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levou grande parte dos livros às mãos do indivíduo em questão, e que suas leituras

eram quase apenas uma busca de confirmações para suas convicções, visto que
várias vezes ele “distorcia” o significado de um trecho para fazê-lo condizer com
seus pensamentos. Suas ideias iniciais teriam surgido da cultura oral religiosa
camponesa, ou até mesmo de seitas turcas radicadas naquela região, já que uma
cultura quase exclusivamente oral (como a das classes subalternas da Europa
pré-industrial) tende a não deixar pistas.

Da mesma forma que se apropriou dos arquivos inquisitoriais para produzir tal
pesquisa tão vasta, Ginzburg publicou em 1989 a obra História noturna, onde se
propõe a trabalhar os estereótipos da bruxaria, movido pelas perguntas “Como e por
que se cristalizou a imagem do sabá? Que se esconde por trás disso?”. A estrutura
mitológica da cultura popular é o grande foco da pesquisa de Ginzburg também
neste livro, onde também são feitas críticas a historiadores que trataram do tema
sem o uso de materiais que tratassem do que pensavam os praticantes do sabá.
Mais uma vez com o uso da Micro-história, o autor se propõe a demonstrar a
importância do conceito de “individualidade” inclusive para as camadas mais pobres
da história.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução


Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

Michel Foucault, além de historiador das ideias, foi um filósofo, teórico social,
filólogo e crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do
Pensamento, no Collège de France, até o ano da sua morte. Suas teorias abordam a
relação entre o poder e o conhecimento e suas formas de uso no controle social.
Foucault não se vê como um pós-estruturalista ou um pós-modernista, preferindo
classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Publicou
obras de grande importância para a historiografia como ​História da loucura na idade
clássica (1961), ​Arqueologia do saber (1969), ​A ordem do discurso (1970), além de
Microfísica do Poder (1979). Em ​Vigiar e punir (1975), o autor se dedica a uma
análise da vigilância e da punição em várias repartições estatais, como hospitais,
escolas e prisões. A obra conta com quatro partes, intituladas "Suplício", "Punição",
"Disciplina" e "Prisão".
A obra é iniciada pela história do “parricida” Robert-François Damiens,
condenado em 1757 a um variado conjunto de torturas, como o desmembramento
do seu corpo por quatro cavalos, pela tentativa de regicídio do rei Luís XV, que era
considerado o pai de todos os franceses. No que tange ao século seguinte ao
suplício de Damiens, o autor reproduz o regulamento da Casa dos Jovens Detentos
de Paris, com seus horários rígidos de trabalho e de refeições, com o intuito de
questionar o que levou o sistema jurídico do Ocidente (em especial o da França) a
deixar de utilizar como punição a tortura e a execução públicas e preferir as prisões,
teoricamente buscando a reintegração dos criminosos. A resposta é buscada através
de um exame da tortura pública em si. Segundo o autor, este tipo de cena constituía
um tipo de espetáculo público que cumpria funções como a de refletir a violência do
crime sobre o corpo do condenado de forma pública. Para Foucault, a lei era
considerada uma extensão do corpo do soberano, logo a vingança deveria violar o
corpo do condenado. De forma não intencional, tal forma de suplício acabava por
transformar o corpo do condenado em objeto de simpatia, tendo muitas vezes as
execuções terminado em tumultos em apoio ao condenado. O autor conclui que a
execução pública se revelava, além de improdutiva, antieconômica, com um alto
custo político devido a sua utilização quase casual, instável, imprevisível e pouco
eficiente.

Para Foucault, “esse teatro punitivo, com que se sonhava no século XVIII, e
que teria agido essencialmente sobre o espírito dos cidadãos, foi substituído pelo
grande aparelho uniforme das prisões cuja rede de imensos edifícios se estenderá
por toda a França e a Europa” (p. 136), porém a transição para a prisão não foi
imediata. A prisão foi precedida historicamente por outro tipo de espetáculo público.
No lugar do suplício público, agora há acorrentados condenados a trabalhos
forçados. Apesar da “melhora” na punição, ela não foi inspirada por motivos
humanitários, visto que, para Foucault, os reformistas estavam insatisfeitos com a
natureza imprevisível da violência do soberano sobre os corpos condenados,
levando em conta que “Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento
para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas” (p. 86).
Além dessa forma de punição generalizada, teriam sido criados “mini-teatros” de
punição nos quais os condenados teriam sido expostos em espetáculos controlados
e eficazes, desempenhando trabalhos que refletiam os seus crimes, de certo modo
prestando à sociedade uma reparação pelos danos causados. Mas tais experiências
duraram menos de vinte anos. Segundo Foucault, esse novo método de punição
representou o primeiro distanciamento da força quase infinita do soberano, em
direção a meios de punição mais generalizados e controlados. A reforma do sistema
punitivo caminhou em direção à noção de que a punição deve participar de uma
mecânica perfeita em que a vantagem do crime se anule na desvantagem da pena,
de forma a desestimular, assim, futuros contraventores e, principalmente, eliminando
a reincidência.

Em seu estudo, Michel Foucault identifica a disciplina mantida nas prisões


como algo a moldar os corpos dos indivíduos, enquanto processo de docilização
para sujeição da vontade. Segundo ele, “a prisão, aparelho administrativo, será ao
mesmo tempo uma máquina para modificar os espíritos” (p. 144), além de “um
aparelho de saber” (p. 146). Para o autor, a disciplina também se manifesta nas
escolas, indústrias e Forças Armadas modernas, justamente como uma maneira de
exercer o poder para produzir sujeitos capazes de funcionar como engrenagens da
nova sociedade pós-absolutismo.

A obra de Michel Foucault é uma análise impressionante e fundamental para


a compreensão do processo histórico que culminou na criação das prisões e das
formas de punição que conhecemos hoje, além de oferecer um panorama histórico
sobre a manutenção do poder constituído sobre a sociedade de um modo geral,
incluindo os sujeitos e seus corpos e almas. ​O livro faz um apanhado geral de todas
as formas de castigo, desde a tortura do corpo, “o suplício”, cujo objetivo era “salvar
a alma” dos indivíduos, até o sistema judiciário atual, onde o que move o aparelho
penal não é mais o interesse em castigar os criminosos, mas recuperá-los, para
integrá-los “dóceis e úteis” novamente à sociedade.

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