(14) Os cursos da Faculdade de Filosofia que sediavam as licenciaturas
passaram a funcionar apenas em 1942.
(15) Conforme FROTA-PESSOA et alii (1970) e KRASILCHIK (1987) este foi proposto
em 1957 no Rio de Janeiro.
(16) Há referências que este prêmio foi conferido ao professor Ayrton
Gonçalves da Silva do Rio de Janeiro, então Distrito Federal em 1959 e que o
autor de livros didáticos da década de sessenta professor João Queiroz
Marques o recebeu em 1963.
(17) Abgard Renault, quando secretário da educação de Minas Gerais e o
grupo do Departamento de Extensão do Museu Nacional.
(18) Ministro da Educação nessa época.
(19) Um deles era o professor Ayrton Gonçalves da Silva, um dos co-autores
dos textos “instituidores” da reforma
(20) Professores Luis Settineri e Eugênio Gruman.
(21) Faço considerações mais detalhadas sobre esta questão no texto
denominado “Os programas de ensino de ciências no Rio Grande do Sul”
citado nas Referências Bibliográficas.
(22) Há poucos anos surgiu outro Programa com denominação similar
organizado pela Universidade Federal de Santa Catarina.
(23) Em outro trabalho, em fase de organização, detenho-me na apresentação
de textos e situações que caracterizam melhor tal emergência.

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