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Elementos Agostinianos no Regime Retificado: A Alma como Espelho Da Trindade

Atualizado: Out 6

Ainda buscando avançar no estudo da Santíssima Trindade, sob a ótica doutrinal do Regime Escocês
Retificado, objetivando buscar alguma consciência sobre as vertiginosas alturas às quais a contemplação do
mistério que a envolve pode nos conduzir, deparamo-nos com o impressionante elemento agostiniano presente
no pensamento de Jean-Baptiste Willermoz que nos permite aceder a compreensão do que significa o
intercâmbio entre as Pessoas da Santíssima Trindade por meio de um exame do que se desenvolve na criatura
nos termos de suas faculdades.

Com efeito Santo Agostinho, o primeiro a realizar tal enfoque de uma maneira tão profunda e metódica,
estabeleceu uma correspondência relevante entre a Trindade e as três faculdades próprias da alma humana:
memória, inteligência e vontade. Tal comparação desempenhou um importantíssimo papel no discurso
teológico ocidental ao longo dos séculos, inspirando grandes doutores da igreja e permitindo a aproximação
ao mistério divino a partir de uma antropologia extremamente sofisticada e sutil que foi depois retomada por
Jean-Baptiste Willermoz durante a elaboração de seu sistema iniciático. Apoiado inteiramente na concepção
agostiniana e convertendo sua antropologia em um importante elemento da doutrina da Grande Profissão,
Willermoz desenvolve sua teoria sobre a degradação das faculdades (teoria também presente em Martinez de
Pasqually porém de forma completamente embrionária).

Para entender de forma mais clara a conexão entre Willermoz e Santo Agostinho tenhamos em mente o fato
de que ambos utilizaram como arcabouço da obra que edificaram não somente a história e a sede profunda de
conhecer e encontrar a Deus mas a certeza de que Deus habita no homem interior (tese agostiniana que
Willermoz absorveu e da qual fez uso em todo decorrer de seu sistema). Santo Agostinho deixou na história
de sua conversão pessoal o registro da descoberta do homem interior; sua constante preocupação com a
origem e o problema do mal, o levaram a uma intensa busca que culminaria na descoberta da intimidade com
Deus a partir do interior do homem; descoberta essa que demonstra que somente no conhecimento do homem
interior pode haver o encontro com Deus e a liberdade que o evangelho promete; no entanto, tendo
tomado a consciência sobre Deus e o homem interior, Agostinho passa a dirigir sua atenção às coisas da alma,
“Deum et animam scire cupio. Nihil aliud" - quero conhecer a Deus e a alma. Nada mais! E conclui, de
maneira muito inspirada, que é na alma humana que se encontra o lugar da intimidade com Deus, lugar do
grande encontro, lugar onde está Deus e onde está o que há de melhor no homem: “Noli foras ire, in
teipsum redi: in interiore homine habitat veritas” - Não procure fora. Entra em ti mesmo: no homem
interior habita a verdade. Respeitando, como o bom metafísico que era (Vide nosso artigo: Willermoz -
Um Teórico Metafísico a Serviço Da Maçonaria) o método ascendente que ensina que devemos partir
primeiramente do homem, examinando-lhe imagem e faculdades, para pouco a pouco “não reconstruir Deus
a partir do espelho humano” (como bem teorizava o teólogo Paul N. Evdokimov) mas abrindo-nos para o
que Deus nos diz “no único livro que Deus escreveu com a mão” (conforme Saint Martin em “O Homem
de Desejo”) que “foi feito a imagem de Deus e de acordo com sua semelhança”, o homem que somos, que
vemos, experimentamos e podemos estudar cuidadosamente, elevando-nos com respeito à divindade invisível:

“A Santíssima Trindade imprimiu sua imagem na alma e em suas três faculdades. Essas três coisas:
memória, inteligência e vontade, não são três vidas mas uma só vida; não são três almas mas uma só alma;
consequentemente, não são três substâncias mas uma substância. É por isso que essas coisas são uma,
formam uma só vida, um só espírito, uma só alma, uma essência, como em Deus as três Pessoas são somente
uma só vida, um só espírito, uma só essência divina. Da mesma maneira o sinal da Santíssima Trindade
está em nosso corpo e em cada sentido; por exemplo, na visão existem três coisas; a coisa vista, a visão
mesma e a percepção da alma…” - Santo Agostinho, “Manual Sobre a Fé, a Esperança e a Caridade”.

A demonstração da tese de Santo Agostinho, que elabora seu pensamento a partir de um elemento ontológico
trinitário, onde o ser e o homem são alcançados dentro do mesmo e idêntico amor, pelo qual a alma se
pronunciou desde o início, é de grande interesse e importância para maçons do Regime Retificado já a partir
do seu ponto de vista doutrinal, metodológico e espiritual, uma vez que o pensamento do discípulo de Santo
Ambrósio de Milão marcou, indubitavelmente, de forma muito profunda a Jean-Baptiste Willermoz.
Santo Agostinho, com efeito, faz uso da analogia para entender o mistério da Trindade. Deste modo, quando
trata do tema, nos introduz no mistério da vida íntima de Deus, mas também na vida íntima da alma, como
mostra a admirável oração do final do capítulo XV de “Da Trindade”: “Fixa minha atenção nesta regra de
fé, te busquei segundo minhas forças e na medida que tu me fizeste poder. Desejei ver com minha
inteligência o que acreditava a minha fé, e disputei e me afanei em demasia. Senhor e Deus meu, minha
única esperança, escuta-me para que não sucumba ao desalento e deixe de buscar sempre o teu rosto com
ardor. Dá-me forças na busca, tu que fizeste com que eu te encontrasse e me deste esperanças de um
conhecimento mais perfeito. Diante de ti está minha firmeza e minha debilidade; cura esta, conserva
aquela. Diante de ti está a minha ciência e a minha ignorância; se me abres, recebe o que entra, se me
fechas, abre ao que chama. Faz que me recorde de ti, te compreenda e te ame (...). Aumenta em mim esses
dons até minha reforma completa...”

Santo Agostinho constata então a impotência do homem para conhecer o mistério da trindade: “Quando se
trata de Deus, o pensamento é mais exato que o discurso e a realidade mais exata que o pensamento”, mas
nunca põe em dúvida que o traçado mais perfeito que podemos ter em relação ao caminho que leva a Deus
está na alma. Observamos tal fato, de forma ainda mais explícita, por meio da seguinte passagem:

“Em todas as partes se encontra a Trindade. O número três é apropriado para esclarecer todas as
dificuldades, já que contém - em si mesmo - o princípio, o meio e o fim; essas três coisas são o todo; há três
coisas no culto a Deus: adoração, incenso, hino; há três virtudes teologais: fé, esperança e caridade; há três
partes na penitência: contrição, confissão e justificação; há três boas obras principais: oração, jejum e
esmola; a aritmética ensina que se encontra o número três em cada operação; a geometria nos permite ver
que há três coisas em tudo: altura, comprimento e largura. O mundo é tríplice: existe o mundo angélico, o
mundo humano, o mundo físico; existem três hierarquias de anjos e em cada uma existem três ordens; Eles
têm três deveres: purificar, esclarecer, aperfeiçoar. Eles têm um triplo conhecimento: o da manhã, que está
na Palavra; o da tarde, que é o conhecimento das coisas em si; o do meio-dia, que é a visão completa de
Deus... Há três coisas ao todo: essência, virtude, operação; ou o ser, a figura, a ordem; nas composições há
matéria, forma e união [...]. Existem três ordens nas coisas: a ordem da natureza, a da graça, a da glória.
Existem três causas: a causa eficiente, a causa formal, a causa final [...] A lei é tríplice: a lei natural, a lei
de Moisés, a lei de Jesus Cristo… Há três coisas no tempo: passado, presente e futuro.

Em suma, Deus criou e organizou todas as coisas de três maneiras: em peso, em número e em medida (Sab.
XI, 20). É assim que a Santíssima Trindade coloca sua semelhança em todas as coisas, de modo que cada
coisa, à sua maneira, a reconhece e presta homenagem a ela. Tudo o que existe, tal qual as criaturas, depende
da Santíssima Trindade, assim como os raios dependem do sol; porque o Pai é aquele de quem toda
paternidade vem, no céu ou na terra; do Filho vem toda filiação e geração; Do Espírito Santo vem todo amor,
toda graça, toda liberalidade, todo dom.

Deus, a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, vem a nós quando vamos a Ele; Ele vem a nós nos ajudar, nós
vamos a ele obedecendo; Ele vem a nós nos iluminando, vamos a Ele olhando para ele, vendo com toda a sua
vontade; Ele vem até nós enchendo-nos de bens, vamos a Ele recebendo os mesmos bens Dele ”.

Assim, no espírito e na continuidade da inspiração de Santo Agostinho, sem o qual (é importante insistir) o
Regime Escocês Retificado não seria o que é. Eis aqui o que Jean-Baptiste Willermoz sustentará em um texto
que pode, facilmente e sem medo de exageros, ser considerado como essencial para nossa doutrina:

“Reconhecemos uma essência tripla da unidade, e não três essências isoladas e independentes da unidade,
porque não são três deuses. As três Potências Criadoras da Unidade formam, na imensidade incriada, o
Triângulo Divino Eterno, do qual elas são o princípio e o centro. Elas são tão inerentes à natureza essencial
da Unidade, e tão idênticas a ela que, ainda que sempre distintos por sua ação específica, formam junto a
unidade um só Deus. [...] As Potências ativas através das quais a Unidade Divina manifesta e opera todas
as coisas são suas três faculdades próprias criadoras de pensamento ou intenção, de vontade e de ação
Divina operante, que personificamos e adoramos sob os Nomes de Pai, Filho e de Espírito Santo; estes,
formam o sagrado ternário dessas potências criadoras que chamamos de Santíssima Trindade. Mistério
inefável que o homem degradado não pode sondar em toda sua profundidade, mas cujo conhecimento é
tão importante para ele que, para que não o perca e para que tenha condições reais de o conceber, o próprio
Deus o gravou em caracteres indeléveis no âmago de seu ser … tornando-o de alguma forma sensível à
sua inteligência, imprimindo no próprio homem que, apesar de sua degradação é sempre sua imagem, uma
trindade de faculdades ativas e inteligentes de Pensamento, Vontade e Ação, em semelhança com a
Trindade Divina, pela qual ele pode, como Deus, produzir resultados análogos a sua própria natureza, e
sem a qual seria em relação a todos os seres que a cercam como nulos e inexistentes.

Mas em Deus essas três faculdades poderosas são iguais em tudo e operam, desde a eternidade, sua ação
particular simultaneamente, ainda que em ordem diferente, para todos os atos de Emanação, Produção e
Criação Divina, nos quais as três contribuem igualmente e distintamente, mas sempre em unidade de ação,
dado que em Deus por ser um Ser de sabedoria e perfeição infinita, a Vontade Divina sempre quer o que o
Pensamento Divino concebeu e o que a Vontade determinou. Pois é certo que Deus pensa, deseja e atua, e
que essas três faculdades da Unidade Divina necessariamente produzem resultados de Vida Espiritual
análoga à sua própria natureza. Portanto, três não podem ser concebidos em Deus, sem reconhecer ao
mesmo tempo quatro: os três poderes criativos operantes e os seres espirituais que dali emanam, cuja
existência, fora do seio da Unidade, é operada por eles.

É, então, com razão que a religião apresenta incessantemente ao homem as três potências criadoras divinas
como sendo objeto constante de adoração e de culto; porque o pensamento divino é verdadeiramente Deus,
em Deus e de Deus. A Vontade Divina e sua Ação operante são também verdadeiramente Deus, em Deus e de
Deus, e essas três poderosas faculdades inatas de Deus são tão idênticas à sua natureza essencial que, sem
elas, Deus não seria Deus; como sem eles, ou melhor, sem sua semelhança, homem, imagem de Deus, não
seria homem” - «Doctrina de Moisés, Doctrina, Instrucción particular & secreta a mi hijo», 1818,
Renaissance Traditionelle n° 80, outubro 1989, p. 241.

Tal exposição é tão admirável que deveria não somente ser alvo obrigatório da meditação de todo maçom que
esteja em nível avançado no Regime Escocês Retificado, mas na qual, de forma mais ampla, todo cristão
poderia mergulhar para iluminar os fundamentos centrais de sua fé, pois, como muito bem pontuado pelo neo-
escolástico Etienne Gilson em seu livro intitulado "El espíritu de la filosofía medieval": “Se o homem é
realmente uma imagem de Deus, como ele pode se conhecer sem conhecer Deus ? ”.

Voltemo-nos pois, meus bem amados irmãos, ao incrível tesouro que nos foi legado por nossos Pais
Fundadores; abandonemos de uma vez por todas as leituras distorcidas, supersticiosas e por muitas vezes
risíveis (todavia todas com capacidade de gerar grande estrago na doutrina) que têm sido introduzidas em
nossas lojas por meio do enxerto de elementos estranhos ao R.E.R. , ao pensamento dos fundadores ou
mesmo ao cristianismo. Tenhamos em mente o que nos disse Jean-Baptiste Willermoz:

"Quem são os verdadeiros discípulos do nosso Divino Mestre?

Eles são sem dúvida os apóstolos e aqueles que foram instruídos por eles no primeiro século.

Aqueles a quem foi dito: Ide e ensinai a todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que Eu vos tenho ordenado, e estejam certos que
sempre estarei convosco, até a consumação dos séculos:

Aqui está bem estabelecido e de uma vez por todas quem eram nossos únicos e verdadeiros mestres no
conhecimento da santa doutrina e dos dogmas que devemos professar."

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