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Christian de Paul de Barchifontaine

Bioética e início da vida

Alguns desafios
D IRET ORES EDIT ORIAIS :
Carlos Silva
Ferdinando Mancílio

EDIT ORES :
Avelino Grassi
Roberto Girola

C OORDENAÇÃO EDIT ORIAL:


Elizabeth dos Santos Reis

C OPIDESQUE:
Mônica Guimarães Reis

R EVISÃO:
Ana Lúcia de Castro Leite
Maria Isabel de Araújo

PROJET O GRÁFICO E EDIT ORAÇÃO:


Alfredo Carracedo Castillo

C APA:
Roberto de Castro Polisel

© Idéias & Letras, 2004

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Barchifontaine, Christian de Paul de, 1946-


Bioética e início da vida: alguns desafios
/ Christian de Paul de Barchifontaine — Aparecida,
SP: Idéias e Letras; São Paulo: Centro Universitário
São Camilo, 2004.
ISBN 85-98239-05-4 (impresso)
ISBN 978-85-7698-081-0 (e-book)
1. Bioética 2. Dignidade humana 3. Reprodução humana
–Aspectos morais e éticos
4. Vida – Origem 5. Vida humana – Ciclos I. Título.

04-0773 CDD-179.7

Índices para catálogo sistemático:

1. Bioética: Vida humana: Dignidade: Filosofia moral 179.7


2. Vida humana: Dignidade: Bioética: Filosofia moral 179.7
Apresentação

A bioética tem uma historia de pouco mais de trinta anos desde seu surgimento em 1971, nos
EUA. Esta nova área do conhecimento humano vem sendo saudada no âmbito científico como num
grande lance de esperança para a humanidade neste início de século XXI. É o clamor da
sabedoria humana, que vai além do mero contexto das discussões éticas das múltiplas profissões
no âmbito das ciências da vida e da saúde humana, buscando a promoção e proteção da vida,
desde o âmbito pessoal, perpassando pelo nível societário, e chegando até o cósmico-ecológico.
Em terras brasileiras já despontam inúmeras iniciativas consistentes que estão levando à frente
a discussão bioética. Temos a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), com suas várias regionais,
que já promoveu quatro congressos nacionais e está em vias de realizar o 5- no Recife em maio
de 2004. A SBB, juntamente com a Associação Internacional de Bioética, realizou em 2002
(Brasília-DF), o VI Congresso Mundial de Bioética, o maior de todos até hoje, que aprofundou uma
questão central da agenda bioética dos países do mundo pobre: Bioética – poder e injustiça. Além
disso, constatamos que inúmeras Universidades e Instituições de Ensino Superior estão
introduzindo no currículo de formação dos futuros profissionais, notadamente no âmbito da saúde,
a disciplina de bioética. Começamos a ter em nosso país uma produção acadêmica de bioética,
em teses de mestrado, doutorado, livros e revistas, que não fica atrás de muitos países ditos
desenvolvidos.
É neste contexto de intensa busca de reflexão e discussão que chega às nossas mãos a
oportuna obra Bioética e início da vida: alguns desafios, de Christian de Paul de Barchifontaine.
Trata-se de uma obra de cunho didático-pedagógico, sem a pretensão de esgotar as questões,
mas que para além da informação científica, segura e atual, instiga a reflexão e discussão ética.
Mais do que respostas prontas vamos nos encontrar diante de perguntas que nos obrigarão a sair
do conforto de nossas certezas e nos lançarão o desafio de dialogarmos, sermos humildes,
respeitosos e tolerantes frente ao diferente e sobretudo que aprendamos a viver solidariamente.
Esses três conceitos-chave que definem a perspectiva do autor – diálogo, tolerância e
solidariedade – são mais do que nunca necessários neste início de novo século em que, frente a
um crescente pluralismo cultural, surpreendentemente voltamos a ter de enfrentar novos
fundamentalismos e terrorismos que achávamos que já eram coisas de um passado distante. Esta
perspectiva me faz lembrar o que diz de si próprio Norberto Bobbio, considerado um dos maiores
pensadores do século XX: “Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo
de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar”. Uma
verdadeira síntese de sabedoria!
Esta obra, Bioética e início da vida: alguns desafios, pela sua concepção estrutural, será de
grande valia para o ensino da bioética na universidade. Nos dois primeiros capítulos, apresenta
uma fundamentação sobre o que entender sobre dignidade humana, evolução histórica e
abrangência temática da bioética, que são imprescindíveis para a reflexão, não somente das
questões éticas do nascer, mas também do viver e morrer. Nos capítulos seguintes o autor nos
convida a mergulhar em questões complexas e polêmicas do início da vida humana, que exigem
nosso enfrentamento: questão do crescimento populacional (Cap. III); a reprodução assistida (Cap.
IV), o genoma humano (Cap. V) e a clonagem (Cap. VI). Uma série de documentos importantes de
organizações e organismos internacionais, relacionados às questões debatidas, constitui o bloco
de anexos que merecem atenção e leitura.
O autor, Christian de Paul de Barchifontaine, belga de nascimento, brasileiro de coração,
camiliano, atualmente é reitor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Tem formação
acadêmica na área de enfermagem e mestrado na área de gestão em saúde. É docente de
bioética desde 1984 nos cursos de pós-graduação em Administração Hospitalar e da Saúde da
bioética desde 1984 nos cursos de pós-graduação em Administração Hospitalar e da Saúde da
Universidade São Camilo. É coautor da primeira obra didática de bioética, publicada em terras
brasileiras (1991), Problemas atuais de bioética, já na 6a. Edição (Ed. Loyola).
Parabenizo meu caro amigo, por mais esta iniciativa intelectual e faço votos de que esta obra
seja um sucesso.

Prof. Dr. Léo Pessini


Membro da diretoria da Associação Internacional de Bioética
Superintendente da União Social Camiliana
Sumário

Introdução

Capítulo 1
Dignidade humana: uma reflexão ética

Preâmbulo
Reflexão filosófica
Reflexão biológica
Perspectivas

Capítulo 2
Bioética: contextualização, origem, conceituação e abrangência
Introduçao
A pessoa humana
A nossa realidade
• Uma filosofia: existencialismo
• Uma cultura: da modernidade à pós-modernidade
• Uma ideologia: neoliberalismo
• Um sistema: capitalismo
Globalização, saúde e cidadania
• Globalização
• Saúde
• Cidadania: uma questão urgente
Ética, moral e bioética
• Evolução histórica da ética
• Conceituações de moral e ética
• Qual é a ética da bioética
• Histórico da bioética
• Origem da bioética
• Definições de bioética
• Fundamentação filosófica e paradigmas da bioética
• Algumas características da bioética
• Conteúdo e desafios da bioética
• Comissões de bioética e controle social
• Abrangência temática da bioética
• Bioética na América Latina: Três desafios entre outros
• Bioética global e sobrevivência humana: Algumas considerações de Van Rensselaer Potter
Conclusão

Capítulo 3
Políticas demográficas

Introdução
Políticas populacionais
Contracepção e anticoncepção
• Alguns pontos norteadores de nossa reflexão
• O mito da crise populacional
• Explosão demográfica – Retrato do Brasil
• Aspectos legais da contracepção
• Aconselhamento genético
Aborto
• Aborto: conceituações
• Aspecto legal no Brasil
• Quando começa a pessoa humana?
Posição do Magistério da Igreja Católica
Outro tipo de argumentação
• Gravidez indesejada ou inoportuna
• Aborto legal e malformação do feto
Conclusão

Capítulo 4
Técnicas de reprodução assistida

Introdução
Técnicas de reprodução assistida
Indicação
Alguns riscos
Alguns questionamentos
Legislação
• Código de ética médica
• Normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida
• A lei de biotecnologia 8974 de 1995
• A resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS
Reflexões bioéticas
• Infertilidade
• Ponto de vista social
• Reprodução assistida e amor conjugal
• Embriões congelados
• Redução de embriões
• Consciência dos direitos das mulheres
• Clínica de infertilidade
• Perspectiva cristã católica
Conclusão

Capítulo 5
Genoma humano

Introdução
As revoluções da biologia
Uma breve histórico da genética
Célula
Glossário para entender o genoma
Nós temos o livro. Agora precisamos aprender a lê-lo
As promessas da descoberta
Medicina preditiva
Biopoder
• Genoma humano e engenharia genética
• Ética que cerca o Projeto Genoma Humano (PGH)
Reflexões bioéticas
• Benefícios da engenharia genética
• Patenteamento do genoma
• Privacidade
• Discriminação
• Determinação genética e liberdade humana
• Eugenismo
• Previdência social
• Clonagem
• Terapia gênica
• Alerta
• O Projeto Genoma Humano e a realidade brasileira (fome).
• A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997)
Conclusão

Capítulo 6
Clonagem humana

Introdução
Ética e tecno-ciência
Do que falamos?
Células-tronco
O que é um embrião
Clonagem de seres humanos
Reflexões bioéticas
• Discernimento ético
• Biotecnologia
• Clonagem de seres humanos
• Realidade brasileira
Conclusão
Para refletir
• O fim da era dos contratos?
• No último estágio, um ser vivo artificial
• Sem provas, empresa anuncia clone humano
• Clonagem é ineficaz, diz “pai” de Dolly

Anexos

Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948


Reprodução Assistida – 1992
Lei n° - 8.974 de 05/01/1995 – Biossegurança
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos – 1997
Declaração sobre a Produção e Uso Científico e Terapêutico das Células Estaminais
Embrionárias Humanas – 2000
Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Direito, Bioética e Genoma Humano – 2001
Organismos Geneticamente Modificados (OGMS): Manifestação do Conselho Federal
de Biologia – 2002

Bibliografia
Introdução

Os grandes problemas da humanidade de hoje, mesmo sem rejeitar a grande contribuição que a
ciência e a tecnologia trazem para superar as condições de miséria e de deficiências dos
diferentes gêneros, só serão resolvidos com a reconstrução da comunhão humana em todos os
níveis.
Através da solidariedade, entendida como a determinação firme e perseverante de empenhar-
se para o bem comum, isto é, para o bem de todos e de cada um, todos devem ser
verdadeiramente responsáveis por todos: a primazia da pessoa sobre o econômico. Eis a grande
vocação da bioética!
Que valor atribuímos à vida? De que modo podemos proteger e tornar melhor esse bem? Como
melhorar a nossa convivência humana? Se bioética significa fundamentalmente amor à vida, tenho
certeza de que nossas vozes podem convergir para estimulantes respostas a fim de melhorar a
vida do nosso povo, bem como o nosso convívio, passando pelo respeito à dignidade da vida das
pessoas.
Entendemos a bioética como ética da vida, da saúde e do meio ambiente, tendo como
finalidade o resgate da dignidade da pessoa humana e da qualidade de vida frente aos
progressos tecno-científicos e frente às políticas sociais e econômicas. Através de um diálogo
transdiciplinar, transprofissional e transcultural, baseados na tolerância e na solidariedade
pretendemos, com este livro, responder a alguns desafios bioéticos do início da vida.
Antes de tudo, é necessária uma reflexão ética sobre a dignidade humana, já que esta é o centro
de todo o estudo da bioética. Apoiado no documento de trabalho do Conselho Nacional de Ética
para as ciências da vida do Portugal (1999), situamo-nos filosófica e biologicamente quando
falamos de dignidade humana (Capítulo I).
A seguir, nos estenderemos sobre o que é bioética, ética da vida (Capítulo II), entendendo que a
reflexão deve passar pela análise da realidade na qual vivemos, pelos conceitos de globalização,
saúde e cidadania, chegando ao conceito de moral, ética e bioética (o advento da bioética muito
contribuiu para estabelecer a distinção entre moral e ética).
Inicialmente, acenamos que moral diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de
uma determinada sociedade. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada
membro a ela pertencente recebe – digamos passivamente – e os respeita.
Ética é um juízo de valores, é um processo ativo que vem de “dentro de cada um de nós para
fora”, ao contrário de valores morais que vêm de “fora para dentro” de cada um. A ética exige um
juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica,
cada um de nós vai pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e,
também, seus valores morais.
Bioética é ética. Não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma
reflexão sobre os mesmos e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há
bioética sem liberdade; liberdade para se fazer uma opção, por mais “angustiante” que esta possa
ser. O exercício da bioética exige pois liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem
coação, sem coerção e sem preconceito. A bioética exige também humildade para se respeitar o
diferente e a grandeza para reformulação, quando se reconhece o equívoco em uma opção.
Condição sine qua non exigida pela bioética, enquanto tal, diz respeito à visão pluralista e
interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. Ninguém é
dono da verdade.
Vamos analisar a trajetória da bioética: evolução histórica, origem, conceituações, fundamentos
filosóficos. Assim, chegaremos à identificação de dois polos essenciais no estudo da bioética: a
bioética cotidiana, sendo voltada para assegurar condições dignas de vida, para a exigência de
humanizar a medicina, articulando fenômenos complexos como a evolução científica da medicina,
a socialização da assistência sanitária, a crescente medicalização da vida, inclusive a alocação de
recursos para a saúde; e bioética de fronteira sendo aquela que trata das novas tecnologias
biomédicas aplicadas sobretudo à fase nascente e à fase terminal da vida. E para finalizar o
capítulo II, colocamos um panorama da abrangência da bioética, mostrando que ela perpassa toda
a nossa vida: do nascimento à morte.
No Capítulo III enfocaremos alguns assuntos da bioética ligados ao início da vida: bioética
cotidiana – as políticas demográficas, ressaltando os direitos reprodutivos e a saúde reprodutiva, a
contracepção e a anticoncepção, seus aspectos legais e sociais; bem como o aborto, suas
conceituações e a questão ética delicada do início da pessoa humana. Na bioética de fronteira,
analisaremos as técnicas de reprodução assistida: técnicas, indicação, questionamentos,
comentários e reflexões bioéticas (Capítulo IV), o genoma humano, sua complexidade, o futuro da
medicina preditiva e a questão do biopoder (Capítulo V), e a clonagem humana: a tecno-ciência,
clonagem reprodutiva e terapêutica, a questão das células-tronco e o embrião (Capítulo VI).
Anexo, apresentamos alguns documentos importantes relacionados aos assuntos estudados.
Bioética e início da vida: alguns desafios, não se trata de uma obra de moral religiosa ou
confessional, mas de informação e reflexão geral e global. Nasce num contexto pluralista e procura
trabalhar as questões numa perspectiva dialogal, portanto multi, inter e transdisciplinar, uma das
características marcantes da bioética. A intenção é criar nas pessoas um senso crítico e despertar
nelas a capacidade de decidir, responsável e livremente diante das situações polêmicas, difíceis e
conflituosas que as ciências da vida e da saúde hoje nos apresentam.
Na linha da bioética, que a tolerância e a solidariedade sejam os nossos óculos na leitura deste
livro, procurando sobretudo ajudar as pessoas a serem mais felizes.
Capítulo 1

Dignidade humana:1 uma reflexão ética

Preâmbulo
A noção de dignidade humana, que varia consoante às épocas e aos locais, é uma ideia-força
que atualmente possuímos e admitimos na civilização ocidental, que é a base dos textos
fundamentais sobre os Direitos Humanos. Diz-se nomeadamente no preâmbulo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 19482: “Os direitos humanos são a expressão direta da
dignidade da pessoa humana, a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre
do próprio reconhecimento dessa dignidade”. Esta definição tem suas implicações em nível dos
direitos econômicos, sociais, culturais, indispensáveis à concretização dessa dignidade.
Esta noção de dignidade como característica comum a todos os seres humanos é relativamente
recente, sendo por isso difícil fundamentá-la senão como reconhecimento coletivo de uma herança
histórica de civilização, colocando-se a questão de saber se a dignidade humana não será o modo
ético como o ser humano se vê a si próprio.
A abordagem atual da dignidade humana se faz sobretudo pela negativa, pela negação da
banalidade do mal: é por se estar confrontado com situações de indignidade ou de ausência de
respeito que se tem indício de tipos de comportamento que exigem respeito. Nesse sentido, ela é
fundamental na definição dos direitos humanos, como na abordagem de novos problemas de
bioética e nomeadamente de uma ética do ambiente, uma ética que implica também
solidariedade, já que se a dignidade se relaciona com o respeito, as desigualdades sociais e
econômicas nas sociedades modernas fazem com que em uma parte dessas sociedades não se
possa respeitar a si própria.
Devemos referir ainda o lugar que o ser humano se atribuiu a si próprio no âmbito de um mundo
tecnicizado, que perdeu a ligação com o mundo sensível, com o mundo vivo, cometendo atos
indignos contra a vida animal, vegetal.
É neste contexto que o conceito de dignidade humana introduz um elemento de ordem e de
harmonização no conflito das relações das comunidades humanas.
Assim, a sobrevivência da nossa espécie está associada à sobrevivência da natureza e, deste
modo, ao alargarmos o conceito de dignidade asseguramos a continuidade dos seres humanos
numa ética de responsabilidade pelo futuro, num alargamento não só da concepção do que é ser
humano, mas também do que é a comunidade sem a qual o ser humano não subsiste. Cabe aqui
referir a noção de ética de responsabilidade de Hans Jonas: “… que assenta no cuidado, que nos
põe no centro de tudo o que nos acontece e que nos faz responsáveis pelo outro, o outro que pode
ser um ser humano, ou um grupo social, um objeto, um patrimônio, a natureza; o que pode ser o
nosso contemporâneo, mas que será cada vez mais um outro futuro, cujas possibilidades de
existência temos de garantir no presente” (Santos, 1991:40).
A dignidade humana é pois também um conceito evolutivo, dinâmico, abrangente, a tomada de
consciência da pertença de todos ao gênero humano confrontado na comunidade de destino, que
se foi alargando a grupos diferenciados, dando-lhes um outro estatuto, cabendo aqui citar a
Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), em que foi afirmado que os direitos das
mulheres são direitos humanos. O que se liga com o cerne da definição de responsabilidade de
Hans Jonas, a ideia de cuidado, que reforça os campos éticos de atenção ao singular, abre a
partilha e a solidariedade, afeta o modo, o olhar com que os outros são vistos. Ora, “o valor do
cuidado não aparece nem se encontra como aspecto importante dos princípios da bioética”
(Camps, 1998:78). Uma ética do cuidado, historicamente realizada sobretudo pelas mulheres na
cultura ocidental, nas suas práticas cotidianas do cuidado aos vulneráveis da sociedade, daqueles
que justamente vêm, pouco a pouco, ocupando lugar nesse alargamento do conceito de dignidade
humana: as crianças, os idosos, os doentes, os deficientes.
Voltando à Declaração dos Direitos Humanos de 1948, tendo em conta esse alargamento do
conceito de dignidade, podemos referir os princípios que lhe estão associados: o da não-
discriminação (nomeadamente em função da raça); o direito à vida; a proibição de tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes; o respeito pela vida privada e familiar; o direito à saúde; a
liberdade de investigação – conciliada com o respeito da pessoa humana (Lenoir e Mathieu,
1998:100–102).
Nesse alargamento do próprio conceito de dignidade humana, como nó fulcral da definição dos
Direitos Humanos e da sua salvaguarda, há uma ética social que, no âmbito da bioética, atualiza-
se no acesso equitativo aos cuidados de saúde apropriada para todos, respeitando a sua
dignidade.
Estamos não só diante de outra noção do humano e da dignidade que lhe é devida, como de
uma outra noção de comunidade que, quanto mais aprofundou o que é a dignidade humana, mais
se abriu, deu lugar ao encontro do que era considerado “não-humano”, tornando-se mais humana e
libertando-se de um poder totalitário, que também o oprime e destrói.

Reflexão filosófica

O conceito de dignidade humana tem fundamentos na filosofia do mundo ocidental. Embora a


história nos informe que nem sempre a dignidade humana foi respeitada, ou mesmo objeto de
normas éticas e/ou legais de proteção, o certo é que a filosofia ocidental já se preocupava com
esta questão. Infelizmente, foi necessário um conflito mundial para uma tomada de consciência que
levou à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. E, tal como se
demonstra pela Convenção dos Direitos Humanos e da Biomedicina, assinada em 1997, foi
necessário quase meio século para que os países signatários da Convenção dos Diretos
Humanos chegassem à fase da aplicação da Convenção à medicina.
A História, desde a Antiguidade oriental até a Idade Contemporânea, demonstra que nem
sempre houve reconhecimento do primado do ser humano. Desde a escravatura, reinante nas
civilizações orientais, clássicas e europeias, até as perseguições da Inquisição, a discriminação
social foi notória e pacificamente aceite pelos filósofos coevos. Já Aristóteles (384–322 a.C.) e
Santo Agostinho (354–430) haviam debruçado sobre a distinção entre coisas, animais e seres
humanos. Deve-se a Immanuel Kant (1724–1804), por suas críticas e análises sobre as
possibilidades do conhecimento, nomeadamente a partir das questões: O que posso conhecer? O
que posso fazer? E o que posso esperar? Na Crítica da Razão Pura, na Crítica da Razão Prática e
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, uma das contribuições mais decisivas para o
conceito de dignidade humana.
Como o próprio Kant reconheceu: As respostas às questões colocadas dependiam do nosso
conhecimento da natureza do próprio ser humano. O que posso conhecer, fazer ou esperar,
depende, em última análise, da minha própria condição humana.
“Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, sempre e ao
mesmo tempo, como um fim e nunca simplesmente como um meio” (Kant).
Devemos ainda pensar em dois conceitos: em Kant é principalmente o conceito de respeito que
é sublinhado e em Hegel o conceito de reconhecimento, mais básico do que o de respeito. Para
ser humano é preciso ser reconhecido enquanto tal e não somente reconhecido como organismo
biológico. Por exemplo, se a criança não é reconhecida como aquilo para que tem capacidade
(autonomia, liberdade) mas que ainda não realiza, não é considerada como um ser digno. É na
relação com o outro que se é reconhecido como ser humano. A dignidade é, neste sentido, o efeito
deste reconhecimento e a sua fundamentação, e, neste reconhecimento recíproco, o ser humano
torna-se capaz de liberdade. Aprendemos com Hegel que todo o processo da cultura é um
processo no qual procuramos chegar a níveis cada vez mais profundos de reconhecimento da
igualdade. Assim, enquanto o outro não for totalmente livre, eu não sou livre. Em resumo, a
dignidade do ser humano repousa sobre o seu ser real, enquanto esta realidade é capacidade
daquilo que ele pode ser, e não apenas sobre o que ele faz efetivamente desta capacidade.
Depois da capacidade de autonomia, de autenticidade e de liberdade mediante o
reconhecimento do outro, há um outro momento da fundamentação da dignidade: o ser humano é
capaz de se elevar acima das circunstâncias imediatas do seu ambiente para colocar questões
sobre o sentido do real. Temos, porém, de reconhecer que nós, como indivíduos, em referência às
questões acima enunciadas (o que posso conhecer, o que posso fazer, o que posso esperar),
somos condicionados não só pela nossa biologia, como também pelo contexto sociocultural em
que nos inserimos.
Assim, o termo dignidade humana é o reconhecimento de um valor. É um princípio moral
baseado na finalidade do ser humano e não na sua utilização como um meio. Isso quer dizer que a
dignidade humana estaria baseada na própria natureza da espécie humana a qual inclui,
normalmente, manifestações de racionalidade, de liberdade e de finalidade em si, que fazem do
ser humano um ente em permanente desenvolvimento na procura da realização de si próprio. Esse
projeto de autorrealização exige, da parte de outros, reconhecimento, respeito, liberdade de ação
e não instrumentalização da pessoa. Essa autorrealização pessoal, que seria o objeto e a razão da
dignidade, só é possível através da solidariedade ontológica com todos os membros da nossa
espécie. Tudo o que somos é devido a outros que se debruçaram sobre nós e nos transmitiram
uma língua, uma cultura, uma série de tradições e princípios. Uma vez que fomos constituídos por
essa solidariedade ontológica da raça humana e estamos inevitavelmente mergulhados nela,
realizamo-nos a nós próprios através da relação e ajuda ao outro. Não respeitaríamos a dignidade
dos outros se não a respeitássemos no outro.
Na ética moderna, a dignidade humana exprime-se em um “nós-humanidade” que não é a soma
dos “eus” individuais. Segundo Levinas, “nós” não é o plural de “eu”. O ponto de partida para a
expressão dessa dignidade situa-se na totalidade dos seres humanos e por isso foi possível
afirmar-se que enquanto um ser humano não for livre nenhum ser humano será livre.
A socialização não é, porém, uma diluição do “eu” no conjunto da comunidade humana. Como
vemos todos os dias, todo ser humano aspira a repetir o “seu paraíso perdido”, que foi a fusão total
com a mãe. Daí a procura, por vezes desenfreada, de uma relação dual. Ora, o indivíduo acede à
condição de ser único quando torna possível essa passagem da fusão com a mãe à autonomia. É
a aprendizagem do “eu/tu” que Martin Buber, tao eloquentemente, descreveu e na qual alicerçou as
condições indispensáveis para a alteridade efetiva. Quanto maior for o número de pessoas com
quem estabelecemos a relação “tu/eu”, maior é a nossa participação na noosfera e mais forte é a
nossa dignidade humana.
Foi esta noção de uma camada de humanos que envolve toda a Terra que Teilhard de Chardin
chamou a noosfera. Ela é interdependente da biosfera e da atmosfera. A evidência desta
afirmação encontra-se no nosso cotidiano (vivemos das espécies biológicas e respiramos porque
imersos na atmosfera). Mas também a encontramos em certas manifestações religiosas que têm
marcado profundamente algumas civilizações. Assim, por exemplo, no Budismo não há separação
entre o humano e toda a realidade natural que o rodeia. No nosso tempo, esta interdependência é
sentida pela ação nefasta do humano sobre a biosfera e sobre a atmosfera. Daí poder inferir-se
que contribuir para a integridade e diversidade das espécies biológicas e para o equilíbrio da
atmosfera é, também, contribuir para a defesa da dignidade humana.

Reflexão biológica

A dignidade humana só é uma característica de cada ser humano à medida que é a


característica de toda a humanidade.
A dignidade está na totalidade do humano e cada ser emerge com a sua própria dignidade
dessa totalidade do humano. Daí a importância fundamental do processo de individualização de
cada ser. A capacidade de exprimir uma representação simbólica de tudo o que vê, conhece ou
faz, foi-se estruturando ao longo de várias etapas que trouxeram a humanidade até à etapa
biogenética atual.
O conceito de dignidade humana poderá estar também na diferença de dignidade e de respeito
existente entre o ser humano e o animal. Essa diferença não se fundamenta na afetividade, uma
vez que o ser humano também a partilha com grande parte dos animais e, possivelmente, basear-
se-á na qualidade específica que ele possui de simbolizar, capaz de representar e projetar no
exterior os conteúdos de sua consciência e usá-los na criação da cultura humana. Parece existir,
sim, uma diferença radical em nível de manifestação do inconsciente no consciente do ser humano.
Onde é que o inconsciente se enraíza biologicamente? Ou é um construto cultural e, portanto,
exclusivo do ser humano? A capacidade para a simbolização tem ou não um fundamento
biológico? Tem ou não uma explicação neurobiológica?
Pelo aspecto biológico ligado à teoria da evolução não se encontram suportes que fundamentam
um estatuto especial para o ser humano. Nesse sentido, torna-se difícil definir o conceito de
Dignidade Humana quando, objetivamente, refere-se a um determinado ser humano. Quando tem
início o ser humano? No momento da fecundação do óvulo? Durante a gestação, quando se
manifestam as primeiras ondas elétricas no encéfalo do feto ou os primeiros batimentos
cardíacos? No momento do nascimento completo? Quando o indivíduo adquire consciência de si
mesmo?
E quando termina a dignidade do ser humano: quando é verificado o óbito? Quando entra em
estado vegetativo persistente?
Ou o ser humano deve ser sempre respeitado na sua dignidade, independentemente da
respectiva condição biológica?
Será possível aceitar sem dignidade humana a pessoa que padece de grave perturbação mental
ou deficiência física profunda? E os mais capazes, os mais inteligentes e mais cultos serão
biologicamente mais dignos? Poderá existir uma dignidade biológica? Pode-se ser
biologicamente indigno ou, pelo contrário, não há qualquer indignidade na forma como existimos?
Pode-se ser mais ou menos biologicamente digno? Existe um determinismo biológico para a
dignidade ou indignidade? Pensamos que não. Todo e qualquer ser humano é portador à
nascença da sua própria dignidade só pelo fato de ser pessoa.
A dignidade humana é pois um valor que se baseia nas capacidades originais da pessoa e
supera a estrutura biológica do ser humano. Mesmo assim, pode perguntar-se de novo se há uma
fundamentação biológica para a dignidade humana. A resposta a esta pergunta depende da
posição que se tome com respeito às relações existentes entre a pessoa e o seu corpo.
Numa posição dualista extrema de corpo e espírito (cartesiana ou outra, hoje ultrapassadas)
evidentemente que não haveria qualquer forma de fundamentação corpórea da dignidade humana.
Mas na tese contemporânea da profunda e densa unidade do ser humano, a questão existe.
Por um lado, a análise biológica do ser humano, mesmo em nível molecular, não encontra nada
que justifique uma dignidade especificamente superior à de outros animais. Não há justificação
biológica da dignidade humana. É certo que o substrato biológico é, sem dúvida, uma condição
indispensável para a existência da pessoa e, portanto, da sua dignidade: se os seus mecanismos
bioquímicos colapsam, a pessoa extingue-se, e com ela a sua dignidade. Mas não são esses
mecanismos bioquímicos (basicamente idênticos aos dos animais) que justificam, especificam ou
medem a dignidade humana. E, por isso, talvez se possa dizer que a qualidade biológica de uma
vida humana não altera a sua dignidade. O demente, o doente terminal, que está inconsciente ou
em estado vegetativo persistente, têm a mesma dignidade que eu.
Mas, por outro lado, o ser humano parece ser o único animal em que a realidade biológica foi
inteiramente assumida e redimensionada pela integração em uma outra ordem, que é simbólica e
cultural. Nesse sentido, o corpo puramente biológico é uma abstração. O corpo real não é só
biológico ou mecânico: é um corpo-assumido ou corpo-vivido ou corpo pessoal. Esse corpo
constitui a mediação obrigatória da pessoa em todas as suas relações para dentro e para fora de
si mesma. Se pensa, se reflete, se decide, se comunica com os outros ou se capta deles nova
informação, é sempre e obrigatoriamente através do corpo e do seu mecanismo biológico. Neste
sentido, todo o biológico humano é assumido pela pessoa e, nessa medida, toda a violência
contra o corpo biológico pode denominar-se como violência contra a pessoa, e toda a
instrumentalização do corpo biológico significa instrumentalização da pessoa.
A dignidade humana é sentida e expressa através do corpo humano como suporte biológico da
existência. Nem a pessoa é seu corpo, nem tampouco é proprietária do seu corpo. A pessoa é um
sistema psicossomático que toda a vida humana nos torna cada vez mais presente.
Como se disse, a diferença fundamental entre o ser humano e os animais não radica na
afetividade mas sim na sua capacidade de pensar simbolicamente, de representar e projetar no
exterior os conteúdos da sua consciência e usá-los na criação da cultura humana. Ou seja, na
esfera do cognitivo. A consciência de si mesmo como pessoa e dos outros também como
pessoas, consequência dessa capacidade simbolizadora do ser humano, será condição sine qua
non para a reflexão ética. Por isso, a natureza biológica do corpo humano não é mais do que o
substrato, suporte ou mediação da pessoa, que está subjacente em toda a reflexão sobre a
dignidade humana.
Existe, pois, uma dimensão ética na existência humana, isto é, a pessoa existe enquanto pessoa
somente quando é reconhecida por outras pessoas. Há uma ética para a pessoa que vive no seu
corpo. O corpo não é portador da dimensão ética, mas é a pessoa no seu corpo que é portadora
desta dimensão. Para o corpo isolado, não há ética.
Portanto, a sociabilidade do ser humano funda-o em dignidade. A pessoa humana advém na
comunidade humana; o isolamento torna-a igual aos animais. O processo de individualização,
garantia da dignidade humana, tem etapas de socialização até atingir a maturidade. É a
comunidade humana que confere a cada ser a capacidade de linguagem, de dar um nome a cada
coisa e de estruturar, assim, a sua agilidade e amplitude de representação simbólica.
Estamos, assim, em face de uma situação em que os mecanismos biológicos estão implicados
em todas as atividades da pessoa como condição básica inespecífica, mas não constituem a sua
justificação causal e determinante. E à pergunta sobre se há uma fundamentação biológica da
dignidade humana, teríamos de responder sim e não. Sim, à medida que os mecanismos
biológicos constituem o suporte indispensável do campo de ação de todas as atividades
pensantes, volitivas e relacionais da pessoa. Não, à medida que as capacidades de
autorrealização na linha de um projeto pessoal, as quais constituem a verdadeira fundamentação
da dignidade humana, não são, de modo algum, determinadas especificamente por mecanismos
biológicos conhecidos.

Perspectivas
A partir do exposto, percebemos que o conceito de dignidade humana é importante para
salvaguardar o valor maior que é a pessoa. Deste modo, os comportamentos que mais
indignificam a própria pessoa são os que indignificam os outros, sobretudo os mais débeis e
vulneráveis. Nomeadamente as crianças, os idosos, os doentes, os excluídos por todas as razões,
desde a falta de amor até o poder econômico.
Como já foi acenado na introdução deste livro, os grandes problemas da humanidade de hoje –
mesmo sem rejeitar a grande contribuição da ciência e da tecnologia para superar as condições
de miséria e de deficiências dos diferentes gêneros – só podem ser resolvidos com a
reconstrução da comunhão humana em todos os níveis, através da solidariedade que deve ser
entendida como a determinação firme e perseverante de se empenhar para o bem comum, isto é,
para o bem de todos e de cada um, para que todos sejam verdadeiramente responsáveis por
todos.
A tolerância designa o fato de se abster de intervir nas ações ou opiniões de outras pessoas
mesmo quando essas opiniões ou ações nos parecem desagradáveis ou moralmente
repreensíveis. Assim, a tarefa cotidiana do cultivo da tolerância inclui uma atitude proativa de
procura do ponto ideal de encontro com o outro nos momentos de discordância e enfrentamentos.
A tolerância é uma conquista no caminho em direção à solidariedade, que é o laço recíproco que
une pessoas como corresponsáveis pelo bem umas das outras.
Neste sentido, são necessários lugares de escuta do sofrimento, da dor, da alegria, da ternura,
nos quais o humano se revela de muitas maneiras. Assim, como o eu supõe a vinda à palavra,
também são esses lugares de escuta que podem permitir de novo o pleno acesso à palavra. É
neste contexto que a escola, entre outras instituições formadoras da dignidade humana e de um
aprendizado para a vivência da tolerância e da solidariedade, deveria ser tanto transmissora de
conhecimento quanto lugar de escuta que, ao reenviar o eco da palavra titubeada, possa ajudá-la a
surgir inédita.

1. Fonte: Documento de Trabalho do Conselho Nacional de Ética para as ciências da Vida do Portugal: Lisboa, 05
de janeiro de 1999.
2. Cfr Anexo 1.
Capítulo 2

Bioética: contextualização, origem, conceituação e


abrangência

“De todas as ciências que o homem pode e deve saber, a principal é


a ciência de viver fazendo o mínimo de mal e o máximo possível de
bem.”
Leon Tolstoi

Introdução

Hoje, através dos meios de comunicação social, jornais, revistas, televisão, internet, ouvimos
falar de bioética. É bom lembrar que o estopim que contribuiu para o desenvolvimento da bioética,
sem usar ainda o termo, nos anos de 1960, foram reportagens de jornalistas a respeito de
experiências em seres humanos, com crianças, prisioneiros e doentes mentais.
Pode-se conceituar bioética como um mecanismo de coordenação e instrumento de reflexão
para orientar o saber biomédico e tecnológico, em função de uma proteção cada vez mais
responsável da vida humana. A bioética, por ser um ramo da ciência que procura estar a serviço
da vida, engloba em suas reflexões os aspectos sociais, políticos, psicológicos, legais e
espirituais. É uma reflexão sobre o resgate da dignidade da pessoa humana frente aos progressos
técnico-científicos na área da saúde, frente à vida. Com sua possibilidade de redesenhar o ser
humano, com o seu poder de destruir ou construir, esses progressos podem alterar a identidade da
pessoa humana. O homem está se tornando o senhor da vida e de sua própria vida, como bem
ilustra a expressão: “em lugar de consultar os astros, consultam-se agora os genes”.
Para entender melhor o que é a bioética vamos refletir sobre quem é o sujeito da nossa reflexão
bem como do seu ambiente, o que é moral, ética e a sua evolução. A seguir, esclareceremos qual
o histórico, a origem, a conceituação bem como a fundamentação filosófica e os paradigmas da
bioética. Mostraremos o conteúdo e os desafios da bioética, bem como três desafios concretos
para a América Latina, e terminaremos com uma fala de Potter sobre bioética global.

A pessoa humana

A abordagem de uma conceituação de pessoa humana é complexa. Mas, antes, é necessário


fazer uma distinção, já que muitos escritos confundem vida humana, ser humano e pessoa humana.
“Vida humana – ser humano é membro da espécie homo sapiens: o fato de o indivíduo pertencer
ou não a uma determinada espécie é algo que pode ser determinado cientificamente mediante um
exame da natureza dos cromossomos das células dos organismos vivos. Nesse sentido, não há
dúvida de que, desde os primeiros momentos de sua existência, um embrião concebido de
esperma e óvulo humanos é um ser humano, uma vida humana” (Singer, 1994:97–98). “Vida
humana indica vida dos organismos pertencentes à espécie homo sapiens, quer dizer somente a
vida do corpo prescindindo da alma. A ciência nos diz somente que no momento da concepção se
forma um ser humano (um corpo), mas não pode nos dizer nada sobre a pessoa composta de
alma e corpo” (Mori, 1997:43–67).
O direito brasileiro reserva a expressão pessoa física para regulamentar o imposto de renda. A
preferência brasileira vai para a expressão pessoa natural: trata-se de “um atributo jurídico
reconhecido aos seres humanos individualmente ou aos indivíduos em grupos, como entes morais,
exprimindo a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações” (Viana, 1988:3). Hoje em dia,
esta personalidade está sendo estendida aos seres humanos desprovidos de consciência ou de
vontade capazes de se autorresponsabilizar.
Segundo o Código Civil, Artigo 4, a personalidade do ser humano, no Brasil, começa com o
nascimento com vida. Contudo, desde o direito romano, os direitos do nascituro eram
salvaguardados por uma ficção que não pretendia ontologia alguma no seu interesse. Esta ficção
jurídica só vale se o nascituro consegue, depois, nascer com vida; se não, este ser nunca foi
pessoa para o direito. Assim, o direito brasileiro segue o romano: o nascituro não tem a
personalidade jurídica, mas será considerado como a tendo, se nascer com vida. “O nascituro não
é ainda uma pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe
reconhecem, permanecem em estado potencial. Se o feto não vem a termo, ou se não nasce vivo,
a relação de direito não chega a se formar, nenhum direito se transmite por intermédio do
natimorto e sua frustração opera como se ele nunca tivesse sido concebido, o que bem prova a
sua inexistência ao mundo jurídico, a não ser que tenha nascido. A personalidade do nascituro é
geralmente chamada, então, fictícia” (Viana, 1988:11).
Atualmente, não há consenso sobre o que é pessoa humana. A partir de quando podemos falar
de pessoa humana? “Não é possível querer resolver a pendência do debate filosófico sobre a
pessoa humana. A lei não pode responder à pergunta sobre quando se impõe a realidade da
pessoa humana. Debates seculares nunca resolveram essa interrogação. Nem os médicos nem os
teólogos conseguiram trazer argumentos determinantes, nem Santo Agostinho, nem Santo Tomás
de Aquino. A noção de ‘pessoa humana’ remete a convicções filosóficas e metafísicas” (Mattei,
1994:90).
E lembremo-nos sempre de que o sujeito da nossa atenção é a pessoa humana, ser físico,
psíquico, social e espiritual. Para entender melhor, usarei a palavra saúde no sentido ideal para
qualificar as quatro dimensões do ser humano:
• Saúde física: é a ausência de mutilações, de lesões, de dor, de cansaço, de fome, de sede. É
o desenvolvimento normal do indivíduo, é o equilíbrio entre os componentes orgânicos.
• Saúde psíquica: implica orientação no tempo e no espaço, ausência de alienação,
capacidade de equilibrar-se nas diversas situações de vida, autorrealização, abertura para o outro
e para si mesmo, liberdade de pensamento, de expressão e de criação.
• Saúde social: é o ajustamento do indivíduo no grupo social (entende-se por ajustamento a
capacidade que a pessoa tem de se situar, de se relacionar com as outras). A saúde social implica
habitação adequada, equilíbrio dos fatores econômicos (trabalho e salário condizentes), lazer,
educação (que permita, pela observação e análise, o questionamento da realidade), amizade,
simpatia, relacionamento.
• Saúde espiritual: se revela na maneira de encarar a vida: toda pessoa tem uma finalidade na
vida, sede de um absoluto (ou transcendente). Para os cristãos, Deus; para os muçulmanos, Alá;
para os ateus, o homem. Esse absoluto é fundamental para a superação das dificuldades, de um
sofrimento ou de uma doença.
Essas quatro dimensões formam um conjunto no qual o relacionamento humano é a chave
principal. Como veremos a seguir, vivemos numa sociedade que dificulta todo relacionamento
profundo. Ora, o relacionamento humano é imprescindível para se entender o que é ética.

A nossa realidade
Didaticamente, e de uma maneira objetiva, podemos dizer que a nossa sociedade é movida por
quatro forças:

Uma filosofia: existencialismo

O existencialismo é uma doutrina que centraliza toda a filosofia no valor do indivíduo concreto.
Não existe uma natureza humana, uma definição do que seja o homem anterior ao ato de existir:
não há uma essência precedente, que determinaria o que cada indivíduo vai ou deva ser. Numa
das correntes, a do filósofo francês Jean-Paul Sartre, o que conta é: minha liberdade.

Uma cultura: da modernidade à pós-modernidade

A modernidade, realidade complexa, é um processo histórico de vida a partir de ideias, metas,


valores, que vai configurar uma maneira de viver. Ela nasce com a Revolução Francesa (1789) e a
sociedade burguesa, e se concretiza através de transformações radicais. Tradicionalmente, o
poder é concebido como uma forma repressiva, portanto, negativa, que emana do Estado e de
seus aparelhos. Dois valores são importantes: poder e saber. Saber é poder. A modernidade é
também o processo de autonomia da razão: ênfase na ciência e na tecnologia, economicismo
(primazia do econômico: produzir, lucrar), matematicidade (pensamento racional), sensibilidades
florescentes (pluralismo, direitos humanos, ecologia e participação).
Vejamos algumas características da Modernidade:
a) Poder: Sociedade de classes na qual uma minoria detém em suas mãos o ter, o saber e o
poder.
b ) Razão técnico-científica: Possibilitou as sucessivas revoluções industriais a partir do
século XIX.
c ) Individualismo: Emergência do sujeito, descoberta do EU e do mundo subjetivo.
Supremacia do indivíduo: anonimato, solidão.
d) O homem como dono da história.
e ) Secularização: Autonomia das ciências humanas (sociologia, política). A Igreja é uma
instituição no meio de outras instituições. A religião é relegada à esfera do privado, das
escolhas individuais.
f ) Pluralismo: Experiências religiosas subjetivas, mistura de crenças e práticas,
experimentação de novos cultos.
g) Centralidade da economia em detrimento do social.

A Pós-modernidade: As novas tecnologias, como a informática, a cibernética, a telemática, o


descartável, transformam a organização social. Em nível filosófico vive-se o niilismo, o nada, o
vazio, a ausência de valores e sentido da vida. Morto Deus e os grandes ideais do passado, a
pessoa moderna valorizou a arte, a história, o desenvolvimento, a consciência social para se
salvar. A pessoa pós-moderna já sabe que não existe céu nem sentido para a história, e assim se
entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo. Em nível psicológico, a
sociedade aprisiona as pessoas por meio de regras morais, valores sociais e religiosos. A pessoa
pós-moderna deve dar mais importância a sua sensibilidade do que a sua inteligência; deve viver
procurando sensações e emoções sem limites com o mínimo de dor. A pessoa pós-moderna
cultiva uma mentalidade imediatista, e tudo é relativo e ilusório, sem ideologia e ideais
verdadeiros, deve-se libertar os instintos reprimidos e deixar-se levar pela sensibilidade, a pessoa
aproveita ao máximo o presente e não se preocupa com o que vem depois, que pode ser até a
morte. A pessoa pós-moderna vive um pacifismo consensual: “Paz e Amor” (1968), a paz em um
nivelamento no qual ninguém diz o que é certo, onde não existam normas de conduta nem valores a
serem seguidos, muito menos uma moral transcendente. O amor situa-se dentro de uma
liberalização sem limites, sem fidelidade, sem compromisso. Poderíamos falar também da apatia
política e da civilização da imagem. A grande justificativa para a pós-modernidade seria que o
mundo moderno não conseguiu cumprir suas promessas com o paradigma do crescimento
econômico infinito, da erradicação das doenças, prolongamento da vida e até a extinção da morte.

Uma ideologia: neoliberalismo

O liberalismo é uma ideologia que sustenta a iniciativa privada e a propriedade privada através
do sistema capitalista. É uma doutrina de acumulação do capital que não valoriza o trabalho (visto
como mercadoria) e nem o trabalhador, reinventando a pobreza através da concentração da renda.
O neoliberalismo é a radicalização do liberalismo: reza um mercado sem fronteiras, um “Estado
mínimo”, sem leis, sem empresas estatais, sem alfândega. O neoliberalismo tem também como
característica a apropriação dos bens públicos, inclusive ambientais. Considerando que as
condições ambientais são o suporte da vida, apropriar-se desses recursos e gerenciá-los de
acordo com interesses privados significa deter o poder de determinar a qualidade e até mesmo a
possibilidade de vida para uma coletividade. Não é exagero constatar como esse poder sobre a
vida e a morte de uma coletividade tem sido exercido por interesses privados em detrimento do
interesse público. O neoliberalismo nasce também por causa de novas formas de mercado:
Comunidade Europeia, Mercosul, Empresas transnacionais. Aparecem novas tecnologias:
microeletrônica (chips de computador); optoeletrônica (laser); a biogenética (controle da vida); a
informática...
Esta ideologia é limitada devido: à exploração do trabalhador; ao empobrecimento, à miséria,
ao mercado informal; à concentração da renda; à massificação da pessoa através dos meios de
comunicação social e da propaganda; à destruição da natureza; à desqualificação da mão-de-
obra, à divisão em classes sociais...

Um sistema: capitalismo

Toda ideologia se concretiza através de um sistema. Do sistema capitalista, destacamos


algumas características:
a) A produtividade, o lucro. “Quem produz é gente, quem não produz não é (mais) gente”;
descuido da parte psíquica, social e espiritual das pessoas; primazia do econômico sobre o
social.
b) A concorrência, que é considerada a chave do desenvolvimento pelo neoliberalismo, seria a
nova palavra para substituir a palavra ética. Para concorrer, é preciso ter chances iguais.
c) A concentração de bens, terra, poder, informação, saber, comunicação. Quem tem dinheiro,
tem poder; quem tem poder, faz a verdade e impõe essa verdade.
d) A dependência resultante da dívida externa, da política salarial ligada aos acordos com o
Fundo Monetário Internacional (FMI), responsável em grande parte pelo arrocho salarial,
desemprego e recessão.
e) Autoritarismo: a tradição do país é autoritária e elitista. O povo sempre ficou à margem do
processo político, decidido normalmente por “caciques” e “coronéis”.
f) A injustiça: a própria Justiça, que deveria ser o reduto intacto do exercício ético do Direito,
em determinados casos é desvirtuada, lenta e elitizada, protelando o processamento de
causas, especialmente criminais. A cumplicidade e a impunidade favorecem os corruptos e
estimulam, no campo e na cidade, o sacrifício de vítimas inocentes.
g) A intolerância: o capitalismo não tolera a diferença. A marcha do desenvolvimento só
conseguiu produzir desigualdades, que são negadas ou justificadas pelas teses sobre a
competição e a eficiência. A lei do mercado recompensa os melhores; portanto, os não-
beneficiados devem isso a sua pouca qualidade. Absolvido o sistema, são culpabilizados os
indivíduos.

Globalização, saúde e cidadania

Globalização

Trata-se de um processo que visa a unificação de todos os mercados do mundo sob a


articulação das multinacionais. Ela quer o predomínio das regras de mercado sobre regulamentos
ditados pelos governos dos países. Marca o ingresso do capitalismo em uma nova etapa de seu
desenvolvimento, em que as corporações multinacionais começam a contestar a soberania dos
estados nacionais. Considera que o Estado deve prioritariamente exercer a função de garantir a
liberdade do mercado, o cumprimento dos contratos e a propriedade. Coloca, em segundo plano,
qualquer outra função do Estado, em especial, a sua função social.
O liberalismo, em termos políticos, proporcionou importante contribuição à democracia ao se
opor a variadas formas de absolutismo e autoritarismo, defendendo a liberdade do cidadão.
Contudo, em termos práticos, a maioria dos adeptos do neoliberalismo tem preconizado grandes
cortes nos gastos sociais do Estado, elevação das taxas de juros, promoção da privatização das
companhias estatais, como no setor de transporte, saúde, educação, energia e telecomunicações,
e defesa do livre comércio internacional e dos grandes investimentos financeiros especulativos. A
questão fundamental é que o modelo econômico-político neocapitalista admite a exclusão como
princípio de funcionamento. Em todos os países onde está sendo aplicado, tem levado a uma
situação em que as macrocontas destes são ajustadas, com queda da inflação, saldo da balança
financeira e estabilidade econômica, embora aumente o desemprego e piore sensivelmente a
situação dos mais pobres, promovendo o alargamento da distância que separa as classes sociais
mais abastadas das menos favorecidas, gerando ainda mais bolsões de miséria.
Concretamente, o fim do século e do milênio foram marcados pela violência física e simbólica
contra os excluídos, contra a liberdade de sonhar e construir uma “terra sem males”. A
globalização, novo rosto do projeto de dominação, é baseada na apropriação privada dos
recursos e da terra, na exploração da força de trabalho, na expansão de um sistema de mercado
integrador e homogenizador. Alguns modelos de globalização querem impor a abertura arrasadora
da economia do país aos interesses externos e financiamentos multinacionais, o desmonte do
Estado e a dramática diminuição dos investimentos públicos, dos programas sociais. Educação,
saúde, moradia e lazer são tratados como mercados rentáveis. Essa lógica de organização
econômica, política e social gera violentos mecanismos de exclusão social, o desrespeito aos
direitos humanos, a exploração sem limites dos recursos naturais, com repercussões desastrosas
para as futuras gerações.
O conceito “globalização” está manchado pela face escura da modernidade, por sua
racionalidade instrumental e eficácia funcionalista, e pela face antissocial do capitalismo em sua
forma tardia de neoliberalismo. Seu produto final é sofrimento e exclusão econômica, em função da
maximização dos lucros.
Só globalizou-se o econômico! E o social?
Outro engano é o desenvolvimento sustentável. Como o próprio termo sugere, a primeira
preocupação não é com o meio ambiente, mas com o desenvolvimento e, consequentemente, com
as possibilidades de exploração dos recursos naturais existentes, exaurindo-lhes toda a
capacidade de produzir capital. Dessa forma, a sustentabilidade almejada é a dos sistemas
econômicos, e não de seres humanos e toda a vida existente no planeta.
Conclusão: A globalização é uma tragédia para a maioria da humanidade, tanto a economia
mundialmente integrada como o mercado se regem pela competição e não pela cooperação. Se
dermos livre curso à competição sem a cooperação, podemos nos devorar e colocar em risco todo
o sistema de vida. A verdadeira globalização – a verdadeira sustentabilidade planetária – depende
de mudanças profundas na concepção de pessoa, de natureza e da implementação de um outro
modelo de sociedade, onde o determinante não seja o capital, o lucro, mas a vida de homens e
mulheres interagindo com toda a natureza. Precisamos redescobrir a solidariedade, a
corresponsabilidade, a compaixão, a partilha, o cuidado.

Saúde

Por que o povo não tem saúde?


Numa sociedade que tem como valores a produção, o lucro, a concorrência desleal, a
concentração e a dependência, não há lugar para uma prática social fraterna e solidária; só existe
a exploração como forma de acumulação. Essa sociedade oferece pouca possibilidade e
oportunidade de escolha para decidir onde viver, que alimento comer, onde trabalhar, que notícias
ver e ouvir, que tratamento escolher etc. Todo esse contexto favorece uma injustiça social
alarmante, tendo como consequência a deterioração da saúde, principalmente em relação aos
pobres que são duas vezes desgraçados, porque além de morrer das doenças dos pobres (fome,
desnutrição, verminose, diarreia...), morrem também das doenças dos ricos (cardiovasculares,
stress, câncer...). Para entender melhor, podemos reunir em quatro grupos as causas que fazem
com que o povo brasileiro esteja sem saúde:

• Causas ligadas às condições naturais de vida e suas variações como o clima, a água, a
qualidade da terra. Quando se fala de qualidade de vida, o primeiro requisito enunciado é a
proteção do meio ambiente. Como uma das características da ideologia vigente é a propriedade
privada, assistimos à apropriação dos bens públicos (onda de privatizações), inclusive ambientais.
A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao
homem deu a terra para que a domine com seu trabalho e goze dos seus frutos. Deus deu a terra a
toda a humanidade, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar
ninguém.

• Causas ligadas aos determinantes estruturais (sociopolíticos e econômicos) da produção de


bens materiais (a comida, a mercadoria, o dinheiro). A selvageria do sistema reside no grau da
exploração da força do trabalho. Os baixíssimos salários pagos aos trabalhadores exigem, para
garantia de sobrevivência, o prolongamento da jornada de trabalho e a aceitação de condições de
trabalho perigosas e insalubres, bem como a entrada precoce das crianças em atividades
produtivas. O resultado da superexploração da força de trabalho conduziu ao quadro de salário
extremamente crítico: trata-se da mais perversa combinação de doenças da miséria (desnutrição,
infecções) com as chamadas doenças do desenvolvimento (acidentes de trabalho, de trânsito,
doenças ocupacionais, violência, intoxicações), atingindo especialmente as camadas oprimidas
da sociedade. Hoje, precisamos acrescentar a recessão que provoca mais desemprego e uma
classe social chamada “massa sobrante”. O mais interessante é que a própria sociedade culpa os
indivíduos por estarem nessas situações.

• Causas ligadas a condições sociais de vida (moradia, higiene, vestuário e, principalmente,


alimentação). A VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) definiu a saúde como resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer,
liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. É, antes de tudo, o resultado
das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos
níveis de vida.
As duas primeiras causas impedem a grande maioria da população de ter saúde e inviabilizam
o cumprimento dessa definição. Além dessas três causas já acenadas, a quarta complica ainda
mais a situação.

• Causas ligadas a outras condições de vida diretamente associadas aos recursos e serviços
de cura (atendimento médico e acesso a medicamentos). A medicalização da vida efetiva-se cada
vez mais no hospital, do parto aos últimos instantes na UTI, sem refletir bastante sobre as causas e
implicações desse fenômeno que desestruturou o relacionamento tradicional do doente no seu
meio familiar. Para quem puder entrar num hospital, o progresso e desenvolvimento científico e
tecnológico investigam de maneira cada vez mais sofisticada, obrigando as pessoas a
permanecerem no hospital e fazendo do seu corpo uma máquina. Muitos hospitais transformaram-
se em oficinas mecânicas e os profissionais da saúde em mecânicos especializados ou não. O
sistema de saúde em nosso país reforça a tese de que ele não é organizado com a preocupação
de ajudar o povo, mas aqueles que vivem às custas do sistema: indústrias de equipamento,
hospitais particulares, empresas farmacêuticas e de seguro médico, médicos empresários... A
preocupação é o lucro. Nessas condições, não é difícil imaginar a dificuldade da maioria da
população em ter acesso aos serviços médico-hospitalares (direito consagrado na Constituição,
artigo 196) e comprar remédios. Todos conhecem o drama das filas, sem contar as pessoas que
morrem sem a mínima assistência.

Cidadania: uma questão urgente

Cidadania deve ser conceituada levando-se em consideração o contexto social do qual se está
falando, e com isto a mesma adquire características que se diferenciam conforme o tempo, o lugar,
e, sobretudo, as condições socioeconômicas existentes. Assim, num contexto desenvolvido, a
cidadania é vista com ênfase nos direitos políticos; num contexto terceiro-mundista, a cidadania
envolve as questões da autonomia, da democracia e do desenvolvimento pensados como
totalidade, que se relacionam dialeticamente entre si.
Podemos citar três relações importantes:

Cidadania diz respeito à autonomia de uma sociedade, no sentido de a mesma ter


condições de traçar suas políticas. Democracia, sob o viés político, é a capacidade em se
organizar e participar ativamente; sob o viés sociopolítico-econômico, é a consagração dos
direitos mínimos do homem (educação, saúde, habitação...); sob o viés sociocultural, é uma
educação que propicia ao povo definir seus próprios valores.

Cidadania é sinônimo de democracia, e como tal não existe jamais em uma sociedade cuja
participação nas estruturas sociopolítica-econômica-cultural, é permitida apenas a uma
minoria, que para exercê-la tem como condição a exclusão e, consequentemente, a
marginalização da maioria.

Cidadania não é apenas crescimento, mas também desenvolvimento na dimensão


propriamente social, o que significa, para nós, mudança na organização da desigualdade
social.

É impossível falar de cidadania sem fazer uma referência ao Estado, à sociedade civil e ao
mercado.
O Estado é a resultante da correlação de forças políticas, econômicas, sociais e culturais; é o
conjunto de organizações e leis que regulamentam e permitem a vida de um país através de três
poderes: legislativo, executivo e judiciário. O Estado tem por finalidade promover o bem comum,
respeitando os direitos e deveres de cada cidadão e a sociedade civil. O bem comum é o conjunto
de condições materiais, institucionais, culturais e morais necessárias para garantir a todos as
possibilidades concretas de atingir níveis de vida compatíveis com a dignidade humana.
A sociedade civil ou sociedade dos cidadãos é a organização de pessoas humanas, de
cidadãos, para defender interesses, direitos como religião, sexo, cor, idade e classes econômicas.
A sociedade civil deve vigiar o Estado para que cumpra seu dever de atender as necessidades
básicas da população.
O mercado é anterior à sociedade moderna; ele está associado à formação das cidades, cujos
suprimentos dependiam de relações comerciais com produtores externos, notadamente
camponeses. A sociedade de mercado surge no Ocidente a partir do século XVI. Agora, a
produção não é mais regida pelas necessidades humanas, mas pelas necessidades do mercado.
Hoje, o mercado está dando origem a uma forma moderna de religião: a da mercadoria; gerando
uma imensa idolatria. O dogma central dessa religião é: “O dinheiro tudo pode, move o Céu e a
Terra”. E o mercado é a mão invisível que rege nossos destinos melhor que nossa consciência,
pois toma sempre a decisão mais adequada. Existem os templos dessa religião que são os
bancos, existe a romaria aos espaços mais carregados de significação que são os grandes
shoppings e cidades de consumo como Manaus, Miami, Paris... Existem também os sacerdotes
que são os banqueiros e os financistas que prestam o maior culto ao dinheiro. Precisamos
resgatar o mercado como realidade humana. As relações de mercado são relações sociais que
regem a produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Tratando-se de relações sociais,
não o individual, mas o social, deveria ocupar o centro do mercado. Portanto, o mercado tem por
finalidade atender as metas sociais, as necessidades básicas. Infelizmente, pela lei da oferta e da
demanda, o mercado produz o que se vai comprar (bens supérfluos) e se preocupa somente com
as pessoas que têm dinheiro para tal, isto em função da ideologia vigente.
Todo compromisso na área da saúde, na nossa realidade, é desafiado a favorecer o processo
de conquista da cidadania do povo. É importante saber o que se entende por cidadania: é o
exercício da plenitude dos direitos, como garantia da existência física e cultural e reconhecimento
como ator social, por exemplo, participar dos Conselhos Municipais ou Estaduais de Saúde. A
realização pessoal e comunitária da cada indivíduo é sempre considerada um valor acima do
Estado e do mercado. A inversão desta lógica implica encontrar um mercado ou um Estado com
caráter autoritário, coercitivo e absoluto. No centro de todo processo político tem de estar o
cidadão. Mas, quem é o cidadão? Ele é um indivíduo revestido de plenos direitos civis, políticos e
sociais, e o indivíduo tem a obrigação de trabalhar pela proteção vigilante do Estado no usufruto
dos direitos.
Aprofundando os direitos, podemos afirmar a respeito de cada um:
a ) Direitos sociais: Aqueles que o Estado tem por função e obrigação assegurar a todo
cidadão – moradia, saúde, educação, lazer, trabalho, cultura...
b ) Direitos civis: Os que dizem respeito ao indivíduo como a liberdade de reunião, de
expressão, de escolha profissional, de pensamento, de locomoção...
c ) Direitos políticos: Visam a liberdade de associação sindical, religiosa, partidária, de
escolha dos governantes, de participação no poder público e na determinação da política do
Estado.

Dentro da nossa realidade vamos analisar e refletir sobre conceitos essenciais que irão
embasar e fundamentar nossa posição frente a assuntos tão delicados e importantes como os do
início da vida.

Ética, moral e bioética


Em um estudo sobre bioética, ética da vida, é importante conceituar moral e ética para entender
melhor o seu alcance. Mas antes é interessante ver como a palavra ética evoluiu.
Evolução histórica da ética

• Para os gregos (Sócrates, Platão e Aristóteles), a ética obedecia ao movimento da natureza


humana. Eram considerados éticos os atos realizados segundo a razão. A razão e a vontade
compreendiam as faculdades superiores e constitutivas do ser humano. Todo o agir era dirigido
por estas faculdades. Por isso, a ética estava subordinada ao horizonte metafísico. A metafísica
definia a essência humana e a ética definia os comportamentos adequados, segundo a natureza
humana. Tratava-se de uma ética metafísica.
O ideal ético estava ou na busca teórica e prática da ideia do bem, da qual as realidades
mundanas participariam de alguma maneira (Platão), ou estava na felicidade, entendida como uma
vida bem ordenada, virtuosa, na qual as capacidades superiores do homem tivessem a
preferência, e as demais capacidades não fossem, afinal, desprezadas, na medida em que o
homem, ser sintético e composto, necessitava de muitas coisas – Aristóteles. Para outros gregos,
o ideal ético estava no viver de acordo com a natureza, em harmonia cósmica. Os estoicos
insistiram mais nesta vida bem natural. Já os epicuristas afirmavam que a vida devia ser voltada
para o prazer: o sentir-se bem. Tudo o que dá prazer é bom.
Ora, como certos prazeres em demasia fazem mal, acabam por produzir desprazer. Certa
economia dos prazeres, certa sabedoria, certo refinamento, até certa moderação ou temperança,
eram exigências da própria vida de prazer.

• Na Idade Cristã a teologia passou a ser a instância julgadora do comportamento. A ética que
emergiu da natureza humana, em última análise, deveria submeter-se aos ditames da teologia,
como ciência das ciências. A natureza humana passou a ser enfim criatura de Deus que deve
submeter-se à sua vontade e julgamento. Os ideais éticos se identificavam com os religiosos. O
homem viveria para conhecer, amar e servir a Deus diretamente e em seus irmãos. O lema
socrático “Conhece-te a ti mesmo” voltou à tona, em Santo Agostinho, que ensinava que “Deus nos
é mais íntimo que o nosso próprio íntimo”. O ideal ético era o de uma vida espiritual, isto é, de
acordo com o espírito, vida de amor e fraternidade.

• Na Idade Moderna assistimos ao movimento de autonomia da ciência e da filosofia face à


teologia. A ciência diversificou seus ramos. Cada uma instaurou seus postulados e tirou suas
conclusões autonomamente. A psicologia fez seu progresso independentemente da filosofia e da
teologia. O mesmo se pode dizer da sociologia e da política. Todas essas ciências aceitavam, no
máximo, um diálogo respeitoso com as demais. O intercâmbio de investigações e conclusões
enriqueceu cada ciência.
A ética, como estudo dos comportamentos humanos, entrou em estado de provisoriedade e
flutuação desde Descartes. Ele foi o primeiro a colocar entre parênteses as conclusões da ética
baseada na metafísica e na teologia. Criou para si uma ética “provisória” enunciada no “discurso
do método”. O ideal ético seria viver de acordo com a própria liberdade pessoal, e em termos
sociais, o grande lema foi o dos franceses: liberdade, igualdade, fraternidade. O grande pensador
da burguesia e do iluminismo, Kant, identificou bastante o ideal ético como o ideal da autonomia
individual. O homem racional, autônomo, autodeterminado, aquele que age segundo a razão e a
liberdade... eis o critério de moralidade. Para Hegel, o ideal ético estava numa vida livre dentro de
um Estado livre, um Estado de direito, que preservasse os direitos dos homens e cobrasse deles
seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem separadas e nem
em contradição.

• A Idade Contemporânea tem enorme dificuldade na elaboração de um quadro ético coerente.


Por um lado, os avanços da psicologia abalaram o sistema de comportamentos fundados na
tradição metafísica e teológica; por outro, a ciência e a técnica criam literalmente novos modos de
comportamentos, quase padronizados mundialmente. As tradições culturais desenvolvidas durante
séculos perdem a força diante da invasão de comportamentos vinculados pela televisão e outros
meios de comunicação. Igualmente os sistemas políticos vigentes pressionam sobre o
comportamento humano. Os sistemas econômicos fundados no lucro e na oferta e procura
alteraram as preocupações básicas do homem. Nossa sociedade contemporânea ocupa-se
sobretudo de assuntos imediatos, cumpre tarefas ligadas a resultados imediatos. Tudo isto afasta
o homem da consideração das grandes perguntas pelo sentido da existência. A luta pela
sobrevivência cotidiana não permite a meditação de assuntos mais profundos. Os pensadores da
existência, em suas posições muito diversas, insistiram todos sobre a liberdade como um ideal
ético, em termos que privilegiam o aspecto pessoal ou personalista da ética: autenticidade, opção,
resolução, cuidados etc. Já o pensamento social e dialético buscou como ideal ético, à medida
que aqui ainda se usa esta expressão, a ideia de uma vida social mais justa, com a superação das
injustiças econômicas mais gritantes. A ética se volta sobre as relações sociais, em primeiro lugar,
esquece o Céu e se preocupa com a Terra, procurando, de alguma maneira, apressar a construção
de um mundo mais humano, onde se acentua tradicionalmente o aspecto de uma justiça
econômica, embora esta não seja a única característica deste paraíso buscado. A ética
contemporânea aprendeu a preocupar-se, ao contrário das tendências privativas da moral, com o
julgamento do sistema econômico como um todo. O bem e o mal não existem apenas nas
consciências individuais, mas também nas próprias estruturas institucionalizadas de um
determinado sistema.

Conceituações de moral e ética

O termo moral deriva do latim mós ou mores, significando costumes, conduta de vida. Refere-se
às regras de conduta humana no cotidiano. O termo ética se equivale etimologicamente a moral,
pois provém do grego ethos, que também significa caráter, modo de ser, costumes, conduta de
vida. Portanto, hoje, muitos autores usam a palavra ética para designar também moral... eu,
inclusive. Porém, “outros autores alegam que a vida cotidiana confere às palavras uma história
específica que agrega a cada uma um sentido próprio: no Ocidente, onde prevaleceu o latim,
difundiu-se a palavra moral, e com a primazia cultural do cristianismo, a palavra ganhou uma
conotação religiosa. Da mesma maneira, a descoberta dos filósofos gregos colocou em realce a
palavra ética, com a conotação não religiosa, isto é, de moral natural ou secular. Como a moral
dominante no Ocidente tem sido apresentada como um sistema de princípios imutáveis e
aparentemente definidos, a palavra tomou com frequência um sentido conservador e fechado”
(Durand, 1995:12–14). Assim, nos documentos da Igreja Católica, moral ou ética significa
princípios definidos e imutáveis.
Para Leonardo Boff, “a palavra ética que vem do grego ethos, designa a morada humana. A
ética, como morada humana, não é algo pronto e construído de uma só vez. O ser humano está
sempre tornando habitável a casa que construiu para si. Ética significa, portanto, tudo aquilo que
ajuda a tornar melhor o ambiente para que seja uma moradia saudável. Na ética, há o permanente
e o mutável. O permanente é a necessidade do ser humano de ter uma moradia; o mutável é o
estilo com que cada grupo constrói sua moradia. Quando o permanente e o mutável se casam
surge uma ética verdadeiramente humana” (Boff, 1997:90).
Como articular ética e moral? Ética deve ser entendida como reflexão, sistematização da moral:
princípios fundamentais de conduta moral. Moral é vida, vivência dos valores éticos, vida do dia-a-
dia. A moral representa um conjunto de atos repetidos, tradicionais, consagrados. A moral
determina um repertório de comportamentos, costumes, para preservar um sistema, uma
organização. A ética corporifica um conjunto de atitudes que vão além desses atos. A ética lida
com comportamentos e atitudes que visam o bem comum: convívio, acolhida do diferente, cuidado.
O ato é sempre concreto e fechado em si. A atitude é sempre aberta à vida com suas incontáveis
possibilidades. Cabe à ética garantir a moradia humana, sob diferentes estilos, para que seja
efetivamente habitável. Assim, “ética é um dos mecanismos de regulação das relações sociais das
pessoas, que visa garantir a coesão social e harmonizar interesses individuais e coletivos” (Fortes,
1998:25).
Qual é a ética da bioética?

Ética é a ciência dos costumes. Costumes são os hábitos de uma pessoa, de um povo, de uma
comunidade. Os costumes, de fato, são os comportamentos médios aceitos por uma comunidade.
O afastamento dessa média gera surpresas, críticas e repreensões.
Os inovadores são considerados ousados e escandalosos; os que pretendem manter sem
alterações a tradição de costumes são considerados conservadores. O comportamento médio da
comunidade conta sempre com essas duas tendências. O movimento ético precisa prestar
atenção a ambas.
Face à evolução do sentido do homem e do seu quadro de referência, podemos dizer que a
ética e a moral estão em transição:

A ética é uma análise do comportamento humano (conjunto de relações).


A moral é a avaliação do comportamento humano à luz da teologia, da Bíblia, como critério
do juízo de Deus ou à luz de uma ideologia.

Objetivos da ética:
Procurar analisar, interpretar e organizar o comportamento humano segundo a dignidade do
ser humano, a ser sempre esclarecida.
Visar sempre a felicidade social, cultural, política e religiosa.

A reflexão ética acompanhou com dificuldade as transformações das estruturas organizacionais


do mundo e das consequentes formas ou estilo de vida da humanidade. Duas alterações maiores
são apontadas no campo da ética: a passagem da microética para a macroética; e o debate
público dos assuntos éticos.

a) No que se refere à primeira alteração, é sabido que a ética – grega, medieval e moderna –,
até meados do século XX, ocupou-se, com ênfase prioritária e às vezes exclusiva, com a ação
individual (microética). Hoje, vivemos a experiência da prioridade do sujeito-social devido às
transformações operadas na sociedade. Isto abre espaço à macroética, à ética das ações feitas
com a participação de muitos atores (grupo, associação, comunidade, partido político...).

b) A segunda alteração refere-se aos interlocutores do debate ético. O assunto, outrora


reservado aos estudiosos de filosofia e aos mestres religiosos, passou a ser discutido pelos
cidadãos comuns, nas concentrações de grupos, nas revistas de massa e nos canais de
comunicação. Os cidadãos debatem sobre a eticidade dos modos de limitação da natalidade,
eutanásia, pena de morte, homossexualismo, código genético. Ademais, os cidadãos são
convocados a intervir nas discussões sobre a ética na política, na economia, na administração
pública, na ecologia, na ciência e na tecnologia. Portanto, a micro e a macroética, longe de serem
uma área restrita a especialistas, ganham, pelo contrário, uma característica nitidamente pública e
política.

Frente a estas alterações, qual é a nossa chave de leitura?


a) A ética aplicada, que ela se propõe a responder de modo rápido, urgente e eficaz aos
problemas éticos da pós-modernidade. Sua base de reflexão são os dados tecno-científicos, os
resultados que eles garantem produzir e a livre escolha dos interlocutores do debate. É uma ética
individualista (microética).
b) A ética fenomenológica, que investiga a temporalidade e a historicidade da existência
humana como ser-no-mundo, histórico, munido de poucas certezas, trabalhado por muitas dúvidas
e sujeito às vicissitudes do viver-com-os-outros na comunidade política. A microética ou do sujeito
individual cede a prioridade à macroética ou do sujeito pessoal que preside as relações
interpessoais na comunidade humana. Esta ética temporal, pessoal e interpessoal ainda não
envolve com a necessária profundidade a ordem política e as macroestruturas econômicas, tecno-
científicas e organizacionais criadas pelo mundo contemporâneo.
c) A ética da Justiça, a ética política de John Rawls, que tenta dar uma solução a um conflito
básico de ordem social: a disputa dos bens primários produzidos por uma comunidade política.
Como os bens são quantitativamente limitados, e o apetite de cada cidadão é sem medida, torna-
se necessário a intervenção de um princípio que ordene a distribuição no seio da comunidade
política: um novo contrato social baseado na garantia dos direitos de participação política, de
opinião, de reunião, de consciência, de religião etc. (fundamento do Estado de direito e da
democracia constitucional) e baseado também no princípio da diferença que uma vez aceito se
deduz que o mínimo social vital deve ser fixado em um nível que maximize as expectativas do grupo
menos favorecido.
d) A ética comunitária, na qual o “Ethos” se refere à organização da casa, de um povo ou de toda
a sociedade. Assim, ético é o comportamento que tem por princípio a realização de todos; não
haverá comportamento ético no indivíduo sem uma dimensão política (política entendida como arte
de cuidar do bem-estar b) da cidade). A relação com o outro necessita da mediação de canais de
informação e participação nas decisões, de instituições e estruturas adequadas, que reduzam as
desigualdades sociais. A consciência fundamental discerne os princípios éticos e, particularmente,
aquele imperativo que existe em toda pessoa: “Faça o bem”.
Assim, a origem da transição não vem de uma abstração, mas de um processo de
transformação da realidade: a natureza, a sociedade política, cultural e religiosa, que gera uma
nova compreensão – ou uma nova leitura – desta realidade. O que está em transição é a
organização mundial: o nosso quadro de referência filosófico, científico e religioso mudou. No início
do século XX tínhamos uma compreensão estática do nosso mundo: aceitação da ordem natural
das coisas, religião dogmática, moral na base de postulados, filosofia perene.
Passamos da ordem individual, felicidade do indivíduo (durante dois mil anos), para a ordem
pessoal, graças às ciências humanas (psicanálise, psicologia, sociologia): abertura para o outro
(durante a primeira metade do século XX) e, hoje, estamos passando pela ordem social com a
construção de uma ética comunitária.

Histórico da bioética

Foi a verdadeira revolução biológica, desencadeada pela descoberta do Ácido


Desoxirribonucleico – DNA (fonte da vida) por Crick e Watson, em 1953, nos Estados Unidos, que
criou as condições para o vertiginoso movimento de inovação tecnológica que se lhe seguiu e que
foi coroado por grandes sucessos em áreas diversas como: transplantes, reprodução, genética,
ressuscitação, entre outras. Há também outros elementos que fazem parte da história:

Acontecimento em torno da diálise em Seattle (1960)


Frente à escassez de máquinas para a diálise, quais os critérios e quem iria selecionar os
candidatos? Um grupo de médicos entregou a um comitê leigo decisões prospectivas de vida ou
morte e na base de caso-por-caso. Uma prerrogativa que até então tinha sido exclusivamente
reservada ao médico foi delegada a representantes da comunidade.

Experimentação em seres humanos: três casos notáveis

a) Hospital Israelita de doenças crônicas (Nova York – 1963) Pesquisadores queriam obter
maiores informações sobre o processo de rejeição de transplantes em seres humanos. Um
grupo de 22 idosos doentes recebeu injeções de células cancerígenas, mas a diminuição na
capacidade de rejeição às células cancerosas estava ligada à debilidade.
b) Estudo no hospital estatal de Willowbrook (Nova York) Instituição para deficientes mentais.
Os participantes da pesquisa eram crianças que foram deliberadamente infectadas com o
vírus da hepatite A (1950–1970), com a finalidade de encontrar uma vacina. Para observar a
história natural da doença, investigadores infectavam deliberadamente parte das crianças
recém-ingressadas que eram encaminhadas para uma “unidade de hepatite”. Quando
questionados, os investigadores justificaram-se alegando que as crianças iriam se infectar de
qualquer forma durante sua estadia na instituição, assim não estavam causando prejuízos
maiores do que a que estavam expostas.

c) Estudo da sífilis em Tukesgee (Alabama)


Foram deixados sem tratamento 400 negros sifilíticos para pesquisar a história natural da
doença. A pesquisa continuou até 1972, apesar do descobrimento da penicilina em 1945.

Transplantes:
Em 1967 aconteceu um transplante de coração realizado pelo Dr. Christian Barnard. Frente a
perguntas como: “o doador do órgão estava verdadeiramente morto?” “O coração foi retirado com
respeito aos desejos da pessoa ainda em vida?” ...criou-se o Comitê da Escola Médica de
Harvard para elaborar uma definição de morte cerebral com a participação de teólogos e
filósofos.

Envolvimento de teólogos:
Enquanto os teólogos católicos discutiam questões como eutanásia e aborto, dois teólogos
protestantes, Joseph Fletcher (1954) e Paulo Ramsey (1970), enfatizavam a liberdade do paciente
bem como as dimensões morais do relacionamento médico-paciente.

Nova definição da morte (1968):


A definição da morte pelo critério cerebral era nova e muito controvertida, mas ganhou rápida
aprovação pública devido a sua utilidade: promessa de mais órgãos para transplantes que
salvariam vidas. Os casos de Karen Ann Quilan (1975), jovem norte-americana que ingressou na
UTI em estado de coma “depassé”, devido à ingestão de drogas e álcool, e travou batalha judicial
para desligar os aparelhos; e de “Baby Doe”, recém-nascido, mantido vivo por máquina, obrigam a
uma reflexão sobre o difícil conceito de “qualidade de vida”.
Simultaneamente, em relação à situação sociopolítica, revigora-se o poderoso movimento dos
direitos humanos, sobretudo durante os anos de 1960 e 1970, com a contestação da guerra do
Vietnã e o consequente desafio da autoridade, também com a luta pela igualdade de direitos entre
brancos e negros, entre homens e mulheres. Na confluência destes fatores, encontramos a crise da
noção de progresso como essencialmente positiva e a intensificação do questionar a ciência. É o
despertar de uma nova consciência do ser, de um apurado sentido do humano, que se interroga
pelo que devo fazer face ao que posso fazer . É neste ambiente marcado por grandes evoluções e
sentimentos contraditórios que a bioética emerge como novo domínio da reflexão e da prática, que
torna como seu objeto específico as questões humanas na sua dimensão ética.

Origem da bioética

Bioética – ética da vida – é um neologismo, primeiramente forjado por Van Rensselaer Potter,
biólogo e oncologista da Universidade de Wisconsin, Madison, na obra Bioethics (Potter:1971),
publicada em janeiro de 1971. O objetivo desta disciplina, dizia ele, seria de ajudar a humanidade
em direção a uma participação racional, mas cautelosa, no processo da evolução biológica e
cultural, como uma nova disciplina que combina conhecimento biológico com o conhecimento dos
sistemas de valores humanos. Potter escolheu “bio” para representar o conhecimento biológico, a
ciência dos sistemas viventes, e “ética” para representar o conhecimento dos sistemas de valores
humanos. Para Potter, o objetivo último desta disciplina seria não somente enriquecer as vidas
individuais, mas prolongar a sobrevivência da espécie humana numa forma aceitável de
sociedade.
Seis meses mais tarde, em 1º de julho do mesmo ano, André Hellegers, obstetra, fisiologista
fetal e demógrafo, introduziu o mesmo termo num sentido mais restrito, aplicando-o à ética médica
e pesquisa biomédica. É este significado que acabou se consagrando nos meios acadêmicos e
na opinião pública.
Importa, desde já, destacar que o efetivo ponto de partida da bioética é a consideração da
pessoa humana e das condições éticas para uma vida humana. A perspectiva originária da
bioética é fundamentalmente humanista.

Definições de bioética

Enfocando essa perspectiva, nos deparamos com várias conceituações da bioética.


“Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética); pode-se
defini-la como sendo o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão,
conduta e normas morais – das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade
de metodologias éticas num contexto interdisciplinar” (Reich, 1995: Int.).
Outra definição que complementa a conceituação de Reich, “bioética significa ética aplicada à
vida (solucionadora de problemas) e se apresenta como a procura de um comportamento
responsável por parte daquelas pessoas que devem decidir tipos de tratamentos, pesquisas ou
posturas com relação à humanidade” (Garrafa, 1995:166).
As dimensões éticas examinadas na bioética estão constantemente evoluindo, mas tendem a
enfocar várias questões maiores: Qual é a visão moral da pessoa ou da sociedade? Que tipo de
pessoa humana devemos ser, ou que tipo de sociedade devemos construir? O que deve ser feito
em situações específicas? Como viver harmoniosamente? Neste sentido, completaria a
conceituação de bioética com outro enfoque: “a bioética, inicialmente um movimento social que
lutava pela ética nas ciências biológicas e áreas correlatas, hoje é também uma disciplina
norteadora de teorias para o biodireito e para a legislação, com a finalidade de assegurar mais
humanismo nas ações do cotidiano das práticas médicas e nas experimentações científicas que
utilizam seres humanos. Essa dupla face, disciplina e movimento social, movimento bioético —,
confere à bioética a peculiaridade de ser ao mesmo tempo reflexão sobre as implicações sociais,
econômicas, políticas e éticas dos novos saberes biológicos e ação que objetiva estabelecer um
novo contrato social entre a sociedade, cientistas, profissionais da saúde e governo, sobre as
questões do presente e as perspectivas de futuro” (Oliveira, 1997:47–48).

Fundamentação filosófica e paradigmas da bioética

“Não se pode fazer bioética seriamente se não se apoiar sobre um fundamento antropológico,
antropologia no sentido filosófico, isto é, no sentido de um conhecimento da pessoa como sujeito
na sua globalidade, filosofia humanista atenta em compreender a pessoa em todas as suas
dimensões e, por isso, um humanismo o mais global possível” (Malherbe, 1990:90).
São várias as vertentes de análise teórica, de enfoque filosófico e de orientação prática para a
compreensão e tomada de decisão na bioética: são os chamados paradigmas.
Paradigma principialista: sistematizado por Beauchamp e Childress enfatiza os princípios da
tradição da ética médica: autonomia, que diz respeito à capacidade que tem a racionalidade
humana de fazer leis para si mesma, significa a capacidade de a pessoa governar-se a si mesma,
ou a capacidade de se autogovernar, escolher, dividir, avaliar, sem restrições internas ou externas;
beneficência: fazer o bem, cuidar da saúde, favorecer a qualidade de vida; não-maleficência: não
fazer o mal; e justiça: princípio que obriga a garantir a distribuição justa, equitativa e universal dos
benefícios dos serviços de saúde.
Paradigma liberal: decorrente das ideias emitidas por Engelhard – baseia-se na tradição
filosófica do liberalismo norte-americano: radicalização do valor central da autonomia e do
indivíduo, e defesa dos direitos e da propriedade dos indivíduos: corpo como propriedade do
próprio paciente, com direito a vender seu sangue ou seus órgãos.
Paradigma casuístico: elaborado por Jonsen e Toulmin não se orienta por princípio algum, e
sim pela análise de caso, buscando soluções tanto na singularidade de um caso como na
comparação entre eles.
Paradigma do cuidado: apresentado por Gilligan – o cuidado é a força motriz da sociedade,
da sobrevivência, evidenciado no papel que tradicionalmente coube às mulheres, o de nutridora, no
sentido de cuidar, nutrir. Contrapõe o valor do cuidado, característica mais feminina, ao de justiça,
característica mais masculina. Parte mais da psicologia evolutiva, sendo mais de natureza
psicológica do que filosófica. Superação de uma perspectiva exclusivamente técnica da medicina.
Paradigma contratualista: sistematizado por Veatch – explicita as deficiências e limites da
ética hipocrática, propõe um contrato tripartite entre médico-paciente, entre médicos e a
sociedade, com o objetivo de se chegar a um contrato amplo que de fato defina os princípios
norteadores da relação médico-paciente. Para regular essas relações, alguns princípios são
fundamentais: beneficência, proibição de matar, dizer a verdade e cumprir as promessas.
Paradigma da ética das virtudes: descrito por Pellegrino e Thomasma – focaliza o valor e a
necessidade da virtude para o estabelecimento de relações éticas, a virtude sendo uma
característica inata no ser humano que precisa apenas ser despertada; assim, manter-se virtuoso é
uma resultante do hábito de praticar boas ações e de exercitar a virtude. Enfatiza a ação pela
formação dos profissionais da saúde e na prática clínica que conduziria naturalmente à prática do
bem.
Paradigma narrativo: propõe que, na análise de casos e na tomada de decisão ética, trabalhe-
se com a metodologia da narração da história de vida das pessoas; as pessoas adquirem
identidade e intimidade ao contar e seguir histórias; é uma variação do modelo casuístico com a
diferença de que valoriza os recortes de classe, sexo/gênero e raça/etnia, entremeados à situação
em que a pessoa se encontra.
Paradigma do direito natural: apresentado por Finnis elenca alguns bens essenciais em si
mesmos: o conhecimento, a vida, a vida estática, a vida lúdica, a racionalidade prática, a
religiosidade e a amizade e, para ele, só é considerada moral a ação que reverencia e pode
desenvolver tais valores.
Paradigma antropológico ou perspectiva personalista humanizante: afirma que a bioética
carece de fundamentação antropológica; é baseado em uma filosofia humanista e globalizante que
tem como referência o conceito de pessoa na totalidade de suas expressões e na infinitude de sua
realização como pessoa. A fundamentação teleológica considera a pessoa humana na sua
dignidade universal e como valor supremo do agir.
Paradigma da responsabilidade: formulado por Hans Jonas – para quem as questões
referentes à ecologia e ao desenvolvimento da genética e da tecnologia devem ser analisadas em
uma perspectiva filosófica que considera a natureza um bem comum da humanidade.
Paradigma fenomenológico e hermenêutico: toda experiência está sujeita à interpretação,
existem sempre duas dimensões em cada situação: uma subjetiva e outra objetiva. A experiência
humana não pode ser facilmente capturada e dirigida para uma escolha moral informada por meio
da simples imposição de regras e princípios abstratos.
Frente aos paradigmas, descobrimos a ambiguidade ética: as dimensões morais da
experiência humana não podem ser capturadas por uma única perspectiva. A grandeza e a
profundidade da experiência humana sempre estarão além de qualquer sistema filosófico ou
teológico.

Algumas características da bioética


• Ela nasce num contexto científico (Primeiro Mundo - USA), como uma necessidade de proteger
a vida humana diante de todas as inovações tecno-científicas na área das ciências da vida.

• Surge como um esforço interdisciplinar da parte de muitos profissionais da saúde. É uma


busca participativa a partir dos diversos campos do saber biomédico e profissionais em geral,
com a participação de sociólogos, eticistas, biólogos, enfermeiros, psicólogos, juristas, teólogos
etc., que unem seus esforços na investigação de valores humanos que inspirem seu trabalho.

• Não se trata de uma ciência construída com fórmulas éticas pré-fabricadas. Como muitos dos
problemas bioéticos são novos, não é raro que brote a necessidade de buscar novos valores que
direcionem os trabalhos de investigação científica. Parte-se dos princípios e valores tradicionais e,
a partir deles, procura-se encontrar soluções novas para os problemas emergentes que trazem a
biologia, a genética, a engenharia genética e outras ciências.

• Apoia-se mais na razão e bom juízo moral de seus investigadores que numa determinada
corrente filosófica ou religiosa.

• Procura de maneira especial humanizar o ambiente das clínicas e hospitais em particular, bem
como promover os direitos do paciente.

• Trata de integrar a ética com as ciências biomédicas.

• A problemática bioética é particularmente intensa no seio das sociedades pluralistas, em que


coexistem concepções de vida diversas e diferentes valores éticos. Ressalta-se aí a importância
do clima de diálogo e respeito mútuo.

Conteúdo e desafios da bioética

Resumindo: Bioética, ética da vida, é um espaço de diálogo transprofissional, transdisciplinar e


transcultural na área da saúde e da vida, um grito pelo resgate da dignidade da pessoa humana,
dando ênfase na qualidade de vida: proteção à vida humana e seu ambiente. Não é ética “pré-
fabricada” mas um processo.
Somos humanos chamados a altos vãos. A bioética foi proposta com esta preocupação:
questionar o progresso e para onde o avanço materialista da ciência e tecnologia estava levando a
cultura ocidental; que tipo de futuro estamos construindo e se temos algumas opções.
Desde o início, Potter usa a palavra “ponte” – bioética ponte – ponte entre ciência biológica e
ética, mas como um meio para um fim, ponte para o futuro – disciplina que guiaria a humanidade
como uma ponte para o futuro.
Assim, o objetivo da bioética é ajudar a humanidade em direção a uma participação racional,
mas cautelosa, no processo da evolução biológica e cultural.
A ética que está proposta na bioética é global, prospectiva, abrangente e contextualizada:

combina humildade (posso estar errado), responsabilidade e uma competência


interdisciplinar, intercultural que potencializa o senso de humanidade;
busca resgatar a dignidade e a cidadania de cada pessoa;
entende a autonomia de cada ser humano, mas também entende que as vidas individuais
estão interligadas e inseridas em um contexto social de relacionamentos. Como
consequência, tem-se a obrigação de agir de forma responsável para consigo próprio e para
com os outros seres humanos, buscando manter esta conexão de interdependência, de
modo que ninguém seja excluído ou deixado sozinho.

Isto exige:

um esforço enorme do diálogo inclusivo, pois estamos em uma época marcada pela
superespecialização e, muitas vezes, por um individualismo exacerbado, conquista da
Modernidade;
um pluralismo religioso, político e moral, um ideal de sociabilidade, um progressivo
descobrimento e afirmação dos direitos humanos;
lidar com o pluralismo, apontar para um novo tipo de comunidade; o consenso social não
exclui a diferença e nem mesmo o conflito, ao contrário, clama por uma nova consciência de
solidariedade e de tolerância.

A bioética é mais que debater, é fazer coisas junto uns com os outros porque é tendo a
responsabilidade de agir, de justificar as escolhas feitas ou não, de dar razões da ação e de arcar
com as consequências, que se aprende a viver junto, que se constrói comunidade, que se pratica
solidariedade, que se exercita tolerância.
A tarefa cotidiana do cultivo da tolerância inclui uma atitude proativa de procura do ponto ideal
de encontro com o outro nos momentos de discordância e enfrentamento. A tolerância é uma
conquista no caminho em direção à solidariedade, este laço recíproco que une pessoas como
corresponsáveis pelo bem umas das outras.
Importantes questões éticas ligadas à engenharia genética, ao debate do aborto e eutanásia,
envolvem nossa compreensão de natureza e pessoa. Temos três modelos;

• A natureza dotada de poder e elasticidade – a natureza é vista como essencialmente alheia


e independente da pessoa, não possui um valor inerente e é dominada por forças e causas
impessoais. É “plástico” no sentido de que a pessoa pode usar, dominar e dar-lhe uma variedade
de arranjos possíveis. Esse modelo sugere que a pessoa tem o direito ilimitado de dominar,
manipular e controlar a natureza. A implicação óbvia: a pessoa deve buscar alcançar tudo quanto
pode porque conhecimento é poder.

• A natureza como algo sagrado – este modelo vê a natureza como uma realidade a ser
reverenciada e respeitada. Na sua forma religiosa ocidental, a natureza é vista como uma parte da
criação de Deus e aceita como sagrada pela sua origem. O relacionamento que emerge dessa
descrição é de administração.

• A natureza como portadora de uma teleologia em si – esta é a visão secular da versão


anterior. Ela vê um sentido e lógica na natureza em si, sem uma mão invisível por três que está
guiando. Nesta perspectiva é possível estudar a natureza e descobrir seu sentido e o significado
da vida humana. Este modelo também sugere que, embora não sejamos escravos da natureza
num sentido rígido, somos, pelo menos, capazes de contemplar limitações em intervenções
violentas na natureza.

Numa primeira abordagem, temos três grandes áreas de problemas sobre os quais a bioética
trabalha. Questões que se referem ao início e ao fim da vida humana e as que se situam numa
área intermediária.
Entre as questões que dizem respeito ao início da vida, temos: contracepção, esterilização,
exame pré-natal, aborto, concepção medicamente assistida (inseminação artificial, fecundação “in
vitro”), doação de sêmen, óvulo, embrião, mãe de aluguel etc.
Entre as questões relacionadas com o fim da vida, temos: a morte e o morrer, paciente terminal,
eutanásia, suicídio, transplantes etc.
Enfim, as questões que se situam numa área intermediária (vida):

compreende os problemas relacionados com valores que surgem em todas as profissões de


saúde, inclusive nas profissões “afins” e nas vinculadas à saúde mental;
aplica-se às investigações biomédicas e às do comportamento independentemente de
influírem ou não de forma direta na terapêutica;
aborda uma ampla gama de questões sociais, as quais se relacionam com a saúde
ocupacional, nacional e internacional e com a ética do controle da natalidade, entre outras;
vai além da vida e saúde humanas, enquanto compreende questões relativas à vida dos
animais e das plantas, por exemplo, no que concerne às experimentações com animais e
demandas ambientais conflitivas;
aborda a questão da justiça no acesso aos cuidados de saúde em geral, incluindo a política
de saúde;
trata dos códigos de ética das diversas profissões, experimentação em seres humanos,
direito à saúde, pena de morte, fome...

Comissões de bioética – controle social

Controle social é aqui entendido como o controle sobre o Estado pelo conjunto da sociedade
organizada em todos os segmentos sociais. Evidentemente, esse controle deve visar o benefício
do conjunto da sociedade e deve ser permanente. Por isso, quanto mais os segmentos da
sociedade se mobilizarem e se organizarem, maior será a pressão e o resultado para que seja
efetivado o Estado Democrático.
O cidadão deve ser um agente de transformação na sociedade no resgate da dignidade da
pessoa e da qualidade de vida. É tendo a responsabilidade de agir, de dar razões da ação e de
arcar com as consequências que se aprende a viver junto. Assim, gostaria de refletir sobre a
participação pública na tomada de decisões:
Exercício da cidadania: lembrando a distinção que o bioeticista italiano Giovani Berlinguer faz
entre bioética de fronteira – sendo aquela que trata das novas tecnologias biomédicas aplicadas
sobretudo à fase nascente e à fase terminal da vida e bioética cotidiana, sendo voltada para a
exigência de humanizar a medicina, articulando fenômenos complexos, como a evolução científica
da medicina, a socialização da assistência sanitária, a crescente medicalização da vida, inclusive
a alocação de recursos para a saúde. A bioética cotidiana nos faz entrar no concreto do exercício
da cidadania. A cidadania é compreendida como o exercício da plenitude dos direitos, como
garantia da existência física e cultural e reconhecimento como ator social. A realização pessoal e
comunitária de cada pessoa é sempre considerada um valor acima do Estado e do Mercado. A
inversão desta lógica implica encontrar um mercado ou um estado com caráter autoritário,
coercitivo e absoluto. Assim, precisamos de instâncias representativas que defendam direitos e
deveres na tomada de decisões frente à alocação e gestão de recursos em saúde.

Conselhos (Municipal, Estadual e Nacional) de Saúde: É conquista das mobilizações


sociais e democráticas dos anos 1980, que se consolidaram na Constituição Federal de 1988 e
nas Leis 8.080/90 e 8.142/90. Ao integrar os Conselhos de Saúde na estrutura legal do Poder
Executivo, esta conquista acrescenta uma trincheira decisiva para o controle social, que é um
enclave do controle social dentro do Estado: os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de
Saúde. Estes órgãos do Poder Executivo possuem uma composição e papel de características
inusitadas e diferenciadas: sua composição é tão heterogênea e plural quanto a própria sociedade
– é constituída por conselheiros: metade é das entidades representantes dos usuários, e na outra
metade, além do governo, entidades representantes dos prestadores de serviços e dos
profissionais da saúde. O grande objetivo: assegurar a construção de um modelo assistencial
baseado nos direitos de cidadania de toda a população, intersetorial, em defesa da vida e da
saúde, e com acesso universal e equitativo a todos os níveis da atenção integral à saúde, da
coletividade, dos grupos populacionais expostos a riscos específicos e de cada indivíduo. Tudo
isso efetivado por um modelo de gestão descentralizado e participativo. Sem a clareza do que
significa este objetivo e o consequente compromisso, o controle social através dos Conselhos de
Saúde fica exposto a pressões estreitas de tendências e grupos, da sociedade e do Governo,
desviando-se da totalidade da sociedade e da cidadania.

Comissões de bioética: As comissões de bioética, no nosso caso, são formadas por diversos
profissionais ligados à comunidade. Basicamente são enfatizadas três funções: educativa,
consultiva e normativa. Trata-se da educação nos grandes temas da bioética, da análise e
discussão de casos e problemas éticos, e da elaboração de normas éticas, bem como da
implementação das já existentes. Os componentes dessas comissões poderiam ser profissionais
da saúde, representantes dos vários segmentos da sociedade e gestores (municipais, estaduais e
nacionais) escolhidos a partir dos conselhos de saúde para firmar o compromisso desses com as
decisões tomadas para promover e garantir a saúde da população, como por exemplo o
funcionamento a contento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Comissões de Bioética nas Instituições de Saúde: as comissões de bioética são formadas


por diversos profissionais ligados ao hospital ou à comunidade, tais como o diretor administrativo,
o diretor clínico, a diretora de enfermagem, um representante da psicologia, do serviço social, da
nutrição, um jurista, um representante de culto. Basicamente, são enfatizadas as três funções:
educativa, consultiva e normativa. Trata-se da educação do hospital e da comunidade nos
grandes temas da bioética, da análise e discussão dos casos clínicos para esclarecer seus
problemas éticos, e da elaboração de normas éticas, bem como da implementação das já
existentes.
Função educativa: os componentes da comissão devem passar por uma etapa de
autoformação prévia. A tarefa educativa no hospital consta de conferências, jornadas, cursos,
seminários etc. Por último, a comissão de bioética projeta-se na comunidade atingindo os
pacientes, familiares, centros comunitários, para estudar e refletir sobre os temas mais importantes
da bioética. Entre as questões que dizem respeito ao início da vida, temos: contracepção,
esterilização, exame pré-natal, aborto, concepção medicamente assistida (inseminação artificial,
fecundação “in vitro“), doação de sêmen, óvulo, embrião, mãe de aluguel...
Entre as questões relacionadas com o fim da vida, temos: a morte e o morrer, paciente terminal,
eutanásia, distanásia, suicídio, transplantes... Enfim, as questões que se situam numa área
intermediária: códigos de ética das diversas profissões, experimentação em seres humanos,
direito à saúde, pena de morte, fome...
Função consultiva: a comissão começa com uma revisão retrospectiva dos casos já resolvidos
para adquirir habilidade em identificar os problemas, cursos de ação e justificação ética das
alternativas. Logo decide que casos receberá para consulta: todos os serviços, ou da terapia
intensiva ou serviço de pesquisa... Nos distintos casos, a comissão deve estabelecer se suas
conclusões serão em forma de exposição de vantagens e desvantagens das alternativas,
sugestões de ação ou recomendações.
Função normativa: a comissão, em primeiro lugar, deve fazer com que sejam respeitadas no
hospital as normas éticas de aceitação mundial no campo da saúde: Declaração da Associação
Médica Mundial, Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros documentos de grande
relevância. Em seguida, se dedicará à elaboração de normas éticas de procedimento. A
Comissão define o tema que será objeto de normatização ética, recompila informações já
existentes, consulta os profissionais do hospital ou da instituição de saúde sobre a factibilidade
das normas, avalia a linguagem dessas normas e revisa legalmente o texto para aprovação.

Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)3: em toda instituição de saúde, bem como
universidades e faculdades que realizam pesquisas com seres humanos e animais, é preciso ter
um Comitê de Ética em Pesquisa, segundo definição da Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde/Ministério da Saúde.
O comitê de ética em pesquisa tem por finalidade analisar a cientificidade e eticidade da
pesquisa, defender os interesses do sujeito da pesquisa e os interesses do pesquisador. A ênfase
é dada ao consentimento livre e informado, à análise dos riscos versus benefícios e à não-
maleficência da pesquisa.

Comissão Nacional de Bioética (A ser criada): ligada à Presidência da República,


constituída de membros das comissões de bioética, representativos de todos os segmentos da
sociedade, capazes de discutir os assuntos bioéticos.

Abrangência temática da bioética

A bioética tem a ver com o viver do dia-a-dia. De uma maneira esquematizada e simples,
apresentaremos agora a abrangência temática da bioética perpassando o nascer, o viver e o
morrer.

a) Nascer

1) Vida humana

Conceito de natureza e pessoa


Quando começa? (teorias)
Sacralidade x Qualidade

Sacralidade: vitalismo, vida biológica como absoluto.


Qualidade: alguém escolhe qualidade antes que quantidade.
A vida biológica é fundamental, mas não é um absoluto. Absoluto é o amor.
Qualidade e sacralidade da vida não são opostas; elas tornam-se tais em argumentações
simplistas. O crucial é que as decisões sejam ponderadas nos princípios de justiça e razão.

Natureza: Sim. Ser Humano: Não – Como não ter os filhos que não se quer?

Sexualidade x Reprodução (separação)


Contracepção – métodos contraceptivos: camisinha, pílula, esterilização: vasectomia,
ligadura das trompas
Exames pré-natais (ultrassom, amniocentese, amostra do vílio corial)
Abortamento

Natureza: Não. Ser Humano: Sim — Como ter os filhos que a natureza recusa?

Concepção medicamente assistida


Inseminação artificial
Doação de sêmen, óvulo, ovo ou embrião
Bancos de esperma (paternidade pós-morte)
Úteros (mães, barrigas) de aluguel
Embrião – direitos
Genética e Engenharia Genética

Três megaprojetos do século XX:


Manhattan – Energia Atômica (1945)
Apollo – Cosmos (Lua – 1969)
Genoma – Genes (anos 1990)
Internética – Informática (anos 2000)

O primeiro foi o Projeto Manhattan – descobriu e utilizou a energia nuclear que gera hoje
energia elétrica; é utilizada na cura do câncer, mas também produziu a bomba atômica que matou
mais de 80 mil pessoas, destruindo Hiroshima e Nagasaki (1945) e pôs fim à Segunda Guerra
Mundial. Descobriu-se o coração da matéria, o átomo, e dele se extraiu energia. Projeto Apollo –
levou o homem até a lua (1969). O ser humano criou estações orbitais, enviou sondas exploratórias
para outros planetas e se instrumentalizou para navegar interplanetariamente. Descobrimo-nos
como um grãozinho de areia na imensidão do universo. Começou a se falar e a procurar vida em
outros planetas. Projeto Genoma Humano – iniciado oficialmente em 1990, objetivou mapear e
sequenciar todos os genes humanos (de 30 a 50 mil segundo os geneticistas), onde estão
guardados todos os segredos biológicos e genéticos da vida. Este empreendimento levou o ser
humano ao mais profundo de si mesmo em termos de conhecimento de sua herança biológica,
numa verdadeira caça aos genes. Ele tem suas raízes na chamada “descoberta do século”, o DNA
(ácido desoxirribonucleico) por Watson, Crik e Rosalin Franklin, em 1954. tem aí início a terceira
revolução biológica e que neste limiar de um novo tempo está sendo renomeada como sendo a
era genômica. A internética nos faz tomar consciência de que vivemos numa aldeia global em
termos de comunicação: “o mundo online”.

Século XXI:

Clonagem: Realidade ou mito? Clones humanos? Clonagem reprodutiva x clonagem


terapêutica.
Colonialismo genético (manipulações e experimentos no mundo pobre).
Cartografia genética (Identidade do ser humano).
Medicina preventiva: Uma doença pode ser definida de maneira biológica – DNA – Genoma
humano.

b) Viver (desenvolvimento da vida)

Anseio de viver – viver bem – viver sumamente bem!

1) Saúde

Definição: realidade e perspectivas


Alocação de recursos (investimentos, recursos)
Organização Mundial da Saúde (OMS): um novo paradigma mundial para a saúde.

Ottawa (Canadá — 1986): A promoção da saúde é o processo de capacitação da comunidade


para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no
controle deste processo. Alcançar a equidade consiste em eliminar as diferenças desnecessárias,
evitáveis e injustas que restringem as oportunidades para se atingir o direito ao bem-estar.
Adelaide (Austrália — 1988): Prioriza as políticas públicas saudáveis que se caracterizam pelo
interesse e preocupação explícitos de todas as áreas das políticas públicas em relação à saúde e
à equidade, e pelos compromissos com o impacto de tais políticas sobre a saúde da população.
Quatro áreas prioritárias: apoio à saúde da mulher; alimentação e nutrição; tabaco e álcool;
criação de ambientes favoráveis. Reafirmação do apelo à construção de novas alianças na saúde
(parcerias) que envolvam políticos, ONGs, grupos de defesa da saúde, instituições educacionais,
mídia etc.
Sundsval (Suécia — 1991): Ambientes e saúde são interdependentes e inseparáveis. Atingir
essas metas deve ser o objetivo central ao se estabelecer prioridades para o desenvolvimento e
devem ter precedência no gerenciamento diário das políticas governamentais.
Bogotá (Colômbia — 1992): A promoção da saúde na América Latina busca a criação de
condições que garantam o bem-estar geral como propósito fundamental do desenvolvimento,
assumindo a relação de mútua determinação entre saúde e desenvolvimento. O desafio da
promoção da saúde no Continente consiste em transformar as relações excludentes, conciliando
interesses econômicos e propósitos sociais de bem-estar para todos. Ressalte-se o papel
fundamental da educação, informação e comunicação na promoção da saúde: importância da
participação ativa das pessoas na modificação das condições sanitárias e na maneira de viver,
indutoras da constituição de uma cultura da saúde. A divulgação de informações e a promoção do
conhecimento constituem valiosos instrumentos para a participação e para a mudança nos estilos
de vida das comunidades.
Jacarta (Indonésia — 1997): A declaração de Jacarta apresenta as prioridades da ação de
promoção da saúde da OMS para o século XXI: promover a responsabilidade social a respeito da
saúde, incrementar os aportes de capital para o desenvolvimento das condições sanitárias,
reforçar e incrementar as alianças na área da saúde, incrementar as aptidões comunitárias e
promover a responsabilidade individual, implantar uma infraestrutura de promoção da saúde.
México (México — 2000): o processo da Conferência esteve orientado para abordar algumas
linhas fundamentais que devem confrontar-se para assegurar um progresso constante ao abordar a
falta de equidade da saúde usando o conceito e as estratégias da promoção da saúde.

2) Ecologia

ECO 92 (Rio) – Agenda 21


• Ética e tratamento de animais.
Ecologia humana.

3) Pesquisa envolvendo seres humanos

Código de Nuremberg (1947).


Declaração dos direitos do homem (1948).
Declaração de Helsinque (1964) e suas versões posteriores: 1975 – Tóquio; 1983 – Veneza;
1989 – Hong-Kong; 1996 – Somerset Oeste, República da África do Sul; 2000 – Edimburgo,
Escócia.
Proposta e diretrizes éticas internacionais para pesquisas biomédicas envolvendo seres
humanos (CIOMS/OMS 1982/1993).
Diretrizes internacionais para revisão ética de estudos epidemiológicos (CIOMS, 1991).
Normas e legislação brasileira (Resolução 196/96 – MS/CNS): Comitê de Ética em
Pesquisa – Cientificidade da Pesquisa e Eticidade: defender os interesses do sujeito da
pesquisa e assim defender os interesses do pesquisador. 1. Consentimento livre e
informado; 2. Riscos x benefícios; 3. Não-maleficência.

4) Políticas de População (demografia)


ONU – Conferências mundiais sobre população:

Bucareste (1974): A Conferência de Bucareste foi extremamente pessimista e falou-se em


bomba demográfica, mais perigosa que a bomba de hidrogênio.
México (1984): A Conferência de México constatou que, de um lado, existem países em
crescimento populacional preocupante (Terceiro Mundo) e, de outro, países com déficit
populacional (Alemanha, França...).
Cairo (1994): Consenso internacional sobre a existência de um direito humano sobre
planejamento da natalidade.

5) Normas, códigos e legislação

Códigos de ética dos profissionais da saúde

c) Morrer

a) Aspectos Histórico-Culturais

Alguns temas importantes sobre o fim da vida:

Novo conceito de morte encefálica (1968).


Transplantes (coração, rim, fígado, pulmão etc.).
Doação de órgãos.
Paciente Terminal (cuidados paliativos, direitos, saber a verdade?).
Eutanásia – suicídio assistido, distanásia (obstinação terapêutica).
Dignidade no adeus à vida.

Bioética na America Latina: Três desafios, entre outros

“Os problemas bioéticos mais importantes em relação à América Latina estão relacionados com
a justiça, a equidade e a alocação de recursos na área da saúde. A equidade equivale à justiça
distributiva, leva em conta as diferentes necessidades individuais e a existência de desigualdades
entre as pessoas. Propõe que haja um tratamento desigual dos desiguais, de acordo com suas
necessidades, ou seja, uma discriminação positiva. Equidade significa a disposição de
reconhecer igualmente o direito de cada um a partir de suas diferenças. A igualdade é a
consequência desejada da equidade, sendo esta o ponto de partida para aquela. É o ponto de
chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos na qual o próximo passo é o
reconhecimento da cidadania. A equidade, ou seja, o reconhecimento de necessidades diferentes,
de sujeitos também diferentes, para atingir direitos iguais, é o caminho da ética prática em face da
realização dos direitos humanos universais, entre eles o direito à vida representado pela
possibilidade de acesso à saúde” (Garrafa, 1997:27-33).
A bioética elaborada no mundo desenvolvido (USA e Europa), na maioria das vezes, ignora
questões básicas que milhões de excluídos enfrentam e enfoca outras que, para eles,
simplesmente não existem. Por exemplo, fala-se muito de morrer com dignidade no mundo
desenvolvido; aqui, na América Latina, somos impelidos a proclamar a dignidade humana que
garanta primeiramente um viver com dignidade e não simplesmente uma sobrevivência aviltante,
antes que um morrer digno. Entre nós, a morte é precoce e injusta, ceifa milhares de vidas desde a
infância, enquanto que no primeiro mundo, morre-se depois de se ter vivido muito e desfrutado da
vida com elegância. Assim, o grande desafio é desenvolver uma bioética latino-americana que
corrija os exageros de outras perspectivas e que resgate e valorize a cultura latina no que lhe é
único e singular, uma visão verdadeiramente alternativa que possa enriquecer o diálogo
multicultural. Não podemos esquecer que, na América Latina, a bioética tem o encontro obrigatório
com a pobreza e a exclusão social. Elaborar uma bioética somente no nível micro de estudos de
casos de sabor deontológico somente, sem levar em conta esta realidade, não responderia aos
anseios e necessidades por mais dignidade na vida. Não estamos questionando o valor
incomensurável de toda e qualquer vida que deva ser salva, cuidada e protegida. temos sim que
não perder a visão global da realidade excludente latino-americana na qual a vida se insere.

Vejamos três desafios:

1. Entendendo a bioética num sentido amplo de ética da vida, não há como escapar à reflexão
sobre esse confronto travado entre vida e antivida e não há como não perceber a tarefa de
resgatar a esperança quando o começo é tão próximo do fim! A vida situa-se dentro de um
contexto que favorece ou mata sua expressão.
Numa consideração de bioética, há uma série de fatores econômicos, sociais, políticos e
psicológicos que interferem diretamente nos problemas éticos da vida humana. Nesta direção,
percebemos ideologias que exploram a vida e a própria morte.
A questão da bioética, pensada somente em torno de assuntos médicos, estritamente ligada à
ética médica, amplia-se. Na América Latina temos de levar em consideração a vida dos
marginalizados pela classe social, pelo sexo, pela raça. A questão de fundo é o lugar social a partir
do qual se pensa a bioética.
Assim, os temas concretos, que a bioética deveria incluir, além dos costumeiros, deveriam tratar
da infraestrutura básica da vida, de tal forma que se levassem em conta as condições reais dos
marginalizados (pobres, mulheres, negros, índios). Poderíamos chegar, assim, a uma pauta de
questões tais como: alimentação, fome, saúde, emprego, racismo, ecologia, direitos reprodutivos,
entre outros.
Percebemos o quanto deve ser levado em conta o contexto mais amplo em que a vida,
dialeticamente, se situa e as ideologias e mecanismos que manipulam a vida e estruturam a
antivida.

2. Ao falar de procriação humana, não podemos ignorar que o mínimo não está acontecendo
ainda. De fato, saúde e direitos reprodutivos não são ainda direitos! E sabemos que uma grande
parcela da população desconhece seus direitos reprodutivos. Mais ainda, como falar de bioética,
ética da vida, se 70% da população não vive, mas sobrevive? Fala-se de procriação medicamente
assistida (para quem?) quando o mínimo, a respeito dos direitos reprodutivos, não foi alcançado!
A conceituação de direitos reprodutivos é uma reivindicação dos movimentos de mulheres que
está se impondo, internacionalmente, e que envolve a ética e a política de saúde. Os direitos
reprodutivos consistem no direito básico de todos os casais e indivíduos (homem e mulher) de
decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e o momento de ter filhos e de
ter informações e acesso aos meios contraceptivos, e no direito de obter um melhor padrão de
saúde sexual e reprodutiva. É o direito de ter relações sexuais prazerosas. Isso inclui o direito de
todos de tomar decisões em relação à reprodução, livres de discriminação, coerção e violência,
termos esses expressos em documentos internacionais sobre direitos humanos.
Assim, com a descoberta pela ciência, a partir da década de 60, dos métodos contraceptivos,
pôde-se ter a liberdade sexual e o controle reprodutivo. Separou-se um processo que nunca
aconteceu anteriormente na história: de um lado a sexualidade, de outro a reprodução. Começa a
ganhar expressão a ideologia de que a reprodução deve ser conduzida racionalmente. É dentro
dessa realidade que surgem com força questões éticas relacionadas aos direitos reprodutivos e
às implicações da participação de governos na questão da política populacional.
Alguns pontos para uma reflexão bioética sobre o aborto: o elevado número de abortos
provocados anualmente no mundo, calculado em torno de 50 milhões, faz refletir. Mesmo que esse
número esteja superestimado, ele dá a impressão de uma reflexão inútil. O aborto é uma questão
complexa porque envolve não somente a mulher, mas também o homem e a sociedade. É visto
ideologicamente como causa quando na verdade é efeito. Nos estudos e debates em geral, o
assunto costuma ser analisado com posições bem definidas: pró ou contra. Precisamos enfocá-lo
de modo mais elaborado, mais discutido em função da qualidade de vida das pessoas. É
imprescindível, no plano social, refletir e debater essa realidade do aborto de maneira desarmada,
tentando entender com amor, sem julgar.
E, no fundo, cada um de nós deveria se perguntar: Qual é meu compromisso com a vida humana
e principalmente com a vida ameaçada na sociedade na qual vivemos?

3. A biotecnologia: Constata-se que o avanço técnico-científico tem um alto custo antes de


render gordos dividendos. Na maioria absoluta dos países da América Latina os pobres assistem
ao avanço tecnológico em concomitância com seus baixos salários. No Brasil, por exemplo,
estamos nestes últimos anos com um salário mínimo mensal dos mais baixos do mundo. Não há
como não suspeitar que a tecnologia biogenética esteja financiada pelo salário não pago ao
trabalhador, tanto em nível de sistema internacional (dívida externa) como em nível de organização
político-econômica dos próprios países do terceiro mundo.
O custo da tecnologia, via expropriação, dizem as vozes abalizadas tecnicamente, é um
sacrifício necessário. Mas o que se percebe é que as grandes conquistas da biotecnia continuam
reservadas aos ricos, prestando-se à formação de monopólios e latifúndios nos quais a produção
agrícola e animal são controlados por quem possui a tecnologia biológica.
A experimentação e manipulação em nível embriológico humano também levanta
questionamentos sérios, quer a respeito da sustentação do custo das pesquisas, quer a respeito
do endereçamento social das conquistas. Quem se beneficiará de todos esses avanços? É muito
comum o refrão pela busca da qualidade de vida para legitimar a experimentação nesta área. Se
por um lado, teoricamente, a qualidade de vida ganharia com os avanços, na prática, o que
assistimos, é uma paradoxal distância entre as conquistas pró-vida e a realidade da miséria.
Pode-se argumentar que os benefícios das pesquisas têm aplicação social somente a longo prazo
e que é preciso muita paciência, mas isto não elimina a suspeita da hipocrisia de que, realmente,
é a qualidade de vida de todos que está sendo buscada. Essa suspeita acabaria se,
paralelamente às pesquisas genéticas, houvesse igual solicitude em outras áreas em que a vida é
posta em perigo.
É bom frisar que não é o progresso técnico que é questionado, mas sim, a posição que ele
ocupa na rede de nossas relações humanas. Hoje, sacraliza-se a ciência e coisifica-se a pessoa
humana.

Bioética global e sobrevivência humana: algumas considerações


de Van Rensselaer Potter4

A função da bioética ponte é a de construir pontes em direção a cada uma das especialidades e
entre as especialidades para possível desenvolvimento de uma bioética global, que vê o bem-estar
humano no contexto do respeito pela natureza.

As éticas especializadas incluem:

• A Ética Médica é amplamente definida como bioética, mas trata-se de uma especialidade não
interessada em construir ponte, segundo Potter. A bioética foi definida como especialidade em
1978, por Leroy Walters: “Bioética é um ramo da ética aplicada que estuda as práticas e o
desenvolvimento no campo biomédico”. Esta definição ignora a visão de 1971 da bioética ponte
para o futuro Segundo Potter, um dos dilemas que enfrenta hoje a ética médica é o problema de
quando não aplicar toda a tecnologia disponível. Já em 1971 discutia-se que o problema moral
surge porque a “ciência médica alcançou um sucesso parcial na manutenção da maquinaria sem
manter a pessoa”. Nos tempos presentes, eticistas médicos devem ir além do monitoramento
tecnológico utilizado somente pelos superprivilegiados. Eles devem colaborar com os eticistas
sociais e exigir medidas de saúde para os menos afortunados em casa (nos EUA) e nos países
em desenvolvimento, onde a pobreza combina com AIDS, malária, parasitismo e tuberculose.

• A Ética Ambiental é uma ética que lida com a relação da humanidade com a terra, as plantas,
os animais que crescem nela. Como na medicina, o dilema é como atingir o sucesso a curto prazo
e obter lucro sem destruir as opções futuras de sobrevivência.

• A Ética Agrícola é uma especialidade recente que vê uma obrigação ética de prover reservas
sustentáveis de alimento para uma população mundial em expansão. O dilema é, novamente,
como prover a necessidade de alimentos sem aumentar as dificuldades futuras, ao ignorar a
necessidade de diversidade biológica no mundo natural. A utilização de reservas florestais e as
indústrias de pesca enfrentam problemas que se entrelaçam com os dilemas da ética ambiental e
da agricultura.

• A Ética Social procura soluções para o conflito entre os superprivilegiados e os pobres. As


questões em maior ou menor intensidade versam sobre o conflito: a tendência para os mais
privilegiados versus a luta pela sobrevivência. Precisamos refletir sobre as necessidades de saúde
para todos no mundo e não somente para alguns escolhidos. Entre outras questões, que fazem
parte da bioética global, temos a diminuição de mortalidade infantil e taxas de controle da
reprodução humana voluntariamente controladas. A ética social precisa estar ligada com todas as
outras especialidades éticas que lidam com este conflito básico.

• A Ética Religiosa busca uma moralidade básica que transcenda os conflitos sectários. O
dilema básico é o fracasso da educação secular em desenvolver um senso de responsabilidade
individual e integridade moral nos jovens, enquanto os informa dos fatos biológicos básicos da
evolução e da adaptação.

• A Ética Capitalista é uma categoria usualmente não considerada, mas a filosofia do livre
mercado é proclamada como um instrumento para o agir do bem social através da chamada mão
invisível do próprio interesse que Adam Smith, um economista escocês, desenhou em 1776. Mas,
de fato, são as mãos de rapina operando no livre mercado da economia global que cortam as
florestas tropicais e esvaziam o mar de peixes. Essa ética falhou redondamente em resolver o
dilema da simples justiça em equilibrar direitos humanos com a maximização do lucro para
dilema da simples justiça em equilibrar direitos humanos com a maximização do lucro para
poucos.

Segundo Potter, “desde o início chamei de bioética uma nova disciplina que combinaria
conhecimento e reflexão. A bioética deve ser vista como uma abordagem cibernética em relação à
contínua busca de sabedoria pela humanidade, que define como usar o conhecimento para a
sobrevivência humana e para o aperfeiçoamento da condição humana”.
A bioética deve ser pensada como uma nova ciência ética que combina humildade,
responsabilidade e uma competência que é interdisciplinar, intercultural potencializadora do senso
de humanidade.

Conclusão
Relembramos que o advento da bioética muito contribuiu para estabelecer a distinção entre
moral e ética.
MORAL diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de uma determinada
sociedade. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada membro a ela
pertencente recebe (digamos passivamente) e os respeita.
ÉTICA é um juízo de valores, é um processo ativo que vem de “dentro de cada um de nós para
fora”, ao contrário de valores morais que vêm de “fora para dentro” de cada um. A ética exige um
juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica,
cada um de nós vai pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e,
também, os valores morais.
BIOÉTICA é ética. Não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma
reflexão sobre os mesmos e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há
bioética sem liberdade; liberdade para se fazer uma opção, por mais “angustiante” que possa ser.
O exercício da bioética exige, pois, liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem
coação, sem coerção e sem preconceito. A bioética exige também humildade para se respeitar o
diferente, e a grandeza para reformulação, quando se reconhece o equívoco em uma opção.
Condição sine qua non exigida pela bioética, enquanto tal, diz respeito à visão pluralista e
interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. Ninguém é
dono da verdade.
Hoje, a bioética pode ser definida como um instrumental de reflexão e ação, a partir de três
princípios: autonomia, beneficência e justiça. Busca estabelecer um novo contrato social entre
sociedade, cientistas, profissionais da saúde e governos. Além de ser uma disciplina na área da
saúde é também um crescente e plural movimento social preocupado com a biossegurança e o
exercício da cidadania, diante do desenvolvimento das biociências. Procura resgatar a dignidade
da pessoa humana e a qualidade de vida.

3. Cfr Anexo 4: Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS.


4. Principais trechos do script do vídeo em que Van Rensselaer Potter fala de sua intuição pioneira a respeito da
bioética, que foi apresentado especialmente para o IV Congresso Mundial de Bioética (Tóquio – 1998).
Capítulo 3

Políticas demográficas

Introdução
Numa abordagem sobre o tema “bioética e políticas demográficas”, faz-se necessário, antes de
tudo, falar dos direitos reprodutivos. Como sabemos, saúde e direitos reprodutivos não são ainda
direitos. E também sabemos que uma grande parcela da população desconhece seus direitos
reprodutivos. Mas como falar de bioética, ética da vida, se 70% da população não vive, mas
sobrevive? A conceituação de direitos reprodutivos é uma reivindicação dos movimentos de
mulheres que está se impondo internacionalmente, e que envolve a ética e a política de saúde.
Os direitos reprodutivos consistem no direito básico de todos os casais e indivíduos (homem e
mulher) de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e o momento de ter
filhos e de ter informações e acesso aos meios contraceptivos, e no direito de obter um melhor
padrão de saúde sexual e reprodutiva. É o direito de ter relações sexuais prazerosas. Isso inclui o
direito de todos de tomar decisões em relação à reprodução, livres de discriminação, coerção e
violência, termos esses expressos em documentos internacionais sobre direitos humanos.
Assim, com a descoberta pela ciência, a partir da década de 60, dos métodos contraceptivos,
pode-se ter a liberdade sexual e o controle reprodutivo. Separou-se um processo que nunca
aconteceu anteriormente na história: de um lado a sexualidade, de outro a reprodução. Começa a
ganhar expressão a ideologia de que a reprodução deve ser conduzida racionalmente.
É nesta realidade que surgem com força questões éticas relacionadas aos direitos reprodutivos
e às implicações da participação de governos na questão da política populacional: planejamento
familiar, contracepção e aborto.
Antes de uma reflexão mais pontual, vamos tentar visualizar a problemática das políticas
demográficas.

Políticas populacionais

Desde a Antiguidade até o fim da Idade Média o crescimento demográfico foi de 0,1%. Estima-
se que havia, no tempo do nascimento de Cristo, 250 milhões de pessoas no mundo. Em 1492,
quando Colombo descobriu a América Latina, a população girava em torno de 400 milhões. De
1960 a 1970, a humanidade alcançou o pico máximo de crescimento global: 2,69%. A população
do mundo duplica a cada 33 anos.
Estudos a respeito da demografia são recentes. Datam do século XVIII. A obrigatoriedade do
censo demográfico periódico começou nos Estados Unidos em 1790 e, em seguida, na Inglaterra
e na França, em 1901. A humanidade atingiu a casa do primeiro bilhão em 1850 e em 1930, o
segundo bilhão. Foram necessários milhares de anos para se chegar ao primeiro bilhão, e
somente 80 anos para o segundo. Tivemos três Conferências Mundiais sobre População e
Desenvolvimento: Bucareste (1974), México (1984) e Cairo (1994). A Conferência de Bucareste foi
extremamente pessimista e falou-se em bomba demográfica, mais perigosa que a bomba de
hidrogênio. Na conferência do México, constatou-se que, de um lado, existem países com
crescimento populacional preocupante (Terceiro Mundo) e, de outro, países com déficit
populacional (por exemplo, Alemanha e França).
Na Conferência do Cairo houve certo consenso internacional quanto aos seguintes pontos:

Existe um direito humano sobre planejamento da natalidade. Isso é reconhecido também


pela maioria dos representantes dos países do Sul e é um avanço em relação à primeira
Conferência de Bucareste.
Aborto e esterilização forçada não podem constituir meios de planejamento da natalidade.
É urgente superar a pobreza estrutural no mundo, e sobretudo uma mudança no
comportamento de consumo das pessoas ricas do Norte.
A posição da mulher deve ser melhorada em todos os aspectos, mas, sobretudo, no sentido
de melhor formação básica.
São urgentes a criação de planos especiais de ação que possibilitem em âmbito universal o
planejamento da natalidade.
É importante enfocar a saúde reprodutiva: segundo as palavras do Plano de Ação do
Cairo, isso significa o direito à informação e acesso a métodos seguros, baratos e
inofensivos para a regulação da fertilidade, bem como o direito a serviços adequados de
saúde que proporcionem à mulher uma gravidez e um parto seguros e ajudem os pais a
ter um filho saudável. Disso faz parte também a educação sexual dos jovens, a
conscientização dos homens e mulheres sobre seus problemas de saúde, a descoberta e o
tratamento de doenças venéreas, os cuidados matemos antes e depois do parto, a
vacinação de bebês e crianças pequenas.

Contracepção – anticoncepção

Alguns pontos norteadores de nossa reflexão

• Thomas Robert Malthus (1766-1834), economista e demógrafo inglês, descreveu uma teoria de
contenção demográfica conhecida como malthusianismo, que sobrevive ainda hoje com o nome de
neomalthusianismo. A tese é a seguinte: é impossível alcançar o bem-estar geral sem contenção
demográfica, pois o crescimento demográfico é sempre maior que a produção de bens: a
produção de bens cresce em proporção aritmética; a população, em proporção geométrica.

• Os fatos, até hoje, desmentiram os neomalthusianistas. Contra todas as suas previsões, a


humanidade, apesar de todo o seu crescimento populacional, nunca dispôs de tantos bens
materiais, inclusive alimentos, quanto hoje. Há centenas de milhões de pessoas que passam fome
e sofrem de muitas outras carências básicas, é verdade, mas a humanidade, como um todo, teria
condições de resolver satisfatoriamente o problema.

• Não podemos desconsiderar um dado essencial da tese neomalthusianista: o planeta Terra,


único habitat do ser humano, é limitado em seu espaço e seus recursos. Bem ou mal, a
humanidade conseguiu extrair da mãe terra o necessário para alimentar e melhorar o padrão de
vida de sua massa crescente.

• Hoje, há um fato e uma previsão a considerar:

a) o fato: o crescimento populacional vem caindo lenta e sistematicamente, não por força do
controle da humanidade, mas por determinação sua, com meios que descobriu e adotou para
a implementação de um programa populacional;
b) a previsão: por volta do ano 2100, a humanidade passará a ter um crescimento
populacional zero, isto é, nascimentos e mortes se equivalerão. Se a previsão for correta, a
humanidade terá condições de se administrar e os bens disponíveis com muito mais
segurança do que hoje, pois o crescimento populacional implica em demanda sempre
crescente. É claro que isso não é tudo, mas não deixa de ser um dado fundamental.

• É essencial ter presente uma condição posta pelos defensores da natalidade: os recursos
naturais e as capacidades técnicas do homem permitem encarar o futuro com confiança desde
que se saiba partilhar de forma equitativa. Está aqui um nó da questão: os países ricos, com
apenas 20% da população mundial, consomem 80% do que se produz.

• O crescimento populacional não está associado ao crescimento da fecundidade, que vem


caindo sistematicamente em todo o mundo. O crescimento populacional decorre de dois fatores:
queda da mortalidade infantil, fruto de melhores condições de vida e cuidados médicos, sobretudo
elementares como as vacinas e antibióticos, e o aumento da média de vida, fruto não só da
contenção da mortalidade infantil, mas de melhores condições de vida e cuidados médicos, só que
nesta segunda ponta devem ser mais sofisticados e dispendiosos. Podemos, pois, afirmar que o
crescimento populacional é resultado direto do progresso.

• Os países do Primeiro Mundo tem crescimento zero, mas há estabilização econômica por
causa da taxa de substituição pela migração.

O mito da crise populacional

Apesar de existirem realmente países que devem aguentar crises populacionais sérias em nível
regional ou nacional, a “bomba demográfica” mundial se revela gradativamente como um mito. Mas
esse mito continua a ser a base da ideologia que se poderia chamar de imperialismo
contraceptivo. A ideologia pode se reduzir à concepção segundo a qual uma população menos
numerosa permite realizar uma melhor economia. Organizações internacionais, que operam em
todo o mundo, parecem ser tão fortemente engajadas na consecução dessa ideologia que
anseiam fortalecê-la por meio de métodos que excedem os princípios e os valores éticos de
numerosas culturas. Tendo fracassado no esforço de reduzir de forma adequada a população em
determinadas áreas do Terceiro Mundo e no esforço de concretizar o “crescimento populacional
zero” no Primeiro Mundo, os protagonistas dessa ideologia tentam atualmente promover em escala
mundial a esterilização e o aborto contraceptivo.
Em determinados países, a população exerce forte pressão, embora, muitas vezes, seja
confundida com problemas subjacentes de injustiça econômica, de subdesenvolvimento de
recursos e de planejamento econômico fraco. A densidade populacional não é necessariamente a
causa original da fome e da pobreza. E uma população de seis bilhões de pessoas não é mais
obrigatoriamente uma população mundial excessiva, levando-se em conta realizações gerais da
produção alimentar e do potencial existente para um sucessivo desenvolvimento dos recursos e da
tecnologia.
O imperialismo contraceptivo impôs aos povos e às culturas toda forma de contracepção,
esterilização ou aborto julgado “eficaz”, sem nenhum respeito pelas tradições familiares, étnicas ou
religiosas de determinada população ou cultura. Tal desrespeito, insensível pela ética e pelos
valores morais no planejamento familiar, poderia ser superado: a) rejeitando o mito do fim do
mundo devido a uma crise populacional; b) considerando o crescimento demográfico no contexto
do desenvolvimento econômico; c) considerando os diferentes problemas, não somente da
superpopulação de determinadas áreas, mas também de subpopulação; d) enfrentando esses
diversos problemas promovendo a justiça econômica por meio do desenvolvimento e da
descentralização.
Não se pode negar a existência, especialmente no Sul de nosso planeta, de um problema
populacional que cria dificuldades ao desenvolvimento. E é bom acrescentar, imediatamente, que
no Norte esse problema se apresenta em termos diversos: aqui, o preocupante é a quebra do
índice de natalidade, com repercussões sobre o envelhecimento da população, que se torna
incapaz mesmo de se renovar biologicamente. Esse fenômeno é por si só suscetível de constituir
um obstáculo para o desenvolvimento.
Por outro lado, parece ser algo muito alarmante verificar em numerosos países a difusão de
campanhas sistemáticas contra a natalidade, por iniciativa dos próprios governos, em contraste
não só com a identidade cultural e religiosa desses mesmos países, mas também com a natureza
do verdadeiro desenvolvimento. Acontece frequentemente que tais campanhas são devidas a
pressões e financiadas por capitais provenientes do estrangeiro e mesmo, em alguns casos,
postas como condição a que se subordinam os auxílios e a assistência econômico-financeira.
Em qualquer hipótese, trata-se de absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das
pessoas interessadas, homens e mulheres, não raro submetidas a intoleráveis pressões, incluindo
as econômicas, a fim de cederem a essa nova forma de opressão.

Explosão demográfica – Retrato do Brasil

Explosão demográfica? Só para desinformados5.

Reagindo ao recente ressurgimento na mídia da preocupação com a explosão demográfica no


país, as demógrafas Elza Berqud e Suzana Cavenaghi estão preocupadas com a afirmação de
que a população brasileira teria duplicado nos últimos trinta anos — quando passou de 93.139.037
em 1970 para 169.799.170 em 2000. É ignorar que se tivesse prevalecido a taxa anual de
crescimento populacional registrada até 1970, de 2,9%, teríamos chegado a 219.570.223! O fato é
que deixaram de nascer 50 milhões de pessoas nesse período, fruto do acentuado e sistemático
declínio da taxa de fecundidade, que desacelerou o crescimento anual da população.
Estimada hoje em 2,3 filhos por mulher, a taxa de fecundidade sofreu grande redução em
relação ao patamar observado até meados dos anos 1960, de 6,2. Como média nacional, essa
taxa abriga diferenças regionais e econômicas. Do ponto de vista regional, os maiores valores
correspondem ao Norte e ao Nordeste, de 3,2 e 2,6 respectivamente, enquanto Centro-Oeste e Sul
registram 2,2 e o Sudeste 2,1. As cinco regiões apresentaram reduções na década de 90: o
Nordeste teve queda de 42%; o Norte, de 31%; o Centro-Oeste, de 23%; Sul e Sudeste, de 14%.
Entre as mulheres mais pobres a fecundidade é de 4,0 filhos, em contraste com a taxa referente
àquelas em melhores condições socioeconômicas, de 1,6. Todavia, foi justamente nas classes
menos favorecidas que a fecundidade exibiu declínio mais acentuado na última década, da ordem
de 20,5%. Entre as mulheres com renda domiciliar mensal a partir de cinco salários mínimos, ela já
se encontra abaixo do nível de reposição e o descenso é mais discreto, de apenas 6,0%.
A redução média de 23% na fecundidade entre as décadas de 80 e 90 foi determinante para
reduzir de 1,9% a 1,6% a taxa média anual de crescimento da população. Só não teve impacto
ainda maior porque, felizmente, houve redução nas taxas de mortalidade. Portanto, explosão
demográfica só para desinformados!
A queda da fecundidade em tão curto espaço de tempo decorreu do maior uso de métodos de
contracepção modernos: a pílula e a esterilização. O último dado nacional disponível, de 1996,
indicava 70% de usuárias de algum contraceptivo, índice superior ao encontrado dez anos antes.

Retrato do Brasil6: número médio de filhos chega a 5,3 quando a mãe é de família com renda
per capita de até R$ 50,00.
A taxa de fecundidade das mulheres brasileiras que vivem em famílias com rendimento per
capita inferior a R$ 50,00 é 3,8 vezes maior do que a das mulheres de famílias com rendimento
superior a R$ 1.000,00.
Segundo o IBGE, enquanto as brasileiras de maior renda têm, em média, 1,11 filhos, entre as de
menor renda essa taxa é de 5,3.
A diferença é encontrada também quando se analisa a taxa de fecundidade de acordo com os
anos de estudo. As brasileiras sem instrução ou que não completaram nem a primeira série do
ensino fundamental têm, em média, 4,12 filhos. Entre as que completaram pelo menos o ensino
médio, essa taxa cai para 1,48.
O rendimento familiar per capita, sem dúvida, atua no sentido de estabelecer grandes
diferenças. Mas é com o aumento da escolaridade feminina que são observados os maiores
declínios relativos nas taxas.
Na maioria dos países da Europa7, as taxas de natalidade preocupam: as taxas de natalidade
têm diminuído nas últimas décadas, trazendo as famílias com uma criança muito perto da norma
estatística.
Na Espanha, Suécia, Alemanha e Grécia, a taxa de fertilidade total – ou o número médio de
crianças que se espera que uma mulher venha a dar à luz, com base nos indicadores atuais, era de
1,4 ou menos no último ano, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em nenhum país da Europa Ocidental a taxa alcançou 2,1 – a marca, segundo os demógrafos,
que representa uma exata reposição da população. Em contraste, os Estados Unidos têm uma
taxa de 2,0 que os demógrafos atribuem a um grande movimento de imigração.
Embora essa tendência tenha estado evidente por vários anos, suas consequências construídas
lentamente estão agora vindo à tona, com mais e mais países da Europa Ocidental reconhecendo
e chamando a atenção para o espectro de uma força de trabalho menos competitiva, menos
benefícios aos que se aposentam e um sistema de aposentadoria que vai sofrer cortes cada vez
mais profundos.

Aspectos legais da contracepção

Poderia-se evitar muitos abortos se fossem colocadas em prática todas as disposições legais
de prevenção e contracepção.
No Brasil, o movimento de mulheres, em aliança com professionais da saúde, conseguiu, em
1983, elaborar um modelo assistencial para a saúde da mulher: PAISM – Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher8, que objetiva atender as mulheres de modo integral em todas as fases
de sua vida: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade. De fato, o atendimento à mulher
pelo sistema de saúde tem-se limitado, quase que exclusivamente, ao período gravídico-puerperal
e, mesmo assim, de forma deficiente. As repercussões biopsicossociais da gravidez não
desejada, abortamento e acesso a métodos e técnicas de controle da fertilidade têm sido
relegados a piano secundário. “Poucas mulheres têm acesso à cobertura integral oferecida pelo
PAISM. O atendimento à grande maioria se limita à verificação do peso e da pressão arterial,
consolidando a mais evidente distorção do programa – a quantidade em detrimento da qualidade.
Por exemplo, as ações de planejamento familiar estão abaixo de 10 % da necessidade da
população9.” Embora tenha sido assumido pelo governo brasileiro desde 1985, até hoje só foi
implantado precariamente.
A Constituição Federativa do Brasil (1988), no seu Art. 226, parágrafo 7, reza: “Fundado nos
princípios de dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar
é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para
o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e
privadas”. E para regular o parágrafo 7 deste artigo da Constituição, foi sancionada a Lei n. 9.263,
de 12 de janeiro de 1996 e as Portarias 144/97 e 48/99 do Ministério da Saúde que normatizam
os procedimentos, permitindo que o SUS (Sistema Único de Saúde) os realize gratuitamente, em
acesso universal. Atualmente, são estes os critérios legais para a realização da esterilização
cirúrgica pelo SUS: ter capacidade civil plena; ter no mínimo dois filhos vivos e ter mais de 25 anos
de idade, independentemente do número de filhos; manifestar por escrito a vontade de realizar a
esterilização, no mínimo 60 dias antes da realização da cirurgia; ter tido acesso a serviço
multidisciplinar de aconselhamento sobre anticoncepção e prevenção de DST/AIDS, assim como a
todos os métodos anticoncepcionais reversíveis; ter consentimento do cônjuge, no caso da
convivência conjugal. O serviço que realizar o procedimento deve oferecer todas as opções e
métodos anticoncepcionais reversíveis e seguros, bem como serviço multidisciplinar de
aconselhamento sobre anticoncepção, visando desencorajar a esterilização precoce informando
sobre os riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais e dificuldade de reversão. A lei impõe,
ainda, restrições quanto à realização da laqueadura durante o parto cesáreo, buscando coibir o
abuso de partos cirúrgicos realizados exclusivamente com a finalidade de proceder à esterilização.
Alguns impactos da lei: falta de insumos adequados, ou seja, a oferta de todos os métodos
contraceptivos reversíveis existentes dificilmente será incluída pela CEME na sua lista de
distribuição, pelo rápido avanço tecnológico dessa área e pela falta de oferta de todos os meios e
métodos no mercado brasileiro; clientela eleitoral; arraigada cultura de resistência à esterilização
entre médicos e outros profissionais da saúde; idade mínima estabelecida pela lei: risco de
arrependimento por se tratar de método irreversível.
Como questão social, temos um quadro grave no país: o uso massivo da esterilização feminina e
da pílula anticoncepcional; a falta de oferta de métodos reversíveis e de práticas educativas nos
serviços públicos de saúde; uma profunda desinformação da população sobre todos os meios de
se evitar a gravidez; e tudo isso dentro de um contexto de acentuada pobreza e relações de gênero
desiguais.
No entanto, dada a forma perversa como tem sido tratada a anticoncepção no país, faz-se
necessário um sério trabalho educativo com profissionais da saúde e com a população, a fim de
superar a cultura do método único e irreversível e reinstaurar uma demanda diversificada e
democratizada.
Segundo o CELSAM (Centra Latino-Americano Saúde da Mulher), associação sem fins
lucrativos que reúne outras importantes ONGs e médicos ligados à saúde feminina na América
Latina, que tem por objetivo contribuir para elevar a qualidade de vida e de saúde da mulher, com
sede em Belo Horizonte (MG), na América Latina, 116 milhões de mulheres geram, em média, três
filhos cada uma. Quase metade destas mulheres em idade fértil não usa métodos contraceptivos
de planejamento familiar. Dezessete por cento dos bebês nascem de mães com menos de 19
anos e um quarto das gestações não é planejada.
O resultado é que muitas mulheres simplesmente não têm acesso aos métodos que lhes
permitiriam exercerem seus direitos de cidadãs, usufruindo de uma qualidade de vida melhor e
gerando filhos em condições mais equilibradas.

Aconselhamento genético

Aconselhamento genético é um conjunto de procedimentos que visa informar, orientar uma


pessoa e/ou a família sobre questões relativas ao surgimento e/ou risco de ocorrência de doenças
genéticas. O aconselhamento genético pode ser: prospectivo (o que a pessoa ou sua
descendência poderá ter) e retrospectivo (o que a ancestralidade ou familiares de alguém tem ou
teve). Durante o processo de aconselhamento genético tenta-se: descobrir o que é (diagnóstico);
descobrir qual a causa (etiologia); compreender a evolução da doença; se tem cura ou não; e
definição de um tratamento curativo ou paliativo (prognóstico); avaliar o risco de repetição ou
aparecimento em outros membros da família atual e/ou da prole futura.
O “mercado” de aconselhamento genético criado pelos programas populacionais (testagem
genética de uma população) pode acarretar inúmeras questões de ordem ética, jurídica e social,
dependendo da forma como a informação será utilizada. Um exemplo: a quem se destina a
informação e a orientação no aconselhamento genético? À pessoa portadora da doença ou a
quem legalmente é responsável? Mãe e pai? Família biológica? A sociedade – mas quem na
sociedade necessitaria dessa informação e quando? Serviços de saúde? O governo? Quem tem o
direito de saber da intimidade genética de alguém? E por quê? E em quais situações?
Os dilemas éticos no aconselhamento genético são inúmeros. Diante do desencadeamento de
tantos conflitos, os serviços de aconselhamento devem possibilitar à pessoa e à família a mais
profunda compreensão da doença, o prognóstico e as opções de acompanhamento médico e de
terapêuticas disponíveis e as que melhor se adequem ao caso e que garantam a melhor qualidade
e dignidade possível de vida; transmitir com absoluta transparência, facilidade de entendimento os
riscos de transmissão e do reaparecimento; ensinar a melhor forma de lidar com a doença;
fornecer orientação não terrorista quanto às questões de procriação; explicar por que a pessoa
está realizando um teste genético, explicar-lhe que nada a obriga a submeter-se ao teste e que só
será realizado após o seu livre consentimento (consentimento informado).

Aborto

Aborto: conceituações

Etimologicamente, aborto, do latim abortus, significa privação de nascimento porque vem de ab,
que quer dizer privação, e ortus, nascimento. No corpo do ensaio, usarei a palavra aborto como
sinônimo de abortamento: “alguns autores preferem o termo abortamento para designar a
interrupção dolosa da gravidez, antes do sexto mês, com o argumento de que aborto seria o
produto desta intervenção, e porque a palavra abortamento guardaria maior significação técnica.
Entretanto, o termo, na forma contraída, é o mais comumente utilizado, seja popularmente, seja na
linguagem erudita e ambos possuem o mesmo sentido. Ademais, aborto, pela sua sinonímia
revela, por si só, o caráter de abortar” (Parreira, 1993:47-64).
Uma conceituação clássica do aborto, representando um consenso para a maioria das correntes
filosóficas, médicas e religiosas seria “a expulsão ou extração de toda ou qualquer parte da
placenta ou das membranas, sem um feto identificável, ou de um recém-nascido vivo ou morto, que
pese menos de quinhentos gramas. Na ausência do conhecimento do peso, uma estimativa da
duração da gestação de menos de vinte semanas completas, contando desde o primeiro dia do
último período menstrual normal, pode ser utilizada” (Abel, 1980:99). Ou do ponto de vista médico,
“aborto é a interrupção da gravidez até a 20a ou 22a semana, ou quando o feto mede até 16,5 cm.
Este conceito foi formulado baseado na viabilidade fetal extrauterina e é mundialmente aceito pela
literatura médica” (Rosas, 1996:15). “O estágio de viabilidade extrauterina foi definido
arbitrariamente por diferentes organismos nacionais e internacionais, e está sujeito a modificações
em função do aperfeiçoamento da medicina neonatal e da melhora da taxa de sobrevivência dos
bebês de baixo peso” (Hottois, Parizeau, 1993:31).
“Na visão estritamente médica, obstétrica de aborto, a palavra é reservada para a interrupção de
gestação até 24 semanas de gravidez, ou seja, até a ocasião em que o feto passa a se tornar
capaz de vida, independentemente do útero materno; daí em diante o fato passaria a se chamar
parto prematuro. Não há diferença substancial, salvo a exigência que a lei faz de que, para se
denominar algo como aborto, é indispensável que tenha ocorrido a morte do nascituro, a vida do
qual é o valor a ser juridicamente preservado (Almeida, 1998).
Distingue-se aborto espontâneo, aquele que acontece por causas naturais. Segundo uma
pesquisa realizada na França10, 75% das concepções terminam em aborto: 60% antes de reparar
o atraso da menstruação e 15% quando a gravidez é conhecida; em dois terços dos abortos
espontâneos precoces (antes da sétima semana de amenorreia), o aborto é uma espécie de
eliminação dos produtos da concepção apresentando uma anomalia cromossômica.
O aborto provocado ou induzido é aquele que acontece pela intervenção especial do homem. As
causas ou motivos costumam chamar-se de indicações (Anjos, 1976:19-20; Barchifontaine,
1993:19): indicação médica ou terapêutica, quando o aborto é provocado para salvaguardar a vida
ou a saúde da mãe; indicação eugênica, quando o aborto é provocado para se livrar de um
nascituro com taras, anomalias, defeitos ou doença fetal previstos, eventualmente já constatados
em exame pré-natal; indicação socioeconômica, quando o aborto é provocado por falta de
condições para criar uma família, moradia sem espaço, insegurança de emprego, baixo salário,
doenças na família, responsabilidade com os idosos, sensibilidade à defesa da qualidade de vida
acima de sua quantidade numérica, falta de proteção à mãe solteira e aos filhos excepcionais;
indicação psicossocial, quando o aborto é provocado por medo da discriminação da mãe solteira,
complicação de filho sem pai, desonra da família, incapacidade de tomar conta do filho, medo da
gravidez e de seus riscos, falta de vontade de ter filhos ou este filho, para não perder seu emprego,
seu sustento ou forma física, gravidez indesejada causada pelo fracasso dos meios
anticoncepcionais, as exigências da educação dos filhos; indicação ética, quando o aborto é
provocado por motivos chamados morais, como a gravidez resultante de estupro (violência carnal),
incesto, adultério, relação fora do matrimônio; indicação cultural, quando o aborto é provocado pela
mudança do papel da mulher e da família na sociedade, sociedade de consumo e sua propaganda
pelos bens materiais, culturais e conforto físico; indicação política, quando o aborto é provocado
por causa da política de salários, de seguridade social, do serviço de maternidade que reprimem a
taxa de natalidade, medo de uma explosão demográfica e de superpopulação, mentalidade
antivida. Do ponto de vista médico, encontramos também outra terminologia e tipos de aborto
(Diniz, Almeida, 1998:126-7): interrupção eugênica da gestação (IEG), interrupção em função de
valores racistas, sexistas e étnicos; interrupção terapêutica da gestação (ITG), interrupção em
nome da saúde da mulher; interrupção seletiva da gestação (ISG), interrupção em função de
patologias incompatíveis com a vida extrauterina; interrupção voluntária da gestação (IVG),
interrupção em nome da autonomia reprodutiva da mulher ou do casal, gravidez indesejada por
estupro ou relação consensual: há limites gestacionais à prática.
Do ponto de vista legal, “aborto é a interrupção da gravidez com intuito de morte do concepto,
não fazendo alusão à idade gestacional” (Rosas, 1996:15). Mas a grande maioria das legislações
mundiais apontam 12 semanas: “o melhor estudo sobre o assunto é o realizado por Rahman, que
vem fazendo um acompanhamento da legislação mundial desde 1985, ocasião da publicação do
primeiro relatório comparativo, sendo que o último levantamento foi publicado em junho de 1998,
com dados relativos até janeiro do mesmo ano” (Diniz, Almeida, 1998:129).
No sentido moral, “aborto é a interrupção de uma gravidez em um modo fatal para o nascituro.
Em sede moral, exige-se que a interrupção da gravidez seja um ato humano e, portanto, de
qualquer forma voluntária” (Anjos, 1976:29-30). Fatal é o elemento que distingue o aborto da
aceleração do parto, na qual a interrupção do processo normal da gravidez permite ainda a vida do
nascituro. “O aborto moral baseia-se na realidade do aborto médico, mas acrescenta a
peculiaridade da instância ética: o peso da valoração da vida. Assim, aborto moral é o
comportamento abortivo negativo enquanto intervém a responsabilidade numa ação que traz um
contravalor neste âmbito da gestação” (Vidal, 1981:217).
No âmbito da bioética, “o aborto espontâneo refere-se à interrupção espontânea da gravidez
antes da viabilidade (em torno de 25 ou 26 semanas de gestação). As interrupções de uma
gravidez após essa época são chamadas de partos precoces, ou no caso de parto de um feto que
já morreu, partos de natimortos. A terminologia comumente utilizada no caso de um aborto induzido
é diferente. Nesse caso, a viabilidade não é um ponto chave. Qualquer interrupção de gravidez por
meio de técnicas médicas ou cirúrgicas denomina-se aborto, independente do estágio” (Reich,
1995:1).
“O aborto precoce é aquele realizado no primeiro trimestre ou até 12 semanas de gestação,
depois é chamado de aborto tardio. Nos Estados Unidos os índices de complicações gerais dos
abortos legais realizados no primeiro trimestre são menores do que 0,5 mortes por 100.000
abortos realizados. As complicações médicas associadas ao aborto induzido têm uma relação
direta com o tempo de gestação e com o tipo de procedimento utilizado para interrompê-la. A
maior parte dos abortos (mais de 90%) nos Estados Unidos é realizada dentro das primeiras 12
semanas de gestação, período em que essa prática é mais segura. Complicações mais graves
podem ocorrer quando o aborto é realizado após esse período” (Reich, 1995:2). A respeito do
aborto precoce, há um consenso geral de que “embora o feto possa exibir reflexos primitivos antes
da vigésima semana de gestação, não há evidência que o cérebro e o sistema neurológico
estejam suficientemente desenvolvidos, nem sequer na vigésima quarta semana, para que o feto
sinta dor; as técnicas de aborto do segundo trimestre que poderiam parecer mais humanas ou
apresentar mais respeito pelo feto, em geral implicam em maior risco para a mulher; os médicos
comprometidos nos procedimentos abortivos têm a intenção de oferecer os procedimentos mais
seguros para a mulher e consideram que o benefício para a mulher substitui a meta de minimizar o
dano ao feto” (Reich, 1995:5).

Aspecto legal no Brasil

O Código Penal Brasileiro – Decreto-lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940, Artigos 124 a 128,
reza:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento:
Art.124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção
de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro:
Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão de 3 (três) a 10
(dez) anos.
Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão de 1 (um) a 4
(quatro) anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior se a gestante não é maior de 14 (quatorze)
anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave
ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço se, em
consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão
corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevem a
morte.
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
1. Aborto necessário: se não há outro meio de salvar a vida da gestante.
2. Aborto no caso de gravidez resultante de estupro: se a gravidez resulta de estupro e o aborto
é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Quando começa a pessoa humana?

Numa análise fenomenológica do aborto, o questionamento a respeito do começo da vida


humana é diftcil de ser decidido com bases irrefutáveis e menos ainda quando comega a pessoa,
se esta distinção entre a vida humana e a vida pessoal tiver alguma relevância no caso. Não temos
dados convincentes para decidir quando comega a pessoa humana, por isso o Magistério da
Igreja Católica considera como mais seguro que a pessoa exista desde a fecundação, quando
aparece um genótipo distinto do pai e da mãe. Qual o momento em que o embrião deve ser
considerado como pessoa humana? Até hoje, nem a ciência nem a teologia têm uma resposta
exata.

Posição do Magistério da Igreja Católica


A posição do Magistério da Igreja Católica não foi sempre unânime. Assim, Santo Agostinho
(séc. IV) dizia que só a partir de 40 dias após a fecundação podia-se falar em pessoa (unidade
corpo-espírito ou hominização) para o feto masculino Para o feto feminino exigia-se o dobro, 80
dias para falar em pessoa.
Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) reafirmou que não se pode reconhecer como humano o
embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a “alma racional”. Essa
posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (encerrado em 1563).
Mesmo assim, sempre foi contestada por outros teólogos que, baseados na autoridade de
Tertuliano (séc. Ill) e de Santo Alberto Magno (séc. XIII), defendiam a hominização imediata, ou seja,
desde a fecundação já tratar de um ser humano em processo. Santo Afonso de Ligório (morreu em
1787) admitia o aborto terapêutico, caso a vida da mãe corresse risco imediato. Contudo, essa
discussão sobre o feto “inanimado” (que ainda não teria alma) encerrou-se oficialmente com a
divulgação da “Apostolica Sedia” em 1869, na qual o papa Pio IX condenou toda e qualquer
interrupção voluntária da gravidez. Neste século, introduziu-se a discussão sobre aborto direto e
indireto. Roma passou a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de câncer no
útero. Matar diretamente o feto é sempre proibido. A extirpação de um câncer do útero ou a
preservação da vida da mãe exigem, por vezes, medidas que não matam diretamente o embrião,
mas tem por consequência “indireta” (porque não querida por si) a expulsão do mesmo, não viável.

A posição do Magistério da Igreja Católica baseia-se:

a) Na visão da lei natural (ordem estabelecida por Deus, realidade estática), a moral tem
princípios absolutos e indiscutíveis, iluminados pelo que podemos chamar de “teologia
escatológica”, pois aponta para uma situação ideal do homem e da mulher, da sociedade e da
ação histórica. A estrutura física da fecundidade humana é, portanto, algo sagrado, intocável e
inalterável (encarnação dos desígnios de Deus).
Hoje há um novo modo de entender a lei natural, pelo qual se pode dizer que a nossa
participação racional é o próprio plano de Deus. Deste ponto de vista, a base para o juízo moral
não reside em atos predeterminados como intrinsecamente maus, mas na resposta da pessoa ao
chamado de Deus nas realidades concretas da existência. Para muitas pessoas, a lei natural,
como embasamento da posição do Magistério da Igreja Católica, deve evoluir. De fato, a missão
do homem é humanizar o criado, romper com o fatalismo e estender o domínio humano sobre as
forças cegas da natureza. Em matéria de fecundidade, no mesmo tempo que o homem domina a
tecnologia, ele deve estender também seu domínio sobre a perspectiva, sobre o dever coletivo,
prever mais seguramente e confiar menos no acaso que a reação religiosa interpreta como
providencial.

b) A escola genética (Callahan, 1970:378) define como humano todo ser que tem um código
genético. Desde que o genótipo esteja presente no momento da fertilização, isso significa que o
indivíduo que está se desenvolvendo é humano a partir da concepção. Crescimento e
desenvolvimento são simplesmente a explicitação do que está inscrito no código genético desse
indivíduo particular.

Outro tipo de argumentação


Pesquisando os dados das ciências biológicas, os especialistas distinguem vida humana e
pessoa humana. Zigoto é vida humana, mas é pessoa humana, sujeito de direitos? A reflexão
necessita do concurso de várias ciências: biologia, genética, fisiologia, embriologia, sociologia,
filosofia, ética, teologia, direito, antropologia.
Além da escola genética, Callahan (Callahan, 1970:378) identifica mais duas escolas de opinião
na questão de definir o status do feto: a escola desenvolvimentista defende que, enquanto a
fertilização estabelece as bases genéticas de um ser humano, certo grau de desenvolvimento é
necessário para que um indivíduo seja considerado um ser humano. Os desenvolvimentistas
reconhecem uma necessidade de interação entre o genótipo e o meio ambiente. Esta visão
sugere que o potencial genético de alguém não estará totalmente atualizado enquanto não interagir
na sua maneira única com o meio ambiente; portanto, abre uma compreensão maior de toda gama
de atributos humanos. Assim, a vida começaria a partir da nidação, ou a partir de formação do
córtex cerebral, ou a partir da constituição física do nascituro, ou a partir de sua saída do útero. A
segunda escola é a das consequências sociais, que muda a questão de “quando a vida começa”
para “quando a vida humana começa”. De acordo com esse grupo, o nascituro deve ser definido
na base das consequências sociais daquela decisão. Se definir certos tipos de nascituros como
humanos cria problemas, então talvez a classe de nascituros não deve ser definida como humana.
Ao estabelecer normas sociais, essa escola começa com a questão: que tipo de pessoas
queremos? A partir desta perspectiva, o importante não é a dimensão biológica ou
desenvolvimentista, mas os desejos da sociedade em termos de normas sociais e morais.
Aprofundando a reflexão, podemos reconhecer que a vida é um continuum: “Muitos supõem que
a resposta à questão, quando a vida começa a importar moralmente, é a mesma resposta à
questão de quando começa a vida humana. O momento da concepção aparenta ser a resposta
óbvia para a pergunta. Sobre outras possíveis respostas, tem a vantagem decisiva de que é um
evento identificável e um ponto a partir do qual o óvulo inicia o processo permanente que leva à
maturidade. Se o óvulo fertilizado é potencialmente uma pessoa humana, devemos atribuir-lhe os
mesmos direitos de que são possuidores os seres humanos completos. Esse argumento,
embasado na potencialidade tem vários tipos de dificuldades: sim, todos nós morremos
inexoravelmente um dia, mas isto é (supomos) uma razão inadequada para nos considerar agora
como se já estivéssemos todos mortos; ou o aborto é errado porque uma pessoa que teria existido
no futuro não vai existir se um aborto for realizado: eu não estaria aqui se minha mãe, quando
grávida de mim, optasse pelo aborto, mas também não estaria aqui se ela tivesse tomado um
anticoncepcional. Mas é claro que o óvulo já está vivo muito antes da concepção e de fato sofre um
processo de desenvolvimento e maturação prévios, sem os quais a concepção é impossível. O
espermatozoide também já está vivo e se contorcendo. Por outro lado, já é possível dispensar o
espermatozoide na produção de um novo ser, retirando o núcleo haploide do óvulo, e colocando
em seu lugar o núcleo diploide de uma célula somática, processo conhecido como clonagem. A
vida é um processo contínuo que prossegue ininterruptamente de geração para geração”.(…).
“Tudo o que pode ser dito com segurança sobre o óvulo fertilizado é que se trata de tecido humano
vivo. A vida não começa na fertilização, pois o óvulo e o espermatozoide são também vivos. A vida
é um continuum e, portanto, o que nós precisamos não é um conceito de quando a vida se inicia,
mas quando a vida começa a ter significado moral” (Almeida, 1988:9-11).
Existem cinco argumentos que impedem termos a certeza científica de que desde a fecundação
há pessoa humana (Múnera, 1993:10-13):

1. A grande maioria dos zigotos não se implanta no útero; será possível que a natureza
desperdiça tantas pessoas ao eliminar tantos zigotos?
2. Antes da nidação, não existe individualização, e sem individualização não se pode falar de
pessoa.
3. Para que haja pessoa se requer informações genéticas que não estão presentes no zigoto,
também informações operativas exógenas e a informação que possui o zigoto é operativa
para gerar os processos ulteriores do desenvolvimento.
4. Entre o zigoto e a pessoa futura não existe relação física contínua como da potência ao ato,
porque o zigoto sozinho é potência em termos de informação genética; se não entram em
jogo muitos elementos exógenos, a potência que é o zigoto nunca passará a ser ato;
somente com seis a oito semanas o embrião terá as características de formação física e
fisiológica.
5. O processo do zigoto para a pessoa futura não é um contínuo físico senão um
desenvolvimento em continuidade, porque no período inicial embrionário (seis a oito
semanas) sucedem importantíssimas e decisivas mudanças qualitativas.

A neurofisioembriologia pesquisa a atividade elétrica do cérebro do feto: existe uma discussão


sobre quando são estabelecidas as conexões com o córtex, o que ocorre, certamente, antes da
trigésima semana, porém, com certeza também, após a vigésima semana. Vários cientistas, entre
eles, Bergstrom e Bergstrom (Bergstrom, 1963:117-129), registraram eletroencefalogramas em
embriões de 8,5 a 22,5 semanas e encontraram atividades elétricas a partir dos 63 dias em tronco
cerebral, a partir dos 84 dias no hipocampo e jamais conseguiram leitura em córtex cerebral. O
caderno ciência e tecnologia do Estado de São Paulo11 relata que especialistas em medicina fetal
concordam que o embrião não sente dor antes da décima segunda semana. Especialistas em
neurofisioembriologia (Linnas, 1990; Dworkin, 1994, entre outros) também provam a
impossibilidade de um nascituro de 12 semanas sentir dor.
“A pessoa é um indivíduo racional: individualidade significa indivisível, o que acontece a partir do
décimo quarto ou décimo quinto dia após a fertilização; a racionalidade individualiza a
característica não-natural da pessoa, isto é, aquela que permite transcender à natureza físico-
biológica. O pedido é uma condição mínima, capaz de nos assegurar que, aquém dessa condição,
não existe senão a mera naturalidade do mundo orgânico. Essa característica nos é oferecida pela
capacidade de exercer a racionalidade, condição que podemos presumir estar satisfeita somente
quando já se tenha formado o córtex cerebral de forma suficientemente completa, pois é ele que
constitui o substrato biologicamente necessário do qual emerge a novidade do nível cultural-
racional. Considerando os melhores conhecimentos hoje disponíveis, pode-se dizer que isso
acontece, sem dúvida, após o terceiro mês da gravidez. Com base nestes elementos,
cientificamente, até três meses, não se pode afirmar que o embrião deva ser considerado como
pessoa humana” (Mori, 1997:43-67).

Gravidez indesejada ou inoportuna

Em muitos casos, em consequência de um domínio insuficiente das leis da fecundação, de uma


falta de informações, de uma falha dos métodos contraceptivos, uma gravidez chega de maneira
imprevista. Proibir todo aborto é forçar a mulher e o casal a aceitar um processo fisiológico de
criação que foi desencadeado involuntariamente. Não será perverter a ordem humana dar a um
processo biológico uma força normativa que elimina, em muitos casos, toda possibilidade de
escolha responsável e livre? Atualmente, com o progresso científico e tecnológico, o processo de
fecundação representa uma reviravolta fundamental na compreensão dos fenômenos biológicos.
Ver o processo de fecundação exclusivamente como dinamismo biológico parece limitar e
contrariar o instinto vital primário. Portanto, a contracepção, que é um processo de fecundação
“humanizado”, procura instaurar valores de respeito e amor na sua geração e o vir a ser da pessoa
humana. Mas, na falha da contracepção ou por motivos econômicos, sociais, psicológicos e de
saúde, proibir toda interrupção de gravidez, é obrigar muitas mulheres a gerarem, mesmo que elas
vivam essa gravidez como gravemente contraindicada, ou mais, como comprometendo
importantes valores de vida. E o que representa para a criança a primeira etapa de vida feita de
constrangimento, de não consentimento, de oposição? O que permite pensar que forçando a
mulher a levar a termo uma gravidez, a aceitação e o acolhimento do filho, ausentes no início, irão
nela desabrochar?
No fundo, a proibição de abortar tira da mulher a responsabilidade por sua maternidade; coloca
a criança, desde a primeira etapa de sua vida, numa situação marcada por certas distorções
íntimas: uma mãe que a alimenta e ao mesmo tempo a rejeita. Não é contradizer gravemente a
dimensão especificamente humana da fecundação? A relação interpessoal é um elemento
constitutivo da vida humana. A criança nasce de um homem e de uma mulher, é colocada numa
trava vincular e nela se desenvolve. Se ela recebe o seu próprio ser dos outros, o reconhecimento
é revelador, senão instaurador do caráter humano no ser em gestação. Quando o casal reconhece
e aceita o ser em gestação, atribui e afirma a humanidade desse ser. Todo julgamento sobre o
aborto deve ser modificado a partir do reconhecimento materno e paterno à criança.
A mulher que decide prosseguir ou interromper uma gravidez, não o faz ou não deveria fazê-lo, a
não ser em nome da possibilidade ou impossibilidade de suscitar humanamente a vida, isto é, a
decisão de ter um filho deverá ser devidamente pesada em todos os seus riscos e
responsabilidades.
A possibilidade da contracepção e do aborto imprime uma autonomia crescente da sexualidade
humana. O encontro entre as pessoas e o prazer que possam usufruir juntas, distancia-se cada vez
mais de uma subordinação indireta ou direta à fecundação.
A qualidade humana da relação situa-se, acima de qualquer regulamentação, onde o
interpessoal se reveste de um caráter único, que nenhuma referência pode totalmente
circunscrever. Daí, o embaraço das morais unicamente normativas e das instâncias de poder.
A aventura do encontro é sempre marcada pelo imponderável, ela se abre ao mistério da
alteridade, dá um novo sentido, afinado, único, aos imperativos do respeito e do amor. Numa
época em que aparece, com uma acuidade trágica, a terrível pobreza dos relacionamentos entre
as pessoas, quer se trate de laços íntimos, de transações de negócios ou de realidades coletivas,
não é indiferente ser confrontado à sexualidade e aí descobrir os apelos e as exigências,
especificamente mais humanas.
A geração de um ser humano comporta, no interior de uma realidade psicobiológica, uma
dimensão espiritual: é uma relação marcada pelo desejo e pelo acolhimento que deveria unir,
desde a fase uterina, o ser em crescimento a seus genitores.
A mulher e o casal são responsáveis, diante da sociedade, pelo nascimento da criança, cujo
corpo social se constitui e se reproduz. Mas trata-se de ajudar a mulher, não de tirar a sua
responsabilidade. Objetar-se-á que haveriam abusos, soluções nas quais certos valores de vida
não serão bastante promovidos, e mulheres assumirão mal sua responsabilidade. Nenhuma
instância fica fora de passos falsos, de erros e de julgamentos. Mas quem pode dizer ou pretender
que as objeções da mulher sejam inexatas?

Aborto legal e malformação do feto

Especialistas em bioética defendem a ampliação do aborto legal para os casos de malformação


do feto ou doença hereditária que impossibilite a criança de ter uma vida normal. Dizem que a
decisão de ter ou não uma criança nessas condições deve ser do casal.
Pela lei atual, o aborto é permitido em dois casos: quando a gravidez resulta de estupro ou para
salvar a vida da gestante.
Uma nova proposta, que está no anteprojeto do novo Código Penal, ampliou as hipóteses de
aborto legal para os casos em que o feto apresentar “graves e irreversíveis anomalias que o
tornem inviável”, e para preservar a saúde da gestante.
Mas há uma restrição quando se coloca “graves e irreversíveis anomalias que tornem a vida
inviável”. E como ficam as crianças condenadas a uma vida vegetativa? A decisão deveria ser dos
pais e não uma imposição do Estado. Só o casal sabe se terá condições financeiras ou
emocionais para ter um filho com doença grave.

Conclusão
A respeito da anticoncepção ou planejamento familiar, é importante observar que o
conhecimento científico do mecanismo reprodutor do ser humano é relativamente recente. Da
década de 20 à década de 30, dois médicos, Ogino e Knaus, descobriram o período fértil e infértil
da mulher (tabelinha). Somente na década de 60 temos a descoberta dos métodos químicos,
notadamente a pílula, por Pincus e Rook. Antes dessas descobertas, para evitar filhos de forma
segura, só tínhamos a abstinência sexual ou a castração. A grande mudança que se operou foi de,
no campo da esterilização, manter os órgãos reprodutores intactos (vasectomia ou ligação
tubária), sem o risco de reproduzir. Com a anticoncepção, pode-se ter a liberdade sexual e o
controle reprodutivo. Separou-se um processo que nunca aconteceu anteriormente na história. De
um lado a sexualidade, de outro a reprodução. Começa a ganhar expressão a perspectiva cultural
de que a reprodução deve ser conduzida racionalmente. É na perspectiva dessa realidade que
surgem com força questões éticas relacionadas a controle da natalidade, direitos reprodutivos,
paternidade responsável e as implicações da participação de governos na questão da política
populacional.
Na realidade em que vivemos, em condições socioeconômicas ruins, com uma taxa elevada de
analfabetismo, falta de educação sexual adequada, torna-se difícil para a maioria da população
usar os métodos naturais (tabelinha, Billings). Por isso, consideramos como “mal menor”, ou
melhor dizendo, “bem maior”, o uso dos métodos artificiais para chegar a um planejamento familiar
e à paternidade responsável, a partir de uma informação honesta sobre todos os meios de
anticoncepção para que o casal possa escolher livre e conscientemente, junto com o médico, a
melhor maneira de planejar sua família. É melhor usar um método artificial do que abortar.
Numa reflexão sobre o aborto, é bom lembrar que “a tolerância é um conceito essencial para o
exercício da democracia, designa o fato de se abster de intervir nas ações ou opiniões de outras
pessoas, mesmo quando essas opiniões ou ações nos parecem desagradáveis, ou moralmente
repreensíveis. Portanto, tolerar é em primeiro lugar estar de acordo sobre o fato de que as
diferenças vão permanecer, sobre a persistência de desacordos fundamentais, permitindo a
justaposição harmoniosa de grupos que não tenham a mesma visão do mundo. O fiador dessa
harmonia é o Estado republicano, universalista, baseado na existência da obediência política da
pessoa pública e na liberdade interna de cada um no foro privado” (Ardaillon, 1998:4-5). Quanto à
tolerância diante da diversidade moral: “a diversidade não é atraente e pode ofender porque
possuir crenças particulares contra outras pessoas, é o mesmo que atrair o julgamento. Uma visão
canônica de conteúdo pretensamente universal tem dentes. Assim, tanto o judaísmo ortodoxo como
o catolicismo condenam o aborto por conveniência, assim como a eutanásia. Essas religiões
consideram tais atividades erradas não apenas por seus fiéis, mas para todas as pessoas”
(Engelhardt, 1998:44).
“O aborto é uma das questões paradigmáticas da bioética porque nele reside a essência trágica
dos dilemas morais que, por sua vez, são nó conflitivo da bioética. Para certos dilemas morais não
existem soluções imediatas. Os dilemas-limite, os Teyku (noção talmúdica que significa problema
não solucionado no raciocínio moral, indica os limites da razão para a resolução de dilemas
morais), dos quais, talvez, o aborto componha um de seus melhores exemplos, são situações que
desafiam os estranhos (inimigos) morais à coexistência pacífica” (Engelhardt, 1998-167).
“A bioética substitui a proibição pela liberdade incorporando a ética da responsabilidade. Neste
sentido, a bioética passa a ser entendida como a resultante moral do conjunto de decisões e
medidas técnico-científicas, políticas e sanitárias, individuais ou coletivas, públicas ou privadas –
que proporcionam aumento de cidadania e diminuição da exclusão social” (Garrafa, 1999).
Assim, em relação à bioética, o problema é integrar na justa medida e para cada caso concreto,
uma ética da tolerância, uma ética da responsabilidade e uma ética de solidariedade, “sendo a
tolerância uma conquista no caminho em direção à solidariedade, o laço que une pessoas como
corresponsáveis pelo bem umas das outras” (Zoboli, 1999:20-21).

5. Observatório de Imprensa – Matérias – 26/02/2003. http://observatorio.ig.br/artigos.


6. Folha de São Paulo, C7, 07 de março de 2003.
7. Estado de São Paulo, A8, 27 de dezembro de 2002.
8. ASSISTÊNCIA INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da saúde,
1984.
9. Comissão de Cidadania e Reprodução/Centro Brasileiro de Pesquisa-Cebrap. In: MEDICINA. Brasília: Conselho
Federal de Medicina, Ano X, n.86, out/97. p.18.
10. TECHNIQUES HOSPITALIÈRES. Paris, 45e année, mars 1990, n. 534. P. 8.
11. ESTADO DE SÃO PAULO. 25/01/97. Caderno Ciência e tecnologia – A15.
Capítulo 4

Técnicas de reprodução assistida

Introdução

Ao conjunto de técnicas que auxiliam o processo de reprodução humana foi dado o nome de
técnicas de reprodução assistida (TRA), as quais podem ser divididas em métodos de baixa e de
alta complexidade. Entre as técnicas de baixa complexidade podemos incluir o coito programado
e a inseminação intrauterina (IIU), que apresentam a vantagem de menores custos, além de não
precisarem ser realizadas em centros de reprodução assistida. Entre as técnicas de alta
complexidade incluímos a fertilização in vitro (FIV) convencional e a injeção intracitoplasmática de
espermatozoide (ICSI) – em inglês, intracytoplasmatic sperm injection.
As técnicas de reprodução assistida despertam questões muito controvertidas, mexendo com
preconceitos e afetando diretamente as mulheres. Além de colocar em cheque algumas certezas
com relação a gênero e a família, como a necessidade de um casal para gerar um filho, ou mesmo
de um relacionamento prévio entre um homem e uma mulher, a tecnologia da reprodução assistida
mexe diretamente com a saúde das mulheres, despertando preocupações éticas e políticas.
Atualmente, essa é uma área de grande expansão na pesquisa científica, e a maior parte das
experiências vem sendo feita em mulheres, a título de “tratamento”. Além de ser uma área de
pesquisa, os tratamentos contra infertilidade mobilizam grandes interesses da indústria de
medicamentos e jogam para último plano as preocupações com os aspectos éticos da questão.
O Brasil carece de uma legislação específica sobre a reprodução medicamente assistida. O
código de ética médica (1988), através de quatro artigos, não especifica ou limita nada, desde que
os participantes estejam cientes do procedimento. Em novembro de 1992, o Conselho Federal de
Medicina baixou a Resolução n°- 1.358/92, sobre a utilização da reprodução assistida.

Técnicas de reprodução assistida


Inseminação artificial (Mulheres com muco hostil, doença inflamatória pélvica e homens com
pouca concentração de espermatozoides no sêmen): técnica na qual o sêmen ou espermatozoides
são capacitados em meio de cultura e introduzidos por meio de sonda no trato genital feminino. Os
tipos:
a) do parceiro (homóloga): quando é utilizado o sêmen ou espermatozoides do parceiro;
b) de doador (heteróloga): implica a utilização do sêmen ou espermatozoides de um doador;
c) intrauterina: espermatozoides processados são introduzidos na cavidade uterina;
d) cervical: sêmen ou espermatozoides processados são introduzidos no canal cervical;
e) vaginal: sêmen é colocado na vagina.
Fivete – Fertilização In Vitro e Transferência de Embriões (Mulheres com problemas nas
trompas, anovulação crônica, endometriose ou com ovários policísticos): técnica de reprodução
assistida em que a fertilização do óvulo pelo espermatozoide ocorre em laboratório. A ovulação é
geralmente estimulada, os óvulos são colhidos por meio de punção guiada por ultrassonografia
endovaginal e colocados juntamente com os espermatozoides processados em ambiente com 5%
de CO2 e temperatura de 37oC. Após 24 a 28 horas, os pré-embriões formados contendo quatro a
oito células são transferidos para a cavidade uterina.

GIFT – Gamete Intrafallopian Transfer (Transferência Intratubária de Gametas). Neste caso, os


espermatozoides processados e os óvulos colhidos anteriormente por aspiração vaginal são
transferidos diretamente para as trompas por laparoscopia. A fertilização ocorre in vivo.

ICSI – Intracytoplasmic Sperm Injection (Injeção Intracitoplasmática do Espermatozoide). Neste


tipo de técnica é feita a injeção de um único espermatozoide no citoplasma do óvulo por meio de
um aparelho especialmente desenvolvido contendo microagulhas para injeção (micromanipulador).
Segue os mesmos passos da fertilização in vitro.

Transferência de citoplasma (mulheres com mais de 40 anos ou que produzem óvulos fracos).
De 10 a 20% do óvulo de uma doadora jovem é transferido para o óvulo da paciente para dar
origem a embriões de melhor qualidade e com maior poder de implantação.

Fecundação sem espermatozoides (homens sem espermatozoide no sêmen e/ou nos


testículos, mas que tem espermátides – 12,5% dos casos de infertilidade). As espermátides
(células precursoras dos espermatozoides) são resgatadas dos testículos, maturadas em
laboratório e inseridas no óvulo pela ICSI.

Indicação
A indicação é a infertilidade que atinge 20% da população: a percentagem é igual para ambos
os sexos. Mas cuidado: a causa mais comum de infertilidade masculina é a varicocele, uma
dilatação anormal das veias na área genital, que atinge aproximadamente 15% da população
masculina, chegando a 30% entre os homens inférteis. Depois da cirurgia da varicocele, a taxa de
gravidez fica em 40% mais alta que os 25% de bebê de proveta. Outro exemplo é a reversão de
vasectomia, cuja taxa de gravidez sobe para 70% depois da cirurgia. Por isso o diagnóstico é
importante, já que é possível tratar as causas sem precisar da fertilização assistida. Assim, se opta
pela reprodução assistida nos casos mais complicados: contagem baixa de espermatozoides, no
homem; obstrução das duas trompas e problemas graves de ovulação, na mulher.
O sucesso de gravidez com as técnicas de reprodução assistida diminui conforme a idade
aumenta. Em mulheres de até 30 anos, a taxa fica em torno de 45%; aos 35 anos diminui para
35%; de 35 a 40 anos, a chance é de 25 a 30%; e acima de 40 anos, de 18 a 20%.
Antes de optar pela reprodução assistida, o casal precisa ser bem analisado, pois deve ser a
última opção.

Alguns riscos
Segundo Corrêa12, todas aquelas etapas da FIV comportam riscos, como os efeitos
indesejáveis de doses elevadas de hormônios, o desconforto ligado ao monitoramento laboratorial
de todo o processo, as repetidas intervenções médico-cirúrgicas etc. A transferência de vários
embriões é responsável pelos principais efeitos iatrogênicos para a saúde de mulheres e bebês,
ligados às gestações múltiplas (baixo peso ao nascer, problemas respiratórios de recém-nascidos
e outros danos associados às gestações de mais de um feto). Esse procedimento “padrão” na
medicina reprodutiva acabou por ser caracterizado como uma má prática médica, passando a ser
mais fortemente criticado. Apesar do surgimento da crítica, mesmo no campo médico, e de
propostas para limitar o número de embriões gerados e transferidos na FIV, nem todas as equipes
seguem, efetivamente, essa tendência.
As possibilidades e propostas de intervenção sobre o embrião são mais do que uma interface
entre clínica e pesquisa na área de reprodução. É muito importante deixar assinalado que a
pesquisa com embriões depende do “tratamento” proposto através da FIV. Assim, esses
desdobramentos “mais tecnológicos” não podem ser desvinculados da discussão das implicações
de ordem social, ética, psicológica e mesmo legal ligadas à medicalização do desejo de filhos.
Segundo Oliveira13, as novas técnicas de reprodução conceptivas propiciam a materialização
de desejos sexistas, racistas, eugênicos e potencializam a exploração de classe, basta que se
possa pagar por eles. O recorte de classe é o sustentáculo de tais desejos, cujas decorrências
são: a exploração de classe (mulheres/casais ricos custeiam o “tratamento” das pobres e assim se
livram de parte da super-hormonização e obtêm óvulos); o tráfico e a comercialização de
embriões, sêmen, óvulos (há vários sites que comercializam óvulos); a industrialização e a venda
de óvulos obtidos do tecido ovárico de mulheres ainda vivas, de cadáveres de mulheres e de fetos
abortados. À medida que as tecnologias conceptivas se expandem, sua concepção industrial
também cresce: os óvulos tornam-se matéria-prima e são tirados do ovário de uma mulher para
serem implantados no útero de outra. Essas mulheres serão consideradas procriadoras, como
animais de procriação, vendidas como tais.

Alguns questionamentos
Algumas questões precisam ser resolvidas do ponto de vista legal quanto à possibilidade de se
realizar a fecundação extracorpórea:

• Quanto à experimentação com embriões ou fetos humanos, é preciso decidir se são pessoas
humanas ou simples produtos da concepção, visto que sua conceituação implica também em
princípios éticos.

• A experimentação e preservação de gametas humanos devem ser submetidas a determinados


critérios como: ocorrida a fecundação, por quanto tempo podem-se realizar pesquisas em
embriões humanos? Deve-se permitir o congelamento de embriões, óvulos ou esperma por um
longo período? Se um embrião permanece congelado, por muitos anos, o que acontece com o
conceito de geração?

• Deve o embrião ou feto possuir um estatuto jurídico ou ele se apoia no direito da mãe? Por se
tratar de duas pessoas jurídicas (embrião e mãe), existe o perigo de intervenções médicas e do
Estado no período da gravidez em detrimento da mãe? Se a mãe não quiser se submeter a uma
intervenção terapêutica, gerando um conflito entre o seu direito e o direito do feto, a quem os
tribunais protegem?

• Qual o estatuto do embrião (congelado) fora do útero? A quem eles pertencem? Se somente os
pais têm direitos sobre eles, o que fazer em caso de morte do casal? Qual será doravante sua
relação social? No caso de divórcio, podem ser objeto de uma divisão? Qual o direito da clínica de
dá-los a um terceiro? Possuem direitos de herança? No caso de morte do pai, a mãe pode
implantá-los? Possuem os mesmos direitos que outros irmãos nascidos quando o pai estava vivo?
É crime vender embrião? Que itens podem constar num contrato de doação de embriões? Quais
são as garantias de que a clínica não utilizará os embriões sem conhecimento dos pais? Quem
controlará bancos de gametas e embriões?

• Podem pré-embriões legalmente humanos serem submetidos à perda planejada? Na redução


embrionária, eliminam-se alguns embriões. O que diferencia esta destruição dos embriões de um
aborto?

• Há necessidade de se estabelecer critérios para recrutamento e seleção de doadores de


sêmen/embriões? Como garantir que a possibilidade de escolha do sexo (no caso de embrião), ou
de semelhança com o genótipo dos pais não estabeleça critérios discriminatórios e racistas?

• Deve-se limitar o número de doações para cada doador(a)?

• O doador(a) deve, por escrito, abandonar todos os direitos e deveres de descendência? A


autorização de dois doadores de gametas é necessária para reimplantar o embrião num terceiro?

• A pessoa gerada por reprodução medicamente assistida pode ter o direito de conhecer seus
pais genéticos?

• Qual o conceito de paternidade e maternidade quanto à família?

• Quanto a critérios socioeconômicos: como avaliar um casal quanto à normalidade psíquica?


Casais homossexuais ou indivíduos solteiros poderiam se candidatar? É necessário definir o
estado conjugal das pessoas e as condições socioeconômicas?

• Uma pessoa concebida com sêmen heterólogo é legítima ou ilegítima?

Legislação

Código de Ética Medica

“É vedado ao médico:
Art. 67 – Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre os métodos
contraceptivos ou conceptivos, devendo o médico sempre esclarecer sobre a indicação, a
segurança, a reversibilidade e o risco de cada método.
Art. 68 – Praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo e
devidamente esclarecidos sobre o procedimento.
Art. 122 — Participar de qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos, políticos,
raciais ou eugênicos.
Art. 127 – Realizar pesquisa médica em ser humano sem submeter o protocolo à aprovação e
acompanhamento de comissão isenta de qualquer dependência em relação ao pesquisador.”
Normas Éticas para utilização das Técnicas de Reprodução
Assistida (Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de
Medicina)14

Partindo da consideração da legitimidade do anseio de se superar a infertilidade, a Resolução


reafirma princípios bioéticos como a inviolabilidade e a não comercialização do corpo humano,
exige a gratuidade do dom e que a prática da doação de material reprodutivo seja anônima,
devendo ser ainda respeitado o segredo médico. Indica a necessidade de observação do
chamado “consentimento informado” para participação de mulheres em programas de FIY
Estabelece regras para diminuir a possibilidade de incesto inadvertido, através de um controle do
número de receptores por doação e um limite em termos espaciais. Delimita em 14 dias o tempo
máximo admissível para desenvolvimento de um embrião fora do corpo feminino. Nesses pontos, a
resolução segue linhas gerais estabelecidas por um documento que se tornou histórico na bioética
da reprodução assistida que é o Warnock Report (1984). Em outros pontos, entretanto, afasta-se
da linha de recomendações ali encontradas. Assim, como no Brasil o abortamento é crime, não se
admite a destruição de embriões supranumerários, nem a redução embrionária no caso de
gravidez múltipla. Todo embrião resultante da reprodução assistida tem de vir a ser em algum
momento gestado pela própria pessoa ou por doação, mesmo que após seu congelamento.
Diferencia-se mais ainda quando admite a “doação temporária do útero”, e também quando inclui
pessoas solteiras como clientes potenciais.

A Lei de Biotecnologia 8.974, de 1995 15

Regulamenta, entre outras coisas, as experiências com embriões humanos, células reprodutivas,
material genético, indicando o princípio de indisponibilidade de material biológico e da pessoa.
Em seu artigo 13, a lei define como crime a produção, armazenamento ou manipulação de
embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível.

A Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS 16

São Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo seres humanos. A


Resolução estabeleceu nove áreas temáticas especiais nas quais a CONEP (Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa) acompanha diretamente os protocolos de pesquisa; dentre elas, é indicada
a “reprodução humana” tout court. São listadas ainda outras áreas relacionadas a ela, destacando-
se “genética humana”, “procedimentos ainda não consagrados na literatura”, “projetos que
envolvam biossegurança”.

Reflexões bioéticas

Infertilidade

A prevenção da infertilidade é, sem dúvida, preferível às tentativas de sua superação. Entre os


fatores ambientais causadores da infertilidade estão a poluição, o fumo, o estresse, os
contraceptivos, a prática de abortos clandestinos, as doenças sexualmente transmissíveis e os
problemas emocionais. A título de exemplo, no Brasil, há uma situação de infertilidade decorrente
do uso distorcido da esterilização feminina: mulheres esterilizadas, com ou sem prévio
consentimento, e desejosas de uma nova gravidez, têm composto cerca de 15% a 25% da
clientela de alguns ambulatórios de infertilidade.
Urge desenvolver programas de prevenção, de educação para a saúde e para a sexualidade,
bem como serviços de aconselhamento da população. As opções sociais, como adoção,
iniciativas assistenciais, atitude de assumir voluntariamente a condição de infértil, poderão
constituir para muitos casais a melhor forma de superar a ausência de filhos. Interessa que, com
serviços bem organizados de aconselhamento, os casais inférteis sejam conhecedores e
conscientes das possibilidades destas opções, às quais deve ser dado o relevo que merecem.

Ponto de vista social

A realidade socioeconômica do país interpela, já que, com a técnica de bebê de proveta, por
exemplo, o casal tem chance de 20% a 25% de engravidar, e cada tentativa custa de R$ 8.000,00
a R$ 10.000,00. E, muitas vezes, é necessário fazer mais de uma tentativa. Devemos pensar num
justo equilíbrio entre direitos individuais e coletivos face à existência de milhares de crianças
totalmente carentes de ambiente e cuidados familiares. Há também o problema da equação justa
da alocação de verbas para a saúde e o estabelecimento de prioridades.

Reprodução assistida e amor conjugal

O conjunto do ato sexual e das intervenções da reprodução medicamente assistida pode


considerar-se como integrado numa ação significativa única de amor do casal.
Consequentemente, é o amor, tendencialmente procriador, de um casal infértil e o ato técnico que
estabelecem a unidade entre a sua vida conjugal e as técnicas da reprodução assistida a que ele
se submete. Poder-se-ia dizer até que as próprias dificuldades físicas e psicológicas dessas
técnicas constituem uma prova de amor recíproco do casal e prova de amor para com o nascituro.
Mas, pelo fato de a dissociação entre ato sexual e procriação não corresponder à situação ideal,
as técnicas de reprodução medicamente assistida são consideradas o último recurso.

Embriões congelados

Embriões congelados deixados em clínicas de reprodução por casais que não querem mais ter
filhos deflagram debate ético e religioso.
Depois de 20 anos de uso das técnicas de inseminação artificial no Brasil, o bebê de proveta
faz tanto sucesso que provoca um efeito inesperado: a explosão populacional nos laboratórios de
reprodução assistida. As melhores clínicas acumulam milhares de embriões congelados. Os
embriões são o excedente de tratamentos de fertilização artificial e estão estocados em
geladeiras de nitrogênio líquido à espera de uma decisão dos pais sobre nova inseminação. O
problema é que a maioria não pretende ter mais filhos, mas também rejeita doar os embriões para
outros casais. Resultado: os médicos são obrigados a manter as geladeiras ligadas porque a
destruição dos embriões é proibida pelo Conselho Federal de Medicina.
Na técnica do FIVET (fecundação in vitro e transferência do embrião), a mesma necessita da
constituição de embriões excedentes. Existe, em nível mundial, uma irredutível controvérsia sobre a
liceidade do destino dos embriões excedentes, baseada na diversidade de opiniões acerca do
estatuto do embrião: tem ele, ou não, a mesma dignidade da pessoa humana plenamente
desenvolvida? Merece, ou não, a mesma proteção e respeito? Face a essa controvérsia, há
apenas a solução de garantir que todos os embriões excedentes sejam, mais tarde, transferidos
para a mulher.
A polêmica sobre a destruição dos embriões congelados vai além da discussão sobre ética
médica. Médicos e especialistas em bioética dividem o debate com padres e rabinos. A Igreja
Católica e a Congregação Israelita Paulista querem que o embrião seja tratado como um ser
humano e defendem a norma do Conselho Federal de Medicina: jogar fora embriões congelados é
assassinato, eles são seres humanos plenos. A Igreja Católica também desaprova o uso de
técnicas de inseminação artificial: essas técnicas criam o problema dos embriões congelados; o
melhor é evitar que eles sejam produzidos.
A favor da destruição dos embriões: o médico que não descarta embriões que sobram é um
aprendiz de feiticeiro, pois faz o feitiço e depois não sabe desfazer. Embrião congelado não é
vida; a vida comega no momento que ele está no útero, não antes disso.
O problema surge quando o casal se separa e não consegue chegar a um acordo. Ou em casos
em que o pai morre e o sêmen fica.

Redução de embriões

No Brasil, onde o aborto é proibido, a redução de embriões é ilegal, como diz explicitamente a
resolução do CFM. Essa resolução é de uma enorme prudência e defesa da saúde e da vida da
mulher. Ela limita em até quatro embriões para a implantação para cada ciclo de reprodução
assistida. Atualmente, a gravidez múltipla é considerada, pelos profissionais mais conscientes da
área, como uma má prática da FIV, visto que já é possível evitar o implante múltiplo de embriões e
viabilizar a gravidez que resulte em bebês. No Brasil, considerando-se a resolução do CFM e a
ilegalidade do aborto, a redução de embriões é ilegal, mas prática corrente. No dia em que
legalizarmos o aborto, a redução de embriões será automaticamente legalizada.

Consciência dos direitos das mulheres

Os movimentos feministas que se tem pronunciado sobre a reprodução medicamente assistida


exprimem um forte receio da medicalização excessiva das funções reprodutivas de que a mulher é
sujeito inalienável e fazem-se eco de numerosos testemunhos do sofrimento das mulheres que se
submeteram à reprodução medicamente assistida. Além do mais, “não podemos perder de vista
que o comércio da infertilidade é um negócio fabuloso, movimenta milhões de dólares e só
respeita a ética do mercado”.

Clínicas de infertilidade

Há pouco ou nenhum controle das clínicas de infertilidade apesar da resolução do Conselho


Federal de Medicina.

Perspectiva cristã católica

Oficialmente, sabemos que a moral católica se opõe à fecundação in vitro ou em laboratório.


Mas a reflexão em busca da verdade e do bem continua, não é questão fechada. Notamos que a
fecundação in vitro recebe uma crescente aceitação nos meios científicos, que a submetem,
todavia, a condições e restrições éticas, ora na perspectiva clínica, ora na científica. Essas
condições foram expressas pelo Comitê Federal de Ética norte-americano e receberam
aprovação de moralistas católicos como Patrik Vespieren, Oliver de Dinechin e outros
participantes do 1-Congresso Internacional de Transferência de Embriões (Annecy, set. 1982).
Deixando de lado a validade das experimentações puramente científicas, três condições básicas
são exigidas para que o processo aconteça:

1. A inseminação artificial deve ser intraconjugal.


2. Que ela tenha o objetivo de contornar um caso de esterilidade.
3. Que ela tenha o objetivo de almejar uma criança que o casal quer assumir e criar.

Como se percebe, as condições para a fecundação in vitro e para a inseminação artificial são
substancialmente as mesmas para vários moralistas católicos. Eles frisam que o dom da vida
deve se situar no contexto de um relacionamento personalizado no amor . Na caminhada da
conquista da verdade, das descobertas, observamos a conflitividade dos princípios ético-
religiosos já estabelecidos num contexto sócio-histórico-cultural e técnico determinado, com as
novas realidades e descobertas técnicas no campo da medicina. São questões de fronteira, que
de um lado (ético-religioso) procura-se sempre salvaguardar a dignidade do ser humano, o
respeito à vida, e de outro (científico), procura-se sempre descobrir algo novo do ser humano,
quando por vezes técnicas agressivas brincam com a vida. E a situação de conflito, na qual
encontramos o posicionamento ético-religioso, a moral católica deve ser repensada à luz das
conquistas das ciências humanas.
Uma pergunta instigante: em tempos em que mulheres estéreis já se podem reproduzir; em que
a clonagem de seres humanos é perspectiva próxima; em que os pais escolhem as características
de seus bebês e até em que pessoas do mesmo sexo já podem partilhar um processo de
maternidade (por exemplo, retirada de óvulo de mulher, fecundação em banco de sêmen,
implantação do embrião no útero de outra), como ficarão o erotismo, a sexualidade e a ligação
afetiva entre os protagonistas (pais, mães e filhos) da utilização dessas mudanças?

Conclusão
Embasando-me no relatório-parecer sobre reprodução medicamente assistida do Conselho
Português de Ética para as Ciências da vida, concordo que “O princípio da não-instrumentalização
da pessoa humana aplicado à utilização das técnicas de reprodução medicamente assistida leva-
nos a concluir que essas técnicas:

1. Não devem ser eticamente rejeitadas por motivo da dissociação que de fato estabelecem
entre ato sexual e procriação.
2. Não constituem um método alternativo à reprodução natural e só devem ser utilizadas quando
não for possível, por outros meios, o tratamento da infertilidade.
3. Devem aplicar-se exclusivamente a casais heterossexuais com garantias de estabilidade
(legalmente constituídos ou não) e de condições adequadas para o completo e harmônico
desenvolvimento do nascituro, ficando excluídas as situações em que ele viesse a ter só mãe
ou só pai, quer por inseminação post mortem, quer por procriação de uma mulher isolada
(sem ligação, nem de direito nem de fato, a um homem) ou de um homem isolado (por
recurso a mãe de substituição).
4. Devem excluir o recurso a mães de substituição, quer estas contribuam ou não com seus
ovócitos.
5. Devem igualmente excluir outras formas de instrumentalização do processo reprodutivo,
como a criação de embriões só para fins de investigação, a criação de seres humanos
geneticamente idênticos por clonagem ou outros meios, a transferência de embriões
humanos para o útero em outras espécies, e a fusão interespecífica de gametas ou
embriões.”

Sem dúvida, a bioética não deve e nem pode ignorar o processo legislativo em curso nessa
área. Mas um contexto complexo como este, que implica sexualidade, reprodução, família,
casamento, futuras gerações e o próprio conceito de vida, coloca desafios permanentes, e que se
renovam, para o debate sobre ética, ciência e política, bem como para a reflexão bioética de um
modo geral, que deve se manter aberta e permeável às vozes ativas no campo da reprodução
humana.
Cabe-nos, portanto, aceitar o desenvolvimento tecnológico por um lado e enfrentá-lo ao mesmo
tempo, deixando de lado respostas imediatas e simplistas de aprovação ou reprovação, mas
buscando a articulação de uma permanente discussão sobre os desejos e poderes nas relações
de gênero focalizando as estruturas jurídicas, antropológicas e psicológicas da maternidade e da
paternidade.

12. CORRÊA, Marilena Cordeiro Dias Villela. Ética e reprodução assistida: a medicalização do desejo de filhos. In:
BIOÉTICA. Brasília: Conselho Federal de Medicina, vol.9, n. 2, 2001, p. 71-82.
13. OLIVEIRA, Fátima. As novas tecnologias reprodutivas conceptivas a serviço da materialização de desejos
sexistas, racistas e eugênicos? In: BIOÉTICA. Brasília: Conselho Federal de Medicina, vol.9, n. 2, 2001, p. 99-112.
14. Cfr. Anexo 4.
15. Cfr. Anexo 3.
16. Cfr. Anexo 4.
Capítulo 5

Genoma humano

Introdução

Uma auscultação prospectiva inquietante se apresenta a respeito do legado que estamos


deixando para as gerações vindouras. Começa-se a falar em justiça transgeracional! Como será o
mundo no fim do século XXI? Que desafios enfrentaremos? Que condições de vida e saúde?
Estas são apenas algumas das interrogações emergentes.
Olhando retrospectivamente o século XX, vemos que foi marcado por três grandes projetos: O
primeiro foi o Projeto Manhattan, que descobriu e utilizou a energia nuclear, bem como produziu a
bomba atômica que destruiu Hiroshima e Nagasaki (1945), pondo fim à 2ª Guerra Mundial. Foi
descoberto o “coração” da matéria, o átomo, e dele se extraiu a energia.
O segundo grande projeto foi o Projeto Apollo, que jogou o ser humano no coração do cosmos.
A data-símbolo ficou sendo o primeiro passo do homem na Lua (1969). O ser humano começou a
navegar interplanetariamente. Descobrimo-nos como um grãozinho de areia na imensidão do
universo. Buscou-se e buscamos vida em outros planetas!
O terceiro e mais recente é o Projeto Genoma Humano, que começou no início de 1990, e o dia
26 de junho de 2000 ficou marcado como o dia do mapeamento ou sequenciamento do código
genético humano. Isso leva o ser humano ao mais profundo de si mesmo em termos de
conhecimento de sua herança biológica, numa verdadeira caça aos genes.
É sobre este último megaprojeto que gostaríamos de tecer alguns comentários. Ele tem suas
raízes na chamada “descoberta do século XX”, o DNA (Ácido Desoxirribonucleico) descoberto por
Watson e Crick, em 1953, inaugurando a terceira revolução biológica. Tudo indica que o fio
condutor da economia do século XXI será a engenharia genética, tendo como locomotiva o Projeto
Genoma Humano.
A engenharia genética consta de um conjunto de técnicas que permite identificar, isolar e
multiplicar genes dos mais diversos organismos.
Ela faz parte do nosso dia-a-dia e os seus avanços interferem em nossas vidas. Seja para
discutir a questão de soberania de alguns países – os direitos de patentear genes que
teoricamente pertencem a toda a humanidade, o progresso do diagnóstico e das terapias de
doenças, a interferência no genoma humano; a possibilidade de clonar até mesmo seres humanos,
a ética de todas essas condutas, o direito à propriedade intelectual sobre conhecimentos
alcançados; a produção de seres exóticos, de espécies animais e vegetais melhoradas, de
medicamentos, vacinas, alimentos – o certo é que já não podemos ignorá-la. Daí a necessidade
de estarmos familiarizados com a sua terminologia para que possamos entender o que dizem os
noticiários e ter sobre esse assunto a postura crítica que se espera do cidadão participante que
está no século XXI.
Para além da medicina preventiva e curativa, falamos de medicina preditiva: começamos a tratar
de predisposições para determinadas doenças e, consequentemente, chegamos à intervenção
antes da manifestação dos sintomas. O incrível é que podemos prever doenças genéticas, mas
não curá-las. Saberemos que ficaremos doentes sem sê-lo de fato. Você já imaginou uma questão
ética e psicológica mais dramática?
As revoluções da biologia
Através da história, podemos identificar três revoluções da biologia.

1a Revolução: Teoria celular, elaborada nos anos de 1838 e 1839. A célula foi descoberta em
1665 pelo físico inglês Robert Hooke (1635-1703). Quase dois séculos depois, o botânico alemão
Mattias-Jakob Schleiden (1804-1881) e o zoólogo prussiano Theodore Schwann (1810-1882)
elaboraram a Teoria Celular, respectivamente em 1838 e 1839, que diz: todos os seres vivos são
constituídos por células. A célula é uma unidade morfológica e funcional dos seres vivos e elas se
agrupam para formar os tecidos, estes se reúnem para formar os órgãos.
2a Revolução: Teoria da Evolução de Darwin/Wallace, elaborada em 1858. A Teoria da
Evolução é uma das maiores revoluções intelectuais de todos os tempos. Reuniu evidências de
que os seres vivos evoluem e, no aspecto cultural, separou definitivamente a ciência da religião. O
evolucionismo é uma ideia antiga. Muitos filósofos, desde os gregos e naturalistas, formularam
teorias tentando explicá-lo, todavia uma teoria científica comprovada em fatos só foi elaborada em
1858, isoladamente, pelos naturalistas ingleses Charles Robert Darwin (1809-1882) e Alfred
Russel Wallace (1823-1913), que reuniram dados de que os seres vivos sofrem modificações e já
nascem com as “variações” que possibilitam sobreviver em um determinado meio. A descendência
com estas variações é a evolução.
3a Revolução: Descoberta da estrutura da molécula de DNA – Ácido Desoxirribonucleico (a
dupla hélice), em 1953, pelo biólogo norte-americano James Dewey Watson, pelos físicos ingleses
Francis Harry Compton Crick e Maurice Huge Frederick Wilkins e pela cristalógrafa inglesa
Rosalind Franklin (1920-1958). Watson e Crick conseguiram, através das fotografias obtidas por
Rosalind – que trabalhava no Laboratório dirigido por Maurice Wilkins, King’s College, Londres,
Inglaterra – propor o modelo da estrutura do DNA, uma hélice dupla, que “guarda” e transmite o
código de produção de proteínas (código genético). A engenharia genética – ramo da biologia
molecular que utiliza biotecnologias específicas para a recombinação genéticas – é uma
decorrência direta da descoberta da dupla hélice, portanto é considerada parte da 3a Revolução
da Biologia.

Um breve histórico da genética


1866: Ao cultivar ervilhas, o botânico e monge austríaco Gregor Mendel percebe que uma
geração de plantas poderia passar certas características às seguintes. Com isso se estabeleceu
as leis da hereditariedade.
1910: Ao estudar as moscas da fruta, as drosófilas, o americano Thomas Morgan demonstrou
que os cromossomos contêm os genes, unidades básicas da herança genética.
1953: O americano James Watson e o inglês Francis Crick enxergaram pela primeira vez a
estrutura do DNA como uma escada espiralada.
1961: Descobriu-se que o funcionamento do código genético é idêntico em todos os seres vivos,
do vírus ao homem, passando por bactérias, plantas e animais. Em todos eles, o DNA usa o
mesmo mecanismo para instruir as células a produzir proteínas.
1977: Pesquisadores decodificaram o código genético do primeiro ser vivo, um vírus.
1978: Alterações genéticas em bactérias as transformaram nas primeiras fábricas biológicas de
insulina.
1984: Surgiu a técnica que permite identificar pessoas pelo DNA.
1989: Foi lançado o Projeto Genoma Humano, o ambicioso projeto de mapear a sequência
genética do DNA humano.
1997: Nasceu a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado produzido a partir de uma célula
comum de um animal adulto.
1998: James Thomson e John Gearhart notaram que as células-tronco, retiradas de embriões
com poucos dias de vida, transformam-se em vários tipos de células do corpo.
26/6/2000: Apresentação do primeiro esboço do Genoma Humano. Uma junta científica mundial
e a empresa privada americana Celera concluíram o rascunho do genoma humano, uma coleção
de material genético humano, estimado em 30 mil genes.
2002: Em 26 de dezembro, a bioquímica francesa, Brigitte Boisselier, da seita dos realianos,
anunciou o nascimento do primeiro bebê clonado.
2003: Em 14 de fevereiro, Dolly morreu de envelhecimento precoce. Empalhada, a ovelha está
exposta no museu real de Edimburgo.

Célula
O mundo vivo, microrganismos, plantas, animais e o ser humano são constituídos de células.
O núcleo da célula contém os cromossomos: 23 pares no ser humano.
Os cromossomos são constituídos do DNA (Ácido DesoxirriboNucleico), molécula que guarda
todas as informações codificadas na forma de genes. O DNA é compactado dentro do núcleo
celular em 23 pares de cromossomos.
O DNA é constituído de quatro bases ou “letras”: adenina (A), citosina (C), guanina (G), timina
(T). O genoma humano é formado por 3,5 bilhões de pares de bases. Sequências de milhares de
letras formam “palavras”: os genes (mais ou menos 50 mil).
Estima-se que as células produzem um milhão de proteínas diferentes. São elas que fazem
funcionar nosso corpo.
O fato de conhecermos o código de um gene não significa que sabemos qual proteína ele
produz e como ela interage com outras substâncias para fazer o corpo funcionar. Apenas uma
ínfima parte do genoma (três por cento) é formada por genes, sequências de DNA que sintetizam
proteínas. O restante é uma sopa de letrinhas que se acredita não fazer sentido. O próprio gene é
inócuo, exceto por sua capacidade de produzir e liberar proteínas. Um simples gene pode conter o
código de uma dezena de diferentes proteínas e ser responsável por muitas funções. Para realizar
suas tarefas, essas substâncias podem variar em quantidade, operar em diferentes combinações
ou passar por modificações. Estima-se que em nosso organismo sejam codificadas um milhão de
proteínas. O que é preciso fazer agora é ligar essas substâncias aos genes que as produzem,
localizá-los corretamente no genoma e descobrir como é o processo de codificação. É isso que
permitirá corrigir os casos de mau funcionamento genético e evitar que as doenças apareçam.

Glossário para entender o genoma


Genética: Ciência que trata da reprodução, herança, variação e o conjunto de fenômenos e
problemas relativos à descendência.
Cromossomo: Material hereditário cuja principal função é conservar, transmitir e expressar a
informação genética que contém. A espécie humana tem 46 cromossomos (23 pares).
Gene: Unidade física e funcional do material hereditário que determina uma característica do
indivíduo e é transmitida de geração em geração.
DNA: Sigla em inglês de ácido desoxirribonucleico. É um complexo filamento de substâncias
químicas que, ordenadas de forma especial em cada pessoa, diferenciam um indivíduo do outro,
como uma “marca registrada” genética que condiciona desde a cor dos olhos até a ocorrência de
uma moléstia.
Genoma: Material genético contido nos cromossomos de um organismo.
Projeto Genoma Humano: programa que visa mapear e sequenciar os genes humanos.
Genoma humano: Conjunto de genes de um organismo, o patrimônio genético armazenado no
conjunto de seu DNA ou de seus cromossomos. Contém informações sobre as principais
características hereditárias, alterações e doenças que o ser humano pode sofrer em sua vida.
Conhecer e localizar os genes possibilita intervir sobre aqueles responsáveis pelas doenças.
Sequenciar: Determinar a ordem exata em que estão dispostas as bases químicas ou
nucleotídeos (as quatro letras) do DNA. O homem possui cerca de 3,5 bilhões de pares de bases.

O projeto genoma não deve ser confundido com:


Clonagem: Não é necessário esmiuçar as entranhas do DNA para se produzir novas Dollies.
Basta colocar o núcleo de uma célula adulta num óvulo esvaziado de seu conteúdo genético. O
processo resulta num embrião que é implantado na mãe adotiva.
Teste de paternidade: Nos testes de DNA são analisadas, em média, 13 regiões específicas
dos cromossomos do pai, da mãe e do filho. São genes conhecidos há quase duas décadas.
Produtos transgênicos: Os pesquisadores lidam com genes vegetais bem conhecidos e
alteram características isoladas, de modo a obter produtos resistentes a pragas ou com maior teor
de vitamina.
Drogas recombinantes: Centenas de remédios já foram fabricados com a ajuda de bactérias
modificadas geneticamente em laboratórios. Não foi preciso desvendar o genoma humano para
sintetizá-las.
Reprodução medicamente assistida: Os bebês de provetas e as mais ousadas formas de
inseminação artificial foram feitos antes que o Projeto Genoma Humano começasse suas
atividades.

“Nós temos o livro. Agora precisamos aprender a lê-lo”


(James Watson, cuja descoberta da estrutura do DNA,
em 1953, marca o início da genética moderna.)

Se o genoma fosse um livro…

O genoma é o conjunto de instruções necessárias para formar um ser humane Essas


informações estão no DNA, uma longa molécula em formato de dupla hélice que carrega os genes
compostos por quatro elementos básicos: adenina (A), timina (T), citosina (C) e guanina (G).

… Os componentes do DNA seriam as letras

O código da vida é formado pela combinação de A, T, C e G. Eles funcionam como letras


arrumadas numa longa receita que determina desde a cor dos cabelos até a predisposição para
certas doenças.
… Os genes seriam as palavras

As letras A, C, T e G formam os genes, estruturas com funções específicas. Estima-se que sejam
cerca de 50 mil genes distribuídos ao longo do DNA.

… Os cromossomos seriam os capítulos

Os genes estão agrupados em conjuntos maiores, os cromossomos. Cada célula humana


contém 23 pares de cromossomos.

… O DNA seria o texto

Cada cromossomo carrega um trecho de fita de DNA. Junto, no núcleo da célula, reúnem todas
as informações genéticas de uma pessoa.

… O homem seria uma coleção de 100 trilhões de livros

O corpo humano é constituído de 100 trilhões de células, todas elas contêm uma cópia completa
de DNA.

As promessas da descoberta
A conquista científica do mapeamento genético deve demorar até 50 anos para ser totalmente
compreendida. Até lá, os cientistas ainda precisam identificar cerca de 90% de genes, separar
pedaços inúteis do DNA e encontrar maneiras eficientes de controlar as mutações que ocorrem
dentro das células. Vejamos os próximos passos:
Hoje, alguns tipos de câncer e doenças hereditárias já podem ser diagnosticados com testes
genéticos. Vários genes foram identificados com base em dados do Projeto Genoma Humano. No
entanto, esses testes beneficiam poucas pessoas.
De 6 meses a 1 ano: Os cientistas esperam separar os genes do lixo genético, que estima em
cerca de 97% do DNA. Esse é um passo decisivo para localizar com exatidão e entender o
funcionamento de cada gene.
Em 5 anos: Estima-se que o genoma esteja realmente pronto, com a identificação de 100% dos
genes. Leis de alguns países, como os Estados Unidos, protegerão os cidadãos de discriminação
genética. Serão criados bancos de dados genéticos; com eles, será possível saber se
determinado paciente sofrerá ou não efeitos colaterais ao tomar um medicamento.
Em 10 anos: Testes genéticos estarão disponíveis para o diagnóstico antecipado e preciso de
mais de 25 doenças, como o câncer, diabetes e enfarte. A terapia genética, hoje ainda restrita e
ineficaz, começará a ter seus primeiros sucessos nas doenças cardíacas, hemofilia e alguns
tumores. O diagnóstico precoce e a consequente mudança de hábitos de vida permitirão diminuir o
risco de surgimento de doenças genéticas.
Em 20 anos: Já estarão disponíveis os diagnósticos e tratamentos genéticos para doenças
mentais. Os geneticistas aprenderão como realizar a terapia genética em genes específicos de
embriões sem afetar o restante do DNA do futuro bebê. Os médicos poderão receitar remédios
personalizados depois de consultar o DNA do paciente.
Em 30 anos: Doenças hereditárias serão eliminadas com a correção de genes defeituosos. Os
cientistas conhecerão os mecanismos genéticos envolvidos no processo de envelhecimento. A
análise completa do genoma de uma pessoa será um exame comum e custará menos de
U$1.000,00. Os testes laboratoriais, como os de sangue, serão substituídos por análises
computadorizadas de células, mesmo nas doenças mais comuns.
Em 50 anos: A terapia genética estará disponível para a maioria das doenças. Com os avanços
da genética, a expectativa média de vida das pessoas poderá chegar aos 90 anos.

Medicina preditiva
A sequência completa do genoma humano – a lista, em ordem, de todas as bases químicas
contendo as informações necessárias para formar um ser humano – é uma conquista científica de
primeira grandeza. Erros nessas instruções biológicas causam a maioria das doenças humanas
ou contribuem para elas. O conhecimento da raiz biológica dos seres humanos e de outras
espécies irá transformar a medicina, permitir o desenvolvimento de novos remédios, expandir o
número de doenças tratáveis e facilitar os diagnósticos.
O nosso código genético é agora um livro aberto à leitura de todos os interessados. Isso cria
uma expectativa de que as doenças com causas ligadas a problemas em nossos genes –
catalogados em mais de 11.000 – estão com os dias contados. Infelizmente, não é bem assim.
Deu-se um passo gigantesco no campo do conhecimento da biologia molecular humana. Os
resultados práticos disso, porém, ainda estão a décadas de distância. A ciência não sabe sequer
ler direito as informações que acabam de ser decifradas.
Com o Projeto Genoma Humano entramos na era da medicina preditiva. O que é medicina
preditiva e quais as repercussões do projeto genoma humano? Do ponto de vista da bioética, a
medicina preditiva é a medicina preventiva genética e cria a possibilidade de prevenir doenças
passíveis de prevenção, sem discriminações; ampliar propostas de tratamentos e curas; e garantir
a dignidade humana, considerando-se os contextos socioculturais. A medicina preditiva ainda é um
campo repleto de incógnitas, inclusive técnicas e científicas, algumas incomensuráveis, o que a
torna alvo de esperanças, desconfianças e medo. A medicina preditiva é um caminho a se
construir, visando responder aos anseios do que deve ser: a possibilidade de aumentar a
qualidade de vida e minorar o sofrimento sempre, e de curar quando possível.

Biopoder
O conhecimento confere poder e o poder cresce por si mesmo, ou melhor, em aliança ambívoca
com a riqueza: um promove o outro e ambos progridem. O latifundiário do Brasil Colônia detinha o
biopoder primitivo, emanado do saber tecnológico – manejo das culturas, do gado, dos escravos.
Oswaldo Cruz, eliminando a febre amarela e a varíola no Rio de Janeiro e elevando o instituto que
fundou ao primeiro lugar no mundo em medicina tropical, foi o brasileiro de maior biopoder de
nossa história. Nos tempos atuais, o biopoder é exercido principalmente pelas multinacionais que
fabricam medicamentos e aparelhos para diagnóstico e cirurgia, bem como pelas empresas que
produzem linhagens novas de animais, plantas e micróbios. Nas universidades e institutos de
pesquisa, cada vez mais o biopoder produz conhecimento, que reverte em mais biopoder.
Aceitando-se uma sociedade democrática capitalista, o biopoder pode ser benéfico, como o de
Oswaldo Cruz. Mas é preciso combater suas distorções, como fez a campanha de abolição da
escravatura contra o biopoder do latifundiário. Como a genética moderna continuará abrindo novos
campos para o biopoder, é urgente intensificar as discussões sobre seus aspectos éticos.
Igualmente importante é inibir a proliferação do pseudobiopoder, pelo desmascaramento e controle
da atividade de charlatões, ingênuos ou de má-fé (Frota – Pessoa, 1997; 5 – 253 – 261). As
aplicações da engenharia genética estão revolucionando a agronomia. Criou-se dúvidas sobre a
legitimidade de certas patentes. A própria privacidade das pessoas parece ameaçada pelo
biopoder da genética molecular, capaz de, no nível de DNA, esquadrinhar nossa Constituição.
Existe um exagerado temor em relação aos tratamentos de doenças hereditárias por transferência
de genes: genoterapia de células somáticas e até germinativas. Portanto, emerge uma crescente
preocupação sobre como serão utilizados, nessa área, os aportes gerados pelos saberes
oriundos do Projeto Genoma Humano, sobretudo via seus resultados mais imediatos – os “Kits de
diagnósticos genéticos” – o que traz à tona as imensas preocupações de ordem moral e ética na
área da medicina fetal, da genética e da clonagem, sob a égide da engenharia genética e o
biopoder decorrente da manipulação da vida. Os tópicos citados levantam preocupações sobre as
quais precisamos refletir, opinar e decidir (Oliveira; 1997:177).

Genoma humano e engenharia genética

Seria o fim da fatalidade? A medicina está no alvorecer de uma revolução que vai mexer com
tudo: tanto com os corpos quanto com as mentes. No século XXI o ser humano será mais do que
nunca senhor do seu destino, com capacidades de intervir diretamente no mecanismo fundamental
de sua existência, de seu futuro e de sua saúde. Existem enormes perspectivas de consequências
imprevisíveis, sobre as quais já se debruçam pesquisadores, cientistas, filósofos. Essa revolução
chama-se medicina genética.
Não se trata mais de simplesmente cuidar dos órgãos doentes. Trata-se de demonstrar a loteria
da hereditariedade e de suas injustiças distribuídas ao acaso. O segredo reside numa longa
molécula de DNA, que forma os cromossomos, dobrado no centro da cada uma de nossas células,
como uma fita magnética no ventre de um computador. Nessa fita química estão inscritas as
etapas de nossa vida. Ela é o suporte dos genes que recebemos de nossos antepassados. É aí
que repousam dezenas de milhares de instruções que definem nossas características físicas e
dirigem a fabricação de proteínas, aquelas fundações sobre as quais nosso corpo é construído.
Decodifica-se o programa para prever as doenças, muito antes de elas se manifestarem. Isto já
está sendo realizado. Modificam-se seus dados para que elas sejam eliminadas. Isto já começa a
ser feito. Os pesquisadores já aprenderam a destrinchar a cadeia vital do DNA, a recopiá-la e a
transferir pedaços dela de uma criatura para outra. Agora estão em condições de alterar a natureza
programando qualquer organismo vivo. Pesquisam os genes das bactérias, a fim de produzir
medicamentos e vacinas; modificam aqueles das plantas, a fim de criar híbridos eficientes;
fabricam-se novas raças de animais, que Noé não poderia ter imaginado em sua arca. O ser
humano era sem dúvida o próximo da lista.
Começamos com uma nova etapa do Gênesis: no sétimo dia, Deus descansou, após ter criado
o mundo; no oitavo, o homem toma conta das coisas e se reprograma a si mesmo.
Sabe-se hoje que existem mais de três mil doenças hereditárias – da hemofilia à miopatia,
passando por diversas formas de câncer, todas provocadas por defeito de um ou vários genes.
Analisando o DNA de um adulto ou de um feto, podem-se atualmente identificar inúmeras dessas
afecções, sem que haja o menor sintoma delas: algumas, como a coreia de Huntington, constituem
verdadeiras bombas de efeito retardado. Mas surgem dificuldades: deve-se diagnosticar, quando
não se sabe curar? Deve-se interromper uma gravidez quando se descobre que a criança que vai
nascer traz em seus cromossomos um erro que lhe permitiria, contudo, viver normalmente dezenas
de anos?
Os pesquisadores falam hoje da existência em torno de 6.000 doenças genéticas. Até
recentemente, pesquisar um gene era como ler um alfabeto do fim para o começo: como não era
possível entrar ele, estudavam-se as proteínas por ele codificadas. A partir da segunda metade da
década de 80, e, sobretudo agora, com o desenvolvimento, do Projeto Genoma Humano, a ciência
está conseguindo cada vez mais estudar o próprio gene. O novo método consiste em localizar o
gene responsável por uma determinada doença e isolá-lo, e tem uma valiosa aplicação prática: o
diagnóstico pré-natal. Estudar um gene significa observar em seu interior a sequência dos pares
em que se agrupam as quatro substâncias indispensáveis para que haja a vida: adenina, timina,
citosina e guanina, a que se agrupam em pares e integram o DNA. Há cerca de 3,5 bilhões desses
pares no corpo humano e, aproximadamente, 30 mil genes. O diagnóstico pré-natal é feito sempre
que os pais o requisitam – ou por saberem que integram grupos genéticos de risco ou porque já
tiveram algum filho não saudável. Por exemplo, o risco de alguém que seja filho de pai e mãe
esquizofrênicos tornar-se também esquizofrênico é de 12%. Esse índice sobe para 46% quando
ambos os cônjuges são portadores da enfermidade.
Um esclarecimento se faz necessário: Existe a terapia somática, que afeta apenas a pessoa
que está sendo tratada e a terapia germinal, a qual implica mudanças que podem passar às
gerações futuras. Até o momento, todos os esforços na terapia genética em seres humanos se
concentram nas células somáticas. O grande receio é que, se a terapia genética somática em
seres humanos
é aceita pela medicina, haverá fortes motivos para estender a terapia genética também às
células germinativas. Embora as terapias de células germinativas e de zigotos sejam muito
promissoras para o futuro, o abuso da tecnologia do DNA para fins não-terapêuticos levanta sérias
questões éticas acerca de nossa relação com a posteridade. Técnicas de junção de genes podem
ser usadas para eugenia positiva a fim de mudar as características básicas da natureza humana
em vez de para curar desordens cromossômicas. Podem, além disso, tornar-se um instrumento da
malevolência tirânica que manipule seres humanos para fins políticos e sociais.

Ética que cerca o projeto genoma humano (PGH)

O PGH é o maior e mais promissor dentre todos os projetos já desenvolvidos no campo das
ciências biológicas. Pretende-se, até o ano 2005, a identificação e o mapeamento de todos os
genes humanos e o sequenciamento dos três bilhões de pares de base que constituem o nosso
genoma. Como objetivos secundários, visa-se à descoberta de novas ferramentas diagnósticas e
de novos tratamentos para doenças de etiologia genética e à transferência do conhecimento para
outras áreas, por exemplo, estimulando o desenvolvimento da biotecnologia moderna na
agricultura e zootecnia.
Pela sua própria natureza, o PGH cerca-se de algumas incertezas éticas, legais e sociais
(ELSI). Reconhecendo isso, o projeto dedicou 10% de seu orçamento total à discussão desses
temas. Esta questão é tão importante que a UNESCO adotou, em 1997, a chamada “Declaração
Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos”. Três itens se destacam na agenda ELSI:

1. Privacidade da informação genética.


2. Segurança e eficácia da medicina genética.
3. Justiça no uso da informação genética.

Subjacentes a esses itens existem cinco princípios básicos sobre os quais está sendo
constituído o edifício ético consensual do PGH: autonomia, privacidade, justiça, igualdade e
qualidade. O princípio da autonomia estabelece que os testes deverão ser estritamente voluntários
após aconselhamento apropriado, e que a informação resultante deles é absolutamente pessoal.
O princípio da privacidade determina que os resultados dos testes genéticos de um indivíduo
não poderão ser comunicados a outra pessoa sem seu consentimento expresso, exceto talvez a
familiares com elevado risco genético, e mesmo assim após a falha de todos os esforços para
obter permissão do paciente.
O princípio da justiça garante proteção aos direitos de populações vulneráveis, tais como
crianças, pessoas com retardo mental ou problemas psiquiátricos e culturais especiais.
O princípio da igualdade rege o acesso igual aos testes independentemente de origem
geográfica, raça, etnia e classe socioeconômica.
Finalmente, o princípio da qualidade assegura que todos os testes oferecidos terão
especificidade e sensibilidade adequados e serão realizados em laboratórios capacitados com
monitoração profissional e ética. A questão crucial é que não existem maneiras legais de
implementar e garantir que esses princípios éticos serão aceitos – e provavelmente de interesses
econômicos – para implementação de testes genéticos sem adesão a eles.
Toda a problemática ELSI vai convergir na interação social de três elementos:

1. A comunidade científica do PGH, que vai gerar o novo conhecimento.


2. O mundo empresarial, que vai transformar esse conhecimento em produtos e oferecê-los à
população.
3. A sociedade como um todo, que vai absorver e incorporar o novo conhecimento em uma
visão do mundo e suas práticas sociais, além de consumir os novos produtos.

A humanidade espera pela conclusão do Projeto Genoma Humano, que acontecerá daqui a uma
década, com a mesma ansiedade de alguém que espera pela realização de um sonho que
acontecerá amanhã. O sonho que está em jogo é grande: a conquista da chave da vida. Todo
sonho tem o seu preço, e o PGH já começa a cobrar do ser humano novas posições éticas. Dos
cerca de US$ 3 bilhões orçados para o mapeamento e sequenciamento de todo o genoma, os
EUA entram com 50%. Depois vem a Grã-Bretanha com 15%, enquanto a França, a Itália, o Japão
e a Alemanha praticamente se equivalem no restante do investimento do projeto. Quando todos os
genes estiverem nas mãos dos pesquisadores e cientistas, a propriedade do genoma humano
será então fatiada de forma mais ou menos proporcional a quanto cada país investiu?
A questão das patentes foi levantada pela primeira vez pelos americanos, em 1988, quando o
PGH ainda não existia oficialmente. O protagonista da história foi uma ratinha de um laboratório
dos EUA, batizada de Myc Mice, que entrou para a história da genética por ter sido o primeiro
animal oficialmente reconhecido como uma invenção do homem. Seus criadores foram os biólogos
americanos da Harvard Medical School, em Boston, que inocularam na cobaia um oncogene (gene
do câncer) humano capaz de desencadear o câncer de mama. Geneticamente, ela não era mais a
mesma após a experiência. Era um animal produzido em laboratório.
A coisa ficou no ar e pegou fogo quando a equipe do geneticista Craig Venter, do Instituto
Nacional de Saúde de Maryland, EUA, isolou, em 1990, de uma só vez, 337 genes. A conquista foi
festejada nos principais laboratórios do mundo. Pouco depois, o Instituto de Maryland requereu
patentes para todos os genes descobertos. A discussão começou e está na ordem do dia.
Questiona-se a tentativa de controlar a exploração comercial dos genes, um patrimônio que pode
ser considerado de toda a humanidade.
Na ordem ética que terá de chegar na virada do século, à medida que o PGH vá concluindo suas
pesquisas, existem situações absolutamente novas. Imagine-se a seguinte cena entre empregador
e empregado: “temos vaga, mas não podemos admiti-lo porque sua ficha genética diz que o
senhor tem propensão ao câncer de pulmão”. Ou então, a alguém que procura um convênio
médico, diz o vendedor: “tudo bem, saudável, mas nós cobraremos uma taxa adicional porque sua
ficha genética mostra que o senhor é um sério candidato ao diabetes daqui a alguns anos”. No
item convênio, pode também ocorrer o contrário: uma bela modelo ou um excepcional atleta,
saudáveis de corpo por dentro e por fora, apresentam as suas fichas privilegiadas e tentam
barganhar um desconto. Ou, então, jornais podem algum dia estampar a seguinte manchete:
Aberta a CPI do caso das fichas genéticas. Quer dizer, alguém começou a vender fichas genéticas
limpas mas frias.
Sem dúvida, é preciso cuidado a fim de se evitar discriminações para que não se forme um
quadro de pessoas geneticamente não aceitas.

Reflexões bioéticas
Além de apontar caminhos para a cura de doenças e outras revelações extraordinárias, o
Projeto Genoma Humano traz, nas mesmas proporções, dilemas éticos, como a necessidade de
Projeto Genoma Humano traz, nas mesmas proporções, dilemas éticos, como a necessidade de
futuras legislações, e ainda dúvidas de natureza econômica, sobre os interesses que movem as
pesquisas: é necessário estar atento ao perigo do uso indevido das informações genéticas. Estes
avanços devem ser usados para proteger e beneficiar os seres humanos e não para estigmatizá-
los. As descobertas científicas não são, e nunca serão, éticas ou antiéticas. Será antiética a sua
utilização de forma atentatória aos valores que cultivamos, como o respeito à vida, à
individualidade, à diversidade; valores como a compreensão e a solidariedade.
Conhecimento é poder. Portanto, tem muita gente apavorada com o que irá ocorrer agora com o
sequenciamento do genoma humano. De fato, entre as ondas de bioliberalismo (tudo o que se
sabe fazer deve ser feito) e de biofundamentalismo (a intocabilidade/ sacralidade da vida, “salta
aos olhos” que, sendo a bioética o consenso possível temporário e mutável entre diferentes setores
da sociedade, envolve questões de poder, pois consenso sempre tem a ver com a força política
dos grupos protagonistas. Em qualquer consenso, quern “pode” mais, embora sempre “leve tudo”,
leva mais, sempre. Isto é, a bioética não é apolítica.

Benefícios da Engenharia Genética

• Novas tecnologias farmacêuticas: milhares de drogas deverão ser criados para doenças
que antes não tinham tratamento. As drogas serão feitas especialmente para cada indivíduo,
diminuindo os efeitos colaterais; produção de vacinas.

• Terapia gênica: genes com erro poderão ser substituídos, acabando com doenças na sua
origem.

• Diagnóstico mais preciso das doenças genéticas (medicina preditiva) e talvez até a cura de
algumas delas.

Patenteamento do genoma

É apropriado estabelecer-se direitos de propriedade sobre regiões do DNA, que constituem a


base da vida?
Patenteia-se uma invenção. Um gene não é uma invenção, é uma descoberta de algo que a
natureza levou milhões de anos para desenvolver.
No final do Congresso Mundial de Bioética celebrado em Guijón (Espanha), de 20 a 24 de junho
de 2000, o Comitê Científico da Sociedade Internacional de Bioética (SIBI) insistiu que “a ciência e
a tecnologia devem tomar em consideração o interesse geral. De tal forma, consciente dos
progressos rápidos da biologia e da medicina, a imperiosa necessidade de assegurar o respeito
dos direitos humanos e o perigo que os desvios destes progressos poderiam significar, assim
como é papel da bioética clarear a opinião pública sobre as consequências de todo tipo de
avanços científicos e técnicos, por meio de observações e recomendações”, declarou que “as
biociências e suas tecnologias devem servir ao bem-estar da humanidade, ao desenvolvimento de
todos os países, à paz mundial e à proteção e conservação da natureza. Isso implica que os países
desenvolvidos devem partilhar os benefícios das biociências e de suas tecnologias com os
habitantes das zonas menos favorecidas do planeta e servir ao bem-estar de cada ser humano” e
que “uma tarefa importante da bioética, que constitui uma atividade pluridisciplinar, é harmonizar o
uso das ciências biomédicas e suas tecnologias com os direitos humanos, em relação aos valores
e princípios éticos proclamados nas Declarações Universais dos Direitos Humanos das Nações
Unidas de 10 de dezembro de 1948, e da UNESCO, sobre o genoma humano e os direitos
humanos, do 11 de novembro de 1997”. É nesse marco que se inscreve sua oitava recomendação:
“O genoma humano é patrimônio da humanidade, e como tal não é patenteável”, reiterando o
critério da comunidade científica internacional na matéria, como por exemplo, a Declaração Íbero-
Latino-americana sobre ética e genética (Declaração de Manzanillo de 1996, revisada em Buenos
Aires, em 1998).
Há anos, bioeticistas vêm proclamando que o carro-chefe da luta pelos direitos humanos no
século XXI seria o lema: “nossos genes nos pertencem”. Pressentia-se que o desenvolvimento das
biociências poderia ter como decorrência a apropriação privada do patrimônio genético humano,
alegando benefícios aparentemente humanitários, como fabricação de remédios para doenças
raras e incuráveis. As tentativas de acesso à intimidade genética das pessoas, contra a vontade,
ou desconhecimento, e de tornar o DNA humano uma mercadoria, são várias. Também são
inúmeras as denúncias de instituições e pesquisadores que em nome do “progresso científico”
desconsideram os mais elementares direitos das pessoas pesquisadas como, por exemplo, o
direito de saber, de compreender, de dar ou não o consentimento e o de decidir, explicitamente,
qual o destino que deseja para seus genes ou produtos deles derivados. Assim, a comercialização
de informações genéticas humanas não encontra respaldo ético, pois se em uma sociedade
democrática cada pessoa não é dona de seus genes e não tem o direito de decidir sobre a sua
intimidade genética, o que lhe resta de seu? O que concede a um governo ou parlamento o direito
de comercializar as informações genéticas de alguém (Islândia, por exemplo)? E o conjunto da
população? Como a pessoa ou a população poderá se defender de tamanha arbitrariedade?
Mais grave ainda foi a pirataria genética praticada por cientistas inescrupulosos do primeiro
Mundo em relação a certos grupos indígenas da América do Sul. Para ter acesso a troncos
genéticos mais puros, foi retirado sangue desses indígenas para estudos, fazendo-se promessas
enganosas e deixando-os sem informação sobre o uso posterior dos dados coletados.
Em 1998, a ONU oficializou sua posição a respeito desse tema. Para a entidade, em seu estado
natural o genoma não deve dar margem a ganhos financeiros por se tratar de um patrimônio da
humanidade. Muitos empresários, porém, reivindicam o direito de patentear determinadas
sequências de genes que possam dar origem a produtos farmacêuticos. A questão está ainda
sendo discutida.
É bom lembrar que há recomendações de âmbito regional (Conselho da Europa, Comissão
Europeia) sobre biossegurança e comércio que, em comum, proíbem em humanos a clonagem, a
manipulação genética de células germinais e a venda do patrimônio genético. Os países membros
da ONU, em tese, possuem uma orientação que veda o comércio de genes humanos, a
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (UNESCO, 1997), mas a ONU
não pode impor juridicamente tal declaração aos países membros, o que indica que na área de
genética não serão elaboradas leis/ normas universais.

Privacidade

Quem terá direito de acesso às informações genéticas de cada indivíduo? Apenas ele próprio, o
cônjuge, familiares, pais adotivos, empregadores, seguradoras de saúde, instituições de ensino ou
militares, a polícia? É uma das perguntas ainda sem resposta. Segundo a posição do Comitê
Internacional de bioética da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), a pessoa tem o direito de guardar apenas para si, se desejar, as informações
sobre sua herança genética, mas garantir esse direito será um famoso desafio.
A divisão brasileira da Polícia Criminal Internacional (INTERPOL) cria um banco de dados de
DNA para localizar crianças desaparecidas em parceria com a USP (Universidade de São Paulo)
e a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Também coleta material genético de pais que
tiveram seus filhos desaparecidos. É também uma arma para a polícia para evitar tráfico,
sequestros e roubo de crianças. O teste do pezinho passa a ser feito em todas as crianças recém-
nascidas no país. Assim, nas próximas décadas, o governo terá a informação genética de toda a
população!
Como basta uma gotinha de sangue para acessar o genoma, as leis têm que garantir a
privacidade genética do indivíduo.
Carteira genética. A carteira de identidade poderá incluir um código de barra que expresse o
genoma do portador. A pessoa será como cristal, totalmente transparente, ao menos no seu
aspecto biológico-genético. A carteira genética poderá ser colocada a serviço de uma prática de
contratação de empregos que estigmatiza pessoas portadoras de herança genética anômala. O
fator genético poderá tornar-se um elemento de estratificação e discriminação social ao lado do
fator racial, étnico, sexual e socioeconômico. Também os convênios privados de saúde e de
aposentadoria e as apólices de seguro de vida poderão usar os testes. Essas instituições querem
diferenciar as quotas de pagamento de acordo com o baixo ou alto risco de contrair determinadas
doenças de tratamento longo e custoso.

Discriminação

Discriminação baseada na quebra de sigilo acima considerado. A divulgação de


predisposições genéticas a determinadas doenças pode provocar a discriminação de um
indivíduo. A partir da leitura do mapa genético do indivíduo emergem vários questionamentos: em
que momento ele deve ser informado? Como garantir o sigilo de tal informação, de forma que,
preservando sua intimidade, ele não seja prejudicado pessoal e profissionalmente no decorrer de
sua vida? Emprego, convênio de saúde, seguro de vida… uma empresa poderá deixar de
contratar um funcionário se souber, via genoma, que ele tem uma tendência a ser depressivo ou
alcoólatra? Seu plano de saúde poderá excluir problemas cardíacos porque você tem um gene que
o predispõe a altas taxas de colesterol?
E mais: se houver um gene capaz de determinar a predisposição a comportamentos agressivos,
um governo poderá manipulá-lo para intensificar essa tendência e criar um exército extremamente
violento ou poderá minorá-lo para ter uma massa de operários dóceis, ou determinar que este ou
aquele feto seja abortado porque existe a probabilidade de vir a ser um assassino em potencial.

Determinismo genético e liberdade humana17

A crença no determinismo promulgada pelo mito dos genes suscita a questão da culpabilidade
moral e jurídica. Uma disposição genética para a conduta antissocial torna uma pessoa culpada ou
inocente perante a lei? Ao longo desta década, nosso sistema terá de repensar as bases
filosóficas sobre as quais construímos conceitos como livre-arbítrio, culpa, inocência e fatores
atenuantes. Não há dúvida de que a pesquisa da ligação entre determinismo genético e conduta
humana continuará e de que novas descobertas irão se tornar imediatamente relevantes para a
acusação e a defesa dos acusados de crimes. O foco incidirá no conceito de livre-arbítrio porque o
pressuposto da filosofia ocidental, desde Agostinho, subjacente a nossa compreensão de lei, é o
de que a culpa só pode ser atribuída a um agente humano que age livremente.
O espectro no horizonte genético é o de que as disposições genéticas que possam ser
confirmadas em certas formas de conduta constituirão compulsão, e isso nos colocará em uma
bifurcação no caminho jurídico: ou declaramos inocente a pessoa com uma disposição genética
para o crime e a libertamos, ou a declaramos constitucionalmente deficiente de modo a justificar o
encarceramento e o isolamento do resto da sociedade. O primeiro caminho poria em risco o bem-
estar da sociedade; o segundo, violaria os direitos individuais.
As implicações éticas, se for confirmada uma base biológica, genética para o
homossexualidade, poderiam seguir mais de um percurso. O fato científico não determina a
direção da interpretação ética desse fato. A questão ética central é esta: a disposição genética
para a homossexualidade torna o portador desse gene inocente ou culpado? Logicamente as duas
respostas são possíveis.
Por um lado, uma pessoa homossexual poderia afirmar que, como herdou o gene gay e não
escolheu uma orientação gay por vontade própria, é inocente. A posição da inocência biológica
poderia ser sustentada por um argumento adicional: a atividade homossexual não é pecaminosa,
mas simplesmente uma forma natural de expressão sexual entre outras. Seria possível ir ainda
mais longe e dizer que, como foi herdada biologicamente, ela é vontade de Deus, que a
predisposição homossexual de uma pessoa é uma dádiva de Deus.
Por outro lado, poderíamos seguir o caminho oposto e identificar o gene gay a uma disposição
carnal para o pecado. A sociedade poderia afirmar que o corpo herdado por nós pertence a quern
somos – quern sou como eu é determinado, pelo menos em parte, pelo que meus pais me legaram
– e que uma disposição herdada para o comportamento homossexual é exatamente como outras
disposições inatas, por exemplo, a luxúria, a ganância ou formas similares de concupiscência
compartilhadas pela raça humana em geral, e tudo isso constitui o estado de pecado original em
que nascemos.
Para além da questão de culpa ou inocência, os eticistas antecipam outra questão: o risco de
estigma. A presença do gene gay em um feto poderia ser considerada um defeito genético e
fundamento para o aborto? Os testes genéticos de rotina levariam a uma redução geral de
pessoas homossexuais de uma maneira paralela à redução de crianças com síndrome de Down?
Isso seria considerado discriminação de classes?

Eugenismo

Um risco que assombra estudiosos é a possibilidade de retorno do eugenismo, doutrina em


voga no período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial, pela qual se busca o aperfeiçoamento
genético da raça humana. Laboratórios “planejariam” seres humanos determinando tipo de pele,
olhos, cabelos… Além disso, fetos que antecipadamente fossem identificados como portadores de
genes de doenças graves, para as quais ainda não houvesse sido descoberta a cura, correriam o
risco de sofrer aborto. teme-se o recrudescimento do preconceito e da intolerância contra certos
tipos étnicos e portadores de deficiências física e mental.

Previdência Social

Segundo previsões de cientistas, dentro de 40 anos, a expectativa de vida dos seres humanos
será de 90 anos e não 70 como agora, graças ao gene da longevidade. Se muita gente optar pelo
gene da longevidade, os sistemas previdenciários vão ter de se adaptar a uma nova situação.
Quern vai pagar a conta?

Clonagem

Com o advento da ovelha Dolly, gestada a partir de uma célula de uma outra ovelha, a
comunidade científica começou a discutir a possibilidade de clonagem de seres humanos. Clonar
significa a reprodução do idêntico. Há dois tipos de clonagem: clonagem reprodutiva e clonagem
terapêutica. Segundo parecer da ONU, a clonagem para a produção de tecidos humanos deve ser
fruto de pesquisa, porque pode ajudar a salvar vidas. Mas a clonagem de indivíduos – reprodutiva
– é condenada pela entidade. Voltaremos ao assunto no próximo capítulo.

Terapia gênica

Nova era da medicina. Dois tipos:


A célula com gene disfuncional é retirada do corpo e tratada em laboratório. Nesse
procedimento o gene com mutação é substituído por um gene normal e a célula é novamente
colocada no corpo.
Vírus podem ser usados como vetores que carregam genes normais para dentro do corpo. Uma
vez no organismo, esses vírus utilizam o DNA da célula que tem o gene defeituoso para duplicar o
próprio DNA (com gene normal) criando, assim, uma célula normal.
As terapias genéticas prometem revolucionar a medicina com a prevenção e até mesmo a
“correção” dos “erros genéticos” detectados nos códigos dos pacientes. Tais terapias poderão ser
aplicadas tanto em nível somático (afetando somente o indivíduo tratado) como em nível
germinativo (operando nas células sexuais e embrionárias), habilitando assim a transmissão do
novo traço para toda a descendência do organismo alterado. Por outro lado, a engenharia genética
oferece um catálogo de “tecnologias da alma”, surgidas de um campo de saber que hoje recebe
atenção permanente das mídias: a genética comportamental. Esta disciplina se propõe a
identificar as supostas relações entre um determinado gene e certo traço da subjetividade
(inteligência, ansiedade, preguiça, ambição, pessimismo etc.) utilizando a estatística como método
básico para estabelecer as correspondências. Seu objetivo final coincide com o da genética
médica: diagnosticar, prevenir e eventualmente “ajustar” determinados “erros” inscritos nos códigos
genéticos dos indivíduos. Assim, alterando a informação contida no DNA seria possível transformar
um criminoso – potencial ou real – em um “homem honesto”, por exemplo.
O desafio está lançado: se a propensão à violência é controlada pelos genes, por que não
intervir para corrigi-la? E se ela é transmitida geneticamente, por que não praticar logo uma terapia
em nível germinativo, em vez de limitar-se à extirpação somática no indivíduo, para assim eliminar
o “gene violento” de toda a descendência do sujeito e livrar-se para sempre desse grave problema
social?
Além das trocas e alterações na informação genética, que apontam para a modelagem dos
corpos e das subjetividades, a tecno-ciência contemporânea também facilita a inserção
subcutânea de elementos não-orgânicos, hibridizando os corpos com materiais inertes. Trata-se
de um processo denominado endocolonização: a conquista do interior do corpo por parte da
tecno-ciência mais recente, da aparelhagem videoscópica utilizada para diagnóstico e tratamento
de diversas doenças até as experiências mais inovadoras de cirurgias sem cortes por meio da
inserção de dispositivos nanotecnológicos. Cada vez mais introjetados, transparentes e diluídos
em trocas íntimas e fluidas, os agentes artificiais se misturam com os orgânicos, dissolvendo as
fronteiras e tornando obsoleta a antiga diferenciação, visto que ambos compartilham a mesma
lógica da informação digital. Assim, hoje são criados materiais inéditos, híbridos de ambos os
mundos, representados pelos microchips com componentes orgânicos e pelos implantes biônicos.
Estes últimos se apresentam como capazes de devolver a visão aos cegos e a possibilidade de
andar aos paraplégicos, graças à implantação cirúrgica de microprocessadores nos cérebros e
outros dispositivos teleinformáticos ligados aos nervos, aos músculos ou a órgãos específicos.
Soluções semelhantes estão sendo testadas para tratar de doenças como a epilepsia e os males
de Parkinson e Alzheimer; e, inclusive, de distúrbios nervosos como a obsessão compulsiva, a
síndrome do pânico e a depressão.
Deverá ser limitada a tecido somático, que desaparece com a morte do indivíduo, ou deverá ser
estendida ao tecido germinativo alterando, portanto, a constituição genética das próximas
gerações?
A terapia gênica ainda levará tempo para ultrapassar as paredes dos laboratórios. As principais
barreiras são as dificuldades em colocar os genes normais no tecido ou órgão afetado pela
enfermidade e fazê-los funcionar de forma adequada.

Alerta

Cientistas lembram que fatores ambientais e culturais têm influência tão forte na vida e no
comportamento quanto à herança genética. Os genes e a genética estão envolvidos em quase
tudo. Estão claramente envolvidos no fato de eu estar careca ou de eu ser ruivo, o que são coisas
triviais; mas também, provavelmente, contribuem para eu ter ou não hipertensão, para ter ou não a
doença de Alzheimer. Os genes provavelmente definem minhas habilidades atléticas, minha
inteligência e daí para frente; eles estão por trás do que faço.
Também há a questão do ambiente: algumas coisas são mais influenciadas pelo meio ambiente,
outras mais pelos genes. Inteligência, por exemplo, não sabemos se se deve mais aos genes ou
ao ambiente. Os estudos que comparam gêmeos são perfeitos como exemplo: você tem dois
indivíduos com o mesmo código genético, e se eles crescem em ambientes diferentes, apesar de
terem muitas similaridades, se tornarão indivíduos diferentes.

O projeto Genoma Humano e a realidade brasileira (fome)

Segue uma reflexão da médica, professora de bioética da Universidade Estadual de Feira de


Santana, Bahia, Eliane S. Azevêdo: “Reconhecemos ser dever moral de cidadão brasileiro aplaudir
o grande feito científico realizado pelo Projeto Genoma Humano, e aproveitar o momento para
dizer, com a mesma voz dos aplausos, que toda criança neste mundo tem mais um direito que
nunca especificamente enunciado em documentos internacionais sobre Direitos Humanos. Que
toda criança tem direito a desenvolver-se em ambiente que não anule ou iniba o potencial
biológico inscrito em seu genoma. Que toda criança tem direito ao pleno desenvolvimento das
capacidades físicas e mentais inscritas em seu genoma. Que a desnutrição e a fome anulam o
desenvolvimento biológico destas capacidades levando à morte precoce ou incapacitação da vida.
Nada justifica permitir que uma criança seja vítima de desnutrição, pois nem mesmo a
expressividade do genoma humano consegue ser mais forte que a fome”.

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos


Humanos (1997)18

Esta declaração objetiva assegurar o desenvolvimento da genética humana, na perspectiva de


respeito da dignidade e direitos humanos da pessoa e ser benéfica para a humanidade como um
todo. O progresso da pesquisa em genética humana, que traz uma grande esperança de saúde e
bem-estar da humanidade, pode também ser usada com objetivos danosos, contrários para a
dignidade humana, direitos humanos, ou respeito pela integridade da raça humana. A declaração
lembra três princípios vitais, que são fundamentais na proteção da humanidade em relação às
implicações da biologia e genética: dignidade humana, liberdade de pesquisa e solidariedade
humana.
Ela também reafirma a necessidade de um debate democrático sobre o progresso da genética,
bem como capacitar a sociedade para cumprir suas responsabilidades. A partir deste ponto de
vista enfatiza a importância da cooperação internacional em ampliar o conhecimento e as
vantagens de prover o ensino da bioética.
Não somente os indivíduos, mas também os seres humanos enquanto raça, estão envolvidos no
progresso da genética. Esta dupla natureza do genoma humano significa que os objetivos de
proteção do indivíduo devem estar relacionados em nível individual e comunitário: de um lado,
salvaguardar a integridade da raça humana e de outro, respeitando a dignidade, a liberdade e os
direitos de cada um dos seus membros.
Estes dois objetivos são indissociáveis. O reconhecimento da dignidade do indivíduo e o
reconhecimento da unidade e valor da raça humana necessariamente caminham juntos. Nenhuma
violação desta unidade deve ser tolerada, o que significa que devemos proibir toda espécie de
experimentos que prejudicam a identidade da raça humana.
Por contraste, o objetivo de salvaguardar a integridade da raça humana, não deve ser tornado
para significar ação positiva para conservar a diversidade genética humana, com a visão de
proteger a singularidade genética de certos grupos humanos. Tal ação seria incompatível com o
respeito da dignidade da pessoa, liberdade e direitos humanos, que é o segundo pilar da proteção
da pessoa.
O respeito pela dignidade individual, liberdade e direitos humanos é um imperativo rico, a partir
do qual nascem os princípios vitais de proteção da pessoa, já afirmados na declaração – a
rejeição de toda discriminação em base a características genéticas: a exigência do consentimento
livre; proteção da confidencialidade dos dados genéticos associados à pessoa.

Conclusão
O anúncio do rascunho (mapeamento) genético humano lança a mais profunda pergunta ético-
filosófica: quem é a pessoa humana? Seremos somente o nosso código genético? Poderemos
“fabricar” o ser humano nos laboratórios? Poderemos dar-nos “a vida eterna” pela conservação e o
rejuvenescimento de nossas células? O que é ser pessoa? Quem somos nós?
Estamos diante de questões bioéticas de grande vulto. É necessário e importante lutar por uma
legislação que fiscalize os feitos e efeitos da engenharia genética, pois, esta e outras
biotecnologias são saberes que encerram um poder incomensurável, além do que muitos destes
conhecimentos são sigilosos. As biotecnologias produzem “coisas” de grande utilidade para a
humanidade, mas também podem criar instrumentos de discriminação, como o “certificado de
predisposição para doenças”; as testagens genéticas compulsórias (diagnóstico genético
populacional) e a “a carteira de identidade genética”. Também podem fabricar armas
bioengenheiradas letais.
Provavelmente, cada pessoa terá respostas diferentes às perguntas acima enumeradas. Em
uma sociedade democrática é indispensável que os valores individuais sejam plenamente
assegurados, sem o cerceamento de qualquer tipo de liberdade, a não ser que ela prejudique a
liberdade de outra pessoa.
Estas questões estão sendo agora cuidadosamente consideradas por comissões de ética que
existem em qualquer instituição de ensino ou pesquisa, criadas em nosso país por legislação que
também estabeleceu órgãos nacionais de controle, como a Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (Conep) e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Obviamente que não se trata pura e simplesmente de temer os perigos, mas de perceber
também os benefícios e novas esperanças que surgem. Sem dúvida, os conhecimentos podem ser
utilizados para a prevenção e cura de doenças incuráveis que hoje infernizam os seres humanos.
Mas é bom lembrar que nem tudo o que cientificamente é possível, logo, ipso facto, seria
eticamente admissível. Surge, com urgência e necessidade, a bioética ou ética da vida.
Não há razão, portanto, para a histeria de certos grupos anticiência de desenvolvimento de
“elites genéticas”. O conhecimento científico, em si, não é bom nem mau. O que existem são
aplicações éticas ou não-éticas deste conhecimento. Cabe à sociedade em geral, e a cada um de
nós em particular, manter-se vigilante para que esse conhecimento seja aplicado visando ao
máximo de felicidade para o maior número de pessoas.
Para aprofundar ainda mais a nossa reflexão, aconselho a leitura da Declaração sobre a
produção e uso científico e terapêutico estaminais embrionárias humanas19, Documento da
Pontifícia Academia para a vida (Academia do Vaticano que estuda os problemas éticos
relacionados com a vida na perspectiva cristã católica) - 2000; da Declaração Íbero-Latino-
americana sobre direito, bioética e genoma humano20 (2001), recomendando a difusão, o estudo,
o intercâmbio sobre os aspectos sociais, éticos e jurídicos relacionados com a genética humana, a
partir da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos e da
Manifestação do Conselho Federal de Biologia21 sobre os organismos geneticamente
modificados (OMGs) 2002, recomendando a promoção da defesa da soberania dos povos e das
nações sobre seu patrimônio genético e o uso de uma linguagem acessível na discussão dos
aspectos éticos no uso da biotecnologia.

17. PETERS, Ted. Genética, teologia e ética. In: PETERS, Ted e BENNETT, Gaymon (Orgs.). Construindo pontes entre
a Ciência e a religião. Tradução Luís Carlos Borges; supervisão científica Eduardo R. Cruz. São Paulo: Edições Loyola
e Editora UNESP, 2003, p. 117-134.
18. Cfr. Anexo 5 a íntegra da Declaração.
19. Cfr. Anexo 6.
20. Cfr. Anexo 7.
21. Cfr. Anexo 8.
Capítulo 6

Clonagem humana

Introdução

A finitude física é uma certeza intragável e impossível de se compartilhar. Os filósofos dizem que
a cada um pertence a sua própria morte, não a dos outros. Adiar ao máximo esse encontro foi o
maior desafio da ciência. Se pouco a pouco o homem dominou a natureza, por que não alcançaria
a imortalidade e se faria à imagem e semelhança de Deus? Os alquimistas, que na Idade Média
perseguiram o elixir da longevidade, ficariam excitados se pudessem ver o cenário que inaugura o
século XXI. Ao mesmo tempo fascinante e amedrontador.
Tudo indica que o fio condutor da economia neste século será a biotecnologia, tendo como
locomotiva o Projeto Genoma Humano e a clonagem. É um aprofundamento “no mundo do
infinitamente pequeno e no mundo do infinitamente complexo” (Teilhard de Chardin). Entreabre-se
um cenário fantástico em que realidade e ficção científica se dão as mãos. A possibilidade de “um
admirável mundo novo” (Aldous Huxley), ou de um “Frankenstein” (Mary Shelley) nos inquietam…
Estamos entrando definitivamente num mundo novo. O desenvolvimento rápido da ciência e da
técnica, na área da biologia, genética e medicina, traz muitas novidades associadas a esperanças
e temores, com enormes desafios éticos para a humanidade. Está em jogo nada mais nada
menos que o bem maior, que é a própria vida humana!
Alguns fatos científicos são a ponta do iceberg de uma revolução subterrânea silenciosa em
curso cuja relevância e possíveis consequências só muito recentemente começamos a perceber. A
clonagem da ovelha Dolly na Escócia (Instituto Rosling pelo Dr. Wilmut) no início de 1997, espantou
o mundo científico e a humanidade em geral. O anúncio recente da decifração do código genético
humano (26/6/2000) nos introduziu definitivamente na era da genômica. “Estamos aprendendo a
decifrar a linguagem com que Deus descreveu a vida”, disse o Presidente Clinton, no dia do
anúncio.

Ética e tecno-ciência

Em nenhum outro momento da história humana a ciência e a técnica colocaram tantos desafios
para o ser humano quanto hoje. Fala-se que a medicina mudou mais nos últimos cinquenta anos
que nos 50 séculos precedentes. Aumentou espantosamente a responsabilidade do ser humano
em relação ao seu próprio futuro, uma vez que o que antes era atribuído ao acaso, à natureza, ao
destino, à vontade de Deus, passa doravante a ter a interferência direta da ação humana.
Basicamente, existem quatro atitudes fundamentais quando entramos na discussão ética e
tecno-ciência em relação à natureza humana.
1. A ciência tem o direito de fazer tudo o que é possível! Nessa visão, o único limite é aquele
imposto pela capacidade técnica e imaginação humana. O direito de conhecer é uma liberdade
humana básica, e qualquer cerceamento é visto como uma violação dos direitos do pesquisador.
Caso se tenha a capacidade de fazer algo, assume-se que se tem o direito de fazê-lo.

2 . A ciência não tem o direito de intervir no processo da vida pois este é sagrado!
Popularmente é dito que “os cientistas não deveriam querer ser Deus”. Deus é o dono da vida, a
Ele a vida pertence, é considerada intangível como dom sagrado. Submissão e obediência cega
aos processos biológicos é o que se espera do ser humano. É obvio que esta atitude radicalizada
não favorece tipo de progresso científico algum, que acaba sempre visto como usurpador dos
“direitos de Deus”.

3 . A ciência não tem o direito de mudar as qualidades humanas mais características! Essa
abordagem insiste que há um limite para a intervenção científica e que este limite é a natureza da
pessoa humana como ela é atualmente entendida e valorizada. Levantam-se questões de ordem
política em que a ciência é produzida. O que aconteceria se este conhecimento para mudar a
natureza humana caísse nas mãos de um “Hitler”, por exemplo, ou então a possibilidade de se
clonar pessoas.

4. A ciência tem o direito de incentivar o aperfeiçoamento de características humanas de valor


e eliminar aquelas que são prejudiciais. Esta perspectiva exige discussão ética que leve em
conta os valores culturais, sociais e religiosos entre outros. A motivação básica é atingir certo
controle sobre os processos que afetam o desenvolvimento da vida humana. O objetivo é continuar
a melhorar a qualidade de vida, diminuir o sofrimento e erradicar doenças que infernizam a
humanidade.

Precisamos estar conscientes dessas visões, para avaliar criticamente quando a utilização do
conhecimento científico beneficia ou não a humanidade. Não se trata de pura e simplesmente
satanizar a ciência de forma ingênua. Ética e ciência precisam andar juntas e se iluminar
mutuamente, no objetivo maior de preservar e aperfeiçoar a vida e a dignidade do ser humano.

Do que falamos?
Faz parte da nossa natureza tentar entender como as coisas funcionam e querer melhorá-las.
Estamos dando continuidade a algo que começou há muito tempo, nos primórdios da História
humana. Individualmente, todos os dias tomamos decisões que, de alguma forma, afetam outras
pessoas e o mundo em que vivemos. A tendência é que no futuro a clonagem se torne um
procedimento cada vez mais seguro e viável, cujos resultados poderão ser usados em benefício da
humanidade. O objetivo é conhecer o mecanismo essencial da vida. O código genético é
responsável por todas as características físicas de uma pessoa e também por boa parte do seu
comportamento. Ao entender como esse mecanismo funciona, talvez possamos melhorá-lo ou
corrigir alguns de seus defeitos.
Uma das dificuldades da reflexão sobre a clonagem provem do fato que o mesmo termo,
evocando sempre uma “reprodução do idêntico”, designa operações diversas, cujas modalidades
e finalidades são diferentes. E mais, a clonagem pode se reportar a entidades biológicas
diferentes. Do ponto de vista ético ou jurídico, não é o mesmo clonar um gene humano para fazer
produzir por bactérias insulina para tratar diabéticos, clonar células da pele para obter tecidos e
assim tratar grandes queimados e clonar um embrião, uma criança ou um adulto humanos; em
outras palavras, devemos fazer a diferença entre clonagem reprodutiva e clonagem terapêutica.
Clonagem de seres humanos significa criação de seres humanos adultos copiados de outros. É
uma forma de reprodução assexuada. Isso representaria uma verdadeira reviravolta da condição
humana: o modo sexuado de procriação faz com que todo ser humano, até agora, deva sua
existência a duas pessoas, de sexos diferentes, tão indispensáveis uma como a outra. Assim, o
modo sexuado de geração mostra que a vida humana é o fruto de uma relação entre duas
pessoas, um homem e uma mulher. A clonagem de seres humanos permitiria a emancipação da
reprodução humana de toda forma de relação. Admiti-la socialmente transformaria radicalmente a
sociedade, as representações a respeito da procriação e da relação entre os sexos.
Vejamos: um dos encantos da clonagem da ovelha Dolly é que a célula somática (não sexual)
extraída da glândula mamária que lhe deu origem se transformou em célula reprodutora – portanto,
Dolly não tem pai. Isso abre caminho para estonteantes batalhas éticas e judiciais.
Assim, a clonagem tem duas finalidades diferentes: a mais polêmica é a clonagem reprodutiva,
cujo objetivo é formar um novo ser humano geneticamente idêntico a outro. A motivação, nesse
caso, seria ajudar casais inférteis ou que perderam um filho e gostariam de ter outro igual. A
técnica consiste em fertilizar um óvulo sem núcleo com o material genético de uma célula da
pessoa que deseja ser clonada. A outra categoria é a clonagem terapêutica, na qual embriões são
clonados para obter células-tronco. Pesquisadores acreditam que essas células indiferenciadas –
com potencial para se transformar em qualquer um dos cerca de 220 tipos de célula do corpo –
podem ser cultivadas para uso em transplantes e no tratamento de doenças degenerativas. Como
seriam obtidas a partir de um embrião clonado do próprio paciente, não haveria risco de rejeição.
O processo é igual ao da clonagem reprodutiva, mas em vez do embrião ser implantado no útero
para formar um feto, ele é cultivado em pratinhos de laboratório por no máximo sete dias e, depois,
destruído para a retirada das células.

Células-tronco
As células-tronco são a base da clonagem humana. São células ainda não especializadas, que
chamamos de pluripotentes, e podem se diferenciar em vários tecidos. Ou seja, tornam-se células
de coração, de fígado ou de pele, por exemplo. Quando o óvulo se junta ao espermatozoide e
forma o embrião, há apenas uma célula que começa a se dividir e, no início, todas são iguais.
Estas células vão se dividindo até que recebem uma ordem, não sabemos como, para se
especializarem. Algumas se transformam em célula de fígado; outras, de ossos. Isto ocorre por
volta do 14° dia da fecundação.
O lado positivo da clonagem embrionária é abrir novas perspectivas de sobrevivência e de cura
de doenças. Os seres vivos são concebidos a partir da multiplicação de uma única célula-ovo,
contendo em seu DNA toda a informação hereditária. Antes de começar a se dividir e a se
diversificar para formar os tecidos do corpo, as células do embrião, batizadas de células-tronco,
são indiferenciadas. Podem funcionar como curinga de órgãos doentes, ajudando a substituir seus
tecidos degenerados.
A técnica que gerou a ovelha Dolly é a mesma utilizada para a reprodução de seres humanos e
para a clonagem com fins terapêuticos:

1. Esvazia-se o óvulo da doadora, sugando seu núcleo com uma agulha.

2. Por meio de choques elétricos, funde-se ao óvulo uma célula contendo material genético da
pessoa a ser clonada.

3. O óvulo com os novos genes é colocado num meio que estimula sua multiplicação e a
formação do embrião. Para cura: cultivado em laboratório, o embrião dá origem a células-tronco.
Antes de se diferenciarem para formar o corpo humano, elas são induzidas a se transformar em
tecidos específicos e, depois, injetadas para substituir células doentes dos órgãos: neurônios,
células do coração, células hepáticas. Para reprodução: o embrião é introduzido no útero da mãe
de aluguel para que as células se multipliquem, se diferenciem e deem origem ao clone humano.

O grande problema é que essas células são derivadas de embriões excedentes de processos
de fertilização in vitro. Tais embriões, normalmente descartados com consentimento do casal, são
destruídos para extrair as células-tronco embrionárias. Para algumas pessoas, isso significa
destruir uma vida, o que seria inaceitável. Essa é uma questão delicada, que envolve aspectos
morais, culturais e religiosos. Vale lembrar que estamos falando de um embrião de cinco dias,
basicamente um conglomerado amorfo de células, que se fosse gerado no ventre de uma mulher
teria somente 20% de chance de se transformar em um bebê. Uma coisa se pode garantir: aquele
embrião excedente trará muito mais benefícios na forma de células-tronco embrionárias do que em
uma lata de lixo.
Outro argumento contra o uso de células-troco embrionárias é o medo de que seja criado um
comércio de embriões. Seguindo essa argumentação, não deveriam ser permitidas transfusões de
sangue nem doações de órgãos, pois isso também poderia degenerar em comércio. A proibição
cega invariavelmente leva ao atraso da ciência e da melhoria da qualidade de vida. Precisamos,
sim, de legislação e vigilância, para introduzir o desenvolvimento das células-tronco embrionárias
no Brasil sem ferir direitos nem deveres.
Pesquisas mais recentes descobriram a existência de células-tronco adultas que também são
pluripotentes, isto é, podem gerar células de outros órgãos e tecidos. Descobriu-se células-tronco
de medula óssea, tecido fetal e cordão umbilical. Esta é uma boa notícia, pois são eliminadas não
só as questões ético-religiosas envolvidas na utilização das células-tronco embrionárias, mas
também os problemas de rejeição imunológica, já que células-tronco do próprio paciente adulto
podem ser utilizadas para regenerar seus tecidos ou órgãos lesados. Prevê-se o desaparecimento
das filas para transplantes e, em vez de transplantes de órgãos, serão feitos transplantes de
células retiradas do próprio paciente. Não há dúvida de que a terapia com células-tronco adultas
será a medicina do future O que preocupa os pesquisadores é que a ameaça de clonagem de
seres humanos freie as pesquisas de clonagem terapêutica.

O que é um embrião?22

Essa definição é importante para a discussão sobre células-tronco – aquelas que seriam
indicadas para a produção de órgãos usados para transplantes.
De forma teórica, para que possamos produzir um determinado órgão, devemos partir de células
muito jovens denominadas pluripotenciais. Como o nome indica, essas células possuem a
capacidade de se transformar em vários tipos de tecidos presentes no organismo. Em tese, uma
única célula dessa linhagem, sofrendo um estímulo adequado, poderia originar um fígado ou um
rim, ou quem sabe um coração. Então seria muito compensador e gratificante para as pessoas
que precisam de um novo fígado, rim ou coração, que pudéssemos fabricar um desses órgãos. Ele
sairia da “linha de produção” novinho em folha e pronto para substituir o órgão velho ou danificado.
Essas células-tronco podem ser obtidas a partir de várias fontes. As mais divulgadas na
atualidade são: a partir da medula óssea, do sangue do cordão umbilical e da própria estrutura do
pré-embrião em desenvolvimento. No entanto, apesar de já ser possível obter a célula-tronco e dos
vários estudos em andamento, a maneira pela qual fazemos essas células se transformarem em
um determinado tipo de tecido ainda não foi determinada. Portanto, temos os “ingredientes”, mas
ainda não sabemos a “receita do bolo”.
Os estudos mais recentes demonstram, por exemplo, que já é possível produzir células
sanguíneas a partir das células-tronco da medula óssea e do sangue do cordão umbilical. Porém,
não há nada comprovado em humanos sobre como essas células podem originar outros órgãos e
quais os estímulos mais adequados de diferenciação devem ser aplicados.
Do ponto de vista ético retirar células-tronco da medula óssea ou do cordão umbilical é um ato
aceitável, pois nenhum comprometimento sério é causado ao doador das mesmas. Questões
éticas, morais e mesmo científicas surgem quando tentamos trabalhar com células-tronco que
seriam retiradas da estrutura que corresponde aos primeiros 14 dias de desenvolvimento humano,
após a concepção. Será que estaríamos retirando essas células de um embrião? Ou de um feto?
Ou de um pré-embrião? Estaríamos comprometendo o desenvolvimento de um novo ser? A
sociedade deveria diferenciar uma estrutura com potencial para se desenvolver de uma outra da
qual esse potencial já foi colocado em ação? É nesse ponto que a definição precisa de vários
estágios de desenvolvimento. É necessário que a comunidade científica esclareça a sociedade e
seus membros dos períodos do desenvolvimento humano para que a discussão sobre as
consequências de se retirar células-tronco dessa estrutura, no período inicial de desenvolvimento,
fique clara e não cause problemas de consciência, éticos ou morais, nem aos cientistas nem à
sociedade como um todo.

Clonagem de seres humanos


“A diversidade genética é a grande maravilha da natureza e seu maior poder 23.”
O clone será mesmo idêntico à sua matriz? Eles terão o mesmo físico, o mesmo tipo de cabelos,
cor de olhos, temperamento, inteligência, gostos, aptidões? Vejamos: o clone possui exatamente
os mesmos genes que sua matriz. Se os genes determinam todas as nossas características físicas
e, quem sabe, até psíquicas, o clone será, sim, idêntico à matriz? Não. Estamos esquecendo de
uns temperos muito importantes, que não estão inscritos nos genes mas dão uma graça toda
especial a cada um de nós: o meio ambiente, nossas experiências de vida. Alimentação,
quantidade de exercício e tempo de exposição ao Sol; também a quantidade de ingestão de álcool
e de nicotina são exemplos de fatores ambientais que influenciam muitas de nossas
características, desde a altura e a cor da pele, até a susceptibilidade a doenças e o QI. Junto com
nossos genes, esses fatores moldam cada um de nós. Somos um produto de nossa genética e do
nosso meio ambiente, onde inúmeras características são mais ou menos influenciadas por esses
dois fatores.
Assim, apesar de o clone ser geneticamente idêntico à matriz, suas experiências de vida
particulares influenciarão uma série de suas características de uma forma que não podemos
prever. Reproduzir a genética é relativamente fácil agora, com a clonagem… Mas como reproduzir
essa rede tão complexa de relações e experiências de vida que, junto com os nossos genes, dão
origem a quem somos? Quanto à ideia de utilizar a clonagem como forma de ressuscitar um ente
querido, teoricamente, o clone seria o ser mais próximo a esse indivíduo, porém, não seria a
mesma pessoa.

Reflexões bioéticas

Discernimento ético

O discernimento ético deve ser feito tomando consciência da ambivalência de todo progresso
humano. Esta situação de ambivalência é expressa hoje pela categoria da sociedade do risco.
Vivemos num momento histórico em que é preciso tomar decisões de caráter técnico: para isso é
preciso avaliar o risco e, em consequência, ponderar as opções de acordo com as vantagens e os
inconvenientes24.
Diante da situação de risco não há outra atitude ética senão a da responsabilidade. Foi o
filósofo alemão, H. Jonas, que sublinhou de modo especial o princípio de responsabilidade para a
ética do presente, sobretudo tratando-se das opções a fazer diante dos avanços científico-
tecnológicos25. Na responsabilidade, não podemos esquecer as gerações subsequentes: é
preciso servir-se da criação e realizar os progressos levando em conta que as gerações
posteriores também hão de desfrutar dos bens que nós utilizamos.
As duas referências anteriores – medida do risco e apelo à responsabilidade – levam a um
terceiro critério de conteúdo axiológico. Os riscos e a responsabilidade devem ser medidos a
partir do valor do autêntico processo de humanização. É o critério da humanização que dá sentido
e orientação às decisões a tomar no campo do progresso científico-tecnológico. Por humanização
entende-se a realização “do homem todo e de todos os homens”, isto é, buscar o bem integral de
todas as pessoas por igual.
Biotecnologia

A biotecnologia, na ordem do dia, é o divisor de águas entre a atual era da informação digital
para a “nova era” da informação genética digital (biodigital), que por meio de recombinações, de
engenharia genética, indubitavelmente controlará todos os processos relativos à agricultura e à
pecuária (e, portanto, à subsistência da espécie humana), ao meio ambiente – e às suas
consequentes zonas de influência sobre o homem —, e à saúde, nascimento, vida e morte do
próprio homem (por intermédio das diversas aplicações do “Projeto Genoma Humano”, da
manipulação genética, das técnicas de procriação humana artificial etc.).
O ponto crucial, que constitui o vértice de todas as variáveis implicadas nas pesquisas
biotecnológicas, reside no fato de que os limites a serem estabelecidos para essas investigações
não irão advir do grau de evolução em que se encontra o conhecimento científico (visto que não há
limites para a ciência), mas dos valores éticos (bioéticos) aceitos pela sociedade internacional. É
nesse contexto que se abre o espaço para a fundamental intervenção reguladora do Direito.

Clonagem de seres humanos

É digna de elogio qualquer tentativa que pretende construir uma humanidade melhor; não se
pode condenar, em princípio, o desejo de conseguir uma melhora da espécie humana, mesmo em
terreno tão importante como a genética. Entretanto, também é preciso reconhecer que existem
limites a esse desejo de melhora ou de variação, limites que são ao mesmo tempo referências
positivas para uma melhor orientação do progresso.
Na reflexão atual, a clonagem de seres humanos acarreta alguns contravalores, tais como:
• O ser humano tem a dignidade de pessoa e não pode ser reduzido a um “objeto”; no processo
de clonagem existem tantas e tais intervenções que é quase impossível deixar de tratar a realidade
humana como um “objeto”.
• Na célula da qual se obtém o núcleo clônico é preciso realizar previamente importantes
“manipulações”, o que pode dar lugar a sérias “deformações” transmissíveis ao novo ser;
lembrando como os responsáveis pela clonagem de Dolly tiveram de contar com a criação de
quimeras e monstros antes de obter o resultado perseguido; seria eticamente razoável destruir um
número grande de embriões para obter um clone humano?
A biodiversidade também é um critério ético a ser levado em conta na espécie humana.
Algumas perguntas de cunho antropológico: a clonagem humana coloca em cheque a unicidade
do ser humano? Rompem-se com ela as fronteiras da identidade única de cada ser humano? A
alma é também clonada? A clonagem não seria uma realização tecnológica de reencarnação?
Não seria também um passo muito próximo em direção à imortalidade? O momento é propício
para se revisarem as raízes neoplatônicas desta antropologia da dicotomia entre corpo e alma. A
sugestão seria entender a alma como princípio vital do ser, pensar o ser humano como corpóreo e
“animado” ou espiritual e cuidar para que a descrição do ser humano como “composto de corpo e
alma” não venha distorcer nossa compreensão de seu caráter unitário e indivisível. Com esta luz,
entende-se que também o ser clonado tem seu princípio vital próprio que o impulsiona a construir
sua história, agindo e reagindo em um meio ambiente dado e na rede de relações humanas em
que interage. Ali se tecem as características da identidade de sua personalidade. É então
importante distinguir a identidade biológica da identidade biográfica. Ao clonar características
genéticas, clona-se a biologia do indivíduo, não sua personalidade. Nestes termos, parece ficar
claro a inexistência de elos entre a clonagem humana e a reencarnação e imortalidade.
Mas, estas razões éticas que invalidam, no estágio atual da reflexão bioética, a viabilidade moral
da clonagem de seres humanos não deveriam cortar as asas do pensamento humano.
O homem deve continuar levantando graves questões filosóficas relacionadas com o sentido da
evolução humana.
Porém, mais do que em leis e castigos, temos de confiar numa tomada de consciência ética por
parte da humanidade inteira. É necessária uma elevação da responsabilidade que ande par a par
com o progresso científico-técnico. À ciência deve acompanhar a consciência, se quisermos que a
aventura humana caminhe para cotas cada vez mais elevadas de humanização para todos, e de
modo especial para os indivíduos e os grupos menos favorecidos.

Realidade brasileira

As leis e penalidades conseguirão conter as pesquisas quando não só interesses mas também
convicções teóricas somam em favor da clonagem (pelo menos em fase anterior à implantação)?
Isto sugere que o momento atual seja de diálogo e retomada de referenciais éticos fundamentais
para se estabelecerem diretrizes e normas, bem além das leis e penalidades. Nos mais diversos
ambientes em que se reflete a bioética hoje, cresce a convicção de que as leis e penalidades são
insuficientes para gerarem uma resposta ética aos novos tempos com seus novos desafios.
“A ética do laboratório terá de ser decidida em conjunto com a ética da sociedade”, diz o
geneticista Carlos Alberto do Vale, da Universidade de São Paulo, e acrescenta: “Desconfio das
proibições categóricas assim como desconfio das permissões categóricas”.
“A sociedade é que deve pregar o regulamento na porta do laboratório”, sugere o biólogo
americano Steve Grebe. Parodiando o político francês Georges Clemenceau (1841-1929), Grebe
adverte: “Assim como se diz que a guerra é assunto grave demais para ser decidido pelos
generais, a ciência é perigosa demais para ser decidida apenas pelos cientistas”.
No Brasil, a explosão do tema foi enfrentada pela da Comissão Nacional Técnica de
Biossegurança, do Ministério de Ciência e Tecnologia, que julgou estar este assunto
suficientemente legislado na chamada “Lei de Biossegurança” (Lei n. 8974, Decreto n. 1752/95)26.
Ali se contemplam aspectos de tecnologia aplicada à genética e reprodução humanas e se
condenam como crime a manipulação genética de células germinais humanas; a intervenção em
material genético humano in vivo, a não ser em casos de terapia genética; a produção,
armazenamento e/ou manipulação de embriões humanos. Para infratores estão previstas multas e
penas de três meses a vinte anos de prisão. Mas logo entram os comentários levantando dúvidas
de interpretação: a proibição de manipular “células germinais humanas” compreenderia realmente
a clonagem efetuada a partir de células somáticas adultas?
Para dialogar, há uma iniciativa brasileira formulada pelo Conselho Nacional de Saúde, do
Ministério da Saúde, que resultou na Resolução 196/9627 sobre a Ética em pesquisa envolvendo
seres humanos. Esta resolução propicia ao Brasil uma Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa, bem como incentiva a instauração de Comitês de Ética em Pesquisa nas diversas
instituições que desenvolvem as pesquisas, instituindo uma verdadeira rede de “comunidades de
ética na base”.
Em nível internacional, temos a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos
Humanos da Unesco (1997)28 que é um verdadeiro hino à dignidade humana. Este documento, no
fundo, complementa a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)29. A Declaração
Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos da Unesco objetiva assegurar o
desenvolvimento da genética humana, na perspectiva de respeito da dignidade e direitos humanos
do indivíduo e ser benéfica para a humanidade como um todo. O progresso da pesquisa em
genética humana, que traz uma grande esperança para a saúde e bem-estar da humanidade, pode
também ser usado com objetivos danosos, contrários à dignidade humana, aos direitos humanos
ou respeito pela integridade da raça humana. A Declaração lembra três princípios vitais, que são
fundamentais na proteção da humanidade em relação às implicações da biologia e da genética:
dignidade humana, liberdade de pesquisa e solidariedade humana.

Conclusão
O respeito pela dignidade individual, liberdade e direitos humanos é um imperativo ético, a partir
do qual nascem princípios vitais de proteção do indivíduo afirmado na Declaração: a rejeição de
toda discriminação em base a características genéticas: a exigência do consentimento livre e
proteção da confidencialidade dos dados genéticos associados com o indivíduo.
Ciência e ética não precisam e não devem ser consideradas como antagônicas, pelo contrário,
necessitam-se e se iluminam reciprocamente. É esta a perspectiva que garante o respeito pela
dignidade humana e por mais qualidade de vida. Precisamos zelar por vigilância ética no âmbito
técnico-científico, que é uma instância de discernimento relacionada com o bom ou mau uso que
se fizer dos novos conhecimentos científicos. Necessitamos além do conhecimento científico,
sabedoria ética, a fim de proteger o ser humano, este universo singular que traz em seus genes a
história da humanidade.
Não seria simplesmente tragicômico a humanidade ter o domínio do mais íntimo da matéria
(átomo), do Universo (cosmos) e de si própria (gene) e se perder num projeto de morte, sem se
entender e organizar num projeto global de mais qualidade de vida e felicidade, utilizando-se dos
conhecimentos e instrumentos da tecno-ciência à sua disposição?
A clonagem como forma de reprodução é um procedimento caracterizado pelo desconhecido,
comprovadamente perigoso, que não deve ser realizado em seres humanos. Porém, não sigamos
o modelo americano que transformou a clonagem no inimigo público número um; vamos investir no
lado bom da clonagem, na clonagem terapêutica. Esta sim fará do nosso mundo, um admirável
mundo novo.
Lembremo-nos de que a ciência deve servir às pessoas e as pessoas não devem ser postas a
serviço da ciência.

Para refletir
Selecionamos a seguir alguns textos paradigmáticos e polêmicos para discussão e reflexão.

O fim da era dos contratos?

O clone mexe diariamente com nosso imaginário. Antes da ovelha Dolly, já se pensava em
duplicar as pessoas. Lembremos uns dez anos atrás, quando Calvin, das histórias em quadrinhos,
produziu vários clones para não ter de executar tarefas aborrecidas, como levantar cedo, tomar
banho, ir à escola. Não deu certo isso. Cada “replicante” desejava o mesmo que ele: nenhum
queria cumprir as tarefas chatas, ou seja, ser escravo de Calvin. Mas esse fracasso, nos
quadrinhos, não perturbou o imaginário, tão humano, de ter um duplo. Devemos perguntar: o que
move esse desejo?
Nascer sempre exigiu um pai e uma mãe. Simplificando, cada um de nós é, geneticamente,
metade seu pai, metade sua mãe. Enquanto estivemos presos à reprodução natural, não havia
como fugir disso, como ter uma cópia perfeita, completa. A condição humana esteve sujeita a
essas limitações e a outras. Mas, na Segunda metade do século XX, as fronteiras do humano
foram sendo superadas.
Faz só uns 20 anos que se difundiu a possibilidade de saber o sexo do feto. Ninguém mais
precisa preparar um estoque de roupinha azul e outro rosa. Antes de nascer o bebê, ele já tem
nome, personalidade, brinquedos. Mas o ultrassom que informa o sexo também permite práticas
odiosas, como o aborto sistemático de fetos femininos, praticado no Oriente.
De todo modo, o controle do futuro pelo ser humano se ampliou muito. O Projeto Genoma talvez
seja o que mais mobiliza esses desejos de controle. Poderemos, assim espera-se, acabar com
alguns defeitos congênitos antes mesmo do nascimento. Faz parte da condição humana superar
os limites que a natureza colocou para nós.
Mas a clonagem de um ser humano vai mais longe: pretende gerar alguém que não nasça de
dois genitores, e sim de um só. Ora, muito antes de Calvin, a ideia mais forte por trás da clonagem
já aparecia na trilogia “A Oréstia”, de Ésquilo, 2.500 anos atrás.
Orestes matou a mãe, para vingar o pai, assassinado por ela. As Fúrias, uma espécie de
semideusas, querem puni-lo. A deusa da sabedoria, Atena, propõe que ele seja julgado. O deus
Apolo o defende no júri: ele pergunta por que as Fúrias perseguem o matador da mãe, mas nada
fizeram contra ela, assassina do esposo? Elas respondem que só punem crimes contra o sangue;
um casal não está nesse caso. Mas os jurados absolvem Orestes.
São dois os argumentos contra as Fúrias. O primeiro é que o contrato, unindo o casal, é tão
importante (ou mais) que os elos de sangue. Se toleramos crimes contra os contratos, não teremos
sociedade, apenas clãs em guerra uns contra os outros. Este argumento, nós aceitamos sem
dificuldade. Já o segundo, hoje, soa muito estranho. A mulher, diz, Apolo, não passa de um vaso,
que recolhe o sêmen do homem. Tudo o que alguém será está na semente de seu pai. O papel da
mãe é passivo. Daí que ela seja subordinada ao homem. Ora, por uns bons 2.000 anos essa tese
será sustentada, com certo êxito, e só será refutada com a moderna genética.
Será a clonagem um modo de voltarmos aos tempos de Ésquilo ou à ideia de que um ser nasça
de apenas um genitor? É claro que nada impede clonar uma menina com base na mãe. Enquanto
Ésquilo, num paradigma machista, entendia que todos nós, homens ou mulheres, viríamos só do
pai, hoje teríamos meninas copiando a mãe, meninos replicando o pai. Quer dizer, não se trata de
voltar ao machismo, mas, talvez, de voltar aos tempos pré-contratuais.
O contrato não é só um procedimento capitalista. Simboliza a essência de uma sociedade
democrática, na qual as pessoas ocupam seus lugares não pelo que são (por seu status), mas
pelo que fazem, combinam e pactuam. Como forma de ordenação do mundo, ele é recente. Foi
teorizado há apenas 400 anos. É praticado há somente 200. Não chegou a dominar o mundo. Um
filme como o chinês “Nenhum a menos” (1999), todo construído sobre a impossibilidade dos
diálogos e dos contratos, mostra como é difícil construir a sociedade sobre a relação negociada
com o outro.
Estará terminando, tão precocemente, a era dos contratos? Dispensar a associação de um
homem com uma mulher para ter um filho pode ser sinal disso. O narcisismo atual faria gerar filhos
de um só. Mas concluamos com duas notas.
Primeira: esse é um desejo, não necessariamente algo viável. Calvin já o percebeu: nada
garante que nossa cópia seja nosso escravo. Se o filho-cópia nos dispensa da negociação com a
parceira (ou o parceiro) para gerá-lo, ele também é um outro em relação a nós, e teremos de
negociar com ele, para criá-lo. Mesmo o que geneticamente é cópia será, socialmente, um outro. O
sonho narcisista pode dar bem errado.
Segunda: ainda que a clonagem seja uma técnica tão nova, o desejo de não dever nada a
ninguém, até na geração de um ser humano, não é novo. Citei Ésquilo, não por tola erudição, mas
porque nossos desejos talvez sejam bem arcaicos, atávicos. As técnicas tem poder quando ativam
os nossos desejos: são eles que devemos conhecer, é com eles que devemos negociar.

No último estágio, um ser vivo artificial

É o sonho final dos raelianos: fazer viver um ser humano 100% construído em laboratório.
Embora nenhuma lei internacional enquadre ou proíba essas experiências, a clonagem humana
é condenada pela grande maioria dos cientistas, dos médicos, ou dos filósofos. “Se a notícia for
exata, trata-se de uma atividade pura e simplesmente criminosa”, disse na França o professor
Atlan, sobre o clone humano anunciado pela seita raeliana.
A identidade dessa seita não esclarece muito as coisas. É francesa, dirigida por seu fundador, o
jornalista esportivo francês Claude Vorilhon que, em 1973, encontrou um extraterrestre nas
montanhas vulcânicas de Auvergne, na França.
Esse extraterrestre era muito tagarela. Ensinou-lhe muitas coisas. Os seres humanos foram
criados em laboratório e depois colocados sobre a terra há 25 mil anos. Esta história é relatada
pela Bíblia. Infelizmente, houve um erro de tradução da palavra “Elohim” que significa “aqueles que
caíram do céu”, como sabe o jornalista, foi traduzia pela palavra “Deus”. Daí veio toda a confusão.
Um pouco mais tarde, por ocasião de uma viagem extraterrestre, Vorilhon, já “rebatizado” Rael,
recebeu a missão de realizar clonagens humanas. Por quê? Ora, porque simplesmente a
clonagem é a chave da vida eterna.
A próxima etapa será a clonagem pela “via acelerada”, com o objetivo de reproduzir um adulto e
“nele armazenar nossa personalidade, nossa memória, o acervo de informações acumuladas em
nosso cérebro sob a forma de fluxos eletroquímicos”. Além disso, será preciso pensar no último
estágio, “a criação de um ser vivo totalmente artificial, 100% forjado em laboratório”. Somente
então se abrirá o caminho para a vida eterna.
Religião: O que distingue a seita raeliana da maioria das outras é seu gênio científico. Não
apenas porque ela afirma que “a ciência é uma religião” (o mesmo dizem outras seitas), mas ainda
porque ela tem projetos científicos muito ambiciosos e porque, finalmente, soube seduzir cientistas
de grande competência.
Entre eles estão os seis especialistas que deram origem ao nascimento do primeiro clone
humano. E também uma pesquisadora francesa, Brigitte Boisselier, que deu a notícia na Flórida.
Brigitte tem um duplo doutorado em química analítica na França e nos Estados Unidos e um “colar
de plumas” da Ordem dos Anjos de Rael, uma Ordem na qual mulheres colocam a serviço de seus
profetas “sua beleza interior e exterior”.
Podemos facilmente imaginar que um profeta tão obstinado como Rael não se contenta apenas
em fazer progredir a ciência e a religião. Ele produz também uma filosofia e dá conselhos para a
vida cotidiana. Há oito anos, no Canadá, Rael mandou distribuir preservativos para meninos de 13
anos em frente a escolas. No ano seguinte, recomendou a masturbação. Mais recentemente,
incentivou os jovens católicos do Canadá a “queimar as cruzes” – o que não é uma coisa muito
cortês, se se levar em conta que o profeta é meio-irmão de Jesus, pois nasceu no dia de Natal, de
1945, de uma relação adúltera entre um judeu refugiado e uma mulher chamada Maria.
Proibição – A seita foi proibida e definida como “perigosa” na França, mas não nos outros
países. Na maioria das vezes, o povo se contenta em considerar os raelianos como tipos
burlescos, barrocos, parecidos como tantos outros cérebros que surgem em nossas sociedades
modernas.
Serão delirantes? Exaltados? Sim, mas esses tipos ridículos souberam atrair cientistas de
altíssimo nível. E, além disso, a hipótese de um nascimento por clonagem, embora preocupe tantos
cientistas, não é considerada como absolutamente impensável. Ninguém duvida que, a partir de
agora, um nascimento desse tipo possa ocorrer a qualquer momento.

Sem provas, empresa anuncia clone humano

Sem testes: Boisselier, uma química francesa, faz parte da seita dos raelianos, grupo que
acredita que a raça humana foi clonada por extraterrestres e que a clonagem é a chave para a vida
eterna. A Clonaid, com sede nas Bahamas, promete ainda o nascimento de quatro outros bebês
clonados para as próximas semanas: mais um da América do Norte, um da Europa e dois da Ásia.
Segundo Boisselier, dois casais estão usando células preservadas de filhos mortos e um outro é
um casal de lésbicas. Outras 20 tentativas estão marcadas para janeiro. “Acredito que cada casal
deve escolher a criança que deseja ter, mesmo se não tiver nenhum problema de fertilidade”.
Segundo ela, a Clonaid não solicitou pagamento dos casais, mas alguns fizeram contribuições à
empresa.
O trabalho da Clonaid é visto com repúdio e ceticismo pela comunidade científica internacional.
O geneticista Axel Kahn, diretor do Centro Francês de Genética Molecular, considerou “revoltante e
repulsivo” o anúncio. “Enquanto a seita raeliana não produzir a prova científica dessa procriação
industrial, pela qual se trata a vida humana da mesma forma como se fabrica uma salsicha, não
devemos considerar o anúncio”, afirmou, lembrando que a diretora da Clonaid “já se habituou a
proclamar verdades não confirmadas pelos fatos”.
Os presidentes dos EUA George Bush, e da França Jacques Chirac, também criticaram.
George Bush classificou a clonagem humana como algo “profundamente perturbador” e defendeu
uma legislação para proibir todo tipo de clonagem, inclusive com fins terapêuticos. Chirac pediu
que todos os Estados proíbam e punam qualquer tentativa de clonar seres humanos.
Disputa – Com o anúncio de ontem, a Clonaid assume, pelo menos temporariamente, a
liderança da corrida para clonar o primeiro ser humano, travada ao lonço dos últimos dois anos
com os médicos Severino Antinori, na Itália e Panayiotis Zavos, nos EUA. No início do mês, Antinori
disse que seu primeiro clone, um menino, nasceria em Janeiro. De Roma, ele menosprezou o
anúncio da Clonaid, dizendo que a empresa não tem credibilidade científica. “(A notícia) me faz rir
e ao mesmo tempo me preocupa, porque cria confusão entre aqueles que fazem pesquisa
científica séria”, disse.

Clonagem é ineficaz, diz “pai” de Dolly

Ian Wilmut, o “pai” de Dolly afirma: “nossa experiência com mamíferos mostra que, atualmente,
qualquer tentativa de clonar seres humanos é intrinsecamente insegura”.
Wilmut diz que a clonagem hoje ainda é uma espécie de “loteria”, na qual é impossível prever
quais clones vão vingar ou não. Pesquisadores de vários países já clonaram ovelhas, porcos,
camundongos, uma gata, cavalos, jumentos e, mais recentemente, ratos, mas a eficiência do
processo é baixíssima. De acordo com ele, um dos fatores que interfere no processo da
experiência é o tipo de célula adulta cujo núcleo é extraído para implantação: algumas, como as
que circundam o óvulo, parecem ter mais chances de produzir clones saudáveis do que outras.
Cada espécie também requer uma estratégia diferenciada de transferência de núcleo, lembra o
pesquisador. Uma das hipóteses para o fracasso na clonagem de primatas, segundo ele, é a de
que na extração do núcleo da célula adulta sejam perdidas as proteínas que produzem o fuso
mitótico, onde os cromossomos se prendem durante a divisão celular. Nas tentativas de clonagem
de primatas, os cromossomos se espalham pela célula e ela não se divide.
De acordo com Wilmut, porém, a maioria dos problemas apresentados pelos clones – de fígado,
pulmão, deficiências imunológicas, obesidade – são provavelmente causados por problemas na
reprogramação do genoma da célula adulta. O genoma de uma espécie funciona como o conjunto
de programas de uma rede de computadores: cada seção ou célula especializada de um tecido
usa um grupo deles, embora todos tenham acesso a todos os programas. É exatamente esse o
maior desafio da clonagem: fazer com que o genoma de uma célula adulta especializada volte a
“rodar” os programas (genes) capazes de produzir um embrião.
Wilmut propõe uma abordagem multidisciplinar para enfrentar esses problemas, unindo esforços
de geneticistas, especialistas em embriologia e patologistas.

22. FG Press 1 a 15 de julho de 2002. Clínica de Ginecologia e Obstetrícia Dr. Flávio Garcia de Oliveira.
23. PEREIRA, Lygia V. O admirável mundo novo da clonagem. In: VALLE, Silvio e TELLES, José Luiz (0rgs). Bioética e
b iorrisco: ab ordagem transdisciplinar . Rio de Janeiro: Editora Interciência, 2003. p. 31-45.
24. G. BECHMANN (ed.), Risiko und Gesellschaft. Grundlagem und Ergeb nisse interdisziplinären Risiko-forchung ,
Opladen 1993.
25. H. JONAS, Das Prinzip Verantwortung , Frankfurt 4 1979.
26. Cfr Anexo 3.
27. Cfr Anexo 4.
28. Cfr Anexo 5.
29. Cfr Anexo 1.
Anexos

1. Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família


humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e
da paz no mundo.
Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a atos
de barbárie que revoltam a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os
seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como
a mais alta inspiração do homem.
Considerando que é essencial à proteção dos direitos humanos através de um regime de
direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a
opressão.
Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as
nações.
Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de
direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a
instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla.
Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a
Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais.
Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta
importância para dar plena satisfação a tal compromisso.

A Assembleia Geral

Proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir
por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da
sociedade tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por
desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de
ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto
entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a
sua jurisdição.
Artigo I – Todos os homens nascem livre e iguais em dignidade.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
Artigo II – Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de raça, cor, sexo, língua ou religião.
Artigo III – Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão.
Artigo V – Ninguém será submetido à tortura ou castigo cruel desumano ou degradante.
Artigo VI – Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa
humana perante a lei.
Artigo VII – Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção
da lei.
Artigo VIII – Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais competentes, remédio
efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX – Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X – Todo homem tem direito a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele.
Artigo XI – Todo homem acusado de ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até
que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei.
Artigo XII – Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou
na correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação.
Artigo XIII – Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência, dentro das
fronteiras de cada Estado.
Artigo XIV – Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e gozar asilo em
outros países.
Artigo XV – Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
Artigo XVI – Os homens e as mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família.
Artigo XVII – Todo homem tem direito à prioridade.
Artigo XVIII – Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião.
Artigo XIX – Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão.
Artigo XX – Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
Artigo XXI – Todo homem tem direito de tomar parte no governo do próprio país e de ter acesso
ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
Artigo XXII – Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis a sua
dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
Artigo XXIII – Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições
justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
Artigo XXIV – Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas
de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Artigo XXV – Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar.
Artigo XXVI – Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos
graus elementares e fundamentais.
Artigo XXVII – Todo homem tem direito a participar livremente da vida cultural da comunidade,
de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.
Artigo XXVIII – Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e
liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo XXIX – Todo homem tem deveres para com a comunidade, na qual é possível o livre e
pleno desenvolvimento de sua personalidade. No exercício de seus direitos e liberdades, todo
homem está sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de
assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer
às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Artigo XXX – Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o
reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa do direito de exercer qualquer atividade ou
praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos e liberdades aqui estabelecidos.
2. Reprodução assistida – 1992

Igualmente assinada por Ivan de Araújo Moura Fé, presidente, e Hércules Sidnei Pires Liberal,
secretário, em 11 de novembro de 1992, a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal de
Medicina, sobre a utilização da Reprodução Assistida, tem o seguinte teor:
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições que lhe confere a Lei n. 3.268, de 30
de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto n. 44.045, de 19 de julho de 1958:
Considerando a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com
implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la.
Considerando que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários dos casos
de infertilidade humana.
Considerando que as técnicas de Reprodução Assistida têm possibilitado a procriação em
diversas circunstâncias em que isto não era possível pelos procedimentos tradicionais.
Considerando a necessidade de harmonizar o uso destas técnicas com os princípios da ética
médica.
Considerando, finalmente, o que ficou decidido na Sessão Plenária do Conselho Federal de
Medicina realizada em 11 de novembro de 1992, resolve.
Art. 1° — Adotar as Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida
anexas à presente Resolução, como dispositivo doentológico a ser seguido pelos médicos.
Art. 2° — Esta Resolução entra em vigor na data da sua publicação.

Normas técnicas

I. Princípios gerais

1. As técnicas de Reprodução Assistida (RA) tem o papel de auxiliar na resolução dos


problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapias
tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade.
2. As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e
não se incorra em risco grave de saúde para o paciente ou o possível descendente.
3. O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores.
Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA
serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de
tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter
biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em
formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal
infértil.
4. As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer
outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao
sexo do filho que venha a nascer.
5. É proibida a fecundação de oócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não seja a
procriação humana.
6. O número ideal de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não deve ser
superior a quatro, com o intuito de não aumentar os riscos já existentes de multiparidade.
7. Em casos de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização
de procedimentos que visem a redução embrionária.

II. Usuários das técnicas de RA

1. Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos
limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de
maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.
2. Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do
companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.

III. Referente às clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA

As clínicas, os centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle
de doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição e transferência de
material biológico humano para a usuária de técnicas de RA, devendo apresentar como requisitos
mínimos:
1. Um responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que será,
obrigatoriamente, um médico.
2. Um registro permanente (obtido mediante informações observados ou relatadas por fonte
competente) das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou recém-nascidos,
provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos
procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e pré-embriões.
3. Um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico
humano que será transferido aos usuários das técnicas de RA, com a finalidade precípua de evitar
a transmissão de doenças.

IV. Doação de gametas ou pré-embriões

1. A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial.


2. Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores ou vice-versa.
3. Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-
embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores,
por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a
identidade civil do doador.
4. As clínicas, os centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma
permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma
amostra de material celular dos doadores.
5. Na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha
produzido mais que 2 (duas) gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de
habitantes.
6. A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível, deverá
garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima
possibilidade de compatibilidade com a receptora.
7. Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos
integrantes da equipe multidisciplinar que nelas prestam serviços, participarem como doadores
nos programas de RA.
V. Criopreservação de gametas ou pré-embriões

1. As clínicas, os centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e pré-


embriões.
2. O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes,
para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser
criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.
3. No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua
vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso
de divórcio, doença grave ou de falecimento de uma deles ou de ambos, e quando desejam doá-
los.

VI. Sobre a gestação de substituição (doação temporária de útero)

As clínicas, os centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criar
a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que
impeça ou contraindique a gestação na doadora genética.
1. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num
parentesco até segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho
Regional de Medicina.
2. A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
3. Lei n° 8.974, de 05 de Janeiro de 1995 –
Biossegurança

Regulamenta os incisos II e V do parágrafo 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece


normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de
organismos geneticamente modificados, autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito da
Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, e dá outras
providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º — Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das
técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização,
consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando proteger
a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente.
Art. 2º — As atividades e projetos, inclusive os de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento
tecnológico e de produção industrial que envolvam OGM no território brasileiro, ficam restritos ao
âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão tidas como responsáveis pela
obediência aos preceitos desta Lei e de sua regulamentação, bem como pelos eventuais efeitos
ou consequências advindas de seu descumprimento.
§ 1º — Para os fins desta Lei consideram-se atividades e projetos no âmbito de entidades como
sendo aqueles conduzidos em instalações próprias ou os desenvolvidos alhures sob a sua
responsabilidade técnica ou científica.
§ 2º — As atividades e projetos de que trata este artigo são vedados a pessoas físicas enquanto
agentes autônomos independentes, mesmo que mantenham vínculo empregatício ou qualquer outro
com pessoas jurídicas.
§ 3º — As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais,
financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos neste artigo, deverão
certificar-se da idoneidade técnico-científica e da plena adesão dos entes financiados,
patrocinados, conveniados ou contratados às normas e mecanismos de salvaguarda previstos
nesta Lei, para o que deverão exigir a apresentação do Certificado de Qualidade em
Biossegurança de que trata o art. 6º, inciso XIX, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos
eventuais efeitos advindos de seu descumprimento.
Art. 3º — Para os efeitos desta Lei, define-se:
I – organismo – toda entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de transferir material genético,
incluindo vírus, príons e outras classes que venham a ser conhecidas;
II – ácido desoxirribonucleico (ADN), ácido ribonucleico (ARN) – material genético que contém
informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência;
III – moléculas de ADN/ARN recombinante – aquelas manipuladas fora das células vivas,
mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético que possam multiplicar-se
em uma célula viva, ou ainda, as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação.
Consideram-se, ainda, os segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN
natural;
IV – organismo geneticamente modificado (OGM) – organismo cujo material genético
(ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética;
V – engenharia genética – atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinante.
Parágrafo único. Não são considerados como OGM aqueles resultantes de técnicas que
impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a
utilização de moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, tais como: fecundação in vitro,
conjugação, transdução, transformação, indução poliploide e qualquer outro processo natural;
Art. 4º — Esta Lei não se aplica quando a modificação genética for obtida através das seguintes
técnicas, desde que não impliquem a utilização de OGM como receptor ou doador:
I – mutagênese;
II – formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal;
III – fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida
mediante métodos tradicionais de cultivo;
IV – autoclonagem de organismos não-patogênicos que se processe de maneira natural.
Art. 5º – (VETADO)
Art. 6º – (VETADO)
Art. 7º Caberá, dentre outras atribuições, aos órgãos de fiscalização do Ministério da Saúde, do
Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária e do Ministério do Meio
Ambiente e da Amazônia Legal, dentro do campo de suas competências, observado o parecer
técnico conclusivo da CTNBio e os mecanismos estabelecidos na regulamentação desta Lei:
I – (VETADO)
II – a fiscalização e a monitorização de todas as atividades e projetos relacionados a OGM do
Grupo II;
III – a emissão do registro de produtos contendo OGM ou derivados de OGM a serem
comercializados para uso humano, animal ou em plantas, ou para a liberação no meio ambiente;
IV – a expedição de autorização para o funcionamento de laboratório, instituição ou empresa
que desenvolverá atividades relacionadas a OGM;
V – a emissão de autorização para a entrada no País de qualquer produto contendo OGM ou
derivado de OGM;
VI – manter cadastro de todas as Instituições e profissionais que realizem atividades e projetos
relacionados a OGM no território nacional;
VII – encaminhar à CTNBio, para emissão de parecer técnico, todos os processos relativos a
projetos e atividades que envolvam OGM;
VIII – encaminhar para publicação no Diário Oficial da União resultado dos processos que lhe
forem submetidos a julgamento, bem como a conclusão do parecer técnico;
IX – aplicar as penalidades de que trata esta Lei nos artigos 11 e 12. Art. 8º – É vedado, nas
atividades relacionadas a OGM:
I – qualquer manipulação genética de organismos vivos ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural
ou recombinante, realizados em desacordo com as normas previstas nesta Lei:
II – a manipulação genética de células germinais humanas;
III – a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos
genéticos, respeitando-se princípios éticos tais como o princípio de autonomia e o princípio de
beneficência, de acordo com o art. 6é, inciso I V, e com a aprovação prévia da CTNBio;
IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir
como material biológico disponível;
V – a intervenção in vivo em material genético de animais, excetuados os casos em que tais
intervenções se constituam em avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento
tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio da responsabilidade e o
princípio da prudência, e com aprovação prévia da CTNBio;
VI – a liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM em desacordo com as normas
estabelecidas pela CTNBio e constantes na regulamentação desta Lei.
§ 1º – Os produtos contendo OGM, destinados à comercialização ou industrialização,
provenientes de outros países, só poderão ser introduzidos no Brasil após o parecer prévio
conclusivo da CTNBio e a autorização do órgão de fiscalização competente, levando-se em
consideração pareceres técnicos de outros países, quando disponíveis.
§ 2º – Os produtos contendo OGM, pertencentes ao Grupo é conforme definido no Anexo I desta
Lei, só poderão ser introduzidos no Brasil após o parecer prévio conclusivo da CTNBio e a
autorização do órgão de fiscalização competente.
§ 3º – (VETADO)
Art. 9º – Toda entidade que utilizar técnicas e métodos de engenharia genética deverá criar uma
Comissão Interna de Biossegurança (CIBio), além de indicar um técnico principal responsável por
cada projeto específico.
Art. 10º – Compete à Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) no âmbito de sua Instituição:
I – manter informados os trabalhadores, de qualquer pessoa e a coletividade, quando suscetíveis
de serem afetados pela atividade, sobre todas as questões relacionadas com a saúde e a
segurança, bem como sobre os procedimentos em caso de acidentes;
II – estabelecer programas preventivos e de inspeção para garantir o funcionamento das
instalações sob sua responsabilidade, dentro dos padrões e normas de biossegurança, definidos
pela CTNBio na regulamentação desta Lei;
III – encaminhar à CTNBio os documentos cuja relação será estabelecida na regulamentação
desta Lei, visando a sua análise e a autorização do órgão competente quando for o caso;
IV – manter registro do acompanhamento individual de cada atividade ou projeto em
desenvolvimento envolvendo OGM;
V – notificar à CTNBio, às autoridades de Saúde Pública e às entidades de trabalhadores, o
resultado de avaliações de risco a que estão submetidas as pessoas expostas, bem como
qualquer acidente ou incidente que possa provocar a disseminação de agente biológico;
VI – investigar a ocorrência de acidentes e as enfermidades possivelmente relacionados a
OGM, notificando suas conclusões e providências à CTNBio.
Art. 11º – Constitui infração, para os efeitos desta Lei, toda ação ou omissão que importe na
inobservância de preceitos nela estabelecidos, com exceção dos parágrafos 1º e 2º e dos incisos
de é a VI do art. 8é, ou na desobediência às determinações de caráter normativo dos órgãos ou
das autoridades administrativas competentes.
Art. 12º – Fica a CTNBio autorizada a definir valores de multas a partir de 16.110,80 UFIR, a
serem aplicadas pelos órgãos de fiscalização referidos no art. 7é, proporcionalmente ao dano
direto ou indireto, nas seguintes infrações:
I – não obedecer às normas e aos padrões de biossegurança vigentes;
II – implementar projeto sem providenciar o prévio cadastramento da entidade dedicada à
pesquisa e manipulação de OGM, e de seu responsável técnico, bem como da CTNBio;
III – liberar no meio ambiente qualquer OGM sem aguardar sua prévia aprovação, mediante
publicação no Diário Oficial da União;
IV – operar os laboratórios que manipulam OGM sem observar as normas de biossegurança
estabelecidas na regulamentação desta Lei;
V – não investigar, ou fazê-lo de forma incompleta, os acidentes ocorridos no curso de
pesquisas e projetos na área de engenharia genética, ou não enviar relatório respectivo à
autoridade competente no prazo máximo de 5 (cinco) dias a contar da data de transcorrido o
evento;
VI – implementar projeto sem manter registro de seu acompanhamento individual;
VII – deixar de notificar, ou fazê-lo de forma não imediata, à CTNBio, e às autoridades da Saúde
Pública, sobre acidente que possa provocar a disseminação de OGM;
VIII – não adotar os meios necessários à plena informação da CTNBio, das autoridades da
Saúde Pública, da coletividade, e dos demais empregados da instituição ou empresa, sobre os
riscos a que estão submetidos, bem como os procedimentos a serem tomados, no caso de
acidentes;
IX – qualquer manipulação genética de organismo vivo ou manejo in vitro de ADN/ARN natural
ou recombinante, realizados em desacordo com as normas previstas nesta Lei e na sua
regulamentação.
§ 1º – No caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
§ 2º – No caso de infração continuada, caracterizada pela permanência da ação ou omissão
inicialmente punida, será a respectiva penalidade aplicada diariamente até cessar sua causa, sem
prejuízo da autoridade competente, podendo paralisar a atividade imediatamente e/ou interditar o
laboratório ou a instituição ou empresa responsável.
Art. 13º – Constituem crimes:
I – a manipulação genética de células germinais humanas;
II – a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos
genéticos, respeitando-se princípios éticos tais como o princípio de autonomia e o princípio de
beneficência, e com a aprovação prévia da CTNBio;
Pena – detenção de três meses a um ano.
§ 1º – Se resultar em:
a) incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias;
b) perigo de vida;
c) debilidade permanente de membro, sentido ou função;
d) aceleração de parto;
Pena – reclusão de um a cinco anos.
§ 2º – Se resultar em:
a) incapacidade permanente para o trabalho;
b) enfermidade incurável;
c) perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
d) deformidade permanente;
e) aborto;
Pena – reclusão de dois a oito anos.
§ 3º – Se resultar em morte;
Pena – reclusão de seis a vinte anos.
III – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem
como material biológico disponível;
Pena – reclusão de seis a 20 anos.
IV – a intervenção in vivo em material genético de animais, excetuados os casos em que tais
intervenções se constituam em avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento
tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio da responsabilidade e o
princípio da prudência, e com aprovação prévia da CTNBio;
Pena – reclusão de três meses a um ano.
V – a liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM em desacordo com as normas
estabelecidas pela CTNBio e constantes na regulamentação desta Lei.
Pena – reclusão de um a três anos.
§ 1º – Se resultar em:
a) lesões corporais leves;
b) perigo de vida;
c) debilidade permanente de membro, sentido ou função;
d) aceleração de parto;
e) dano à propriedade alheia;
f) dano ao meio ambiente;
Pena – reclusão de dois a cinco anos.
§ 2º – Se resultar em:
a) incapacidade permanente para o trabalho;
b) enfermidade incurável;
c) perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
d) deformidade permanente;
e) aborto;
f) inutilização da propriedade alheia;
g) dano grave ao meio ambiente; Pena – reclusão de dois a oito anos;
§ 3º – Se resultar em morte;
Pena – reclusão de seis a 20 anos.
§ 4º – Se a liberação, o descarte no meio ambiente ou a introdução no meio de OGM for
culposo:
Pena – reclusão de um a dois anos.
§ 5º — Se a liberação, o descarte no meio ambiente ou a introdução no País de OGM for
culposa, a pena será aumentada de um terço se o crime resultar de inobservância de regra técnica
de profissão.
§ 6º – O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de
responsabilidade civil e criminal por danos causados ao homem, aos animais, às plantas e ao
meio ambiente, em face do descumprimento desta Lei.
Art. 14º – Sem obstar a aplicação das penas previstas nesta Lei, é o autor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio
ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.
Disposições Gerais e Transitórias
Art. 15º – Esta Lei será regulamentada no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de sua
publicação.
Art. 16º – As entidades que estiverem desenvolvendo atividades reguladas por esta Lei na data
de sua publicação, deverão adequar-se às suas disposições no prazo de 120 dias, contados da
publicação do decreto que a regulamentar, bem como apresentar relatório circunstanciado dos
produtos existentes, pesquisas ou projetos em andamento envolvendo OGM.
Parágrafo único. Verificada a existência de riscos graves para a saúde do homem ou dos
animais, para as plantas ou para o meio ambiente, a CTNBio determinará a paralisação imediata
da atividade.
Art. 17º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 18º – Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 5 de janeiro de 1995; 174º da Independência e 107º da República
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Nelson Jobim
José Eduardo de Andrade Vieira
Paulo Renato Souza
Adib Jatene
José Israel Vargas
Gustavo Krause

Anexo I
Para efeitos desta Lei, os organismos geneticamente modificados classificam-se da seguinte
maneira:
Grupo I: compreendem os organismos que preenchem os seguintes critérios:
A. Organismo receptor ou parental
– não-patogênico;
– isento de agentes adventícios;
– com amplo histórico documentado de utilização segura, ou a incorporação de barreiras
biológicas que, sem interferir no crescimento ótimo em reator ou fermentador, permita uma
sobrevivência e multiplicação limitadas, sem efeitos negativos para o meio ambiente.

B. Vetor/inserto
– deve ser adequadamente caracterizado e desprovido de sequências nocivas conhecidas;
– deve ser de tamanho limitado, no que for possível, às sequências genéticas necessárias para
realizar a função projetada;
– não deve incrementar a estabilidade do organismo modificado no meio ambiente;
– deve ser escassamente mobilizável;
– não deve transmitir nenhum marcador de resistência a organismos que, de acordo com os
conhecimentos disponíveis, não o adquira de forma natural.

C. Organismos geneticamente modificados: – não-patogênicos;


– que ofereçam a mesma segurança que o organismo receptor ou parental no reator ou
fermentador, mas com sobrevivência e/ou multiplicação limitadas, sem efeitos negativos para o
meio ambiente.

D. Outros organismos geneticamente modificados que poderiam se incluir no Grupo I, desde que
reúnam as condições estipuladas no item C anterior:
– micro-organismos construídos inteiramente a partir de um único receptor procariótico (incluindo
plasmídeos e vírus endógenos) ou de um único receptor eucariótico (incluindo seus cloroplastos,
mitocôndrias e plasmídeos, mas excluindo os vírus) e organismos compostos inteiramente por
sequências genéticas de diferentes espécies que troquem tais sequências mediante processos
fisiológicos conhecidos.
Grupo II: todos aqueles não incluídos no Grupo I.
4. Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde/MS

O plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Ordinária,


realizada nos dias 09 e 10 de outubro de 1996, no uso de suas Competências regimentais e
atribuições conferidas pela Lei nº 8080 de 19 de setembro de 1990, e pela Lei nº 8.142, de 28 de
dezembro de 1990, resolve:
Aprovar as seguintes diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres
humanos:

I. Preâmbulo

A presente Resolução fundamenta-se nos principais documentos internacionais que emanaram


declarações e diretrizes sobre pesquisas que envolvem seres humanos: O Código de Nuremberg
(1947), a Declaração dos Direitos do Homem (1948), a Declaração de Helsinque (1964 e suas
versões posteriores de 1975, 1983 e 1989), o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,
ONU, 1966, Aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992), as Propostas de Diretrizes
Éticas internacionais para pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982
e 1983) e as Diretrizes internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS,
1991). Cumpre as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da
legislação brasileira correlata: Código de Direitos do Consumidor, Código Civil e Código Penal,
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica da Saúde 8080, de 19/09/90 (dispõe sobre as
condições de atenção à saúde, à organização e o funcionamento dos serviços correspondentes),
Lei 8.142, de 28/12/90 (participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde),
Decreto 99.438 de 07/08/90 (organização e atribuições do conselho Nacional de Saúde).
Decreto 98.830, de 15/01/90 (coleta por estrangeiros de dados e materiais científicos no Brasil),
Lei 8.489, de 18/11/92, e Decreto 879, de 22/07/93 (dispõem sobre retirada de tecidos, órgãos e
outras partes do corpo humano com fins humanitários e científicos), Lei 8.501, de 30/11/92
(utilização de cadáver), Lei 8.974, de 05/01/95 (uso das técnicas de engenharia genética e
liberação do meio ambiente de organismos geneticamente modificados), Lei 9.279, de 14/05/96
(regula direitos e obrigações relativas à propriedade industrial) e outras.
Essa Resolução incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais
básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa
assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da
pesquisa e ao Estado.
O caráter contextual das considerações aqui desenvolvidas implica em revisões periódicas
desta Resolução, conforme necessidades nas áreas tecno-científica e ética.
Ressalta-se, ainda, que cada área temática de investigação e cada modalidade de pesquisa,
além de respeitar os princípios emanados deste texto, deve cumprir as exigências setoriais e
regulamentações específicas.

II. Termos e definições

A presente Resolução adota no seu âmbito as seguintes definições:


II.1. Pesquisa – classe de atividades cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o
conhecimento generalizável. O conhecimento generalizável consiste em teorias, relações ou
princípios ou no acúmulo de informações sobre as quais estão baseados, que possam ser
corroborados por métodos científicos aceitos de observações e interferência.

II.2. Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o
ser humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de
informações ou materiais.

II.3. Protocolo de Pesquisa – Documentos contemplando a descrição da pesquisa em seus


aspectos fundamentais, informações relativas ao sujeito da pesquisa, à qualificação dos
pesquisadores e a todas as instâncias responsáveis.

II.4. Pesquisador responsável – pessoa responsável pela coordenação e realização da pesquisa


e pela integridade e bem-estar dos sujeitos da pesquisa.

II.5. Instituição de pesquisa – organização, pública ou privada, legitimamente constituída e


habilitada na qual são realizadas investigações científicas.

II.6. Promotor – indivíduo ou instituição, responsável pela promoção da pesquisa.

II.7. Patrocinador – pessoa física ou jurídica que apoia financeiramente a pesquisa

II.8. Risco da pesquisa – possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual,
social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente.

II.9. Dano associado ou decorrente da pesquisa – agravo imediato ou tardio, ao indivíduo ou à


coletividade, com nexo causal comprovado, direto, ou indireto, decorrente do estudo científico.

II.10. Sujeito da pesquisa – é o(a) participante pesquisado(a), individual ou coletivamente, de


caráter voluntário, vedada qualquer forma de remuneração.

II.11. Consentimento livre e esclarecido – anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu


representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou
intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus
objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar,
formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa.

II.12. Indenização – cobertura material, em reparação a dano imediato ou tardio, causado pela
pesquisa ao ser humano a ela submetida.

II.13. Ressarcimento – cobertura, em compensação, exclusiva de despesas decorrentes da


participação do sujeito na pesquisa.

II.14. Comitês de Ética em Pesquisa – CEP – colegiados interdisciplinares e independentes


com “manus público”, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os
interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no
desenvolvimento da pesquisa dentro dos padrões éticos.

II.15. Vulnerabilidade – refere-se a estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou
motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao
consentimento livre e esclarecido.

II.16. Incapacidade – refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil
para dar seu consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado de acordo
com a legislação brasileira vigente.

III. Aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos

As pesquisas envolvendo seres humanos devem atender às exigências éticas e científicas


fundamentais:

III.1. A eticidade da pesquisa implica em:

a) consentimento livre esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos


legalmente incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá
sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua
vulnerabilidade;

b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais quanto potenciais, individuais ou coletivos
(beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;

c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência);

d) relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e


minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos
interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e
equidade).

III.2. Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não
esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa e, portanto,
deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução. Os procedimentos referidos incluem, entre
outros, os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, socióloga, econômica,
física, psíquica ou biológica, sejam elas farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade
preventiva, diagnóstica ou terapêutica.

III.3. A pesquisa em quaisquer áreas do conhecimento, envolvendo seres humanos deverá


observar as seguintes exigências:

a) ser adequada aos princípios que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a
incertezas;

b) estar fundamentada na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais ou em


outros fatos científicos;

c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido
por outro meio;
d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefícios esperados sobre os riscos previsíveis;

e) obedecer a metodologia adequada. Se houver necessidade de distribuição aleatória dos


sujeitos da pesquisa, em grupos experimentais e de controle, assegurar que, a priori, não seja
possível estabelecer as vantagens de um procedimento sobre outro através da revisão da
literatura, métodos observacionais ou métodos que não envolvam seres humanos;

f) ter plenamente justificada, quando for o caso, a utilização de placebo, em termos de não
maleficência e de necessidade metodológica;

g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa e/ou seu representante
legal;

h) contar com os recursos humanos e materiais necessários que garantam o bem-estar do


sujeito da pesquisa, devendo ainda haver adequação entre a competência do pesquisador e
projeto proposto;

i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da


imagem e a não estigmatização, garantindo a não utilização de informações em prejuízo das
pessoas e/ou das comunidades, inclusive em termos de autoestima, de prestígio e/ou econômico-
financeiro;

j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena, indivíduos ou grupos


vulneráveis não devem ser sujeitos de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida
através de sujeito com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios
diretos aos vulneráveis. Nestes casos, o direito dos indivíduos ou grupos que queiram participar da
pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a proteção à sua vulnerabilidade
legalmente definida;

l) respeitar sempre os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como os
hábitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades;

m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em


benefícios cujos efeitos constituem a se fazer sentir após sua conclusão. O projeto deve analisar as
diferenças presentes entre elas, explicitando como será assegurado o respeito às mesmas;

n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as
comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver
benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo
de pesquisa deve incluir, sempre que possível, disposições para comunicar tal benefício às
pessoas e/ou comunidades;

o) comunicar às autoridades sanitárias os resultados da pesquisa, sempre que os mesmos


puderem contribuir para a melhoria das condições de saúde da coletividade, preservando, porém,
a imagem e assegurando que os sujeitos da pesquisa não sejam estigmatizados ou percam a
autoestima;

p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de


retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa;

q) assegurar aos sujeitos da pesquisa as condições de acompanhamento, tratamento ou


orientação, conforme o caso, nas pesquisas de tratamento ou de orientação, conforme o caso, nas
pesquisas de rastreamento; demonstrar a preponderância de benefícios sobre riscos e custos;

r) assegurar a inexistência de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da


pesquisa ou patrocinador do projeto;

s) comprovar, nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperação estrangeira, os


compromissos e as vantagens, para sujeitos das pesquisas e para o Brasil, decorrente de sua
realização. Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituição nacionais
corresponsáveis pela pesquisa. O protocolo deverá observar as exigências da Declaração de
Helsinque e incluir documento de aprovação, no país de origem, entre os apresentados para
avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição Brasileira, que exigirá o cumprimento de
seus próprios referenciais éticos. Os estudos patrocinados no exterior também devem responder
às necessidades de treinamento de pessoal no Brasil, para que o país possa desenvolver projetos
similares de forma independente;

t) utilizar o material biológico e os dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade


prevista no seu protocolo;

u) levar em conta, nas pesquisas realizadas em mulheres em idade fértil ou em mulheres


grávidas, avaliação e riscos e benefícios e as eventuais interferências sobre a fertilidade, a
gravidez, o embrião ou o feto, o trabalho de parto, o puerpério, a lactação e o recém-nascido;

v) considerar que as pesquisas em mulheres grávidas devem ser precedidas de pesquisa em


mulheres fora do período gestacional, exceto quando a gravidez for o objetivo fundamental da
pesquisa;

x) propiciar, nos estudos multicêntricos, a participação dos pesquisadores que desenvolverão a


pesquisa na elaboração do delineamento geral do projeto; e z) descontinuar o estudo somente
após a análise das razões da descontinuidade pelo CEP que a aprovou.

IV. Consentimento livre e esclarecido

Respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento
livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais
manifestam anuência à participação na pesquisa.

IV.1. Exige-se que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que se inclua
necessariamente os seguintes aspectos:

a) a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa;

b) os desconfortos e riscos possíveis e os benefícios esperados;

c) os métodos alternativos existentes;

d) a forma de acompanhamento e assistência, assim como seus responsáveis;

e) a garantia de esclarecimentos, antes e durante o curso da pesquisa, sobre a metodologia,


informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou placebo;

f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase


da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado;

g) a garantia de sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados confidenciais
envolvidos na pesquisa;

h) as formas de ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa; e

i) as formas de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa.


IV.2. O termo de consentimento livre e esclarecido obedecerá aos seguintes requisitos:

a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada uma das
exigências acima;

b) ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação;

c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos
da pesquisa ou por seus representantes legais; e

d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retirada pelo sujeito da pesquisa ou por seu
representante legal e uma arquivada pelo pesquisador.

IV.3. Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessários
para o adequado consentimento, deve-se ainda observar:

a) em pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, portadores de perturbação ou doença


mental e sujeitos em situação de substancial diminuição em suas capacidades de consentimento,
deverá haver justificação clara da escolha dos sujeitos da pesquisa, especificada no protocolo,
aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, e cumprir as exigências do consentimento livre e
esclarecido, através dos representantes legais dos referidos sujeitos, sem suspensão dos direitos
de informação do indivíduo, no limite de sua capacidade;

b) a liberdade do consentimento deverá ser particularmente para aqueles sujeitos que, embora
adultos e capazes, estejam expostos a condicionamentos específicos ou à influência de
autoridade, especialmente estudantes, militares, empregados, presidiários, internos em centros de
readaptação, casas, abrigos, asilos, associações religiosas ou semelhantes, assegurando-lhes a
inteira liberdade de participar ou não da pesquisa, sem quaisquer represálias;

c) nos casos em que seja impossível registrar o consentimento livre e esclarecido, tal fato deve
ser devidamente documentado, com explicação das causas da impossibilidade, e parecer do
Comitê de Ética em Pesquisa;

d) as pesquisas em pessoas com o diagnóstico de morte encefálica só podem ser realizadas


desde que sejam preenchidos as seguintes condições:

documento comprobatório da morte encefálica (atestado de óbito);


consentimento explícito dos familiares e/ou do responsável legal, ou manifestação prévia da
vontade da pessoa;
respeito total à dignidade do ser humano sem mutilação ou violação do corpo;
sem ônus econômico ou financeiro adicional à família;
sem prejuízo para outros pacientes aguardando internação ou tratamento;
possibilidade de obter conhecimento específico relevante, novo e que não possa ser obtido
de outra maneira;

e) em comunidades culturalmente diferenciadas, inclusive indígenas, deve-se contar com a


anuência antecipada da comunidade através dos seus próprios líderes, não se dispensando,
porém, esforços no sentido de obtenção do consentimento individual;

f) quando o mérito da pesquisa depender de alguma restrição de informação ao sujeito, tal fato
deve ser devidamente explicitado e justificado pelo pesquisador e submetido ao Comitê de Ética
em Pesquisa. Os dados obtidos a partir dos sujeitos da pesquisa não poderão ser usados para
outros fins que os não previstos no protocolo e/ou no consentimento.
V. Riscos e benefícios

Considera-se que toda pesquisa envolvendo seres humanos envolve risco. O dano eventual
poderá ser imediato ou tardio, comprometendo o indivíduo ou a coletividade.

VI. Não obstante, os riscos potenciais, as pesquisas envolvendo seres humanos serão
admissíveis quando:

a) oferecerem elevada possibilidade de gerar conhecimento para entender, prevenir ou aliviar


um problema que afete o bem-estar dos sujeitos da pesquisa e de outros indivíduos;

b) o risco se justifique pela importância do benefício esperado;

c) o benefício seja maior, ou no mínimo igual, a outras alternativas já estabelecidas para a


prevenção, o diagnóstico e o tratamento.
V2. As pesquisas sem benefício direto ao indivíduo devem prever condições de serem bem
suportadas pelos sujeitos da pesquisa, considerando sua situação física, psicológica, social e
educacional.

V3. O pesquisador responsável é obrigado a suspender a pesquisa imediatamente ao perceber


algum risco ou dano à saúde do sujeito participante da pesquisa, consequente à mesma, não
previsto no termo de consentimento. Do mesmo modo, tão logo constatada a superioridade de um
método em estudo sobre outro, o projeto deverá ser suspenso, oferecendo-se a todos os sujeitos
os benefícios do melhor regime.

V.4. O Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição deverá ser informado de todos os efeitos
adversos ou fatos relevantes que alterem o curso normal do estudo.

V.5. O pesquisador, o patrocinador e a instituição devem assumir a responsabilidade de dar


assistência integral às complicações e danos decorrentes dos riscos previstos.

V.6. Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou não no termo
de consentimento e resultante de sua participação, além do direito à assistência integral, têm
direito à indenização.

V.7. Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao
direito de indenização por dano. O formulário do consentimento livre e esclarecido não deve conter
nenhuma ressalva que afaste essa responsabilidade ou que implique ao sujeito da pesquisa abrir
mão de seus direitos legais, incluindo o direito de procurar obter indenização por danos eventuais.

VI. Protocolo de pesquisa

Protocolo a ser submetido à revisão ética somente poderá ser apreciado se estiver instruído
com os seguintes documentos, em português:

VI.1. folha de rosto: título do projeto, nome, número da carteira de identidade, CPF, telefone e
endereço para correspondência do pesquisador responsável e do patrocinador, nome e assinatura
dos dirigentes da instituição e/ou organização;
VI.2. descrição da pesquisa, compreendendo os seguintes itens:

a) descrição dos propósitos e das hipóteses a serem testadas;

b) antecedentes científicos e dados que justifiquem a pesquisa. Se a propósito for testar um


novo produto ou dispositivo para a saúde, de procedência estrangeira ou não, deverá ser indicada
a situação atual de registro junto a agências regulatórias do país de origem;

c) descrição detalhada e ordenada do projeto de pesquisa (material e métodos, casuística,


resultados esperados e bibliografia);

d) análise crítica de riscos e benefícios;

e) duração total da pesquisa, a partir da aprovação;

f) explicitação das responsabilidades do pesquisador, da instituição, do promotor e do


patrocinador;

g) explicitação de critérios para suspender ou encerrar a pesquisa;

h) local da pesquisa: detalhar as instalações dos serviços, centros, comunidades e instituições


nas quais se processarão as várias etapas da pesquisa;

i) demonstrativo da existência de infraestrutura necessária ao desenvolvimento da pesquisa e


para atender eventuais problemas dela resultantes, com a concordância documentada da
instituição;

j) orçamento financeiro detalhado da pesquisa: recursos, fontes e destinação, bem como a forma
e o valor da remuneração do pesquisador;

k) explicitação de acordo preexistente quanto à propriedade das informações geradas,


demonstrando a inexistência de qualquer cláusula restritiva quanto à divulgação pública dos
resultados, a menos que se trate de caso de obtenção de patenteamento; neste caso, os
resultados devem se tornar públicos, tão logo se encerre a etapa de patenteamento;

l) declaração de que os resultados da pesquisa serão tornados públicos, sejam eles favoráveis
ou não; e

m) declaração sobre o uso e destinação do material e/ou dados coletados.

VI.3. Informações relativas ao sujeito da pesquisa:

a) descrever as características da população a estudar: tamanho, faixa etária, sexo, cor


(classificação do IBGE), estado geral de saúde, classes e grupos sociais etc. Expor as razões
para a utilização de grupos vulneráveis;

b) descrever os métodos que afetem diretamente os sujeitos da pesquisa;

c) identificar as fontes de material de pesquisa, tais como espécimens, registros e dados a


serem obtidos de seres humanos. Indicar se esse material será obtido especificamente para os
propósitos da pesquisa ou se será usado para outros fins;

d) descrever os planos para o recrutamento de indivíduos e os procedimentos a serem seguidos.


Fornecer critérios de inclusão e exclusão;

e) apresentar o formulário ou termo de consentimento, específico para pesquisa, para


apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa, incluindo informações sobre as circunstâncias sob
as quais o consentimento será obtido, quem irá tratar de obtê-lo e a natureza da informação a ser
fornecida aos sujeitos da pesquisa;

f) descrever qualquer risco, avaliando sua possibilidade e gravidade;

g) descrever as medidas para proteção ou minimização de qualquer risco eventual. Quando


apropriado, descrever as medidas para assegurar os necessários cuidados à saúde, no caso de
danos aos indivíduos. Descrever também os procedimentos para monitoramento da coleta de
dados para prover a segurança dos indivíduos, incluindo as medidas de proteção à
confidencialidade;

h) apresentar previsão de ressarcimento de gastos aos sujeitos da pesquisa. A importância


referente não poderá ser de tal manta que possa interferir na autonomia da decisão do indivíduo ou
responsável de participar ou não da pesquisa.

VI.4. qualificação dos pesquisadores: “Curriculum Vitae” do pesquisador responsável e dos


demais participantes.

VI.5. termo de compromisso do pesquisador responsável e da instituição de cumprir os termos


desta Resolução.

VII. Comitê de ética em pesquisa – CEP

Toda pesquisa envolvendo seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um Comitê de
Ética em Pesquisa:

VII.1. As instituições nas quais se realizem pesquisas envolvendo seres humanos deverão
constituir um ou mais de um Comitê de Ética em Pesquisa – CEP, conforme suas necessidades.

VII.2. Na impossibilidade de se constituir CEP, a instituição ou o pesquisador responsável


deverá submeter o projeto à apreciação do CEP de outra instituição, preferencialmente dentre os
indicado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS).

VII.3. Organização – A organização e criação do CEP serão da instituição, respeitadas as


normas desta Resolução, assim como o provimento de condições adequadas para o seu
funcionamento.

VII.4. Composição – O CEP deverá ser constituído por colegiado com número não inferior a 7
(sete) membros. Sua constituição deverá incluir a participação de profissionais da área de saúde,
das ciências exatas, sociais e humanas, incluindo, por exemplo, juristas, teólogos, sociólogos,
filósofos, bioeticistas e, pelo menos, um membro da sociedade representando os usuários da
instituição. Poderá variar na sua composição, dependendo das especificidades da instituição e
das linhas de pesquisa a serem analisadas.

VII.5. Terá sempre caráter multi e transdisciplinar, não devendo haver mais que metade de seus
membros pertencentes à mesma categoria profissional, participando pessoas dos dois sexos.
Poderá ainda contar com consultores “ad hoc”, pessoas pertencentes ou não à instituição com a
finalidade de fornecer subsídios técnicos.
VII.6. No caso de pesquisas em grupos vulneráveis, comunidades e coletividades, deverá ser
convidada um representante como membro “ad hoc” do CEP, para participar da análise do projeto
específico.

VII.7. Nas pesquisas em população indígena deverá participar um consultor familiarizado com os
costumes e tradições da comunidade.

VII.8. Os membros do CEP deverão se isentar de tomada de decisão, quando diretamente


envolvidos na pesquisa em análise.

VII.9. Mandato e escolha dos membros – A composição de cada CEP deverá ser definida a
critério da instituição, sendo pelo menos, metade dos membros com experiência em pesquisa,
eleitos pelos seus pares.
A escolha da coordenação de cada Comitê deverá ser feita pelos membros que compõem o
colegiado, durante a primeira reunião de trabalho. Será de três anos a duração do mandato, sendo
permitida recondução.

VII.10. Remuneração – Os membros do CEP não poderão ser remunerados no desempenho


desta tarefa, sendo recomendável, porém, que sejam dispensados nos horários de trabalho do
Comitê das outras obrigações nas instituições às quais prestam serviços, podendo receber
ressarcimento de despesas efetuadas com transporte, hospedagem e alimentação.

VII.11. Arquivo – O CEP deverá manter em arquivo o projeto, o protocolo e os relatórios


correspondentes, por 5 (cinco) anos após o encerramento do estudo.

VII.12. Liberdade de trabalho – Os membros dos CEPs deverão ter total independência na
tomada das decisões no exercício das suas funções, mantendo sob caráter confidencial as
informações recebidas. Deste modo, não podem sofrer qualquer tipo de pressão por parte de
superiores hierárquicos ou pelos interessados em determinada pesquisa, devem isentar-se de
envolvimento financeiro e não devem estar submetidos a conflito de interesse.

VII.13. Atribuições do CEP

a) revisar os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, inclusive os multicêntricos,


cabendo-lhe a responsabilidade primária pelas decisões sobre a ética da pesquisa a ser
desenvolvida na instituição, de modo a garantir e resguardar a integridade e os direitos dos
voluntários participantes nas referidas pesquisas;

b) emitir parecer consubstanciado por escrito, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, identificando
com clareza o ensaio, documentos estudados e datas de revisão. A revisão de cada protocolo
culminará com seu enquadramento em uma das seguintes categorias:

aprovado
com pendência: quando o Comitê considera o protocolo como aceitável, porém identifica
determinados problemas no protocolo, no formulário do consentimento ou em ambos, e
recomenda uma revisão específica ou solicita uma modificação ou informação relevante, que
deverá ser atendida em 60 (sessenta) dias pelos pesquisadores;
retirado: quando, transcorrido o prazo, o protocolo permanece pendente;
não aprovado; e
aprovado e encaminhado, com o devido parecer, para apreciação pela Comissão nacional
de Ética e Pesquisa-CONEP/MS, nos casos previstos no capítulo VIII, item 4.c.

c) manter a guarda confidencial de todos os dados obtidos na execução de sua tarefa e


arquivamento do protocolo completo, que ficará à disposição das autoridades sanitárias;

d) acompanhar o desenvolvimento dos projetos de relatórios anuais dos pesquisadores;

e) desempenhar papel consultivo e educativo, fomentando a reflexão em torno da ética na


ciência;

f) receber os sujeitos da pesquisa ou de qualquer outra parte, denúncias abusos ou notificação


sobre fatos adversos que possam alterar o curso normal do estudo, decidindo pela continuidade,
modificação ou suspensão da pesquisa, devendo, se necessário, adequar o termo de
consentimento. Considera-se como antiética a pesquisa descontinuada sem justificativa aceita
pelo CEP que a aprovou;

g) requerer instauração de sindicância à direção da instituição em caso de denúncias de


irregularidades de natureza ética nas pesquisas e, em havendo comprovação, comunicar à
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS) e, no que couber, a outras instâncias; e

h) manter comunicação regular e permanente com a CONEP/MS.

VII.14. Atuação do CEP:

a) a revisão ética de toda e qualquer proposta de pesquisa envolvendo seres humanos não
poderá ser dissociada da sua análise científica. Pesquisa que não se faça acompanhar do
respectivo protocolo não deve ser analisado pelo Comitê.

b) cada CEP deverá elaborar suas normas de funcionamento, contendo metodologia de


trabalho, a exemplo de: elaboração das atas; planejamento anual de suas atividades;
periodicidade de reuniões; número mínimo de presentes para início das reuniões; prazos para
emissão de pareceres; critérios para solicitação de consultas de experts na área em que desejam
informações técnicas; modelo de tomada de decisão, etc.

VIII. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS)

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS) é uma instância colegiada de


natureza consultiva, deliberativa, normativa, educativa, independente, vinculada ao Conselho
Nacional de Saúde.

O Ministério da Saúde adotará as medidas necessárias para o funcionamento pleno da


Comissão e de sua Secretaria Executiva.

VIII.1. Composição: A CONEP terá composição multi e transdisciplinar, com pessoas de ambos
os sexos e deverá ser composta por 13 (treze) membros titulares e seus suplentes, sendo 05
(cinco) deles personalidades destacadas no campo da ética na pesquisa e na saúde e 08 (oito)
personalidades com destacada atuação nos campos teológico, jurídico e outros, assegurando-se
de que pelo menos um seja da área de gestão da saúde.
Os membros serão selecionados, a partir de listas indicativas elaboradas pelas instituições que
possuem CEP registrados na CONEP, sendo que 07 (sete) serão escolhidos pelo Conselho
Nacional de Saúde e 06 (seis) serão definidos por sorteio.
Poderá contar, também, com consultores e membros “ad hoc”, assegurada a representação dos
usuários.

VIII.2. Cada CEP poderá indicar duas personalidades.

VIII.3. O mandato dos membros do CONEP será de quatro anos com renovação alternada a
cada dois anos, de sete ou seis de seus membros.

VIII.4. Atribuições do CONEP – Compete à CONEP o exame dos aspectos éticos da pesquisa
envolvendo seres humanos, bem como, a adequação e atualização das normas atinentes. A
CONEP consultará a sociedade sempre que julgar necessário, cabendo-lhe, entre outras, as
seguintes atribuições:

a) estimular a criação de CEPs institucionais e de outras instâncias;

b) registrar os CEPs institucionais e de outras instâncias;

c) aprovar, no prazo de 60 dias, e acompanhar os protocolos de pesquisa em áreas temáticas


especiais como:

1. genética humana;
2. reprodução humana;
3. fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos novos (fases I, II e III) ou não
registrados no país (ainda que em fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com
modalidades, indicações, doses ou vias de administração diferentes daquelas
estabelecidas, incluindo seu emprego em combinações;
4. equipamentos, insumos e dispositivos para a saúde novos, ou não registrados no país;
5. novos procedimentos ainda não consagrados na literatura;
6. população indígena;
7. projetos que envolvam aspectos de biossegurança;
8. pesquisas coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e pesquisas que
envolvam remessa de material biológico para o exterior; e
9. projetos que, a critério do CEP, devidamente justificado, sejam julgados merecedores de
análise pela CONEP;
10. prover normas específicas no campo da ética em pesquisa, inclusive nas áreas temáticas
especiais, bem como recomendações para aplicação das mesmas;

e) funcionar como instância final de recursos, a partir de informações fornecidas


sistematicamente, em caráter ex-ofício ou a partir de denúncias ou de solicitação de partes
interessadas, devendo manifestar-se em prazo não superior a 60 (sessenta) dias;

f) rever responsabilidades, proibir ou interromper pesquisas, definitiva ou temporariamente,


podendo requisitar protocolos para revisão ética inclusive, os já aprovados pelo CEP;

g) constituir um sistema de informação e acompanhamento dos aspectos éticos das pesquisas


envolvendo seres humanos em todo o território nacional, mantendo atualizados os bancos de
dados;

h) informar e assessorar o MS, o CNS e outras instâncias do SUS, bem como do governo e da
sociedade, sobre questões éticas relativas à pesquisa em seres humanos;

i) divulgar esta e outras normas relativas à ética em pesquisa envolvendo seres humanos;
j) o CONEP, juntamente com outros setores do Ministério da Saúde, estabelecerá normas e
critérios para o credenciamento de Centres de Pesquisa. Este credenciamento deverá ser
proposto pelos setores do Ministério da Saúde, de acordo com suas necessidades, e aprovado
pelo Conselho Nacional de Saúde; e

1) estabelecer suas próprias normas de funcionamento.

VIII.5. A CONEP submeterá ao CNS para sua deliberação:

a) propostas de normas gerais a serem aplicadas às pesquisas envolvendo seres humanos,


inclusive modificações desta norma;

b) plano de trabalho anual;

c) relatório anual de suas atividades, incluindo sumário dos CEP estabelecidos e dos projetos
analisados.

IX. Operacionalização

IX.1. Todo e qualquer projeto de pesquisa envolvendo seres humanos deverá obedecer às
recomendações desta Resolução e dos documentos endossados em seu preâmbulo. A
responsabilidade do pesquisador é indelegável, indeclinável e compreende os aspectos éticos e
legais.

IX.2. Ao pesquisador cabe:

a) apresentar o protocolo, devidamente instruído ao CEP, aguardando o pronunciamento deste,


antes de iniciar a pesquisa;

b) desenvolver o projeto conforme delineado;

c) elaborar e apresentar os relatórios parciais e final;

d) apresentar dados solicitados pelo CEP, a qualquer momento;

e) manter em arquivo, sob sua guarda, por 5 anos, os dados da pesquisa, contendo fichas
individuais e todos os demais documentos recomendados pelo CEP;

f) encaminhar os resultados para publicação, com os devidos créditos aos pesquisadores


associados e ao pessoal técnico participante do projeto;

g) justificar, perante o CEP, interrupção do projeto ou a não publicação dos resultados.

IX.3. O Comitê de Ética em Pesquisa Institucional deverá estar registrado junto à CONEP/MS.

IX.4. Uma vez aprovado o projeto, o CVEP passa a ser corresponsável no que se refere aos
aspectos éticos da pesquisa.

IX.5. Consideram-se autorizados para execução, os projetos aprovados pelo CEP, exceto os
que se enquadrarem nas áreas temáticas especiais, os quais, após aprovação pelo CEP
institucional deverão ser enviados à CONEP/MS, que dará o devido encaminhamento.
IX.6. Pesquisas com novos medicamentos, vacinas, testes diagnósticos, equipamentos e
dispositivos para saúde deverão ser encaminhados do CEP à CONEP/MS e desta, após parecer,
à Secretaria de Vigilância Sanitária.

IX.7. As agências de fomento a pesquisas e o corpo editorial das revistas científicas deverão
exigir documentação comprobatória de aprovação do projeto pelo CEO e/ou CONEP, quando for o
caso.

IX.8. Os CEP institucionais deverão encaminhar trimestralmente à CONEP/MS a relação dos


projetos de pesquisa analisados, aprovados e concluídos, bem como dos projetos em andamento
e, imediatamente, aqueles suspensos.

X. Disposições transitórias

X.l. O Grupo Executivo de Trabalho – GET, constituído através da Resolução CNS 170/95,
assumirá as atribuições da CONEP até sua constituição, responsabilizando-se por:

a) tomar as medidas necessárias ao processo de criação da CONEP/MS;

b) estabelecer normas para registro dos CEP institucionais.

X.2. O GET terá 180 dias para finalizar as suas tarefas

X.3. Os CEP das instituições devem proceder, no prazo de 90 (noventa) dias, ao levantamento e
análise, se for caso, dos projetos de pesquisa em seres humanos já em andamento, devendo
encaminhar à CONEP/MS. A relação dos mesmos.

X.4. Fica revogada a Resolução 01/88.

ADIB D. JATENE – Presidente do Conselho


Homologo a Resolução CNS nº 196, de 10 de Outubro de 1996, nos termos do Decreto de
Delegação de
Competência de 12 de Novembro de 1991.
ADIB D. JATENE – Ministro de Estado da Saúde
5. Declaração Universal do Genoma Humano e dos
Direitos Humanos – 1997

O Comitê de Especialistas Governamentais, convocado em julho de 1997 para a conclusão de


um projeto de declaração sobre o genoma humano, examinou o esboço preliminar revisto redigido
pelo Comitê Internacional de Bioética. Ao término de suas deliberações, em 25 de julho de 1997, o
Comitê de Especialistas Governamentais, no qual mais de 80 Estados estiveram representados,
adotou por consenso o Projeto de uma Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos
Humanos, que foi apresentado para adoção na 29a sessão da Conferência Geral da Unesco (de
21 de outubro a 12 de novembro de 1997).

Dignidade Humana e o Genoma Humano

Artigo 1º
O genoma humano subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e
também ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido simbólico, é a
herança da humanidade.

Artigo 2º
a) Todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos humanos,
independentemente de suas características genéticas.

b) Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características
genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade.

Artigo 3º
O genoma humano, que evolui por sua própria natureza, é sujeito a mutações. Ele contém
potencialidades que são expressas de maneira diferente segundo o ambiente natural e social de
cada indivíduo, incluindo o estado de saúde do indivíduo, suas condições de vida, nutrição e
educação.

Artigo 4º
O genoma humano em seu estado natural não deve dar lugar a ganhos financeiros.

Direitos das Pessoas Envolvidas

Artigo 5º
a) Pesquisas, tratamento ou diagnóstico que afetem o genoma de um indivíduo devem ser
empreendidas somente após a rigorosa avaliação prévia dos potenciais riscos e benefícios a
serem incorridos, e em conformidade com quaisquer outras exigências da legislação nacional.
b) Em todos os casos é obrigatório o consentimento prévio, livre e informado da pessoa
envolvida. Se esta não se encontrar em condições de consentir, o consentimento ou autorização
deve ser obtido na maneira prevista pela lei, orientada pelo melhor interesse da pessoa.

c) Será respeitado o direito de cada indivíduo de decidir se será ou não informado dos
resultados de seus exames genéticos e das consequências resultantes.
d) No caso de pesquisas, os protocolos serão, além disso, submetidos a uma revisão prévia em
conformidade com padrões ou diretrizes nacionais e internacionais relevantes relativos a
pesquisas.

e) Se, de acordo com a lei, uma pessoa não tiver a capacidade de consentir, as pesquisas
relativas a seu genoma só poderão ser empreendidas com vistas a beneficiar diretamente sua
própria saúde, sujeitas à autorização e às condições protetoras descritas pela lei. As pesquisas
que não previrem um benefício direto à saúde somente poderão ser empreendidas a título de
exceção, com restrições máximas, expondo a pessoa apenas a riscos e ônus mínimos e se as
pesquisas visarem contribuir para o benefício da saúde de outras pessoas que se enquadram na
mesma categoria de idade ou que tenham as mesmas condições genéticas, sujeitas às condições
previstas em lei, e desde que tais pesquisas sejam compatíveis com a proteção dos direitos
humanos do indivíduo.

Artigo 6º
Ninguém será sujeito à discriminação baseada em características genéticas que vise infringir ou
exerça o efeito de infringir os direitos humanos, as liberdades fundamentais ou a dignidade
humana.

Artigo 7º
Quaisquer dados genéticos associados a uma pessoa identificável e armazenados ou
processados para fins de pesquisa ou para qualquer outra finalidade devem ser mantidos em
sigilo, nas condições previstas em lei.
Artigo 8º
Todo indivíduo terá o direito, segundo a lei internacional e nacional, à justa reparação por danos
sofridos em consequência direta e determinante de uma intervenção que tenha afetado seu
genoma.

Artigo 9º
Com o objetivo de proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, as limitações
aos princípios do consentimento e do sigilo só poderão ser prescritas por lei, por razões de força
maior, dentro dos limites da legislação pública internacional e da lei internacional dos direitos
humanos.

Pesquisas com o Genoma Humano

Artigo 10º
Nenhuma pesquisa ou aplicação de pesquisa relativa ao genoma humano, em especial nos
campos da biologia, genética e medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos,
às liberdades fundamentais e à dignidade humana dos indivíduos ou, quando for o caso, de grupos
de pessoas.
Artigo 11º
Não serão permitidas práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem
reprodutiva de seres humanos. Os Estados e as organizações internacionais competentes são
convidados a cooperar na identificação de tais práticas e a determinar, nos níveis nacional ou
internacional, as medidas apropriadas a serem tomadas para assegurar o respeito pelos
princípios expostos nesta Declaração.

Artigo 12º
a) Os benefícios decorrentes dos avanços em biologia, genética e medicina, relativos ao
genoma humano, deverão ser colocados à disposição de todos, com a devida atenção para a
dignidade e os direitos humanos de cada indivíduo.

b) A liberdade de pesquisa, que é necessária para o progresso do conhecimento, faz parte da


liberdade de pensamento. As aplicações das pesquisas com o genoma humano, incluindo aquelas
em biologia, genética e medicina, buscarão aliviar o sofrimento e melhorar a saúde dos indivíduos
e da humanidade como um todo.

Condições para o Exercício da Atividade Científica

Artigo 13º
As responsabilidades inerentes às atividades dos pesquisadores, incluindo o cuidado, a cautela,
a honestidade intelectual e a integridade na realização de suas pesquisas e também na
apresentação e na utilização de suas descobertas, devem ser objeto de atenção especial no
quadro das pesquisas com o genoma humano, devido a suas implicações éticas e sociais. Os
responsáveis pelas políticas científicas, em âmbito público e privado, também incorrem em
responsabilidades especiais a esse respeito.

Artigo 14º
Os Estados devem tomar medidas apropriadas para fomentar as condições intelectuais e
materiais favoráveis à liberdade na realização de pesquisas sobre o genoma humano e para levar
em conta as implicações éticas, legais, sociais e econômicas de tais pesquisas, com base nos
princípios expostos nesta Declaração.

Artigo 15º
Os Estados devem tomar as medidas necessárias para prover estruturas para o livre exercício
das pesquisas com o genoma humano, levando devidamente em conta os princípios expostos
nesta Declaração, para salvaguardar o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais
e à dignidade humana e para proteger a saúde pública. Eles devem buscar assegurar que os
resultados das pesquisas não sejam utilizados para fins não-pacíficos.

Artigo 16º
Os Estados devem reconhecer a importância de promover, nos diversos níveis apropriados, a
criação de comitês de ética independentes, multidisciplinares e pluralistas, para avaliar as
questões éticas, legais e sociais levantadas pelas pesquisas com o genoma humano e as
aplicações das mesmas.

Solidariedade e cooperação Internacional


Artigo 17º
Os Estados devem respeitar e promover a prática da solidariedade com os indivíduos, as
famílias e os grupos populacionais que são particularmente vulneráveis a, ou afetados por doenças
ou deficiências de caráter genético. Eles devem fomentar pesquisas “inter alia” sobre a
identificação, prevenção e tratamento de doenças de fundo genético e de influência genética, em
particular as doenças raras e as endêmicas, que afetam grande parte da população mundial.

Artigo 18º
Os Estados devem envidar todos os esforços, levando devidamente em conta os princípios
expostos nesta Declaração, para continuar fomentando a disseminação internacional do
conhecimento científico relativo ao genoma humano, a diversidade humana e as pesquisas
genéticas e, a esse respeito, para fomentar a cooperação científica e cultural, especialmente entre
os países industrializados e os países em desenvolvimento.

Artigo 19º
a) No quadro da cooperação internacional com os países em desenvolvimento, os Estados
devem procurar encorajar:

1. que seja garantida a avaliação dos riscos e benefícios das pesquisas com o genoma
humano, e que sejam impedidos os abusos;
2. que seja desenvolvida e fortalecida a capacidade dos países em desenvolvimento de
promover pesquisas sobre biologia e genética humana, levando em consideração os
problemas específicos desses países;
3. que os países em desenvolvimento possam se beneficiar das conquistas da pesquisa
científica e tecnológica, para que sua utilização em favor do progresso econômico e social
possa ser feita de modo a beneficiar todos;
4. que seja promovido o livre intercâmbio de conhecimentos e informações científicas nas áreas
de biologia, genética e medicina.

b) As organizações internacionais relevantes devem apoiar e promover as medidas tomadas


pelos Estados para as finalidades acima mencionadas.

Promoção dos Princípios Expostos na Declaração

Artigo 20º
Os Estados devem tomar medidas apropriadas para promover os princípios expostos nesta
Declaração, por meios educativos e relevantes, inclusive, “inter alia”, por meio da realização de
pesquisas e treinamento em campos interdisciplinares e da promoção da educação em bioética,
em todos os níveis, dirigida em especial aos responsáveis pelas políticas científicas.

Artigo 21º
Os Estados devem tomar medidas apropriadas para encorajar outras formas de pesquisa,
treinamento e disseminação de informações, meios estes que conduzam à conscientização da
sociedade e de todos seus membros quanto as suas responsabilidades com relação às questões
fundamentais relacionadas à defesa da dignidade humana que possam ser levantadas pelas
pesquisas em biologia, genética e medicina e às aplicações dessas pesquisas. Também devem
se propor a facilitar a discussão international aberta desse tema, assegurando a livre expressão
das diversas opiniões socioculturais, religiosas e filosóficas.
Implementação da Declaração

Artigo 22º
Os Estados devem envidar todos os esforços para promover os princípios expostos nesta
Declaração e devem promover sua implementação por meio de todas as medidas apropriadas.

Artigo 23º
Os Estados devem tomar as medidas apropriadas para promover, por meio da educação, da
formação e da disseminação da informação, o respeito pelos princípios acima mencionados e
para fomentar seu reconhecimento e sua aplicação efetiva. Os Estados também devem incentivar
os intercâmbios e as redes entre comitês éticos independentes, à medida que forem criados, com
vistas a fomentar uma cooperação integral entre eles.

Artigo 24º
O Comitê Internacional de Bioética da Unesco deve contribuir para a disseminação dos
princípios expostos nesta Declaração e para fomentar o estudo detalhado das questões
levantadas por suas aplicações e pela evolução das tecnologias em questão. Deve organizar
consultas apropriadas com as partes envolvidas, tais como os grupos vulneráveis. Deve fazer
recomendações, de acordo com os procedimentos estatutários da Unesco, dirigidas à
Conferência Geral, e emitir conselhos relativos à implementação desta Declaração, relativos
especialmente à identificação de práticas que possam ser contrárias à dignidade humana, tais
como intervenções nas células germinativas.

Artigo 25º
Nada do que está contido nesta Declaração pode ser interpretado como uma possível
justificativa para que qualquer Estado, grupo ou pessoa se engaje em qualquer atividade ou realize
qualquer ato contrário aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, incluindo, “inter alia”, os
princípios expostos nesta Declaração.
6. Declaração sobre a produção e o uso científico e
terapêutico das células estaminais embrionárias
humanas 2001

Pontifícia academia para a vida

A finalidade deste documento é dar uma contribuição ao debate em curso na literatura científica
e ética e na opinião pública sobre a produção e a utilização das células estaminais embrionárias.
De fato, considerando a importância cada vez maior que vem assumindo o debate acerca de seus
limites e licitude, impõe-se uma reflexão que coloque em evidência suas explicações éticas.
Na primeira parte, serão brevemente expostos os dados mais recentes fornecidos pela ciência
sobre as células estaminais e pela biotecnologia, a propósito de sua produção e uso. Na segunda
parte, serão evidenciados os problemas éticos mais relevantes levantados por essas novas
descobertas e aplicações.

Aspectos científicos

Uma definição, vulgarmente aceita, de “célula estaminal” – embora alguns aspectos requeiram
maior aprofundamento – é esta: uma célula que tem duas características:

1. a propriedade de uma autoconservação ilimitada, ou seja, o poder de reproduzir-se durante


muito tempo sem se diferenciar;
2. a capacidade de produzir células progenitoras de transição , com uma limitada capacidade
proliferadora, das quais deriva uma variedade de linhas de células altamente diferenciadas
(nervosas, musculares, hemáticas etc.).

Há cerca de trinta anos estas células tem constituído um amplo campo de pesquisa, quer em
tecidos adultos1, quer em tecidos embrionários, quer ainda na cultura in vitro de células estaminais
embrionárias de cobaias2. Mas a atenção pública concentrou-se recentemente nelas por causa de
um novo objetivo alcançado: a produção de células estaminais embrionárias humanas.

As células estaminais embrionárias humanas

Hoje, a preparação de células estaminais embrionárias humanas (ES, ESc, Embryo Stem
cells) implica3:

1. a produção de embriões humanos e/ou a utilização dos embriões excedentes da fecundação


in vitro ou crioconservados;

2. o desenvolvimento desses embriões até a fase inicial de blastócito;

3. a separação do embrioblasto ou massa celular interna (ICM)— o que implica a destruição do


embrião;
4. a cultura dessas células sobre uma camada nutriente de fibroblastos embrionários de ratos
irradiados e num ambiente apropriado, onde se multipliquem e combinem até formar colônias;

5. a repetida subcultura dessas colônias, que leva à formação de linhas celulares capazes de
se multiplicarem indefinidamente, conservando as características de células estaminais (ES)
durante meses e anos.

Todavia, essas ES constituem apenas o ponto de partida para a preparação das linhas de
células diferenciadas, ou seja, de células com características próprias dos distintos tecidos
(musculares, nervosos, epiteliais, hemáticos, germinais etc.). Os métodos para obtê-las ainda
estão em fase de estudo4; mas a inoculação das ES humanas em cobaias (ratos) ou a sua cultura
in vitro em circunstâncias controladas até à sua combinação demonstrou que elas são capazes de
dar origem a células diferenciadas que derivariam, numa evolução normal, dos três estratos
embrionários: endoderma (epitélio intestinal), mesoderma (cartilagem, osso, músculo liso e
estriado) e exoderma (epitélio neural, epitélio escamoso)5.
Esses resultados abalaram não só o mundo científico e biotecnológico – particularmente médico
e farmacológico –, mas também o mundo comercial e dos meios de comunicação: grandes eram
as esperanças de que as aplicações daí derivadas haveriam de abrir sendas novas e mais
seguras para a terapia de graves doenças – sendas há muitos anos procuradas6. Mas, sobretudo,
foi abalado o mundo político7. De modo particular nos Estados Unidos – onde o Congresso já há
anos é contrário a sustentar com fundos federais pesquisas em que sejam destruídos embriões
humanos — fizeram-se sentir, além de outras, as fortes pressões do NIH (National Institutes of
Health), para obter fundos pelo menos para utilizar as células estaminais produzidas por grupos
privados, e as recomendações feitas pelo NBAC (National Bioethics Advisory Committee) –
instituído pelo Governo Federal para o estudo do problema –, para que sejam atribuídos fundos
públicos não apenas para pesquisa sobre células estaminais embrionárias, mas também para a
sua produção; mais ainda, insiste-se para que seja rescindida de vez a proibição legal vigente
relativa ao uso de fundos federais para a pesquisa sobre embriões humanos.
Registram-se pressões na mesma direção também na Inglaterra, no Japão, na Austrália.

A clonagem terapêutica

Tornava-se claro que o uso terapêutico das ES, como tais, possuía riscos notáveis, sendo ele,
como se constatou em experiências com ratos, causador de tumores. Assim, seria preciso
preparar linhas especializadas de células diferenciadas conforme a necessidade; e o tempo
requerido para obtê-las não era breve. Mas, ainda que fosse possível consegui-lo, seria muito difícil
ter a certeza da absoluta ausência de células estaminais durante a inoculação ou a implantação
terapêutica, com os respectivos riscos; além disso, ter-se-ia de recorrer a ulteriores tratamentos
para superar a incompatibilidade imunológica. Por esses motivos, foram propostas três vias de
“clonagem terapêutica”8, capazes de preparar células estaminais embrionárias humanas
pluripotenciadas com uma informação genética bem definida, para se obter depois a desejada
diferenciação.

1. A substituição do núcleo de um oócito pelo núcleo de uma célula adulta de um


determinado sujeito, seguindo-se a evolução do embrião até a fase de blastócito e a
utilização da massa interna celular (ICM) para obter as ES e, a partir destas, as desejadas
células diferenciadas.
2. A transferência do núcleo de uma célula de um determinado sujeito para um oócito de
animal. Caso fosse bem-sucedida, a operação deveria permitir – supõe-se – o
desenvolvimento de um embrião humano, que seria utilizado como no caso anterior.
3. A reprogramação do núcleo da célula de um determinado sujeito pela fusão do citoplasma
da ES com o carioplasma de uma célula somática. Obtendo-se assim um “cybrid”. É uma
possibilidade ainda em estudo. De qualquer forma, também esta via parece exigir a
preparação prévia da ES a partir de embriões humanos.

Na fase atual, a pesquisa científica está mais inclinada para a primeira via, mas é óbvio, como
veremos, que as três soluções apontadas são inaceitáveis do ponto de vista moral.

As células estaminais adultas

Ao lonço desses 30 anos de estudos das células estaminais adultas (ASC – Adult Stem Cells)
ficou claro que existem em muitos tecidos adultos, células estaminais, mas capazes de dar origem
somente a células próprias de certo tecido, isto é, não se pensava na possibilidade de uma nova
programação delas. Nos anos mais recentes9, porém, descobriram-se também em vários tecidos
humanos células estaminais pluripotenciadas – na medula óssea (HSCs), no cérebro (NSCs), no
mesênquima (MSCs) de vários órgãos e no sangue do cordão umbilical (P/CB: Placental/Cord
Blood) —, isto é, células capazes de dar origem a outros tipos de célula, em sua maioria
hemáticas, musculares e nervosas. Descobriu-se como reconhecê-las, selecioná-las, ajudá-las a
desenvolver-se e levá-las a formar diversos tipos de célula madura por meio de fatores de
crescimento e outras proteínas regularizadoras. Aliás, foi já percorrido um notável caminho no
campo experimental, aplicando inclusive os métodos mais avançados de engenharia genética e de
biologia molecular para a análise do programa genético que opera nas células estaminais10, e
para a comutação de genes desejados em células estaminais ou progenitoras que, implantadas,
sejam capazes de devolver a tecidos doentes suas funções específicas11. Basta dizer, apoiado
nos textos transcritos, que, no homem, as células estaminais da medula óssea, de onde se formam
todas as várias linhas de células hemáticas, tem como sinal identificador a molécula CD34, e que,
depois de purificadas, são capazes de reconstruir toda a população hemática em pacientes que
recebem doses ablativas de radiações e de quimioterapia, e isso numa velocidade proporcional à
quantidade de células usadas. Além disso, já há indícios de como guiar o desenvolvimento de
células estaminais nervosas (NSCs) utilizando diversas proteínas – tais como a neurorregulina e a
proteína duas hosteomorfógena (BMP2, Bone Morphogenetic Protein 2) – que são capazes de
encaminhar as NSCs para se tornarem neurônios ou glúten (células neuronais de apoio, produtoras
de mielina) ou mesmo músculo liso.
A satisfação, embora prudente, resultante de muito dos trabalhos citados é um índice das
grandes promessas que as “células estaminais adultas” reservam para uma terapia eficaz de
muitas patologias. Assim D. J. Watt e G. E. Jones afirmam: “As células estaminais musculares, seja
de linha mioblástica embrionária, seja da adulta, podem tornar-se células da maior importância
para tecidos distintos do original, e ser a chave de futuras terapias, inclusive para doenças
diversas das de origem miógena” (p. 93); J. A. Nolta e D. B. Kohn ressaltam: “Os progressos no
uso da comutação genética nas células estaminais hematopoéticas permitiu iniciar experiências
clínicas. AS informações assim obtidas orientação avanços futuros. Em última análise, a terapia
genética poderá permitir o tratamento de doenças genéticas e adquiridas sem as complicações
dos transplantes de células alogênicas” (p. 460); e D.L. Clarke e J. Frisen confirmam: “Estes
estudos sugerem que as células estaminais nos diferentes tecidos adultos podem ser muito mais
semelhantes do que até hoje se pensava, às células embrionárias humanas, chegando a ter alguns
casos um repertório muito parecido”, e “demonstram que as células nervosas adultas possuem
uma ampla capacidade de desenvolvimento e são potencialmente aptas a ser usadas para
produzir uma variedade de tipos celulares para transplante em diversas doenças”.
Todos esses progressos e os resultados já alcançados no campo das células estaminais adultas
(ASC) deixam entrever não só sua grande plasticidade, mas também uma ampla possibilidade de
aplicações, presumivelmente não distintas das utilizações das células estaminais embrionárias
(ES), visto que a plasticidade depende em grande parte de uma informação genética, que pode
ser reprogramada.
Evidentemente, não é possível ainda confrontar os resultados terapêuticos real e possivelmente
alcançados utilizando as células estaminais embrionárias e as células estaminais adultas. Quanto
a estas, estão já em curso, em vários laboratórios farmacêuticos, experimentações clínicas12 que
deixam prever bons resultados e abrem sérias esperanças num futuro mais ou menos próximo.
Quanto às células estaminais embrionárias, embora várias tentativas experimentais tenham dado
sinais positivos13, sua aplicação no campo clínico – devido precisamente aos graves problemas
éticos e legais conexos – requer uma séria ponderação e um grande sentido de responsabilidade
diante da dignidade de todo o ser humano.

Problemas éticos

Em vista da índole do documento, formulam-se brevemente os problemas éticos essenciais que


essas novas tecnologias implicam, indicando a resposta que resulta de uma atenta consideração
do sujeito humano desde o momento de sua concepção – consideração que está na base da
posição afirmada e proposta pelo Magistério da Igreja.
O primeiro problema ético, que é fundamental, pode ser formulado assim: “É moralmente lícito
produzir e/ou utilizar embriões humanos vivos para a preparação de ES?
“A resposta é negativa”, pelas seguintes razões:

1. Partindo de uma completa análise biológica, o embrião humano vivo é, a partir da fusão dos
gametas, um sujeito humano com uma identidade bem definida, que começa, a partir
daquele instante, o seu próprio desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual, de forma
que, em nenhuma etapa posterior, se pode considerar como um simples aglomerado de
células14.
2. Conseqüentemente, como “indivíduo humano”, tem direito à sua própria vida: e por isso,
toda a intervenção que não seja em benefício do próprio embrião constitui um ato que viola
este direito. A teologia moral sempre ensinou que, no caso do “jus certum tertii”, o sistema
do probabilismo não é aplicável15.
3. Assim, a ablação da massa celular interna (ICM) do blastócito, que lesiona grave e
irremediavelmente o embrião humano, interrompendo sua evolução, é um ato gravemente
imoral e portanto, gravemente ilícito.
4. 4. Nenhum fim considerado bom, como seja o uso das células estaminais obtidas a partir
deles para a preparação de outras células diferenciadas para procedimentos terapêuticos há
muito esperados, pode justificar tal intervenção . Um fim bom não torna boa uma ação que,
em si mesma, é má.
5. Para um católico, tal posição está confirmada pelo Magistério explícito da Igreja que, na
encíclica Evangelium vitae – referindo-se à Instrução Donum vitae da Congregação para a
Doutrina da Fé —, afirma: “A Igreja sempre ensinou – e ensina – que tem de ser garantido ao
fruto da geração humana desde o primeiro instante de sua existência, o respeito
incondicional que é moralmente devido ao ser humano em sua totalidade e unidade corporal
e espiritual: ‘O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua
concepção e, por isso, desde esse mesmo momento devem lhe ser reconhecidos os direitos
da pessoa, entre os quais, e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano
inocente à vida’” (n.60)16

O segundo problema ético pode ser formulado assim: “É moralmente lícito efetuar a
chamada ‘clonagem terapêutica’ por meio da produção de embriões humanos clonados e sua
posterior destruição para a produção de ES”?
“A resposta é negativa”, pela seguinte razão:
Todo o tipo de clonagem terapêutica que implique a produção de embriões humanos e sua
posterior destruição com o fim de obter células estaminais é ilícita; cai-se no mesmo problema
ético anteriormente exposto, que não pode ter senão uma resposta negativa.
O terceiro problema ético pode-se formular assim: “É moralmente lícito utilizar as ES e as
células diferenciadas delas obtidas que sejam eventualmente fornecidas por outros
pesquisadores ou encontradas à venda”?
“A resposta é negativa”, porque:
Para além de compartilhar, formalmente ou não, a intenção moralmente ilícita do agente
principal, no caso em exame dá-se a cooperação material próxima na produção e manipulação de
embriões humanos por parte do produtor ou fornecedor.
Em conclusão, resultam evidentes a seriedade e a gravidade do problema ético levantado pela
vontade de estender ao campo de pesquisa humana a produção e/ou o uso de embriões humanos,
mesmo por motivos humanitários.
A possibilidade, já comprovada, de utilização de células estaminais adultas para conseguir os
mesmo objetivos pretendidos com as células estaminais embrionárias – apesar de se exigirem
ainda muitos passos, em ambas as áreas aliás, até se obter resultados claros e definitivos —
indica-a como a via mais razoável e mais humana a percorrer para um progresso correto e válido
neste novo campo que se abre à pesquisa e a promissoras aplicações terapêuticas. Essas
representam, sem dúvida, uma grande esperança para um número considerável de pessoas
doentes.

Prof. Juan de Dios Vial Correa – Presidente Exmo. e Revmo. Mons. Elio Sgreccia. – Vice-
Presidente
Vaticano, 25 agosto, de 2000.
(Texto original de “L’Osservatore Romano”, sexta-feira, 25 agosto 2000, p. 6.)
7. Declaração Íbero-latino-americana sobre direito,
bioética e genoma humano

Declaração de Manzanillo de 1996, revista em Buenos Aires, em


1998, e em Santiago, em 2001.

Considerando que os constantes avanços que estão sendo produzidos sobre o conhecimento do
genoma humano, e os benefícios que poderão obter-se de suas aplicações e derivações,
convidam a manter um diálogo aberto e permanece sobre suas consequências para o ser humano.
Destacando a importância que comportam para esse diálogo a Declaração Universal da Unesco
sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997, adotada e elaborada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1998, assim como o Convênio do Conselho da Europa para a
Proteção dos Direitos Humanos e Biomedicina de 1997.
Assumindo que é irrenunciável a participação dos povos íbero-latino–americanos no debate
intemational sobre o genoma humano, com a finalidade de que possam aportar suas próprias
perspectivas, problemas e necessidades.
Os participantes nos Encontros sobre Direito, Bioética e Genoma Humano de Manzanillo (1996),
de Buenos Aires (1998) e de Santiago (2001), procedentes de diversos países da Íbero-América e
da Espanha, e de diferentes disciplinas relacionadas com a bioética,

DECLARAMOS

PRIMEIRO: Nossa convicção nos valores e princípios proclamados tanto na Declaração


Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos como no Convênio Europeu sobre
Direitos Humanos e
Biomedicina, enquanto constituem um primeiro passo importante para proteger o ser humano
dos efeitos indesejáveis dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos no âmbito da genética
por meio de instrumentos jurídicos internacionais.
SEGUNDO: A reflexão sobre as diversas implicações do desenvolvimento científico e
tecnológico no campo da genética humana deve ser feita considerando:
a) o respeito à dignidade, à identidade e a integridade humana e os direitos humanos
reafirmamos nos instrumentos jurídicos internacionais.
b) que o genoma humano forma parte do patrimônio comum da humanidade como uma
realidade e não como uma expressão meramente simbólica.
c) o respeito à cultura, às tradições e aos valores próprios de todos os povos.

TERCEIRO: Dadas as diferenças sociais e econômicas no desenvolvimento dos povos, nossa


região participa em menor grau dos benefícios derivados do referido desenvolvimento científico e
tecnológico, o que faz necessário:
a) uma maior solidariedade entre os povos, promovida em particular por parte daqueles
Estados que possuem um maior grau de desenvolvimento;
b) o desenho e a realização pelos governos de nossos países de uma política planejada de
pesquisa sobre genética humana.
c) a realização de esforços para estender de forma geral a toda a população, sem nenhum
tipo de discriminação, o acesso às aplicações dos conhecimentos genéticos no campo da
saúde;
d) respeitar a especificidade e diversidade genética dos indivíduos e dos povos, assim como
sua autonomia e dignidade enquanto tais;
e) o desenvolvimento de programas de informação e educação extensivos a toda sociedade,
nos quais de destaque a especial responsabilidade que concerne neste assunto aos meios de
comunicação e aos profissionais da educação.
QUARTO: Os princípios éticos que devem guiar as ações da genética médica são:
a) a prevenção, o tratamento e a realidade das pessoas com doenças genéticas como parte
do direito à saúde, para que possam contribuir para atenuar o sofrimento que elas ocasionam
nos indivíduos afetados e em seus familiares.
b) a equidade no acesso aos serviços de acordo com as necessidades do paciente,
independente de sua capacidade econômica.
c) a voluntariedade no acesso aos serviços, a ausência de coerção na sua utilização e o
consentimento livre e informado baseado no assessoramento genético não diretivo;
d) as provas genéticas e as ações que deveriam delas têm como objetivo o bem-estar e a
saúde do indivíduo, sem que possam ser utilizadas para imposição de políticas populacionais,
demográficas ou sanitárias, nem para a satisfação de requerimentos de terceiros.
e) o respeito e a autonomia de decisão dos sujeitos para realizar as ações que se seguem
aos resultados das provas genéticas, de acordo com os marcos normativos de cada país, que
deverão respeitar os critérios éticos e jurídicos aceitos pela comunidade internacional.
f) a informação genética individual é privativa do indivíduo do qual provém e não pode ser
revelada a terceiros sem seu consentimento expresso.

QUINTO: Algumas aplicações da genética humana operam já como uma realidade cotidiana em
nossos países sem uma adequada e completa regulamentação jurídica, deixando em situação
indefesa e de vulnerabilidade tanto o paciente quanto aos seus direitos, como o profissional da
saúde quanto à sua responsabilidade. Isto torna necessário que, mediante processos
democráticos e pluralistas, se promova uma legislação que regule, ao menos, os seguintes
aspectos.
a) o manejo, o armazenamento e a difusão da informação genética individual, de tal forma que
garanta o respeito, a privacidade e a intimidade de cada pessoa.
b) a atuação do geneticista como conselheiro ou assessor do paciente e de seus familiares e
sua obrigação de guardar a confidencialidade da informação genética obtida;
c) o manejo, o armazenamento e a disposição dos bancos de amostras biológicas (células,
DNA etc.), que deverão ser regulamentados garantindo que a informação individualizada não
seja divulgada sem assegurar o direito a privacidade do indivíduo, nem seja usada para fins
distintos daqueles que motivaram sua coleta;
d) o consentimento livre e informado para a realização de provas genéticas e intervenções
sobre o genoma humano, que deve ser garantido por instâncias adequadas, em particular
quando se trate de menores, incapacitados e grupos vulneráveis que requerem uma atenção
especial.

SEXTO: Além dos profundos questionamentos éticos que geram o patenteamento do material
genético humano, cabe reiterar em particular:
a) a necessidade de proibir a comercialização do corpo humano, de suas partes e de seus
produtos;
b) a necessidade de reduzir nesse assunto o objeto das patentes aos limites restritos do
aporte científicos realizado, evitando extensões injustificadas que coloquem obstáculos a
futuras pesquisas, e excluindo-se a possibilidade de patentear a informação e o material
genético. Assim, limitar as expectativas de ganhos das empresas com fins lucrativos, de modo
a facilitar o acesso a todos seres humanos sem distinções econômicas.
c) a necessidade de facilitar a pesquisa neste campo mediante o intercâmbio livre e irrestrito
da informação científica, em especial o fluxo de informação dos países desenvolvidos para os
países em desenvolvimento.

SÉTIMO: Sem prejuízo de reafirmar a validade universal dos princípios contidos na Declaração
Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997, estimam que este texto, além
de seu valor jurídico próprio, deveria constituir o primeiro passo de um processo normativo que
haveria de culminar com Convênio ou Tratado Internacional sobre Genoma Humano e os Direitos
Humanos.

Em consonância com as considerações precedentes

RESOLVEMOS:

1. Manter o contato e o intercâmbio de informação entre os especialistas da região, fomentar o


estudo, o desenvolvimento de projetos de pesquisa e a difusão da informação sobre os aspectos
sociais, éticos e jurídicos relacionados com a genética humana, assim como promover a criação
de redes de informática sobre estes temas.
2. Remeter aos governos de nossos países a presente Declaração, incitando-os a adotar as
medidas necessárias, em especial legislativas para desenvolver e aplicar os princípios contidos
nesta Declaração e na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.

Santiago, República do Chile, 29 de agosto de 2001.


8. Organismos Geneticamente Modificados (OGMs):
Manifestação do Conselho Federal de Biologia
(CFBio) - 2002

O Conselho Federal de Biologia (CFBio está acompanhando os novos avanços que vêm
ocorrendo na biotecnologia e pretende, com o presente documento, propor uma orientação no
exercício profissional, introduzindo uma variável que seja compatível com as atividades de cada
Biólogo e respeite as diferentes formas de vida e suas interações com o meio ambiente.
Diante desse quadro de grandes inovações, o CFBio houve por bem criar um grupo para a
elaboração do presente documento, composto pelos colegas. Professora Doutora Mayana Zatz,
coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da
Universidade de São Paulo, Professora Doutora Luiza Chomenko, da FEPAM do Estado do Rio
Grande do Sul e conselheira do Conselho Regional de Biologia da 3a Região – CRBio-3.
Professor Doutor Celso Luiz Marino, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual “Júlio de
Mesquita Filho”— UNESP, Campus de Botucatu no Estado de São Paulo, e conselheiro do
Conselho Regional de Biologia da la Região – CRBio-1, e com a inestimável colaboração da
Professora Doutora Lygia Pereira do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Cabe
registrar que os três membros do grupo do Estado de São Paulo são partícipes dos Projetos de
Genoma da FAPESP.
Historicamente, sabe-se que os grandes avanços da ciência movidos pelo instinto dos
pesquisadores que sempre tiveram a liberdade de desenvolver suas pesquisas sem se preocupar
para onde ela os levaria. Nas últimas décadas, os resultados gerados nas bancadas dos
laboratórios foram rapidamente integrados na atual forma de vida da sociedade. Por sua vez, a
evolução do modelo de desenvolvimento mundial promove o aumento da atividade biotecnológica
por meio dos avanços obtidos na técnica do DNA recombinante e nos métodos de transformação
genética de células de plantas e animais que tornaram possível a transferência de genes de várias
classes de organismos, ultrapassando os limites impostos pela incompatibilidade sexual. Essas
técnicas são ferramentas que podem ser analisadas a partir de muitas perspectivas, e possuem o
potencial de aportar benefícios e riscos, iguais a outras tecnologias. No entanto, outorgam também
à humanidade um novo poder sem precedentes, pois permitem manipular de forma seletiva o
germo plasma, e assim desenvolver organismos geneticamente modificados, mas ao mesmo
tempo trazem um dilema ético e moral para a sociedade. Dessa conjuntura, começa-se a
vislumbrar a possibilidade de ações sobre a vida e a avaliar os riscos nos campos ético e
sociológico. Verifica-se que há uma questão importante que se relaciona com o fato de serem as
atividades dos cientistas protegidas pelas barreiras de seus laboratórios; barreiras, por vezes,
intransponíveis, pois a ciência pode exercer esse totalitarismo e não buscar a percepção da
sociedade. Pelo fato de as pesquisas nem sempre serem submetidas a comitês de ética ou ao
rígido cumprimento dos princípios definidos por esta, pode-se pressupor que as noções de
segurança dependam de cada pesquisador. A sociedade encontra-se cada dia mais preocupada
com aspectos relacionados às atividades científicas e a seus efeitos. Essa participação iniciou-se
logo após a Segunda Guerra Mundial, quando a tecnologia nuclear e as pesquisas da definição da
molécula do DNA causaram impactos. Por um lado, isso fez com que as populações humanas
procurassem estar mais informadas, obter conhecimentos para Ter condições de exercer e exigir
seus direitos. Por outro lado, aumentaram as preocupações com o perigo de ser desenvolvidos
organismos mutantes ou novos agentes químicos que possam, além do impacto no meio ambiente,
colocar em risco o futuro da espécie humana neste planeta. Portanto, é fundamental que a
sociedade seja informada de maneira compreensível e, sobretudo, neutra sobre as atividades
científicas, a fim de permitir-lhe decisões e tomadas de posição equilibradas e concretas, nunca
emocionais.
Em todo o mundo, e no Brasil não poderia ser diferente, é motivo de grande polêmica o
emprego dos organismos geneticamente modificados (OMGs), considerados por alguns
pesquisadores como uma tecnologia avançada, capaz de produzir grandes progressos em
questões relacionadas com mais saúde, mais e melhores alimentos, entre outros aspectos. Outros,
contrariamente, temem que possa haver riscos ao meio ambiente ou à saúde do homem e, ainda
criar dependência econômica cada vez maior dos países “pobres” em relação àqueles mais
desenvolvidos, detentores da maioria das tecnologias e patentes.
Por um lado a ciência avança e disponibiliza uma grande quantidade de informações para os
pesquisadores diariamente, por outro lado, a gestão da vida continua demonstrando claramente
que os sistemas vivos são complexos, diversos e mantidos por estruturas de auto-organização que
lhes permitem interagir com o meio ambiente, sendo esta a base da manutenção da vida. No
momento em que se introduzem mecanismos externos de regulação nos sistemas vitais, deve-se
atentar para o fato de que as alterações podem vir a promover modificações na dinâmica vital,
operacional e evolutiva dos organismos envolvidos, levando inclusive a discussões sobre sua
valoração e as formas de utilizá-los.
O CFBio vem procurando avaliar cuidadosamente a polêmica existente, bem como a divulgação
de resultados, adotando uma postura de muita cautela e cuidado, principalmente considerando-se
que em grande parte os pesquisadores envolvidos são biólogos. Além disso, a adoção de uma
posição definitiva ainda não foi possível, pois não se tem suficientes garantias da ausência de
riscos à saúde, ao meio ambiente, à agricultura, aos aspectos socioeconômicos e culturais.
Também se entende que urge ampliar as discussões sobre a liberação ampla de produção, uso,
consumo de OGMs, relacionando estes com os aspectos éticos envolvidos, pois tem-se a noção
de que apenas a exigência de identificação ou rotulagem de OGMs não propicia garantias de
qualidade e segurança.
Faz-se necessário que sejam estabelecidos normas e comportamentos aceitáveis e éticos, os
quais englobem as várias tendências e respeitem a pluralidade de opiniões. Entretanto destaca-se
como indispensável que a base legal e o regulamento legislativo que dispõem sobre o
desenvolvimento científico e tecnológico da nação sejam cuidadosamente elaborados, baseando-
se principalmente em aspectos de responsabilidade, justiça e ética.

Recomendações

Considerando que o processo de desenvolvimento internacional vigente exige a implantação


contínua de estratégias que promovam a melhoria de condições de vida das populações
envolvidas, por meio da redução das desigualdades sociais e regionais e da proteção ao
ambiente;
Considerando que a natureza contem valores fundamentais específicos, sendo que a vida e sua
proteção devem estar acima dos acordos comerciais internacionais.
Considerando as diretrizes sócio-econômicas contempladas nas disposições sobre a Defesa
do consumidor, os Direitos Sociais, os Princípios Gerais da Atividade Econômica, a Função Social
da Propriedade e a Saúde pela Constituição Federal, além da Política Nacional do Meio Ambiente,
da Política Nacional de Saúde e do Código de Defesa do Consumidor;
Considerando os Princípios da Democrata, do direito de receber e ter acesso à informação e da
publicidade previstos na Constituição Federal, na Política Nacional do Meio Ambiente e no Código
de Defesa do Consumidor;
Considerando o Princípio da Precaução referendado em inúmeros acordos/convenções
internacionais e legislações vigentes no País;
Considerando que o emprego da biotecnologia pode permitir que venham a ser desenvolvidos
de forma controlada organismos vivos com características e funções conhecidas e que poderão,
potencialmente, trazer uma melhora de qualidade de vida humana;
Considerando que a engenharia genética difere fundamentalmente de outras ferramentas e
processos biotecnológicos, conforme referido na Lei n° 8.974/95, e que a liberação ambiental de
OGMs não tem precedentes na natureza e por isso desconhece os possíveis impactos ambientais
causados.
O CFBio recomenda aos biólogos do Brasil:

• A promoção da defesa da soberania dos povos e da nação sobre seu patrimônio genético, por
meio da criação de estratégias sustentáveis que propiciem condições adequadas de preservação
da biodiversidade e da vida das populações humanas envolvidas nestes processos.

• Que a discussão dos aspectos éticos no uso da biotecnologia deve ser conduzida no piano da
informação científica à sociedade, em uma linguagem acessível, do argumento, e não através da
consciência privada, sendo abominável falar em foro íntimo quando o assunto em questão é por
exemplo a ética (sem esse cuidado, corre-se o risco de agir de forma que ocorra uma defesa
corporativa contra os interesses de toda a sociedade).

• Que se mantenham permanentemente atentos aos avanços científicos relacionados a


“Biotecnologia e uso de OGMs” e aos benefícios de sua utilização, como as melhorias nas
condições de saúde e o desenvolvimento das populações humanas, sem, contudo, perder de vista
as consequências econômicas, culturais e sociais, além de considerar os eventuais riscos
ambientais, à saúde, e outros, destacando-se a obediência constante aos preceitos básicos do
Código de Ética profissional.

Observação: As definições utilizadas neste documento são as constantes no Art. 3º da Lei


Federal 8974 de 05.01.1975 (Lei de Biossegurança).

Brasília, 10 de julho de 2002.

Dra. NOEMY YAMAGUCHI TOMITA


CFBio 00015/01-D
Presidente do CFBio

1. Fonte: Documento de Trabalho do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida do Portugal: Lisboa, 5 de
janeiro de 1999.
2. Cfr. Anexo 1.
3. Cfr. Anexo 4: Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS.
4. Principais trechos do script do vídeo em que Van Rensselaer Potter fala de sua intuição pioneira a respeito da
bioética, que foi apresentado especialmente para o IV Congresso Mundial de Bioética (Tóquio – 1998).
5. Observatório de Imprensa – Matérias – 26 de fevereiro de 2003. http:// observatorio.ig.br/artigos.
6. Folha de São Paulo, 7 de março de 2003, p. C7.
7. Estado de São Paulo, A8, 27 de dezembro de 2002.
8. Cfr. Anexo 2.
9. Cfr. Anexo 3.
10. Cfr. Anexo 4.
11. PETERS, Ted. Genética, teologia e ética. In: PETERS, Ted e BENNETT, Gaymon (Orgs.). Construindo pontes entre
a ciência e a religião. Tradução Luís Carlos Borges; supervisão científica Eduardo R. Cruz. São Paulo: Edições Loyola e
Editora UNESP, 2003, pp. 117-134.
12. Cfr. Anexo 6.
13. Cfr. Anexo 7.
14. Cfr Anexo 8
15. PEREIRA, Lygia V. O admirável mundo novo da clonagem . In: VALLE, Silvio e TELLES, José Luiz (0rgs). Bioética
e b iorrisco: ab ordagem transdisciplinar . Rio de Janeiro: Editora Interciência, 2003. pp. 31-45.
16. Cfr. Anexo 3.
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