Você está na página 1de 53

1 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

2 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

ALEXANDRO FERREIRA E LORENA SOUZA

VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Livro reportagem para avaliação final


da disciplina Oficina de Redação I, do
5° semestre, ministrada pela Profª.
Tânia Motta no Curso de Comunicação
Social com Habilitação em Jornalismo
da Faculdade 2 de Julho.

Salvador
2010
3 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

SUMÁRIO

PRÓLOGO
O médico espiritual, 8

INTRODUÇÃO
O milagre de cada um, 12

CAPÍTULO I
Benzedeira de Jeová, 16

CAPÍTULO II
E o homem se criou a partir do barro, 24

CAPÍTULO III
A cura das matas, 31

CAPÍTULO IV
Consciência e cura, 41

CAPÍTULO V
Só por hoje, 46

CONCLUSÃO
Cura, presente da fé, 51
4 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

À Lourdes, Marcelo, Clóvis, Ismar e Maria


Clara, que seja a fé do tamanho de um grão
de mostarda ou de uma montanha.
5 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Agradecemos ao caboclo Sultão das Matas


e Dona Benedita, por possibilitarem a
existência de histórias que não estão
relacionadas à religião, mas interagem
com a fé. À Tradição de 1920, Igreja do
Senhor do Bonfim, Religião de Deus e ao
Centro Espírita André Luís, por nos receber
e permitir que tivéssemos acesso a
informações preciosas. À Eneida Moreira,
por ajudar na interação com o Centro
Espírita André Luís.
6 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Dedico este livro a minha amiga, e colega


da Faculdade 2 de Julho, Lorena Souza,
que se debruçou em inovar a escrever
sobre a fé. E, mesmo com os obstáculos
apresentados pela vida, no decorrer do
semestre não abandonou o objetivo.

Alex Ferreira, junho de 2010.


7 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

HOPE - WENDY SLEE

O MÉDICO ESPIRITUAL
8 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 PRÓLOGO

Era o início da noite de uma terça-feira quando chegamos a um lugar que


mais lembrava uma clínica médica. Havia pessoas com diversos tipos de
enfermidades, desde uma dor de cabeça a algum trauma físico ou emocional maior.
Tivemos que chegar mais cedo, passar pela triagem (onde as pessoas dizem que
tipo de problema tem para serem direcionadas a um local específico) e pegar uma
das senhas, que eram separadas por cores: vermelha para homens, verde para
mulheres, laranja para idosos e branca para as emergências. Dessa forma, fomos
autorizados a adentrar naquele espaço destinado à cura.

Descemos dois níveis de escadas e, no subsolo do imóvel, entramos numa


sala com paredes e cadeiras brancas. Pessoas que transitavam vestidas com jalecos
brancos reforçavam a idéia de que ali, de fato, era um local de tratamento.
Inicialmente, homens e mulheres permaneciam juntos, exceto aqueles com males
mais graves, que ficavam sentados num ambiente à parte. Nesta sala, as pessoas
ainda estavam dispersas, ansiosas em serem logo atendidas.

De vez em quando, entrava uma ou duas senhoras e chamavam os que


aguardavam de acordo com sua senha e cor para outra sala mais quieta, com
músicas de meditações e relaxamento. Ali era o local que reforçava a idéia de que
as enfermidades que nos afetavam seriam solucionadas. E que seríamos curados
por um bom médico, tão bom que tinha consciência sobre diversas especialidades
e podia ajudar a todos.

Quem procurava aquele local necessitava de cura a uma doença física,


espiritual ou emocional e, a partir daquela sala, cada um buscava em si
ferramentas pessoais para auxiliar no processo. O clima ali era introspectivo,
meditativo, de oração. Algumas pessoas oravam baixinho, outras permaneciam no
seu silêncio mais profundo. Era evidente em alguns pacientes os seus males. Em
outros, aparentemente saudáveis, só transparecia na face o desejo de compaixão.
9 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

No momento em que, de fato, somos chamados para o atendimento, ficamos


de pé, em fila, no corredor daquele andar. Primeiro são atendidas as emergências,
em seguida as mulheres e por último os homens. Lá o cheiro de éter era fortíssimo,
tão forte como de um hospital. Os cinco primeiros pacientes entram no cômodo em
que todas aquelas pessoas (cerca de 100) anseiam em sair curadas.

Quando a porta se abria para a saída e entrada de alguém só era possível


perceber, além dos necessitados, mais indivíduos vestidos de branco. A ansiedade
tomava conta dos que esperavam. E, ao entrar, lá estavam quatro macas com duas
assistentes, em pé, ao lado de cada uma.

Nesta sala, como a de qualquer consultório médico, tinha iodo, éter, algodão,
tesoura, esparadrapo, luvas. Contudo, o que mais chamava a atenção ali era um
senhor, com a cara sisuda, o braço esquerdo para trás, andando de um lado para
outro. Deduzimos que ele era o “médico”. De repente, ele parava e andava em
direção a algum paciente que deitava para ser atendido. Pouco mais de dez
pessoas assessoravam aquele senhor que tinha um problema no pescoço, fazendo a
cabeça pender para um lado.

Esperamos o momento em que fomos chamados a deitar em uma das macas.


Nesta hora, uma das auxiliares pergunta qual é a nossa doença e lá esperamos até
que o senhor venha e verifique a parte do corpo adoecida. Deitamos e alguém
sussurra em nossos ouvidos para fecharmos os olhos e elevarmos nossos
pensamentos a Deus.

Apesar da experiência ser única e pessoal, o “médico” opera a todos da


mesma forma, impondo apenas as mãos no local afetado. No final, ele coloca um
esparadrapo, como se fosse um curativo em um ferimento a ser cicatrizado e,
finalmente, pede para levantarmos.

Embora todos tenham esperado cerca de duas horas para ser atendidos, na
sala de “cirurgia”, a média de tempo de atendimento é de 10 minutos. Porém, o
processo de cura, para a maioria, inicia-se desde o momento em que se entra
10 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

naquele espaço, que fica em uma área residencial do centro da cidade de Salvador
e para os vizinhos e transeuntes é apenas um espaço religioso: Sociedade Espírita
André Luís.

O centro espírita, que fica localizado na Rua Marujos do Brasil, bairro de


Nazaré, auxilia quem procura a jornada espiritual de cura por meio de passes,
“desobssessões”, tratamento para a depressão e intervenções cirúrgico-espirituais
como a que acabamos de descrever. Entretanto, a nossa ida lá, como em outros
centros religiosos, não era para conhecer a religião, seus dogmas ou “verdades”.
Fomos lá para acompanhar, e até experimentar junto com os que se submeteram à
cirurgia espiritual, o processo de cura pela fé.
11 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

MOMENT OF HOPE AND REDEMPTION - ALESSANDRO PINTO

O MILAGRE DE CADA UM
12 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 INTRODUÇÃO

Escrever um projeto como este é uma tarefa árdua. Além das dificuldades
naturais de concluir um trabalho como um livro, precisávamos pensar, refletir,
ponderar o suficiente a cerca do tema. Foram feitas pesquisas, trocas de idéias e
muito diálogo. Pois, para se escrever sobre fé é necessário, principalmente, de
olhos despidos de preconceito, já que esta ferramenta humana é intransponível e
apartidária.

Logo, não caberia a nós, estudantes de jornalismo, utilizar de uma visão


superficial, fragmentada. Precisávamos, prioritariamente, expandir nossos ouvidos
e escutar atentamente tudo que nossos depoentes diziam. E eles falaram muito,
abriram o coração, contaram experiências particulares e situações delicadas. E
devido a este aspecto, projetamos nosso livro reportagem a essas pessoas. Cada
uma delas, como retribuição de sua generosidade, recebeu um capítulo dedicado a
sua história.

Contudo, havia um quesito que nos preocupava: a cura pela fé. Como trazer
para um trabalho de jornalismo, profissão baseada em fatos e apuração, um
assunto que somente pode ser sentido? E como sentimento, cada um, na sua
individualidade, carrega a sua própria apreensão de tal sensação. Como fazer que
estas estórias sejam lidas até para os mais incrédulos, aqueles que crêem somente
que a humanidade é algo insignificante, alojada em um planeta sem importância,
que se desloca pelo vazio do universo, sem Deus, sem nada?

Logo, o diferencial do livro reportagem Você: o templo que cura é que ele
fala, especialmente, de gente, gente mais do que comum, que em tempos como o
que vivemos, de importância excessiva da representação estética, pouco são vistas
e ouvidas. Evidenciamos, então, itens que são obscurecidos pelo jornalismo
padrão: a pessoa comum e o milagre que cada vida esconde.

Por isso, cremos que este livro fala, prioritariamente, sobre pessoas. Sobre
vidas que em determinado momento viram possibilidades no que ainda não
13 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

existia, sobre pessoas que decidiram alicerçar suas histórias na esperança que
possuíam ou que passaram a ter.

Depois, na escrita das primeiras páginas, veio a escolha da linguagem. Este


aspecto seria também uma peculiaridade para evidenciarmos nossas personagens.
Por isso, decidimos trazer um tom narrativo.

As narrativas deste livro reportagem falam da esperança, de existências que


se valorizaram a partir de suas magias particulares, de pessoas de fé, que vêem a
certeza num infinito de incertezas, de gente que não se afundou no proselitismo
religioso. Cada história com suas peculiaridades. Diferentes, por que aconteceram
com pessoas distintas, mas, na essência, com a mesma motivação.

Portanto, no capítulo I, contamos a história da Testemunha de Jeová que, no


decorrer da vida, renovou a sua fé quando conheceu uma benzedeira. Dona
Benedita, uma mulher de origem humilde, criada por índios Tupinambás e educada
por freiras da cidade de Cachoeira, provou que Deus transita em diversos lugares.
A “Benzedeira de Jeová” aprendeu com os índios como manipular os produtos
ofertados pela natureza e com as freiras as rezas que canalizavam a energia divina.

Já no capítulo II, Marcelo invocou o inverso da fé. A sua história não começa
com a busca pela vida e, sim, pela autodestruição. Porém, foi por esse caminho
errante que compreendeu o valor da espiritualidade em cada pessoa. Em uma
tradição de pagã, compreendeu o processo de cura.

Também conheceremos, no capítulo III, a história de Lourdes, que cresceu


no seio de uma família evangélica, casou-se com um católico e ainda encontrou
apoio em um caboclo.

No capítulo IV, a história de Ismar, uma católica fervorosa, que aos 79 anos
percebeu que a amplitude da fé supera a religião. Depois de sofrer de uma doença
nas articulações, passou a compreender o que antes era desconhecido. Do
catolicismo ao espiritismo, a sua recuperação aconteceu no tratamento espiritual.
14 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

E por fim, no capítulo V, narraremos como uma irmandade anônima, que


crê em um Poder Superior, auxilia pessoas como Maria Clara na recuperação. A
irmandade acolhe ateus, agnósticos e aqueles capazes de assimilar a ajuda
praticada através da fé.

Em cada uma dessas histórias pode-se perceber que o grau de dificuldade


causada pela enfermidade não torna a fé limítrofe, mas uma ferramenta maior para
as pessoas que vivem essa experiência. Essa expansão é percebida, principalmente,
quando pessoas de diversos credos buscam auxílio em crenças diferentes das suas.

Neste livro reportagem, evidenciamos como que, para algumas pessoas, a fé


torna-se elemento intrínseco à cura. Não traremos repostas nem conclusões, pois
não há como questionar o invisível que é nítido somente para aqueles que
acreditam. Porém, buscamos coerência com as palavras que nos foram ditas.

Por fim, do grego fides, fé significa fidelidade. Fidelidade essa que não
abandona aqueles que crêem em tempos melhores, em cura, em resignação, em
perdão. Por essa característica de doar esperança e confiança nos seus próximos
passos, a fé é esse sentimento que permite que muitos recomecem suas vidas, que
expandam sua capacidade de enxergar sua própria existência. Por meio dessa
convicção é trilhado o caminho das próprias crenças que não cedem a
questionamentos ou dúvidas.
15 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

THE AWAKENING - KIMBERLY KIRK

BENZEDEIRA DE JEOVÁ
16 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 CAPÍTULO I

Ainda no ventre da mãe, Clóvis Bonfim foi prometido a Jeová - o Deus


supremo do antigo testamento, adorado pelo povo hebreu. Na adolescência,
resolveu dedicar-se, através do batismo, ao Deus que escolheu. Um homem devoto,
que teve suas convicções transformadas por causa de um câncer.

Incentivando muitos a se tornar Testemunha de Jeová, Clóvis foi impactante


na vida dos novos irmãos. O cargo de ancião na religião era tido como a coisa mais
importante no auge dos seus 48 anos e “mais de 30 como servo de Jeová”, como diz
Zélia, sua esposa. De personalidade forte, por diversas vezes teve que repreender
alguns com “palavras mais cortantes que uma lâmina” para alertar que ele era um
instrumento de Deus.

Um dia, Clóvis acordou mais rouco que das vezes anteriores e tratou como
algo sem importância. Em seguida, essa enfermidade persistiu até que a voz sumiu
por completo. O problema prosseguiu e se agravou. Daí em diante, o homem de voz
forte e estridente estava resumido a conversar através de bilhetes e gestos.

A tão esperada melhora, depois dos medicamentos e de ser diagnosticado


como uma simples rouquidão, permitiu que todos ficassem mais tranqüilos, menos
uma pessoa, a esposa, que permanecia desconfiada de que aquele problema seria
mais sério do que pensavam.

Tudo mudou quando, em 1994, o religioso descobriu que sofria de um


câncer na garganta – o fervor e a fé aumentaram. No inicio, a preocupação foi
amenizada porque o diagnóstico era de um nódulo benigno. Como sempre,
entregou a situação nas mãos de Jeová. O tumor foi tratado e houve certo alívio em
Clóvis.

Quando a comunidade religiosa soube do diagnóstico, a comoção foi


generalizada, todos queriam ajudar o homem que auxiliou muitas pessoas. Depois
de algum tempo, sem poder proferir uma única palavra, sem frequentar as
17 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

reuniões e debilitado, começou a entender que não deveria esperar a morte


daquele jeito – deitado em uma cama. Continuou com o tratamento e os remédios
que não fizeram a doença retroceder.

A notícia sobre o crescimento do nódulo alargava a preocupação do casal


que não deixou de acreditar na solução do problema. Esse diagnóstico foi o começo
da outra história do homem que ostentava uma única fé. E assim, passaria a
repensar sobre seus valores.

Foram meses de tratamento e diversas maneiras de cuidar da doença.


Depois de certo tempo, com a sugestão do médico e apoiado pela esposa, resolveu
aderir à homeopatia, uma vez que o químico estava deixando-o cada vez mais
debilitado. Com o tratamento – a base de argila virgem, alho e cebola – mais uma
vez tentou combater a doença.

Escolher a medicina homeopática, entretanto, não foi visto com bons olhos
pelos irmãos de religião, que começaram a ficar preocupados com aquela opção.
Foram muitos os boatos espalhados pelos próprios religiosos. A tristeza fez parte
da vida do casal, que antes eram considerados tementes a Deus e, nesta situação,
transgressores. “Deixaram de visitar nossa casa e de prestar solidariedade”, revela
Zélia.

Cada religião tem sua forma de lidar diretamente com as enfermidades. As


Testemunhas de Jeová ensinam que é algo diretamente relacionado à imperfeição.
Para eles, vivemos em um estado de pecado herdado do primeiro homem, Adão, e
da primeira mulher, Eva, que sucumbiram aos desígnios da serpente original,
Satanás, o Diabo. Embora na bíblia exista o relato de pessoas que foram curadas
através da fé em Jesus Cristo, hoje, a maneira de conviver com as doenças é de
simplesmente esperar o prometido paraíso na terra, que, segundo os TJ, será
quando Deus acabar com os clamores da humanidade, a saber, ‘a morte, a dor e o
pranto’, (Revelação/Apocalipse – cap. 21:3, 4).
18 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Um dia, após uma das muitas recaídas causadas pela doença, sua esposa
recorreu a um vizinho para que conduzisse o carro. Na volta do hospital,
conversaram sobre a possibilidade de cura. O homem que conduzia o carro,
Robson, era neto de uma benzedeira que morava na cidade de Cruz das Almas, no
recôncavo baiano. “A minha vó já curou diversas pessoas com suas beberagens,
rezas e banhos”, contou o neto empolgado. Como Clóvis e a esposa tinham uma fé
diferente, se tratar com aquela senhora estava fora de cogitação.

Para desespero de Clóvis, os remédios químicos não surtiram o efeito


esperado, a homeopatia até ajudou, mas não sanou o problema e os irmãos não
davam o apoio esperado. O que acontecia era que outros anciãos o visitavam para
dizer que “Satanás estava como um leão procurando a quem devorar” e que o casal
deveria resistir através da oração. Aquelas palavras reverberavam na mente do
doente que, naquela ocasião, notava o próprio conflito em aderir às doutrinas da
religião. Com toda a circunstância em desfavor, Clóvis questionou a fé que alegava
ter. “Quem criou a argila, as folhas, deu inteligência ao homem e à mulher para
criar remédios e tratar as doenças, foi o Diabo?”, questionou o enfermo a sua
companheira.

Certo dia, antes de dormir, junto com a esposa, resolveu orar para obter a
orientação de Deus sobre o assunto. “Intrigante ou não, ele sonhou que estava em
um lugar de grande vastidão, com plantas rasteiras. Caminhou um pouco pelo lugar
e avistou, de longe, uma árvore que estava com as folhas caindo. Quando chegou
perto, observou uma casa muito simples. Olhou para dentro da casa e reparou uma
senhora que, quando o avistou, fez um gesto com a mão para que entrasse e disse:
Meu filho, eu estava te esperando”, recorda Zélia.

Em um período de sete dias, Clóvis teve o mesmo sonho durante quase


todas as noites. Mesmo indo para as reuniões dos TJ, sentia-se numa situação
conflitante do sonho ser um sinal divino ou tentação do demônio. Para ele, aquele
sonho iria além da bíblia, de Jesus Cristo e Jeová. Parecia mais uma provação e não
o indicio de cura. O estado dele se agravou e foi internado por um mês. Nesse
período, a esposa passou a ter o mesmo sonho que seu marido.
19 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Quando seu esposo recebeu alta e pôde voltar para casa, Zélia foi procurar o
vizinho que falou sobre a benzedeira. Ela foi e marcou quando o encontro
aconteceria. A outra parte era falar com o marido e manter os irmãos da religião
longe da decisão. Depois de todos os acertos – e do marido decidir que visitaria a
benzedeira – organizaram tudo e foram viajar para encontrar com D. Benedita, na
cidade de Cruz das Almas, a 142 km de Salvador.

Durante a viagem Clóvis passou muito mal. Por causa do estado delicado, a
viagem, que estava marcada para durar aproximadamente 2 horas, durou 3 horas e
meia. Depois de percorrer a cidade por cerca de meia hora e trafegar por uma
estradinha de chão batido, chegaram a um lugarejo com aspecto bastante humilde.
A ansiedade tomava conta da situação e Clóvis e a esposa, de mãos dadas, oravam
juntos para aquela ser a melhor solução.

Ao entrar no lugar onde a senhora morava, Clóvis fragilizado pela situação


começou a chorar. “Perguntei a ele o que foi, se queria desistir e voltar. Até
Robinho, o vizinho que nos levou, se propôs a retornar se ele quisesse. Ele falou
que não e perguntei o porquê do choro. Meu marido respondeu prontamente que
aquele lugar era exatamente igual ao local visto no sonho que teve. Ele me
perguntou se aquilo tudo podia ser obra do demônio e respondi que Deus tem
diversas formas de se fazer presente”, relatou a esposa.

Como o problema de Clóvis havia sido antecipado para a benzedeira, ela


ficou aguardando apenas a chegada. Depois do primeiro contato, a velha rezou o
marido de Zélia com galhos de uma planta que havia colhido no dia anterior, e que
segundo ela, só poderia ser retirado à noite. Passou banhos de plantas conhecidas
popularmente, porém, manipuladas de um jeito “especial”, como gostava de dizer.
Em seguida, entregou para eles uma garrafa com um líquido verde, que fez mais
uma vez Clóvis ter outra crise de choro: No sonho havia uma garrafa com um
liquido verde. A velha senhora não revelou a composição daquele líquido alegando
que para cada pessoa há uma mistura diferente. O consolo do ancião era estar em
paz com a consciência.
20 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Estava feito. Clóvis e a esposa resolveram voltar e procurar a benzedeira


outras vezes e, junto com o tratamento homeopático, cuidar da moléstia. Foi a
benzedeira quem os orientou a prosseguir com o tratamento e não interromper
sobre nenhuma hipótese.

Toda a agitação na vida religiosa começou quando um dos membros da


congregação que eles frequentavam os encontrou na cidade que já havia se
tornado comum. Ao serem questionados sobre o que faziam ali, decidiram contar o
que estava acontecendo por não temer a “verdade”. Afinal, para eles, “não há nada
feito debaixo dos céus que um dia não seja descoberto”, disse Zélia parafraseando
um dos versículos da bíblia.

O comportamento dos membros da religião quando souberam do


tratamento de Clóvis com a benzedeira preocupou o casal. Para os irmãos, o nome
de Jeová estava sendo vituperado e tanto Clóvis quanto a esposa teriam que
passam pelo crivo dos demais anciãos. Ao invés de apoio, a família Bonfim foi
hostilizada. O chefe de família perdeu o “privilégio” de ser ancião e a esposa e os
filhos foram proibidos de sair pregando nas casas. Nas reuniões doutrinárias foram
impedidos de fazer comentários públicos sobre os assuntos pertinentes aos
interesses da congregação. Para uma família TJ, ser tratado assim é chegar ao
fundo do poço ou uma espécie de morte espiritual.

Mesmo com aquela situação, Clóvis continuou o tratamento. Não abriu mão
de ser tratado por D. Benedita. Houve situações onde o casal de TJ precisou dormir
na casa da senhora para ela mesma ensinar como eles deveriam usar a argila, os
banhos e que orações proferir durante o tratamento. O desejo de ficar curado, e a
fé que desenvolveu pelos procedimentos da velha, os ajudou. Contudo, em todos os
dias que realizou o tratamento – ao deitar para dormir e ao levantar – Clóvis
agradecia a Jeová por utilizar Benedita no seu processo de cura.

O tempo passou e, mesmo durante o tratamento, houve recaídas. Depois de


2 anos de tratamento intensivo, uma acentuada melhora foi percebida por todos.
Irmãos da religião viam que alguma coisa estava diferente naquele homem, que
21 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

chegou a ser orientado a formar uma religião apenas para ele. Clóvis retomou as
suas atividades, mas para a religião ele não era mais o mesmo. Voltou a comentar,
sair de casa em casa, mas tornar a ser ancião estava fora de cogitação. Havia os
irmãos que o apoiavam e os contrários à participação dele e da família nas
atividades da congregação.

Em 1996, morre D. Benedita aos 98 anos e com ela todo conhecimento que
tinha sobre as coisas que fazia. Uma benzedeira, descendente de escravos, criada
por índios e educada por freiras, que mostrou a Clóvis que Deus transita em muitos
lugares e ela, com toda simplicidade, era mais um instrumento divino. O paciente
da velha lamentou ter perdido a “benzedeira de Jeová”.

Depois de se recuperar totalmente – da morte de Benedita e da enfermidade


– um ano havia passado e o tratamento continuou por causa das orientações que a
anciã deixou. Exames minuciosos não detectaram nenhum tumor. A vida seguiu
seu curso e quase todos os religiosos voltaram a relacionar-se novamente com o
irmão.

De 1996 a 1998, já aposentado, Clóvis trabalhava como motorista


particular. Dirigia para alguns políticos e pessoas ligadas a política. Esse trabalho
era também motivo para seus irmãos de crença criticar, pois para as TJ associar
religião e política é “antibíblico”.

Porém, viajar era uma forma de se distanciar dos irmãos que insistiam em
persegui-lo por causa de suas escolhas. No dia que morreu, Clóvis havia dito para a
esposa que se fosse da vontade de Jeová – para cessar toda aquela perseguição –
que ele fosse descansar. A mulher, preocupada, apenas balançou a cabeça negando
o que ele havia dito. E assim que ele saiu resolveu proferir uma oração para Deus
proteger o marido.

Clóvis viveu de forma intensa os conflitos impostos pela consciência


religiosa. Repensar sua fé foi a parte mais dolorosa. A esposa, Zélia, companheira
de todos os momentos, compreendeu o acontecido com o marido como uma lição a
22 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

ser aprendida e ensinada. Os recursos utilizados que ajudaram seu marido estão
disponibilizados na natureza criada por Deus. Contudo, um detalhe há de ser
levado em consideração: Clóvis venceu a batalha contra o câncer, porém não lhe foi
permitido prever o imprevisto.

Era manhã de uma quinta-feira de abril de 1999. Depois de se despedir da


esposa e pegar o carro que havia sido avaliado no dia anterior, foi buscar os
clientes em casa. Trabalhou o dia inteiro e ao voltar para casa um acidente matou
Clóvis e as duas pessoas para quem ele dirigia. Houve quem dissesse que aquele
talvez tenha sido castigo de Deus. Provavelmente, para ele tenha sido um descanso.
23 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

SANCTIMONIA-FOXFIRES

E O HOMEM SE CRIOU A PARTIR


DO BARRO
24 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 CAPÍTULO II

-Yemanjá, hoje eu sou seu!

Das pedras atrás do Cristo, ele se jogou no mar da Barra. Bêbado, não
conseguia nadar e apagou. Quando voltou a si, estava sendo resgatado por sete
crianças que estavam na praia. Horas antes de tentar ser oferenda para rainha das
águas, começou a beber para sair num bloco, largar uma amiga sozinha no carnaval
e brigar na rua. Horas depois da tentativa de suicídio, estava preso num esgoto na
Avenida Centenário, onde caiu ao querer atravessá-lo se equilibrando em um cano.
Mesmo machucado e sujo, rejeitou companhia de seus pais que vieram lhe
socorrer. O humilhante cheiro de fezes não foi capaz de amolecer o seu orgulho.
Aceitou apenas a carona e foi para sua casa, onde colocou uma pizza no forno e
dormiu. Acordou com a vizinha batendo com a vassoura na janela. Dormira por
quatro horas e a pizza esquecida no forno enchera a casa de fumaça.

Todos esses fatos aconteceram em apenas um dia, porém situações


desgovernadas como essas eram constantes na vida de uma única pessoa. Marcelo
Nogueira não sabia ao certo o que lhe acontecia ao ingerir bebidas alcoólicas, nem
o que o fazia beber demais. Ele constrói a maior parte das lembranças por meio de
flashes e dos relatos dos amigos. Nos seus desequilíbrios, machucou corpos além
do seu, principalmente os de pessoas que na ânsia de lhe acalmar acabaram
recebendo marcas de suas mãos e dentes. Dessa época, ele tem mais cicatrizes do
que amigos. “Eu era ninja de beber muito, fazer merdas e acordar com aquele
desconforto de encontrar alguém na rua e me perguntar: Marcelo, o que aconteceu
com você ontem?”.

A história de Marcelo se inicia aos doze anos de idade quando morava em


Ilhéus. Naquele período, tinha problemas com os colegas de escola pois todos
sabiam que ele era gay. E sendo taxado de algo que ainda não sabia ser, sentia-se
excluído. “Então, passei minha pré-adolescência bem isolada, não me encaixava em
grupinhos de colégio, me batia só com o povo estranho”. Quando sua família se
mudou para Salvador, a dificuldade de se incluir em círculos amizade permaneceu,
25 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

os problemas com a família intensificaram-se e os sintomas de depressão deram


sinais mais fortes.

Aos 15 anos, quando estudava no CEFET (Centro Federal de Educação


Tecnológica), iniciou as descobertas da idade e começou a beber e fumar. Porém,
as transgressões, costumeiras da adolescência, para ele vinham com teor
autodestrutivo. Logo, experimentou se prostituir. “Não pelo dinheiro em si, mas
pela sensação de ser escória, de ser usado”. Além de ações que confrontavam com
as dos meninos da sua idade, que aquela altura estavam no playground ou assinto
Sessão da tarde, Marcelo cresceu dizendo-se ateu e aos 18 anos comprou um
crucifixo invertido.

Hoje, interpreta tal atitude como um protesto, um combate à religião e a um


Deus que todos acreditavam, contudo muitos o viam como satânico. Amarrado
num cordão preto, o ornamento de metal passou a ficar pendurado no seu pescoço
e a sua utilização coincide com o momento de sua vida em que mais bebeu e foi ao
fundo do poço. Sua fase “anticristo”, como mesmo diz, foi a pior de todas.

O “abre alas” desse período foi uma briga com seus pais, a fuga para a casa
de uma tia e sua expulsão de uma festa de formatura, na qual arranjou confusão.
Do local, só saiu arrastado por seguranças. “No outro dia me disseram que vários
homens tiveram que me tirar de lá e eu todo franzino. Me falaram que eu não tinha
noção de como estava”.

Dessa festa, Marcelo só lembra-se de convidar algumas pessoas para cair


numa piscina, o que aconteceu depois não recorda. Só sabe que acordou no dia
seguinte com os dentes menores de tanto rangê-los e o pescoço dolorido porque
levou um golpe dos amigos que eram do vale-tudo.

O seu processo de autodestruição com bebida piorou quando começou a


trabalhar. Marcelo ia muito para boates, fumava excessivamente e fazia sexo
desenfreado. Os seus surtos de morte vinham, principalmente, quando exagerava
no álcool. A depressão era uma doença muito próxima, pois sua mãe sofria dela.
26 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Porém, se a pulsão pelo perigo e a vontade de correr riscos davam um tom


menos apático à sua forma depressiva, por outro lado lhe eram mais nocivos. “Eu
não tinha aquela depressão de ficar em casa. Era assim: já que é pra morrer, vamos
curtir o máximo. Se morrer, morreu. Se não morrer, acorda no outro dia e curte de
novo. Eu não tinha medo de nada mesmo, corria muitos riscos. Eu quase morri
várias vezes”.

Na primeira vez que tentou se matar, estava numa festa quando se jogou
pela janela. Sempre normal as poucas lembranças das suas motivações, recorda
somente que ao debater seu corpo contra a parede percebeu que um amigo lhe
segurou pela calça.

A sua pulsão pela morte criou rachaduras na ligação com a família e com os
amigos. Porém, como diz aquela velha frase “se as coisas não vem pelo amor, vem
pela dor”. No caso de Marcelo, acostumado às dores, o divisor de águas foi o amor.
O seu namorado da época o impediu de experimentar cocaína e lhe apresentou
uma possibilidade espiritual para a vida. Entretanto, não deixou de conviver com
sua ânsia devastadora.

Ao voltar de uma festa com Marcelo, não permitiu que ele, embriagado,
dirigisse um carro. Com raiva, Marcelo quebrou o vidro do carro com a mão e
tentou enforcar um amigo que estava no veículo. Como de costume, depois de
desaparecer do local da festa, desapareceu de si mesmo e não sabe como sumiu.
Chegou na casa de sua mãe com a roupa que tinha saído, uma bata preta e o
crucifixo invertido, e a mão ensanguentada. Ao seu namorado, restou o desespero
de achar que tinha caído num esgoto próximo.

Depois de uma crise profunda no seu relacionamento e na sua vida pessoal,


Marcelo aproveitou uma demissão e viajou ao Mato Grosso do Sul para visitar
parte da família. Ele descreveu a viagem surreal. O que não é surpresa é que bebeu
muito. A novidade surgiu quando ele voltou. “Quando voltei, meu namorado estava
com uns amigos diferentes, que era de um grupo, uma tradição antiga chamada
27 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Tradição de 1920. Ele achou que eu ia ficar empolgado, mas achei muito estranho,
porque quando viajei ele tinha uns amigos, quando voltei ele tinha outros”.

Essa tradição se constituiu no Brasil em 1920 em Parnaíba, Piauí, e


consolidou-se como uma tradição de cura originada da antiga religião dos povos da
Europa. Povos esses que cultuavam a natureza por meio de celebrações às estações
do ano, às energias do feminino e masculino e na manifestação dos elementos da
natureza Ar, Fogo, Água, Terra e Etéreo.

Ele e o namorado foram para um ritual do grupo dos novos amigos. Porém,
como tinha dificuldades em estabelecer ações de equidade com outras pessoas ou
espaços, desrespeitou a movimentação energética da Tradição de 1920, a ponto de
levar um copo de vinho na cara pelo líder do grupo. Ele foi para casa, seu
namorado ficou. O interesse do seu namorado pelo grupo foi o novo motivo para
mais um término.

Sem sua “bengala” emocional, Marcelo bebia mais. Na pior bebedeira dita
por ele, deu em cima de um amigo que se irritou e o agrediu com um murro.
Mesmo assim, foi para uma boate e se embriagou mais. Incontrolável, foi levado
para casa de um colega de trabalho e amarrado com o fio do carregador de celular.
Quando teve condições de voltar para casa, foi assaltado. Com poucas lembranças
do ocorrido, foi trabalhar no dia seguinte. Chamado no vestuário pelo colega que
lhe amarrou, viu o amigo abaixar a calça e mostrar as marcas do seu dente na
perna. ”Eu não lembro, mas sei que fui eu quem mordeu”. Àquela altura, esse era
mais um de seus muitos vexames públicos.

O “plano” autodestrutivo de Marcelo começara a dar sinais de fracasso,


principalmente porque suas tentativas de suicídio falharam. “Fui de novo na tal
Tradição de 1920 todo tímido por causa do vexame anterior. Estavam falando
sobre psicologia comportamental e que aquela época do ano era propícia a ataques
energéticos como o que eu estava vivendo”. Sobre os ataques energéticos, a
Tradição de 1920, com auxílio da psicologia ou da ciência, tenta evidenciar
movimentos pessoais que não conseguem obter explicações.
28 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Porém, como o alcoolismo e a baixa auto-estima que lhe acometiam tinham


raízes mais profundas do que esses ataques, Marcelo iniciou um processo de
autoconhecimento e análise pessoal. Já que, segundo Ricardo Branco, Noh-Noh
(Líder espiritual) da Tradição de 1920, “a Tradição não pautam justificativas, e
nem pretendem fazê-las, sobre processos pessoais de quebra de conduta moral ou
ético-social”.

Frequentando o grupo mesmo sem entender muita coisa, o desespero


diante da escuridão dos seus conflitos foi o que lhe fez buscar ajuda. De anticristo,
Marcelo tornou-se um homem de fé e começou a participar dos rituais da Tradição.
O marco da sua nova consciência ocorreu em um ritual no qual foi chamado para
entrar numa piscina por uma das guias espirituais da casa.

Boiando, Marcelo escutava somente a bomba da piscina que fazia um som


parecido ao de uma cachoeira. Ele não mexia seu corpo, mas sentia que estava
girando suavemente. A guia que lhe acompanhava na experiência segurava de leve
seu corpo. “Eu fiquei na piscina por um tempo que não sei dizer. Pareceu o tempo
de uma vida. Não sei exatamente o que foi feito, mas assim que os giros
terminaram, me largaram. Dei um mergulho e levantei. Naquele momento renasci”.

Em várias culturas, tradições ou grupos que estudam o poder dos


elementos, a água é considerada o elemento que limpa, depura, desintoxica e tem a
capacidade maior de fazer as pessoas se sintonizarem com as necessidades
emocionais mais profundas. Por isso, ao sair da piscina Marcelo sentia que não
seria mais a mesma pessoa.

Houve outros momentos, em rituais ou encontro da Tradição de 1920, que


ocorreram movimentações energéticas com Marcelo. “Era feito todo um trabalho
para o grupo e em alguns momentos para pessoas específicas. Ocorreu de guias
fazer de tudo um pouco em mim, como limpezas e proteções”. Depois de conseguir
estabelecer equilíbrio com sua energia pessoal, essas movimentações foram
diminuindo até cessar.
29 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

A Tradição de 1920 acredita que cada pessoa pode se tornar apta a cuidar
de sua própria energia. Logo, a ajuda é de você para você mesmo e começar esse
trabalho de cuidado próprio foi o propulsor para a purificação interna de Marcelo.
“Caso contrário, utilizaria o grupo de cura eternamente como bengala energética, e
estou muito novo para andar de bengalas (risos)”.

O seu “buraco” emocional de não entender as relações, de não conseguir


ficar sozinho, transformou-se em agregar as pessoas e não ter medo de errar. “O
lance é saber como lidar com a minha sombra. Porque se você entende sua sombra,
você enxerga sua luz. Se você sabe onde está sua sombra, sabe chegar até sua luz”.
A sombra a que Marcelo se refere muitas vezes é enxergado somente como aquilo
que não temos ciência ou mecanismos de reação sentimental que não
compreendemos. Porém, segundo Ricardo Branco, “A sombra também é tudo
aquilo que insistimos conscientemente viver, mesmo entendendo que degenera
nossa qualidade de vida e o entendimento do porquê somos seres mágicos”.
Talvez, devido a esse fator, que Marcelo não bebia somente até cair, mas até que
acontecesse algum evento negativo.

Por isso, o cuidado com o álcool passou a ser um trabalho diário, constante,
eterno. “Quando comecei a me cuidar, passei um ano sem beber nada, o que era
muito difícil porque eu não conseguia beber um copo, bebia uma grade. Hoje eu
consigo me mapear e perceber o momento de parar”.

Já o seu amuleto do período das trevas, o crucifixo invertido, está em seu


guarda-roupa. “Eu não olho muito para ele, não, mas gosto de vez em quando me
bater com ele e ter uns flashes do passado. Não quero nunca esquecer que o crucial
nisso tudo foi fé, foi acreditar, acreditar em mim mesmo”. O objeto está guardado
para lembrá-lo que - como nas mitologias cristã, grega e africana, nas quais o
homem foi criado a partir do barro – é possível criar (ou recriar) algo a partir de
uma essência diversa.
“(...) Porque eu fui, eu sou e eu serei,
aquele que, em mim mesmo e no outro,
realiza a cura”
Oração para 2010 da Tradição de 1920
30 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

HEALING WATERS-ELENA RAY

A CURA DAS MATAS


31 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 CAPITULO III

Após um diagnóstico de câncer de mama, Lourdes quis ver o mar. Na praia,


ela não notou uma senhora que a estava observando. A senhora chamava-se D.
Francisca e reparou que existia algo diferente com Lourdes, naquele momento uma
mulher cheia de pesar. De alguma maneira, começaram a conversar e D. Francisca
a convidou para ir a uma casa espiritual. Pensando que não teria nada a perder,
Lourdes decidiu acompanhá-la no mesmo dia junto com a filha.

Centro União e Paz, Caboclo Sultão das Matas1: era o que tinha escrito na
soleira da porta. Quando entraram na casa, o aroma, as folhas no chão, as pessoas
reunidas e o copo d’água sobre a mesa lhe pareciam familiar, mesmo tendo a
certeza de que nunca estivera ali. Apesar de ser de uma família de evangélicos, não
havia medo nem curiosidade, apenas a vontade de ficar curada.

Depois de ser acomodada, ficou esperando em uma sala o momento da


consulta. Para ela, aquele lugar era como um consultório médico, uma vez que
todos estavam vestidos de branco. Em seguida, o local foi incensado e as pessoas
fizeram preces, entoaram cânticos e bateram palmas. Ao reparar uma senhora
sentada na cabeceira da mesa, franzina, de aparência frágil, com nome de Mãe
Maria - médium principal do centro - se balançar de um lado a outro, como se algo
a possuísse, calafrios percorreram o corpo de Lourdes.

Quando uma entidade chegou, depois de ter falado com todos à mesa,
levantou-se e foi conversar com a primeira senhora da fileira onde Lourdes estava.
Já impaciente, cochichou com sua filha “vou embora!”. O caboclo voltou como se a

1 “Sobre os Caboclos, existe pouca coisa escrita. Os estudos sobre estes seres espirituais são
reduzidos, quase sempre, a oralidade. Povos ágrafos, normalmente passam a tradição de pai para
filho, é o caso dos índios. Os caboclos são entidades que se apresentam, quase sempre, com nomes
relacionados aos índios. Nas cerimônias, que acontecem nas casas ligadas ao culto de Caboclos, são
usados incensos, banhos de folhas e até animais. Assim como no espiritismo, algumas pessoas
orientadas por esses espíritos alegam que eles possuem diferenciados graus de evolução.
Geralmente, eles utilizam charutos para provocar a descarga espiritual de seu médium e também do
consulente. Alguns assobiam, outros bradam no ato da incorporação. Costumam ser bastante sisudos,
de pouca ou nenhuma brincadeira. São respeitados como grandes trabalhadores dos locais onde
atuam. Essas entidades possuem status de pai para algumas pessoas”. Pai Edinho de Maragogipe.
32 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

tivesse escutado e foi em sua direção. “Lembra de mim?”, perguntou a entidade.


“Quando te conheci você era uma bacuria e ainda não tinha pelanca para dar de
alimentar a um filho. Te disse que o sinhô ficaria com a bolsa que o bacurio puxa
para comer doente. Eu sei porque o sinhô veio aqui”, disse o caboclo Sultão das
Matas.

Ela pediu a alguém que compreendesse aquela forma de falar curiosa e


estranha que fizesse uma espécie de tradução. Uma senhora alta e robusta, que
tratava a entidade por ‘pai’, foi até onde ela estava e começou a explicar o que
estava sendo dito.

- Olha, meu pai está dizendo que ele te conhece desde que a senhora era
criança. Uma menina que ainda não tinha nem peito. Que a senhora ficaria doente e
ele sabe porque a senhora está aqui hoje.

Após aquelas palavras, de desconfiada Lourdes ficou aos prantos e as


lembranças voltaram instantaneamente. Tudo começou quando ela era apenas
uma criança na cidade de Serrinha. Filha de evangélicos, desses fanáticos, era
obrigada, junto com os irmãos, a assistir os cultos da Primeira Igreja Batista de
Serrinha.

Os pais mantinham ela e os 14 irmãos (dez mulheres e quatro homens) a


rédeas curtas – ela era a filha número 13 e a mais sapeca. Eles acreditavam de
maneira enfática e militarizada que Jesus poderia voltar a qualquer momento.
“Tenho 78 anos e até hoje espero por ele. Eu até gosto do sujeito, só não tenho
paciência”, brincou a idosa.

Como a curiosidade é peculiar às crianças, as proibições do pai lhe davam


mais vontade de fazê-las. Certa vez, Lourdes foi a casa de uma vizinha chamada D.
Terezinha, lugar que ela e os irmãos deveriam ficar longe por que ela acreditava
em algo diferente de seus pais. “Acho que ela era feiticeira, macumbeira, uma coisa
dessas”, pontuou a senhora. “era uma senhora de uns 60 anos, tinha uns filhos que
33 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

não moravam com ela e que, de vez em quando, enchia a casa de gente para fazer
sabe lá o que”.

Terezinha era conhecida por fazer as beberagens para curar os males que
afligiam o povo da roça, que raramente tinham contato com médico. “Ela era
famosa por ser parteira, médica, curandeira, conselheira, amiga. Só os meus pais e
o restante do povo da igreja a viam como inimiga”.

Toda a comunidade sabia do caruru de Cosme e Damião oferecido pela D.


Teresinha todo ano, no mês de setembro. Os cultos da Igreja eram voltados para
desestimular qualquer um a ir. O pastor da igreja orientava que as pessoas vissem
aquilo como obra do demônio. Para saber o que acontecia na casa da D. Terezinha,
Lourdes bolou uma travessura, junto com as duas irmãs mais novas, Laura e
Dorinha.

Para poder dar uma “espiadinha”, ela e as irmãs contrariaram a proibição da


mãe e foram tomar banho no açude, perto da casa onde moravam, pois já sabiam
que o castigo era não ir para a igreja. Por ordem dos pais, as três ficaram em casa
sozinhas enquanto todos estavam na missa.

“Tudo aconteceu como esperávamos, fomos eu e as meninas morrendo de


medo. A gente foi pelo mato para ninguém nos ver. Papai ia nos matar. Estava um
‘breu’ só! Depois de caminharmos mais um pouco, avistamos de longe a fogueira
queimando no meio da roça. Ao chegar lá, ficamos a certa distância vendo tudo. As
pessoas estavam apenas comendo, havia uns meninos sentados ao chão em forma
de círculo, comendo de mão e uns adultos batendo palmas e cantando umas
músicas. A dona da festa estava lá, vestida como de costume e o clima era de uma
alegria só”.

De repente, Terezinha começou a se balançar para os lados, junto com mais


outras duas ou três pessoas. “Ficamos olhando, depois elas foram levadas para
dentro da casa e voltaram com um comportamento esquisito. Tinha bico na boca e
começaram a se lambuzar com a comida que estava lá, um comportamento
34 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

bastante infantil. A D. Terezinha olhou em nossa direção e fez sinal para irmos até
lá”.

Lourdes e as irmãs ficaram paradas em meio ao escuro e se perguntaram


como ela sabia que estavam lá. “Quando ela levantou e veio em nossa direção,
saímos correndo de uma maneira tão enlouquecida que Laura perdeu até a
sandália”.

Depois de alguns dias, já tendo esquecido do fato, Lourdes ficou de castigo


pois seu pai soube que tinham ido ao caruru da D. Terezinha. “Levei uma surra.
Dessa vez, eu apanhei sozinha. Fiquei de joelhos no milho de galinha. Que dor!
Levei dois dias de joelhos lá e meu pai disse ainda que eu iria para o inferno. Minha
mãe ficou os dois dias ao meu lado orando para Deus me perdoar”.

Um dia, ao voltar da escola, Lourdes encontrou na estrada D. Terezinha


carregando duas sacolas com frutas. A menina se ofereceu para ajudar àquela
senhora. Ao chegar em sua casa, relutou em passar da porteira. Quando entrou,
percebeu que outras pessoas a estavam aguardando. Lourdes notou que as pessoas
ficaram de cochicho ao vê-la entrar, pois ela era filha de Chico, o crente.

“Eu perdi a noção de tempo. Nem percebi que tinha demorado, lembro de
tudo como hoje. Havia um copo com água em cima da mesa, uma vela, pessoas
sentadas em volta da mesa e eu achei que eles iriam almoçar. Nesse meio tempo,
não vi a D. Terezinha. Quando ela voltou, com uma voz muito estranha, um pano
em volta da cabeça, parecia uma tira dessas de tecido. Andava como se fosse para o
lado. Me assustei! Ela parou e me disse que um dia eu teria a bolsa que o bacurio
puxa para comer doente e que ela ou ele, sei lá, me faria ficar boa”. Lourdes
assustada foi embora correndo e dessa vez, como estava sozinha, decidiu não
contar para ninguém sobre o que aconteceu.

Muitos anos depois, quando Lourdes soube que estava com câncer de
mama, por pouco não entrou em desespero. “Eu estava viúva, meus filhos criados e
35 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

resolvidos na vida e, se fosse para me despedir, que fosse desse jeito, indo ver o
mar”, lembrou emocionada.

“O linfoma cresceu, cheguei a fazer uma biópsia para saber se o tumor era
maligno ou benigno. Quando fui buscar o resultado junto com minha filha, o
médico disse que eu teria que retirar a mama”. A filha Angélica é praticamente
companheira inseparável e motorista particular. Nesse dia, antes de irem para
casa, pediu para que a filha a levasse para ver o mar. “Fui ali para Itapuã e fiquei
olhando aquela vastidão, durante umas duas horas, pensando em minha vida”.
Várias vezes ela pensou que iria morrer. “Pedi aos céus que me dessem uma luz
para eu alcançar a cura e não precisasse ser amputada, uma vez que com a idade
que eu tinha, 66 anos, o estágio era avançado da doença e as chances de ficar boa
eram mínimas”.

O impacto da doença a fez repensar em como a vida é muito mais do que


esperava. E que a religião nada tinha que ver com sua vontade de ficar boa. “Olha
meu filho, quando eu estava lá sentada, próxima ao mar, e aquela senhora que
sentou ao meu lado, não me importei com qual era a religião. Naquele momento, o
que eu desejava era ser curada”, disse ela.

O tempo passou. Durante seis meses o médico que fazia o acompanhamento


tentava dizer para Lourdes que a retirada da mama era a melhor solução. Ela
sempre discordava. “Muitas vezes que saía da consulta médica, ia à casa que passei
a frequentar enquanto estava doente. Pela vontade de não ter meu peito retirado,
eu sempre acreditava que o médico estava equivocado e o caboclo iria me curar”,
relembra a idosa.

A entidade prescreveu banhos, chás e uma dieta diferente. Por exemplo, a


idosa teve que deixar de comer carne vermelha. Mudou, além disso, a sua maneira
de pensar, já que foi criada em uma roça, na cidade do interior, com orientação
evangélica.
36 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Muitas vezes, depois de voltar das consultas com o caboclo Sultão das
Matas, Lourdes rezava do jeito dela para agradecer a Deus o que estava recebendo.
No período de um ano, após seguir a orientação da entidade, ela, junto com o
médico, que se tornou o principal incentivador das idas dela ao centro, perceberam
que o problema havia regredido e a possibilidade de retirada da mama foi anulada.
“Eu depositei tanta fé naquele caboclo que acreditei na promessa que a mim foi
feita”, lembrou.

O doutor não sabia explicar como o tumor havia regredido. Precisou da


opinião de outros dois médicos para concluir que a paciente já estava curada.
Porém, o médico precaveu o acompanhamento mesmo com o resultado positivo e a
promessa do caboclo.

Assim como o tratamento médico teria que prosseguir por um período de


tempo, frequentar a casa e consultar o caboclo também se faziam necessário. Ela
sempre tentava explicar – com as mesmas palavras do médico – ao caboclo, o que o
doutor tinha lhe dito. Na maioria das vezes, ele pedia para as pessoas explicarem
certas expressões que não compreendia, fato que fazia muitos darem gargalhadas.
Com muita paciência ele a escutava.

Um dia, antes de ir para o último exame que iria eliminar qualquer dúvida
existente sobre a doença, Lourdes preferiu retornar a casa do Sultão das Matas,
pois em seu íntimo existia ainda o medo de que o resultado do exame fosse oposto
ao que esperava. Ao chegar na casa, o caboclo já estava lá. “Parecia que estava me
esperando. Logo que entrei, ele me disse: tu não confia em mim? Vá onde tens que
ir e volte aqui depois de uma lua grande”. Para os Caboclos, a lua grande é
compreendida como o período de um mês. É quando acontece a lua cheia em
determinado dia de cada mês. Alguns povos contavam o tempo através da lua
cheia.

Com um presente para o médico que estava tratando-a a aproximadamente


dois anos, Lourdes chegou na clínica acompanhada dos dois filhos. O médico
mandou chamá-la. Lourdes pediu aos filhos para entrar sozinha e permaneceu por
37 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

cerca de trinta minutos. Em seguida, saiu para o local onde o exame seria realizado.
Esperaram por mais duas horas até que o diagnóstico final fosse entregue a ela. Ao
invés de ser acalmada pelos filhos, era Lourdes que estava abrandando-os. Após
um minuto de silêncio, o médico que cuidava da idosa levantou e caminhou na
direção de Lourdes, a quem disse: “Parabéns não existe mais nódulo e muito
menos a possibilidade de retorno”.

“Muito obrigado doutor!”. Foi o que seus lábios proferiram, mas seu coração
agradecia também ao caboclo, a quem desejava que ali estivesse. Com um abraço
demorado no médico, ela chorou. Amparada pelos filhos, que eufóricos repetiam
vez após vez: “Foi Deus, mãe. Ele ouviu as nossas preces”. Depois do resultado, a
orientação médica era que deveria retornar a clínica uma vez por ano para realizar
exames rotineiros.

Passou-se um mês. Na noite que antecedia a volta de Lourdes ao centro ela,


como de costume, deitou-se cedo para dormir. Sonhou que duas crianças seminuas
lhe pediam algo para comer, só que no sonho as crianças apenas gesticulavam, mas
ela entendeu o recado. Ainda sonhando, ela se viu jovem em sua primeira gravidez
e que estava degustando comida baiana. Despertou antes do sol sair e com uma
sensação de que tudo aquilo havia sido real.

Amanheceu, o sol estava radiante, céu com poucas nuvens. Nesse exato dia,
completou o tempo dela retornar ao centro. Era uma manhã de sábado, Lourdes
apressou-se para ir a feira de São Joaquim junto com duas filhas. Compraram
frutas, flores, incenso, alfazema, fumo e charutos. Ainda na feira, dois meninos
gêmeos pediram a Lourdes para ajudar com ingredientes ou dinheiro no caruru
deles. Essa situação fez a velha senhora lembrar do sonho que teve na noite
anterior. Ela deu alguns trocados para as crianças e foi para casa do seu guia
espiritual.

Como agradecimento, Lourdes chegou na casa do Sultão das Matas com


doações de alimentos e roupas para uma creche na comunidade da Soronha, em
Itapuã, que o centro ajuda. “Era tanta coisa que levei tudo de caminhonete”,
38 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

recordou a idosa. Logo quando entrou na modesta casa que acolhia os que
procuram algum tipo de ajuda, as pessoas ficaram muito felizes em ver a mulher
que há dois anos chorava quando conversava com o caboclo.

Todos os que acompanhavam a idosa ficaram do lado de fora esperando o


momento de descarregar a caminhonete, a ansiedade era grande. De repente,
ouviram os gritos peculiar aos caboclos. Sultão das Matas e os outros também
começaram a tomar os corpos dos médiuns. Depois de ajeitarem suas vestes de
cerimônia – adornadas com penas de aves, tecidos ou roupas de couro – eles
vieram ao encontro de Lourdes.

Sultão da Matas, que vinha na frente, perguntou:


- Como vai seu Lourdes? O sinhô tá bom?
Ao que ela respondeu,
- Vou bem graças a Deus, ao Senhor e ao médico.
- Eu te disse que o sinhô ficaria bom, foi ou não foi?
- Tanto que eu estou aqui hoje para agradecer o que foi feito por mim, disse
ela emocionada.

Ele continuou,
- Hoje você poderia ter feito algo melhor que vir aqui trazer presente para
mim.
- O quê? Diga! eu faço qualquer coisa, disse Lourdes.

O caboclo riu dela durante um bom tempo, depois pediu para alguém lhe
ascender um charuto e prosseguiu:
- Hoje dois gurio pediram a você para ajudar no come, come deles e você
ajudou pouquinho e para mim traz um montão assim.

Quando traduziram para Lourdes de que se tratava, ela caiu no choro ao que
o caboclo disse:
- Minha filha, de hoje em diante, você vai chorar de alegria. Os dois gurio da
feira foram levados por seus filhos.
39 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

- Os meus?, perguntou ela.


- Sim, disse ele.

E assim, ele contou a história da gravidez de gêmeos interrompida a quase


cinquenta anos, para a surpresa de Lourdes. E é por causa dessa gravidez
descontinuada que Lourdes oferece um caruru com 10 mil quiabos a partir desse
dia. A orientação do caboclo era que ela deveria agradar também as crianças e
assim se deu.

Hoje, 12 anos depois, curada da enfermidade, a anciã vive de maneira


intensa. Viaja, sai para dançar e ainda arrisca uns namoricos de vez em quando.
Vez por outra, vai ao centro levar frutas, flores, charuto, material para a caridade e
consultar o caboclo, que se alegra ao vê-la. Depois de agradecer ao Sultão das
Matas e ao sujeito que ela não tem paciência de esperar - Jesus Cristo - ainda vai a
Igreja do Bonfim e vez por outra ainda tem tempo de acompanhar os filhos a
algumas reuniões numa igreja evangélica.
40 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

WALK OF FAITH - GABRYSHAK

CONSCIÊNCIA E CURA
41 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 CAPITULO IV

Nossa Senhora da Vitória nunca a tinha abandonado e ela jamais abandonou


a santa. A idade, 77 anos, não era empecilho para que Ismar Gusmão prestasse
serviço na Paróquia da Igreja Nossa Senhora da Vitória, no bairro da Graça, em
Salvador. Ao cair enquanto executava suas tarefas na Igreja, em 2006, a senhora
teve que lidar com duas dores: a do rompimento dos ligamentos do joelho direito,
que gerou uma artrose, e a dor da consciência.

A vida religiosa sempre teve privilégio para Ismar de Gusmão, que quando
mais nova pensou em se tornar freira por acreditar ter vocação. Depois de
abandonar de idéia, porque estava apaixonada, mudou o direcionamento de sua
vida. “Os estudos e a religião foram as primazias da minha vida. Me casei aos 25
anos, tive um único filho – que nasceu com uma limitação mental – aos 28 e fiquei
viúva aos 30”, lembrou a idosa. O abalo causado pela morte do marido e a doença
do filho fizeram aquela senhora agarrar-se ainda mais a fé que praticava.

Ismar trabalhava em dois locais para manter um padrão de vida confortável


para o filho. Em um emprego era Contadora do Tribunal de Contas da União e em
outro era Bibliotecária. Os dois trabalhos nunca foram pretexto para Ismar faltar
às missas e deixar de participar das atividades sociais da igreja. “Em 1985, mesmo
aposentada, prestava serviço na paróquia da Igreja Nossa Senhora da Vitória. As
limitações da idade nunca foram desculpa para nada. Sempre conseguia associar
minhas atividades à vida religiosa”.

Depois de trabalhar a vida inteira para assegurar que o filho nunca


precisasse de outras pessoas, o rompimento dos ligamentos do joelho direito caiu
como uma bomba para a idosa que era cheia de dinamismo. Receber a notícia dos
médicos de que não voltaria a realizar as mesmas atividades deixou-a triste. Como
devota de Nossa Senhora da Vitória chegou a fazer promessa para ser curada. O
tempo passou e o problema no joelho desencadeou uma artrose, agravando ainda
mais a situação da anciã.
42 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Ismar, que antes era independente, agora estava limitada a ser amparada
para realizar tarefas simples, como buscar um copo com água, trocar de roupa e
usar o banheiro. Além de um acompanhante, passou a andar auxiliada por uma
bengala. O tratamento passou a fazer parte do seu cotidiano, porém as dores foram
aumentando a cada dia. Uma amiga, então, lhe incentivou a recorrer ao tratamento
espiritual do Centro Espírita André Luis.

Era completamente inusitado para essa católica fervorosa ir ao centro


espírita, mas a aflição com as limitações e a preocupação com a saúde lhe fizeram
procurar a cura por meio do espiritismo. Por ter procurado esse auxílio, outra
angústia lhe acometeu: a da consciência. Para Ismar, que estava de peruca, óculos
escuros e chegou ao local de táxi para não ser reconhecida, seria inconcebível que
uma das carolas da igreja a visse entrando naquele local.

Ao chegar no centro, passou por uma triagem, que direcionava as pessoas


de acordo com suas necessidades específicas. O relógio não passava. Desde sua
chegada havia se passado 1 hora. Aguardar esse tipo de tratamento era um
verdadeiro sacrifício e se outros a vissem ali, ultrajante.

Em uma sala, logo depois da recepção, para quem aguardava o momento do


tratamento, a chegada dessa idosa de estatura mediana, cabelos brancos e de
aparência debilitada, chamou a atenção e alguns que meditavam puderam ouvir
seus resmungos.

As reclamações de Ismar eram por estar ali sozinha e pelo fato de nunca ter
pensado entrar em um local como aquele. Quando questionada porque tanta
indignação, ela respondeu prontamente: “Estou fora dos princípios de uma católica
devota de N. Sr da Vitória”.

A tentativa de acalmá-la era quase impossível porque ela alegava não estar
em paz com a própria consciência. “Desde ontem que eu peço perdão a Jesus Cristo
por vir aqui neste lugar. Espero que ele e nossa senhora me perdoem”, falou a
idosa preocupada. Como sua amiga e acompanhante não chegava, decidiram dar
43 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

mais um pouco de atenção a história que a velha senhora continuou a contar. “Eu
estou neste lugar contra a minha vontade. Uma amiga que gosto muito insistiu
para que eu viesse e ela até agora não chegou”, reclamava impaciente.

Ela estava ali para dar continuidade a um tratamento que havia começado
uma semana antes. O procedimento pelo qual ela passou foi uma intervenção
cirúrgica comandada pelo espírito do médico André Luiz. “Eu reconheço que estou
melhor, mas a minha consciência não me deixa em paz!”.

Estar em um local diferente daquele que professava sua fé a angustiava.


“Não se pode agradar a dois senhores. Um sempre vai ficar desagradado”, disse
entristecida, mesmo alguns dizendo para ela que o próprio Deus permitia que
aquele local existisse para que os seus filhos fossem atenuados das mazelas
pertinentes aos seres humanos. No entanto, a cada palavra de conforto dirigida a
idosa, o "carrancismo" se acentuava pela crise nas convicções religiosas.

A idosa reconhecia que estava sendo beneficiada e a fé no espírito lhe


proporcionou perceber que não estava restrita a N. Sra. da Vitória e a Jesus Cristo.
Agora, havia o espiritismo, que para os mais extremistas é tida como uma religião
demoníaca.

Para ela, o motivo era nobre: ficar curada. Mas, convencer os irmãos da
igreja que um local visto como partícipe do mal tinha algo bom era um problema
encarado com mais dificuldade que a dor que sentia. E, além da preocupação de
divulgar o benefício alcançado, lhe deixava apreensiva pensar que podia estar mal
vista por Cristo ou Nossa Senhora da Vitória. “Passei muitos dias sem comer e até
tomar banho. Eu realmente acreditava que não seria perdoada por Deus e as
pessoas seriam usadas por ele para me punir”, relembrou.

Três meses depois do primeiro contato com a cirurgia espiritual, Ismar,


recuperada, sem bengala e com a vida menos agitada, assegura que se precisasse
retornar ao Centro dedicado ao espírito de André Luis faria novamente. A tensão
entre ela e a própria consciência foi aliviada de forma gradativa. Como sabia que
44 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

não iria conseguir sozinha, recorreu a ajuda de pessoas que julgava ser
competentes para auxiliá-la. “O padre titular da igreja, monsenhor Gaspar Sadoc,
me disse que Deus cuida dos seus filhos das mais diferenciadas formas e o
importante é estar bem consigo mesmo. Depois, tudo melhora com o homem lá de
cima”.

Durante o tempo que frequentou o centro para realizar o tratamento, Ismar


observou que pessoas de outras denominações religiosas também procuravam
ajuda lá. Atualmente, Ismar realiza encontros com algumas amigas mais flexíveis
para arrecadar roupas e outros donativos para o brechó que fica localizada na
entrada do Centro Espírita André Luís. “Não frequento nenhuma sessão espírita,
nem estou estudando O Evangelho Segundo o Espiritismo, mas, hoje, com a idade
que tenho, aprendi a respeitar não só aquele local, mas qualquer outro que faça
bondade para alguém”, finaliza.
45 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

GULA GULA - MARTILENA

SÓ POR HOJE
46 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 CAPÍTULO V

Após responder um questionário de 15 perguntas e assinalar “sim” a todas,


descobrir-se doente, o que para muitos pode causar desespero, para ela foi um
alívio. Maria Clara sabia que não era normal e a escuridão diante do lhe acometia a
distanciava da recuperação. “Ali foi uma rendição, uma espécie de premiação por
ter batalhado muito, porque eu sabia que era doente”, diz. Por isso, para se falar
dela, precisa-se falar de uma Irmandade, pois tem vidas que não podem ser
relatadas só. E neste caso, a história de um grupo é a história de uma pessoa.

E como um grupo alicerçado por 12 passos e 12 tradições, há esta


necessidade, pois, como diz a sua 12° tradição, “O anonimato é o alicerce espiritual
das nossas Tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os
princípios acima das personalidades”.

Esta Irmandade formada em 1960, nos EUA, por três mulheres “não é
vinculado a nenhuma organização pública ou privada, movimento político,
ideologia ou doutrina religiosa e não toma posição em assuntos externos”. A razão
de agregar homens e mulheres sob o anonimato está numa doença: o comer
compulsivo.

A pulsão pela comida constitui-se numa doença incurável, que exige dos que
possuem tal enfermidade abstinência cotidiana. “Eu sou uma comedora compulsiva
em recuperação diária, só por hoje. A Irmandade acredita que a gente trabalha a
cada 24 horas o programa”. Pois, o que diferencia os Comedores Compulsivos das
outras pessoas não consiste somente no fato de comer em excesso ou estar acima do
peso, mas a forma obsessiva como eles se relacionam com a comida.

E esta descoberta, a de que se é doente, junto com o reconhecimento de que


não se possui o domínio sobre os fatores que os levam a comer compulsivo, é o
ponto principal para se iniciar a recuperação.
47 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Por essa característica de ânsia que Maria Clara sabia que não tinha uma
relação normal com a comida. Então, passou a pesquisar por compulsão na
Internet quando encontrou o site do CCA (Comedores Compulsivos Anônimos).
Após responder perguntas como “Você come quando não está com fome?”, “Você
faz 'farras alimentares' continuamente, sem razão aparente?”, “Você sente culpa e
remorso depois de comer compulsivamente?”, “Você gasta muito tempo comendo,
ou pensando em comida?”, “Você espera com prazer e antecipação pelo momento
em que pode comer sozinho?” e identificar-se como comedora compulsiva, passou
a fazer parte da Irmandade.

Porém, como é para todos que entram no CCA, estar acima do peso é a ponta
do iceberg da compulsão alimentar. Os comedores compulsivos acreditam que eles
já nascem com a pulsão alimentar e morrem com ela. “Com quatro anos de idade
eu era obcecada por comida. Pensava muito em comida e pedia, recorrentemente, a
minha mãe. Nesta idade, eu morava em uma cidade com meus pais que ficou
marcada na minha vida pelos locais que vendiam alimentos. E até hoje eu me
lembro de tudo que pedia para comer, mas nesta idade eu ainda não comia
compulsivamente”.

Contudo, muito normal a ingestão de alimentos para que as emoções não


devorem suas vidas, os Comedores compulsivos também ligam-se por sentimentos
como sensação de abandono, perda e depressão. “Aos 7 anos de idade aconteceu
um evento familiar que despertou o comer compulsivo, principalmente um
alimento específico que é à base de açúcar e o açúcar, para mim, é a alimento
'compulsor'”. Estes alimentos que despertam a compulsão de cada pessoa são
chamados de gatilho. Cada pessoa tem o seu gatilho. Por isso, com a crença de que
a doença é articulada pela tríade emocional-espiritual-físico, todo o processo de
recuperação do CCA é baseado em um programa com 12 Tradições, 12 Princípios e
12 Passos.

No caso de Maria Clara, a leitura de calorias nas embalagens de alimentos e


a procura pela nova dieta lançada foram trocadas por orações, inventários e
passos. “Comecei a fazer dieta muito cedo e com doze anos tinha uma calculadora
48 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

mental de calorias. Sabia tudo que era mais calórico. Com o programa me destituir
dessa calculadora porque a gente não faz isso”. Pois, principalmente, é trabalhada a
honestidade para com você mesmo perante a doença, como diz o primeiro passo:
“Admitimos que éramos impotentes perante a comida - que tínhamos perdido o
domínio sobre nossas vidas”.

Os dois outros passos que Maria Clara apegou-se para a recuperação foram
o segundo e o terceiro, que tratam de Esperança e Fé. “Viemos a acreditar que um
Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade” e “Decidimos
entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O
concebíamos” são passos primordiais que auxiliam os comedores compulsivos a
compartilhar e conceber ao que eles chamam de Poder Superior. Cada membro
adota a sua concepção de Poder Superior, sendo que a maioria dos CCA's adota o
conceito de Deus.

Dos 12 passos de recuperação, 7 fazem referência ao Poder Superior e à


espiritualidade como auxílio à abstinência. Por meio da consciência espiritual, os
CCA's trabalham internamente a entrega da doença ao Poder Superior. Mesmo
constituindo-se como um programa baseado no vínculo com o amadurecimento
espiritual, o CCA tem entre seus membros pessoas de diversas crenças religiosas
assim como ateístas e agnósticos, dando liberdade para que cada indivíduo tenha
(ou não) sua concepção particular de Deus.

Como chegam muito fragilizados, os primeiros passos do CCA's, que tratam


da admissão da doença, Esperança e Fé, acolhem inicialmente os que vão começar
seu processo de recuperação. O comedor compulsivo sofre de isolamento, já que
sente-se impotente e fraco. “Eu vim de uma sucessão de fracassos com dietas e
perda de peso. Eu fiz de tudo para emagrecer, eu só não operei e não vomitei, o
resto eu fiz tudo. Eu usei laxante, eu malhei compulsivamente, tomei fórmula, fiz
tudo. Cheguei ir a um cirurgião, mas não fiz a cirurgia de redução de estômago
porque não tinha obesidade mórbida nem índice de massa corpórea acima de 40”.
49 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

Os passos e tradições são partilhados através de reuniões anônimas, que


são iniciadas com a Oração da Serenidade, nas quais existe a troca de experiência e
leitura do material do CCA. Também faz parte da Irmandade o processo de
amadrinhamento, serviço, literatura, escritos e telefonemas para outros
comedores compulsivos. Sendo a aceitação, a compreensão da doença e entrega ao
Poder Superior os pilares da recuperação. A partir da concepção de um plano
alimentar pessoal, que não é uma dieta, mas o planejamento do que vai ser comido
no dia, que os comedores compulsivos praticam a abstinência. Contudo, é comum
em pensar nos CCA’s como homens e mulheres obesos, porém nem todos que se
identificam com hábitos alimentares que prejudicam a vida estão acima do peso.

Ao entrar no CCA e iniciar os passos, Maria Clara conseguiu rapidamente


entrar em abstinência e manter-se num processo de recuperação. Mesmo com
recaídas, ela considera o CCA como divisor de águas. “Eu não me curei porque não
tem cura. Mas, por exemplo, eu estou numa fase muito estressante, com problemas
profissionais. Se não fosse o CCA eu teria engordado 15 quilos, eu só engordei três.
Eu consegui mapear os alimentos que me fazem mal e evitá-los. O AA fala 'Evite o
primeiro gole', o CCA fala 'Evite a primeira mordida compulsiva'”.
50 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

GENEROSITY - ELENA RAY

CURA, PRESENTE DA FÉ
51 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

 CONCLUSÃO

As histórias reunidas neste livro reportagem destacam como os


sentimentos são inerentes ao homem. A fé é considerada a substância que nos
mantém unidos sobre valores espirituais. Muito além das religiões, é ela, talvez, o
elemento mais importante que ajuda os seres humanos, desde tempos remotos, na
obtenção de valor e significado para suas vidas.

Por ser tão primordial para a auto-estima, muitas pesquisas já foram feitas
para averiguar o quão essencial ela é para a saúde. A fé, dizem os estudos sobre o
tema, corrobora para que as pessoas vivam mais, tenham menos problemas de
saúde, maiores chances de serem bem-sucedidos e, principalmente, auxilia na
recuperação de um doente.

O neurocientista Andrew Newberg, professor da Universidade de


Pensilvânia, em seu livro How God changes the brain (Como Deus muda o cérebro)
diz que nenhuma religião é melhor do que outra: o importante é praticar a fé.
Nesta pesquisa, Newberg fala sobre o aspecto positivo da oração e da meditação na
melhoria da memória, na diminuição da ansiedade e da depressão.

Conforme os relatos desta obra, a fé não pode ser medida e uma parábola
bíblica exemplifica isso: a do grão de mostarda. Como disse Jesus: “[...] Se tiverdes
fé do tamanho dum grão de mostarda, direis a este monte: ‘Transfere-te daqui para
lá’, e ele se transferirá, e nada vos será impossível” (Mateus 17:20). Por meio dessa
minúscula dimensão de fé, é oferecida às pessoas a oportunidade de conseguirem
resultados diferentes, dentre eles, a cura.

Por isso, as personagens deste livro, além de ressaltarem a fé como o


propulsor de suas melhoras, a admitiram como sentimento que independesse de
religião. Por isso, para alguns entrevistados, a busca pela cura atracou em atalhos
que levaram a outras expressões religiosas. Principalmente, enxergaram Deus
manifestando seu poder das formas mais variadas. Seja através de um médium, de
52 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

um caboclo, de Jeová ou de uma benzedeira, a percepção desta conexão incidiu


para que essas pessoas repensassem suas questões espirituais.

Contudo, no convívio com algumas personagens, é evidente como o


sentimento de culpa fica ressaltado por terem buscado auxílio espiritual em locais
diversos. Por isso, através dos nossas personagens, concluímos que a fé une as
pessoas, mas são as pessoas que fazem questão de segregar. Foi o que ocorreu com
Clóvis, que conviveu com o repudio de seus irmãos de religião por procurar uma
benzedeira. Com Lourdes, que quando criança foi mantida distante de sua vizinha
que recebia o caboclo que lhe auxiliou na cura. E Ismar, que teve que crises de
consciência quando procurou outra vertente religiosa que lhe atendesse.

Porém, o objetivo deste livro não é invalidar as denominações religiosas,


mas mostrar que a fé rompe fronteiras. As pessoas que contribuíram para este
livro exaltam a fé independente da situação e das religiões. E, averiguamos,
principalmente, que a fé traz e mantém a estímulo de viver, como ocorreu com
Maria Clara e Marcelo, que descobriram sua cura pessoal.

Para este livro foram feitas visitas a templos e grupos católicos, pagãos,
espíritas. Participamos da missa na Igreja do Bonfim e visitamos sua Sala de
Milagres, fomos ao culto na Igreja Universal do Reino de Deus, ao encontro
semanal do grupo de cura pagão Tradição de 1920 e vivenciamos uma cirurgia
espiritual no Centro Espírita André Luis. Conversamos com algumas pessoas que
ali estavam e entramos em contatos com alguns dos seus líderes.

Para este livro reportagem foi necessário um ato de entrega e,


principalmente, se desvincular dos nossos preconceitos, das nossas crenças, dos
nossos deuses e paradigmas. Então, passamos a direção deste trabalho para os
personagens e não mais para a religião, que viria como pano de fundo. Pois, mais
importante do que ouvir os representantes de Deus na Terra era escutar os donos
da fé.
Na verdade, mais do que procura, ocorreu um encontro. A sensação era de
que os personagens surgiram para o livro como se já fossem dele. Então, tratamos
53 VOCÊ: O TEMPLO QUE CURA

cada história com o próprio ritmo e singularidade que cada um trouxe. Para uns,
tivemos que ter paciência, esperar o tempo e a hora da entrevista acontecer. Com
outros, aconteceu como que uma bela conversa de amigos. O principal foi respeitar
a realidade e o andamento que cada um dava a sua fala.

Tudo isso fez com que, ao invés de fazemos milhões de perguntas,


escutássemos atentamente o que nossos colaboradores estavam dizendo. Pois,
dedicadamente, cada um deles nos proporcionou uma parte de sua vida e nos
surpreendeu com fatos que não esperávamos. Por isso, este livro-reportagem
tornou-se significativo, pois para cada história foi dado seu valor e relevância. E, ao
invés de reduzirmos uma vida em páginas, expandimos existências em narrativas.

Porém, um fator unifica todas as histórias: A cura pela fé ocorreu antes ou


paralelamente a algum tratamento médico. Não foi o fator da medicina esgotar as
possibilidades de cura que fez nossos personagens buscar a intervenção espiritual,
mas a crença de que esta seria fundamental para tal ato. Sendo através do valor
dos guias espirituais, do poder da natureza com suas plantas, da compaixão dos
que auxiliaram nossos personagens e do orar pessoal de cada indivíduo que
reconhecemos a manifestação de Deus.

Por fim, percebemos que a cura pela fé está além de ser uma “benção” das
religiões. Mas, um ato prodigioso das próprias pessoas, pois elas que são
responsáveis por seus milagres pessoais. Pois, somos nós, seres humanos, que a
cada novo dia e a cada término deste, que a cada respiração, meditação, oração,
rezas, banhos de folhas que impulsionamos nosso caminhar. E pela capacidade de
nos reinventarmos a cada situação delicada de nossas vidas, a cada doença,
decepção, angústia, dor ou perda que nos constituímos como verdadeiros templos
de cura.

Você também pode gostar