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Alguns desafios
D IRET ORES EDIT ORIAIS :
Carlos Silva
Ferdinando Mancílio
EDIT ORES :
Avelino Grassi
Roberto Girola
C OPIDESQUE:
Mônica Guimarães Reis
R EVISÃO:
Ana Lúcia de Castro Leite
Maria Isabel de Araújo
C APA:
Roberto de Castro Polisel
04-0773 CDD-179.7
A bioética tem uma historia de pouco mais de trinta anos desde seu surgimento em 1971, nos
EUA. Esta nova área do conhecimento humano vem sendo saudada no âmbito científico como num
grande lance de esperança para a humanidade neste início de século XXI. É o clamor da
sabedoria humana, que vai além do mero contexto das discussões éticas das múltiplas profissões
no âmbito das ciências da vida e da saúde humana, buscando a promoção e proteção da vida,
desde o âmbito pessoal, perpassando pelo nível societário, e chegando até o cósmico-ecológico.
Em terras brasileiras já despontam inúmeras iniciativas consistentes que estão levando à frente
a discussão bioética. Temos a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), com suas várias regionais,
que já promoveu quatro congressos nacionais e está em vias de realizar o 5- no Recife em maio
de 2004. A SBB, juntamente com a Associação Internacional de Bioética, realizou em 2002
(Brasília-DF), o VI Congresso Mundial de Bioética, o maior de todos até hoje, que aprofundou uma
questão central da agenda bioética dos países do mundo pobre: Bioética – poder e injustiça. Além
disso, constatamos que inúmeras Universidades e Instituições de Ensino Superior estão
introduzindo no currículo de formação dos futuros profissionais, notadamente no âmbito da saúde,
a disciplina de bioética. Começamos a ter em nosso país uma produção acadêmica de bioética,
em teses de mestrado, doutorado, livros e revistas, que não fica atrás de muitos países ditos
desenvolvidos.
É neste contexto de intensa busca de reflexão e discussão que chega às nossas mãos a
oportuna obra Bioética e início da vida: alguns desafios, de Christian de Paul de Barchifontaine.
Trata-se de uma obra de cunho didático-pedagógico, sem a pretensão de esgotar as questões,
mas que para além da informação científica, segura e atual, instiga a reflexão e discussão ética.
Mais do que respostas prontas vamos nos encontrar diante de perguntas que nos obrigarão a sair
do conforto de nossas certezas e nos lançarão o desafio de dialogarmos, sermos humildes,
respeitosos e tolerantes frente ao diferente e sobretudo que aprendamos a viver solidariamente.
Esses três conceitos-chave que definem a perspectiva do autor – diálogo, tolerância e
solidariedade – são mais do que nunca necessários neste início de novo século em que, frente a
um crescente pluralismo cultural, surpreendentemente voltamos a ter de enfrentar novos
fundamentalismos e terrorismos que achávamos que já eram coisas de um passado distante. Esta
perspectiva me faz lembrar o que diz de si próprio Norberto Bobbio, considerado um dos maiores
pensadores do século XX: “Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo
de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar”. Uma
verdadeira síntese de sabedoria!
Esta obra, Bioética e início da vida: alguns desafios, pela sua concepção estrutural, será de
grande valia para o ensino da bioética na universidade. Nos dois primeiros capítulos, apresenta
uma fundamentação sobre o que entender sobre dignidade humana, evolução histórica e
abrangência temática da bioética, que são imprescindíveis para a reflexão, não somente das
questões éticas do nascer, mas também do viver e morrer. Nos capítulos seguintes o autor nos
convida a mergulhar em questões complexas e polêmicas do início da vida humana, que exigem
nosso enfrentamento: questão do crescimento populacional (Cap. III); a reprodução assistida (Cap.
IV), o genoma humano (Cap. V) e a clonagem (Cap. VI). Uma série de documentos importantes de
organizações e organismos internacionais, relacionados às questões debatidas, constitui o bloco
de anexos que merecem atenção e leitura.
O autor, Christian de Paul de Barchifontaine, belga de nascimento, brasileiro de coração,
camiliano, atualmente é reitor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Tem formação
acadêmica na área de enfermagem e mestrado na área de gestão em saúde. É docente de
bioética desde 1984 nos cursos de pós-graduação em Administração Hospitalar e da Saúde da
bioética desde 1984 nos cursos de pós-graduação em Administração Hospitalar e da Saúde da
Universidade São Camilo. É coautor da primeira obra didática de bioética, publicada em terras
brasileiras (1991), Problemas atuais de bioética, já na 6a. Edição (Ed. Loyola).
Parabenizo meu caro amigo, por mais esta iniciativa intelectual e faço votos de que esta obra
seja um sucesso.
Introdução
Capítulo 1
Dignidade humana: uma reflexão ética
Preâmbulo
Reflexão filosófica
Reflexão biológica
Perspectivas
Capítulo 2
Bioética: contextualização, origem, conceituação e abrangência
Introduçao
A pessoa humana
A nossa realidade
• Uma filosofia: existencialismo
• Uma cultura: da modernidade à pós-modernidade
• Uma ideologia: neoliberalismo
• Um sistema: capitalismo
Globalização, saúde e cidadania
• Globalização
• Saúde
• Cidadania: uma questão urgente
Ética, moral e bioética
• Evolução histórica da ética
• Conceituações de moral e ética
• Qual é a ética da bioética
• Histórico da bioética
• Origem da bioética
• Definições de bioética
• Fundamentação filosófica e paradigmas da bioética
• Algumas características da bioética
• Conteúdo e desafios da bioética
• Comissões de bioética e controle social
• Abrangência temática da bioética
• Bioética na América Latina: Três desafios entre outros
• Bioética global e sobrevivência humana: Algumas considerações de Van Rensselaer Potter
Conclusão
Capítulo 3
Políticas demográficas
Introdução
Políticas populacionais
Contracepção e anticoncepção
• Alguns pontos norteadores de nossa reflexão
• O mito da crise populacional
• Explosão demográfica – Retrato do Brasil
• Aspectos legais da contracepção
• Aconselhamento genético
Aborto
• Aborto: conceituações
• Aspecto legal no Brasil
• Quando começa a pessoa humana?
Posição do Magistério da Igreja Católica
Outro tipo de argumentação
• Gravidez indesejada ou inoportuna
• Aborto legal e malformação do feto
Conclusão
Capítulo 4
Técnicas de reprodução assistida
Introdução
Técnicas de reprodução assistida
Indicação
Alguns riscos
Alguns questionamentos
Legislação
• Código de ética médica
• Normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida
• A lei de biotecnologia 8974 de 1995
• A resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS
Reflexões bioéticas
• Infertilidade
• Ponto de vista social
• Reprodução assistida e amor conjugal
• Embriões congelados
• Redução de embriões
• Consciência dos direitos das mulheres
• Clínica de infertilidade
• Perspectiva cristã católica
Conclusão
Capítulo 5
Genoma humano
Introdução
As revoluções da biologia
Uma breve histórico da genética
Célula
Glossário para entender o genoma
Nós temos o livro. Agora precisamos aprender a lê-lo
As promessas da descoberta
Medicina preditiva
Biopoder
• Genoma humano e engenharia genética
• Ética que cerca o Projeto Genoma Humano (PGH)
Reflexões bioéticas
• Benefícios da engenharia genética
• Patenteamento do genoma
• Privacidade
• Discriminação
• Determinação genética e liberdade humana
• Eugenismo
• Previdência social
• Clonagem
• Terapia gênica
• Alerta
• O Projeto Genoma Humano e a realidade brasileira (fome).
• A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997)
Conclusão
Capítulo 6
Clonagem humana
Introdução
Ética e tecno-ciência
Do que falamos?
Células-tronco
O que é um embrião
Clonagem de seres humanos
Reflexões bioéticas
• Discernimento ético
• Biotecnologia
• Clonagem de seres humanos
• Realidade brasileira
Conclusão
Para refletir
• O fim da era dos contratos?
• No último estágio, um ser vivo artificial
• Sem provas, empresa anuncia clone humano
• Clonagem é ineficaz, diz “pai” de Dolly
Anexos
Bibliografia
Introdução
Os grandes problemas da humanidade de hoje, mesmo sem rejeitar a grande contribuição que a
ciência e a tecnologia trazem para superar as condições de miséria e de deficiências dos
diferentes gêneros, só serão resolvidos com a reconstrução da comunhão humana em todos os
níveis.
Através da solidariedade, entendida como a determinação firme e perseverante de empenhar-
se para o bem comum, isto é, para o bem de todos e de cada um, todos devem ser
verdadeiramente responsáveis por todos: a primazia da pessoa sobre o econômico. Eis a grande
vocação da bioética!
Que valor atribuímos à vida? De que modo podemos proteger e tornar melhor esse bem? Como
melhorar a nossa convivência humana? Se bioética significa fundamentalmente amor à vida, tenho
certeza de que nossas vozes podem convergir para estimulantes respostas a fim de melhorar a
vida do nosso povo, bem como o nosso convívio, passando pelo respeito à dignidade da vida das
pessoas.
Entendemos a bioética como ética da vida, da saúde e do meio ambiente, tendo como
finalidade o resgate da dignidade da pessoa humana e da qualidade de vida frente aos
progressos tecno-científicos e frente às políticas sociais e econômicas. Através de um diálogo
transdiciplinar, transprofissional e transcultural, baseados na tolerância e na solidariedade
pretendemos, com este livro, responder a alguns desafios bioéticos do início da vida.
Antes de tudo, é necessária uma reflexão ética sobre a dignidade humana, já que esta é o centro
de todo o estudo da bioética. Apoiado no documento de trabalho do Conselho Nacional de Ética
para as ciências da vida do Portugal (1999), situamo-nos filosófica e biologicamente quando
falamos de dignidade humana (Capítulo I).
A seguir, nos estenderemos sobre o que é bioética, ética da vida (Capítulo II), entendendo que a
reflexão deve passar pela análise da realidade na qual vivemos, pelos conceitos de globalização,
saúde e cidadania, chegando ao conceito de moral, ética e bioética (o advento da bioética muito
contribuiu para estabelecer a distinção entre moral e ética).
Inicialmente, acenamos que moral diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de
uma determinada sociedade. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada
membro a ela pertencente recebe – digamos passivamente – e os respeita.
Ética é um juízo de valores, é um processo ativo que vem de “dentro de cada um de nós para
fora”, ao contrário de valores morais que vêm de “fora para dentro” de cada um. A ética exige um
juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica,
cada um de nós vai pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e,
também, seus valores morais.
Bioética é ética. Não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma
reflexão sobre os mesmos e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há
bioética sem liberdade; liberdade para se fazer uma opção, por mais “angustiante” que esta possa
ser. O exercício da bioética exige pois liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem
coação, sem coerção e sem preconceito. A bioética exige também humildade para se respeitar o
diferente e a grandeza para reformulação, quando se reconhece o equívoco em uma opção.
Condição sine qua non exigida pela bioética, enquanto tal, diz respeito à visão pluralista e
interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. Ninguém é
dono da verdade.
Vamos analisar a trajetória da bioética: evolução histórica, origem, conceituações, fundamentos
filosóficos. Assim, chegaremos à identificação de dois polos essenciais no estudo da bioética: a
bioética cotidiana, sendo voltada para assegurar condições dignas de vida, para a exigência de
humanizar a medicina, articulando fenômenos complexos como a evolução científica da medicina,
a socialização da assistência sanitária, a crescente medicalização da vida, inclusive a alocação de
recursos para a saúde; e bioética de fronteira sendo aquela que trata das novas tecnologias
biomédicas aplicadas sobretudo à fase nascente e à fase terminal da vida. E para finalizar o
capítulo II, colocamos um panorama da abrangência da bioética, mostrando que ela perpassa toda
a nossa vida: do nascimento à morte.
No Capítulo III enfocaremos alguns assuntos da bioética ligados ao início da vida: bioética
cotidiana – as políticas demográficas, ressaltando os direitos reprodutivos e a saúde reprodutiva, a
contracepção e a anticoncepção, seus aspectos legais e sociais; bem como o aborto, suas
conceituações e a questão ética delicada do início da pessoa humana. Na bioética de fronteira,
analisaremos as técnicas de reprodução assistida: técnicas, indicação, questionamentos,
comentários e reflexões bioéticas (Capítulo IV), o genoma humano, sua complexidade, o futuro da
medicina preditiva e a questão do biopoder (Capítulo V), e a clonagem humana: a tecno-ciência,
clonagem reprodutiva e terapêutica, a questão das células-tronco e o embrião (Capítulo VI).
Anexo, apresentamos alguns documentos importantes relacionados aos assuntos estudados.
Bioética e início da vida: alguns desafios, não se trata de uma obra de moral religiosa ou
confessional, mas de informação e reflexão geral e global. Nasce num contexto pluralista e procura
trabalhar as questões numa perspectiva dialogal, portanto multi, inter e transdisciplinar, uma das
características marcantes da bioética. A intenção é criar nas pessoas um senso crítico e despertar
nelas a capacidade de decidir, responsável e livremente diante das situações polêmicas, difíceis e
conflituosas que as ciências da vida e da saúde hoje nos apresentam.
Na linha da bioética, que a tolerância e a solidariedade sejam os nossos óculos na leitura deste
livro, procurando sobretudo ajudar as pessoas a serem mais felizes.
Capítulo 1
Preâmbulo
A noção de dignidade humana, que varia consoante às épocas e aos locais, é uma ideia-força
que atualmente possuímos e admitimos na civilização ocidental, que é a base dos textos
fundamentais sobre os Direitos Humanos. Diz-se nomeadamente no preâmbulo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 19482: “Os direitos humanos são a expressão direta da
dignidade da pessoa humana, a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre
do próprio reconhecimento dessa dignidade”. Esta definição tem suas implicações em nível dos
direitos econômicos, sociais, culturais, indispensáveis à concretização dessa dignidade.
Esta noção de dignidade como característica comum a todos os seres humanos é relativamente
recente, sendo por isso difícil fundamentá-la senão como reconhecimento coletivo de uma herança
histórica de civilização, colocando-se a questão de saber se a dignidade humana não será o modo
ético como o ser humano se vê a si próprio.
A abordagem atual da dignidade humana se faz sobretudo pela negativa, pela negação da
banalidade do mal: é por se estar confrontado com situações de indignidade ou de ausência de
respeito que se tem indício de tipos de comportamento que exigem respeito. Nesse sentido, ela é
fundamental na definição dos direitos humanos, como na abordagem de novos problemas de
bioética e nomeadamente de uma ética do ambiente, uma ética que implica também
solidariedade, já que se a dignidade se relaciona com o respeito, as desigualdades sociais e
econômicas nas sociedades modernas fazem com que em uma parte dessas sociedades não se
possa respeitar a si própria.
Devemos referir ainda o lugar que o ser humano se atribuiu a si próprio no âmbito de um mundo
tecnicizado, que perdeu a ligação com o mundo sensível, com o mundo vivo, cometendo atos
indignos contra a vida animal, vegetal.
É neste contexto que o conceito de dignidade humana introduz um elemento de ordem e de
harmonização no conflito das relações das comunidades humanas.
Assim, a sobrevivência da nossa espécie está associada à sobrevivência da natureza e, deste
modo, ao alargarmos o conceito de dignidade asseguramos a continuidade dos seres humanos
numa ética de responsabilidade pelo futuro, num alargamento não só da concepção do que é ser
humano, mas também do que é a comunidade sem a qual o ser humano não subsiste. Cabe aqui
referir a noção de ética de responsabilidade de Hans Jonas: “… que assenta no cuidado, que nos
põe no centro de tudo o que nos acontece e que nos faz responsáveis pelo outro, o outro que pode
ser um ser humano, ou um grupo social, um objeto, um patrimônio, a natureza; o que pode ser o
nosso contemporâneo, mas que será cada vez mais um outro futuro, cujas possibilidades de
existência temos de garantir no presente” (Santos, 1991:40).
A dignidade humana é pois também um conceito evolutivo, dinâmico, abrangente, a tomada de
consciência da pertença de todos ao gênero humano confrontado na comunidade de destino, que
se foi alargando a grupos diferenciados, dando-lhes um outro estatuto, cabendo aqui citar a
Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), em que foi afirmado que os direitos das
mulheres são direitos humanos. O que se liga com o cerne da definição de responsabilidade de
Hans Jonas, a ideia de cuidado, que reforça os campos éticos de atenção ao singular, abre a
partilha e a solidariedade, afeta o modo, o olhar com que os outros são vistos. Ora, “o valor do
cuidado não aparece nem se encontra como aspecto importante dos princípios da bioética”
(Camps, 1998:78). Uma ética do cuidado, historicamente realizada sobretudo pelas mulheres na
cultura ocidental, nas suas práticas cotidianas do cuidado aos vulneráveis da sociedade, daqueles
que justamente vêm, pouco a pouco, ocupando lugar nesse alargamento do conceito de dignidade
humana: as crianças, os idosos, os doentes, os deficientes.
Voltando à Declaração dos Direitos Humanos de 1948, tendo em conta esse alargamento do
conceito de dignidade, podemos referir os princípios que lhe estão associados: o da não-
discriminação (nomeadamente em função da raça); o direito à vida; a proibição de tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes; o respeito pela vida privada e familiar; o direito à saúde; a
liberdade de investigação – conciliada com o respeito da pessoa humana (Lenoir e Mathieu,
1998:100–102).
Nesse alargamento do próprio conceito de dignidade humana, como nó fulcral da definição dos
Direitos Humanos e da sua salvaguarda, há uma ética social que, no âmbito da bioética, atualiza-
se no acesso equitativo aos cuidados de saúde apropriada para todos, respeitando a sua
dignidade.
Estamos não só diante de outra noção do humano e da dignidade que lhe é devida, como de
uma outra noção de comunidade que, quanto mais aprofundou o que é a dignidade humana, mais
se abriu, deu lugar ao encontro do que era considerado “não-humano”, tornando-se mais humana e
libertando-se de um poder totalitário, que também o oprime e destrói.
Reflexão filosófica
Reflexão biológica
Perspectivas
A partir do exposto, percebemos que o conceito de dignidade humana é importante para
salvaguardar o valor maior que é a pessoa. Deste modo, os comportamentos que mais
indignificam a própria pessoa são os que indignificam os outros, sobretudo os mais débeis e
vulneráveis. Nomeadamente as crianças, os idosos, os doentes, os excluídos por todas as razões,
desde a falta de amor até o poder econômico.
Como já foi acenado na introdução deste livro, os grandes problemas da humanidade de hoje –
mesmo sem rejeitar a grande contribuição da ciência e da tecnologia para superar as condições
de miséria e de deficiências dos diferentes gêneros – só podem ser resolvidos com a
reconstrução da comunhão humana em todos os níveis, através da solidariedade que deve ser
entendida como a determinação firme e perseverante de se empenhar para o bem comum, isto é,
para o bem de todos e de cada um, para que todos sejam verdadeiramente responsáveis por
todos.
A tolerância designa o fato de se abster de intervir nas ações ou opiniões de outras pessoas
mesmo quando essas opiniões ou ações nos parecem desagradáveis ou moralmente
repreensíveis. Assim, a tarefa cotidiana do cultivo da tolerância inclui uma atitude proativa de
procura do ponto ideal de encontro com o outro nos momentos de discordância e enfrentamentos.
A tolerância é uma conquista no caminho em direção à solidariedade, que é o laço recíproco que
une pessoas como corresponsáveis pelo bem umas das outras.
Neste sentido, são necessários lugares de escuta do sofrimento, da dor, da alegria, da ternura,
nos quais o humano se revela de muitas maneiras. Assim, como o eu supõe a vinda à palavra,
também são esses lugares de escuta que podem permitir de novo o pleno acesso à palavra. É
neste contexto que a escola, entre outras instituições formadoras da dignidade humana e de um
aprendizado para a vivência da tolerância e da solidariedade, deveria ser tanto transmissora de
conhecimento quanto lugar de escuta que, ao reenviar o eco da palavra titubeada, possa ajudá-la a
surgir inédita.
1. Fonte: Documento de Trabalho do Conselho Nacional de Ética para as ciências da Vida do Portugal: Lisboa, 05
de janeiro de 1999.
2. Cfr Anexo 1.
Capítulo 2
Introdução
Hoje, através dos meios de comunicação social, jornais, revistas, televisão, internet, ouvimos
falar de bioética. É bom lembrar que o estopim que contribuiu para o desenvolvimento da bioética,
sem usar ainda o termo, nos anos de 1960, foram reportagens de jornalistas a respeito de
experiências em seres humanos, com crianças, prisioneiros e doentes mentais.
Pode-se conceituar bioética como um mecanismo de coordenação e instrumento de reflexão
para orientar o saber biomédico e tecnológico, em função de uma proteção cada vez mais
responsável da vida humana. A bioética, por ser um ramo da ciência que procura estar a serviço
da vida, engloba em suas reflexões os aspectos sociais, políticos, psicológicos, legais e
espirituais. É uma reflexão sobre o resgate da dignidade da pessoa humana frente aos progressos
técnico-científicos na área da saúde, frente à vida. Com sua possibilidade de redesenhar o ser
humano, com o seu poder de destruir ou construir, esses progressos podem alterar a identidade da
pessoa humana. O homem está se tornando o senhor da vida e de sua própria vida, como bem
ilustra a expressão: “em lugar de consultar os astros, consultam-se agora os genes”.
Para entender melhor o que é a bioética vamos refletir sobre quem é o sujeito da nossa reflexão
bem como do seu ambiente, o que é moral, ética e a sua evolução. A seguir, esclareceremos qual
o histórico, a origem, a conceituação bem como a fundamentação filosófica e os paradigmas da
bioética. Mostraremos o conteúdo e os desafios da bioética, bem como três desafios concretos
para a América Latina, e terminaremos com uma fala de Potter sobre bioética global.
A pessoa humana
A nossa realidade
Didaticamente, e de uma maneira objetiva, podemos dizer que a nossa sociedade é movida por
quatro forças:
O existencialismo é uma doutrina que centraliza toda a filosofia no valor do indivíduo concreto.
Não existe uma natureza humana, uma definição do que seja o homem anterior ao ato de existir:
não há uma essência precedente, que determinaria o que cada indivíduo vai ou deva ser. Numa
das correntes, a do filósofo francês Jean-Paul Sartre, o que conta é: minha liberdade.
O liberalismo é uma ideologia que sustenta a iniciativa privada e a propriedade privada através
do sistema capitalista. É uma doutrina de acumulação do capital que não valoriza o trabalho (visto
como mercadoria) e nem o trabalhador, reinventando a pobreza através da concentração da renda.
O neoliberalismo é a radicalização do liberalismo: reza um mercado sem fronteiras, um “Estado
mínimo”, sem leis, sem empresas estatais, sem alfândega. O neoliberalismo tem também como
característica a apropriação dos bens públicos, inclusive ambientais. Considerando que as
condições ambientais são o suporte da vida, apropriar-se desses recursos e gerenciá-los de
acordo com interesses privados significa deter o poder de determinar a qualidade e até mesmo a
possibilidade de vida para uma coletividade. Não é exagero constatar como esse poder sobre a
vida e a morte de uma coletividade tem sido exercido por interesses privados em detrimento do
interesse público. O neoliberalismo nasce também por causa de novas formas de mercado:
Comunidade Europeia, Mercosul, Empresas transnacionais. Aparecem novas tecnologias:
microeletrônica (chips de computador); optoeletrônica (laser); a biogenética (controle da vida); a
informática...
Esta ideologia é limitada devido: à exploração do trabalhador; ao empobrecimento, à miséria,
ao mercado informal; à concentração da renda; à massificação da pessoa através dos meios de
comunicação social e da propaganda; à destruição da natureza; à desqualificação da mão-de-
obra, à divisão em classes sociais...
Um sistema: capitalismo
Globalização
Saúde
• Causas ligadas às condições naturais de vida e suas variações como o clima, a água, a
qualidade da terra. Quando se fala de qualidade de vida, o primeiro requisito enunciado é a
proteção do meio ambiente. Como uma das características da ideologia vigente é a propriedade
privada, assistimos à apropriação dos bens públicos (onda de privatizações), inclusive ambientais.
A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao
homem deu a terra para que a domine com seu trabalho e goze dos seus frutos. Deus deu a terra a
toda a humanidade, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar
ninguém.
• Causas ligadas a outras condições de vida diretamente associadas aos recursos e serviços
de cura (atendimento médico e acesso a medicamentos). A medicalização da vida efetiva-se cada
vez mais no hospital, do parto aos últimos instantes na UTI, sem refletir bastante sobre as causas e
implicações desse fenômeno que desestruturou o relacionamento tradicional do doente no seu
meio familiar. Para quem puder entrar num hospital, o progresso e desenvolvimento científico e
tecnológico investigam de maneira cada vez mais sofisticada, obrigando as pessoas a
permanecerem no hospital e fazendo do seu corpo uma máquina. Muitos hospitais transformaram-
se em oficinas mecânicas e os profissionais da saúde em mecânicos especializados ou não. O
sistema de saúde em nosso país reforça a tese de que ele não é organizado com a preocupação
de ajudar o povo, mas aqueles que vivem às custas do sistema: indústrias de equipamento,
hospitais particulares, empresas farmacêuticas e de seguro médico, médicos empresários... A
preocupação é o lucro. Nessas condições, não é difícil imaginar a dificuldade da maioria da
população em ter acesso aos serviços médico-hospitalares (direito consagrado na Constituição,
artigo 196) e comprar remédios. Todos conhecem o drama das filas, sem contar as pessoas que
morrem sem a mínima assistência.
Cidadania deve ser conceituada levando-se em consideração o contexto social do qual se está
falando, e com isto a mesma adquire características que se diferenciam conforme o tempo, o lugar,
e, sobretudo, as condições socioeconômicas existentes. Assim, num contexto desenvolvido, a
cidadania é vista com ênfase nos direitos políticos; num contexto terceiro-mundista, a cidadania
envolve as questões da autonomia, da democracia e do desenvolvimento pensados como
totalidade, que se relacionam dialeticamente entre si.
Podemos citar três relações importantes:
Cidadania é sinônimo de democracia, e como tal não existe jamais em uma sociedade cuja
participação nas estruturas sociopolítica-econômica-cultural, é permitida apenas a uma
minoria, que para exercê-la tem como condição a exclusão e, consequentemente, a
marginalização da maioria.
É impossível falar de cidadania sem fazer uma referência ao Estado, à sociedade civil e ao
mercado.
O Estado é a resultante da correlação de forças políticas, econômicas, sociais e culturais; é o
conjunto de organizações e leis que regulamentam e permitem a vida de um país através de três
poderes: legislativo, executivo e judiciário. O Estado tem por finalidade promover o bem comum,
respeitando os direitos e deveres de cada cidadão e a sociedade civil. O bem comum é o conjunto
de condições materiais, institucionais, culturais e morais necessárias para garantir a todos as
possibilidades concretas de atingir níveis de vida compatíveis com a dignidade humana.
A sociedade civil ou sociedade dos cidadãos é a organização de pessoas humanas, de
cidadãos, para defender interesses, direitos como religião, sexo, cor, idade e classes econômicas.
A sociedade civil deve vigiar o Estado para que cumpra seu dever de atender as necessidades
básicas da população.
O mercado é anterior à sociedade moderna; ele está associado à formação das cidades, cujos
suprimentos dependiam de relações comerciais com produtores externos, notadamente
camponeses. A sociedade de mercado surge no Ocidente a partir do século XVI. Agora, a
produção não é mais regida pelas necessidades humanas, mas pelas necessidades do mercado.
Hoje, o mercado está dando origem a uma forma moderna de religião: a da mercadoria; gerando
uma imensa idolatria. O dogma central dessa religião é: “O dinheiro tudo pode, move o Céu e a
Terra”. E o mercado é a mão invisível que rege nossos destinos melhor que nossa consciência,
pois toma sempre a decisão mais adequada. Existem os templos dessa religião que são os
bancos, existe a romaria aos espaços mais carregados de significação que são os grandes
shoppings e cidades de consumo como Manaus, Miami, Paris... Existem também os sacerdotes
que são os banqueiros e os financistas que prestam o maior culto ao dinheiro. Precisamos
resgatar o mercado como realidade humana. As relações de mercado são relações sociais que
regem a produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Tratando-se de relações sociais,
não o individual, mas o social, deveria ocupar o centro do mercado. Portanto, o mercado tem por
finalidade atender as metas sociais, as necessidades básicas. Infelizmente, pela lei da oferta e da
demanda, o mercado produz o que se vai comprar (bens supérfluos) e se preocupa somente com
as pessoas que têm dinheiro para tal, isto em função da ideologia vigente.
Todo compromisso na área da saúde, na nossa realidade, é desafiado a favorecer o processo
de conquista da cidadania do povo. É importante saber o que se entende por cidadania: é o
exercício da plenitude dos direitos, como garantia da existência física e cultural e reconhecimento
como ator social, por exemplo, participar dos Conselhos Municipais ou Estaduais de Saúde. A
realização pessoal e comunitária da cada indivíduo é sempre considerada um valor acima do
Estado e do mercado. A inversão desta lógica implica encontrar um mercado ou um Estado com
caráter autoritário, coercitivo e absoluto. No centro de todo processo político tem de estar o
cidadão. Mas, quem é o cidadão? Ele é um indivíduo revestido de plenos direitos civis, políticos e
sociais, e o indivíduo tem a obrigação de trabalhar pela proteção vigilante do Estado no usufruto
dos direitos.
Aprofundando os direitos, podemos afirmar a respeito de cada um:
a ) Direitos sociais: Aqueles que o Estado tem por função e obrigação assegurar a todo
cidadão – moradia, saúde, educação, lazer, trabalho, cultura...
b ) Direitos civis: Os que dizem respeito ao indivíduo como a liberdade de reunião, de
expressão, de escolha profissional, de pensamento, de locomoção...
c ) Direitos políticos: Visam a liberdade de associação sindical, religiosa, partidária, de
escolha dos governantes, de participação no poder público e na determinação da política do
Estado.
Dentro da nossa realidade vamos analisar e refletir sobre conceitos essenciais que irão
embasar e fundamentar nossa posição frente a assuntos tão delicados e importantes como os do
início da vida.
• Na Idade Cristã a teologia passou a ser a instância julgadora do comportamento. A ética que
emergiu da natureza humana, em última análise, deveria submeter-se aos ditames da teologia,
como ciência das ciências. A natureza humana passou a ser enfim criatura de Deus que deve
submeter-se à sua vontade e julgamento. Os ideais éticos se identificavam com os religiosos. O
homem viveria para conhecer, amar e servir a Deus diretamente e em seus irmãos. O lema
socrático “Conhece-te a ti mesmo” voltou à tona, em Santo Agostinho, que ensinava que “Deus nos
é mais íntimo que o nosso próprio íntimo”. O ideal ético era o de uma vida espiritual, isto é, de
acordo com o espírito, vida de amor e fraternidade.
O termo moral deriva do latim mós ou mores, significando costumes, conduta de vida. Refere-se
às regras de conduta humana no cotidiano. O termo ética se equivale etimologicamente a moral,
pois provém do grego ethos, que também significa caráter, modo de ser, costumes, conduta de
vida. Portanto, hoje, muitos autores usam a palavra ética para designar também moral... eu,
inclusive. Porém, “outros autores alegam que a vida cotidiana confere às palavras uma história
específica que agrega a cada uma um sentido próprio: no Ocidente, onde prevaleceu o latim,
difundiu-se a palavra moral, e com a primazia cultural do cristianismo, a palavra ganhou uma
conotação religiosa. Da mesma maneira, a descoberta dos filósofos gregos colocou em realce a
palavra ética, com a conotação não religiosa, isto é, de moral natural ou secular. Como a moral
dominante no Ocidente tem sido apresentada como um sistema de princípios imutáveis e
aparentemente definidos, a palavra tomou com frequência um sentido conservador e fechado”
(Durand, 1995:12–14). Assim, nos documentos da Igreja Católica, moral ou ética significa
princípios definidos e imutáveis.
Para Leonardo Boff, “a palavra ética que vem do grego ethos, designa a morada humana. A
ética, como morada humana, não é algo pronto e construído de uma só vez. O ser humano está
sempre tornando habitável a casa que construiu para si. Ética significa, portanto, tudo aquilo que
ajuda a tornar melhor o ambiente para que seja uma moradia saudável. Na ética, há o permanente
e o mutável. O permanente é a necessidade do ser humano de ter uma moradia; o mutável é o
estilo com que cada grupo constrói sua moradia. Quando o permanente e o mutável se casam
surge uma ética verdadeiramente humana” (Boff, 1997:90).
Como articular ética e moral? Ética deve ser entendida como reflexão, sistematização da moral:
princípios fundamentais de conduta moral. Moral é vida, vivência dos valores éticos, vida do dia-a-
dia. A moral representa um conjunto de atos repetidos, tradicionais, consagrados. A moral
determina um repertório de comportamentos, costumes, para preservar um sistema, uma
organização. A ética corporifica um conjunto de atitudes que vão além desses atos. A ética lida
com comportamentos e atitudes que visam o bem comum: convívio, acolhida do diferente, cuidado.
O ato é sempre concreto e fechado em si. A atitude é sempre aberta à vida com suas incontáveis
possibilidades. Cabe à ética garantir a moradia humana, sob diferentes estilos, para que seja
efetivamente habitável. Assim, “ética é um dos mecanismos de regulação das relações sociais das
pessoas, que visa garantir a coesão social e harmonizar interesses individuais e coletivos” (Fortes,
1998:25).
Qual é a ética da bioética?
Ética é a ciência dos costumes. Costumes são os hábitos de uma pessoa, de um povo, de uma
comunidade. Os costumes, de fato, são os comportamentos médios aceitos por uma comunidade.
O afastamento dessa média gera surpresas, críticas e repreensões.
Os inovadores são considerados ousados e escandalosos; os que pretendem manter sem
alterações a tradição de costumes são considerados conservadores. O comportamento médio da
comunidade conta sempre com essas duas tendências. O movimento ético precisa prestar
atenção a ambas.
Face à evolução do sentido do homem e do seu quadro de referência, podemos dizer que a
ética e a moral estão em transição:
Objetivos da ética:
Procurar analisar, interpretar e organizar o comportamento humano segundo a dignidade do
ser humano, a ser sempre esclarecida.
Visar sempre a felicidade social, cultural, política e religiosa.
a) No que se refere à primeira alteração, é sabido que a ética – grega, medieval e moderna –,
até meados do século XX, ocupou-se, com ênfase prioritária e às vezes exclusiva, com a ação
individual (microética). Hoje, vivemos a experiência da prioridade do sujeito-social devido às
transformações operadas na sociedade. Isto abre espaço à macroética, à ética das ações feitas
com a participação de muitos atores (grupo, associação, comunidade, partido político...).
Histórico da bioética
a) Hospital Israelita de doenças crônicas (Nova York – 1963) Pesquisadores queriam obter
maiores informações sobre o processo de rejeição de transplantes em seres humanos. Um
grupo de 22 idosos doentes recebeu injeções de células cancerígenas, mas a diminuição na
capacidade de rejeição às células cancerosas estava ligada à debilidade.
b) Estudo no hospital estatal de Willowbrook (Nova York) Instituição para deficientes mentais.
Os participantes da pesquisa eram crianças que foram deliberadamente infectadas com o
vírus da hepatite A (1950–1970), com a finalidade de encontrar uma vacina. Para observar a
história natural da doença, investigadores infectavam deliberadamente parte das crianças
recém-ingressadas que eram encaminhadas para uma “unidade de hepatite”. Quando
questionados, os investigadores justificaram-se alegando que as crianças iriam se infectar de
qualquer forma durante sua estadia na instituição, assim não estavam causando prejuízos
maiores do que a que estavam expostas.
Transplantes:
Em 1967 aconteceu um transplante de coração realizado pelo Dr. Christian Barnard. Frente a
perguntas como: “o doador do órgão estava verdadeiramente morto?” “O coração foi retirado com
respeito aos desejos da pessoa ainda em vida?” ...criou-se o Comitê da Escola Médica de
Harvard para elaborar uma definição de morte cerebral com a participação de teólogos e
filósofos.
Envolvimento de teólogos:
Enquanto os teólogos católicos discutiam questões como eutanásia e aborto, dois teólogos
protestantes, Joseph Fletcher (1954) e Paulo Ramsey (1970), enfatizavam a liberdade do paciente
bem como as dimensões morais do relacionamento médico-paciente.
Origem da bioética
Bioética – ética da vida – é um neologismo, primeiramente forjado por Van Rensselaer Potter,
biólogo e oncologista da Universidade de Wisconsin, Madison, na obra Bioethics (Potter:1971),
publicada em janeiro de 1971. O objetivo desta disciplina, dizia ele, seria de ajudar a humanidade
em direção a uma participação racional, mas cautelosa, no processo da evolução biológica e
cultural, como uma nova disciplina que combina conhecimento biológico com o conhecimento dos
sistemas de valores humanos. Potter escolheu “bio” para representar o conhecimento biológico, a
ciência dos sistemas viventes, e “ética” para representar o conhecimento dos sistemas de valores
humanos. Para Potter, o objetivo último desta disciplina seria não somente enriquecer as vidas
individuais, mas prolongar a sobrevivência da espécie humana numa forma aceitável de
sociedade.
Seis meses mais tarde, em 1º de julho do mesmo ano, André Hellegers, obstetra, fisiologista
fetal e demógrafo, introduziu o mesmo termo num sentido mais restrito, aplicando-o à ética médica
e pesquisa biomédica. É este significado que acabou se consagrando nos meios acadêmicos e
na opinião pública.
Importa, desde já, destacar que o efetivo ponto de partida da bioética é a consideração da
pessoa humana e das condições éticas para uma vida humana. A perspectiva originária da
bioética é fundamentalmente humanista.
Definições de bioética
“Não se pode fazer bioética seriamente se não se apoiar sobre um fundamento antropológico,
antropologia no sentido filosófico, isto é, no sentido de um conhecimento da pessoa como sujeito
na sua globalidade, filosofia humanista atenta em compreender a pessoa em todas as suas
dimensões e, por isso, um humanismo o mais global possível” (Malherbe, 1990:90).
São várias as vertentes de análise teórica, de enfoque filosófico e de orientação prática para a
compreensão e tomada de decisão na bioética: são os chamados paradigmas.
Paradigma principialista: sistematizado por Beauchamp e Childress enfatiza os princípios da
tradição da ética médica: autonomia, que diz respeito à capacidade que tem a racionalidade
humana de fazer leis para si mesma, significa a capacidade de a pessoa governar-se a si mesma,
ou a capacidade de se autogovernar, escolher, dividir, avaliar, sem restrições internas ou externas;
beneficência: fazer o bem, cuidar da saúde, favorecer a qualidade de vida; não-maleficência: não
fazer o mal; e justiça: princípio que obriga a garantir a distribuição justa, equitativa e universal dos
benefícios dos serviços de saúde.
Paradigma liberal: decorrente das ideias emitidas por Engelhard – baseia-se na tradição
filosófica do liberalismo norte-americano: radicalização do valor central da autonomia e do
indivíduo, e defesa dos direitos e da propriedade dos indivíduos: corpo como propriedade do
próprio paciente, com direito a vender seu sangue ou seus órgãos.
Paradigma casuístico: elaborado por Jonsen e Toulmin não se orienta por princípio algum, e
sim pela análise de caso, buscando soluções tanto na singularidade de um caso como na
comparação entre eles.
Paradigma do cuidado: apresentado por Gilligan – o cuidado é a força motriz da sociedade,
da sobrevivência, evidenciado no papel que tradicionalmente coube às mulheres, o de nutridora, no
sentido de cuidar, nutrir. Contrapõe o valor do cuidado, característica mais feminina, ao de justiça,
característica mais masculina. Parte mais da psicologia evolutiva, sendo mais de natureza
psicológica do que filosófica. Superação de uma perspectiva exclusivamente técnica da medicina.
Paradigma contratualista: sistematizado por Veatch – explicita as deficiências e limites da
ética hipocrática, propõe um contrato tripartite entre médico-paciente, entre médicos e a
sociedade, com o objetivo de se chegar a um contrato amplo que de fato defina os princípios
norteadores da relação médico-paciente. Para regular essas relações, alguns princípios são
fundamentais: beneficência, proibição de matar, dizer a verdade e cumprir as promessas.
Paradigma da ética das virtudes: descrito por Pellegrino e Thomasma – focaliza o valor e a
necessidade da virtude para o estabelecimento de relações éticas, a virtude sendo uma
característica inata no ser humano que precisa apenas ser despertada; assim, manter-se virtuoso é
uma resultante do hábito de praticar boas ações e de exercitar a virtude. Enfatiza a ação pela
formação dos profissionais da saúde e na prática clínica que conduziria naturalmente à prática do
bem.
Paradigma narrativo: propõe que, na análise de casos e na tomada de decisão ética, trabalhe-
se com a metodologia da narração da história de vida das pessoas; as pessoas adquirem
identidade e intimidade ao contar e seguir histórias; é uma variação do modelo casuístico com a
diferença de que valoriza os recortes de classe, sexo/gênero e raça/etnia, entremeados à situação
em que a pessoa se encontra.
Paradigma do direito natural: apresentado por Finnis elenca alguns bens essenciais em si
mesmos: o conhecimento, a vida, a vida estática, a vida lúdica, a racionalidade prática, a
religiosidade e a amizade e, para ele, só é considerada moral a ação que reverencia e pode
desenvolver tais valores.
Paradigma antropológico ou perspectiva personalista humanizante: afirma que a bioética
carece de fundamentação antropológica; é baseado em uma filosofia humanista e globalizante que
tem como referência o conceito de pessoa na totalidade de suas expressões e na infinitude de sua
realização como pessoa. A fundamentação teleológica considera a pessoa humana na sua
dignidade universal e como valor supremo do agir.
Paradigma da responsabilidade: formulado por Hans Jonas – para quem as questões
referentes à ecologia e ao desenvolvimento da genética e da tecnologia devem ser analisadas em
uma perspectiva filosófica que considera a natureza um bem comum da humanidade.
Paradigma fenomenológico e hermenêutico: toda experiência está sujeita à interpretação,
existem sempre duas dimensões em cada situação: uma subjetiva e outra objetiva. A experiência
humana não pode ser facilmente capturada e dirigida para uma escolha moral informada por meio
da simples imposição de regras e princípios abstratos.
Frente aos paradigmas, descobrimos a ambiguidade ética: as dimensões morais da
experiência humana não podem ser capturadas por uma única perspectiva. A grandeza e a
profundidade da experiência humana sempre estarão além de qualquer sistema filosófico ou
teológico.
• Não se trata de uma ciência construída com fórmulas éticas pré-fabricadas. Como muitos dos
problemas bioéticos são novos, não é raro que brote a necessidade de buscar novos valores que
direcionem os trabalhos de investigação científica. Parte-se dos princípios e valores tradicionais e,
a partir deles, procura-se encontrar soluções novas para os problemas emergentes que trazem a
biologia, a genética, a engenharia genética e outras ciências.
• Apoia-se mais na razão e bom juízo moral de seus investigadores que numa determinada
corrente filosófica ou religiosa.
• Procura de maneira especial humanizar o ambiente das clínicas e hospitais em particular, bem
como promover os direitos do paciente.
Isto exige:
um esforço enorme do diálogo inclusivo, pois estamos em uma época marcada pela
superespecialização e, muitas vezes, por um individualismo exacerbado, conquista da
Modernidade;
um pluralismo religioso, político e moral, um ideal de sociabilidade, um progressivo
descobrimento e afirmação dos direitos humanos;
lidar com o pluralismo, apontar para um novo tipo de comunidade; o consenso social não
exclui a diferença e nem mesmo o conflito, ao contrário, clama por uma nova consciência de
solidariedade e de tolerância.
A bioética é mais que debater, é fazer coisas junto uns com os outros porque é tendo a
responsabilidade de agir, de justificar as escolhas feitas ou não, de dar razões da ação e de arcar
com as consequências, que se aprende a viver junto, que se constrói comunidade, que se pratica
solidariedade, que se exercita tolerância.
A tarefa cotidiana do cultivo da tolerância inclui uma atitude proativa de procura do ponto ideal
de encontro com o outro nos momentos de discordância e enfrentamento. A tolerância é uma
conquista no caminho em direção à solidariedade, este laço recíproco que une pessoas como
corresponsáveis pelo bem umas das outras.
Importantes questões éticas ligadas à engenharia genética, ao debate do aborto e eutanásia,
envolvem nossa compreensão de natureza e pessoa. Temos três modelos;
• A natureza como algo sagrado – este modelo vê a natureza como uma realidade a ser
reverenciada e respeitada. Na sua forma religiosa ocidental, a natureza é vista como uma parte da
criação de Deus e aceita como sagrada pela sua origem. O relacionamento que emerge dessa
descrição é de administração.
Numa primeira abordagem, temos três grandes áreas de problemas sobre os quais a bioética
trabalha. Questões que se referem ao início e ao fim da vida humana e as que se situam numa
área intermediária.
Entre as questões que dizem respeito ao início da vida, temos: contracepção, esterilização,
exame pré-natal, aborto, concepção medicamente assistida (inseminação artificial, fecundação “in
vitro”), doação de sêmen, óvulo, embrião, mãe de aluguel etc.
Entre as questões relacionadas com o fim da vida, temos: a morte e o morrer, paciente terminal,
eutanásia, suicídio, transplantes etc.
Enfim, as questões que se situam numa área intermediária (vida):
Controle social é aqui entendido como o controle sobre o Estado pelo conjunto da sociedade
organizada em todos os segmentos sociais. Evidentemente, esse controle deve visar o benefício
do conjunto da sociedade e deve ser permanente. Por isso, quanto mais os segmentos da
sociedade se mobilizarem e se organizarem, maior será a pressão e o resultado para que seja
efetivado o Estado Democrático.
O cidadão deve ser um agente de transformação na sociedade no resgate da dignidade da
pessoa e da qualidade de vida. É tendo a responsabilidade de agir, de dar razões da ação e de
arcar com as consequências que se aprende a viver junto. Assim, gostaria de refletir sobre a
participação pública na tomada de decisões:
Exercício da cidadania: lembrando a distinção que o bioeticista italiano Giovani Berlinguer faz
entre bioética de fronteira – sendo aquela que trata das novas tecnologias biomédicas aplicadas
sobretudo à fase nascente e à fase terminal da vida e bioética cotidiana, sendo voltada para a
exigência de humanizar a medicina, articulando fenômenos complexos, como a evolução científica
da medicina, a socialização da assistência sanitária, a crescente medicalização da vida, inclusive
a alocação de recursos para a saúde. A bioética cotidiana nos faz entrar no concreto do exercício
da cidadania. A cidadania é compreendida como o exercício da plenitude dos direitos, como
garantia da existência física e cultural e reconhecimento como ator social. A realização pessoal e
comunitária de cada pessoa é sempre considerada um valor acima do Estado e do Mercado. A
inversão desta lógica implica encontrar um mercado ou um estado com caráter autoritário,
coercitivo e absoluto. Assim, precisamos de instâncias representativas que defendam direitos e
deveres na tomada de decisões frente à alocação e gestão de recursos em saúde.
Comissões de bioética: As comissões de bioética, no nosso caso, são formadas por diversos
profissionais ligados à comunidade. Basicamente são enfatizadas três funções: educativa,
consultiva e normativa. Trata-se da educação nos grandes temas da bioética, da análise e
discussão de casos e problemas éticos, e da elaboração de normas éticas, bem como da
implementação das já existentes. Os componentes dessas comissões poderiam ser profissionais
da saúde, representantes dos vários segmentos da sociedade e gestores (municipais, estaduais e
nacionais) escolhidos a partir dos conselhos de saúde para firmar o compromisso desses com as
decisões tomadas para promover e garantir a saúde da população, como por exemplo o
funcionamento a contento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)3: em toda instituição de saúde, bem como
universidades e faculdades que realizam pesquisas com seres humanos e animais, é preciso ter
um Comitê de Ética em Pesquisa, segundo definição da Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde/Ministério da Saúde.
O comitê de ética em pesquisa tem por finalidade analisar a cientificidade e eticidade da
pesquisa, defender os interesses do sujeito da pesquisa e os interesses do pesquisador. A ênfase
é dada ao consentimento livre e informado, à análise dos riscos versus benefícios e à não-
maleficência da pesquisa.
A bioética tem a ver com o viver do dia-a-dia. De uma maneira esquematizada e simples,
apresentaremos agora a abrangência temática da bioética perpassando o nascer, o viver e o
morrer.
a) Nascer
1) Vida humana
Natureza: Sim. Ser Humano: Não – Como não ter os filhos que não se quer?
Natureza: Não. Ser Humano: Sim — Como ter os filhos que a natureza recusa?
O primeiro foi o Projeto Manhattan – descobriu e utilizou a energia nuclear que gera hoje
energia elétrica; é utilizada na cura do câncer, mas também produziu a bomba atômica que matou
mais de 80 mil pessoas, destruindo Hiroshima e Nagasaki (1945) e pôs fim à Segunda Guerra
Mundial. Descobriu-se o coração da matéria, o átomo, e dele se extraiu energia. Projeto Apollo –
levou o homem até a lua (1969). O ser humano criou estações orbitais, enviou sondas exploratórias
para outros planetas e se instrumentalizou para navegar interplanetariamente. Descobrimo-nos
como um grãozinho de areia na imensidão do universo. Começou a se falar e a procurar vida em
outros planetas. Projeto Genoma Humano – iniciado oficialmente em 1990, objetivou mapear e
sequenciar todos os genes humanos (de 30 a 50 mil segundo os geneticistas), onde estão
guardados todos os segredos biológicos e genéticos da vida. Este empreendimento levou o ser
humano ao mais profundo de si mesmo em termos de conhecimento de sua herança biológica,
numa verdadeira caça aos genes. Ele tem suas raízes na chamada “descoberta do século”, o DNA
(ácido desoxirribonucleico) por Watson, Crik e Rosalin Franklin, em 1954. tem aí início a terceira
revolução biológica e que neste limiar de um novo tempo está sendo renomeada como sendo a
era genômica. A internética nos faz tomar consciência de que vivemos numa aldeia global em
termos de comunicação: “o mundo online”.
Século XXI:
1) Saúde
2) Ecologia
c) Morrer
a) Aspectos Histórico-Culturais
“Os problemas bioéticos mais importantes em relação à América Latina estão relacionados com
a justiça, a equidade e a alocação de recursos na área da saúde. A equidade equivale à justiça
distributiva, leva em conta as diferentes necessidades individuais e a existência de desigualdades
entre as pessoas. Propõe que haja um tratamento desigual dos desiguais, de acordo com suas
necessidades, ou seja, uma discriminação positiva. Equidade significa a disposição de
reconhecer igualmente o direito de cada um a partir de suas diferenças. A igualdade é a
consequência desejada da equidade, sendo esta o ponto de partida para aquela. É o ponto de
chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos na qual o próximo passo é o
reconhecimento da cidadania. A equidade, ou seja, o reconhecimento de necessidades diferentes,
de sujeitos também diferentes, para atingir direitos iguais, é o caminho da ética prática em face da
realização dos direitos humanos universais, entre eles o direito à vida representado pela
possibilidade de acesso à saúde” (Garrafa, 1997:27-33).
A bioética elaborada no mundo desenvolvido (USA e Europa), na maioria das vezes, ignora
questões básicas que milhões de excluídos enfrentam e enfoca outras que, para eles,
simplesmente não existem. Por exemplo, fala-se muito de morrer com dignidade no mundo
desenvolvido; aqui, na América Latina, somos impelidos a proclamar a dignidade humana que
garanta primeiramente um viver com dignidade e não simplesmente uma sobrevivência aviltante,
antes que um morrer digno. Entre nós, a morte é precoce e injusta, ceifa milhares de vidas desde a
infância, enquanto que no primeiro mundo, morre-se depois de se ter vivido muito e desfrutado da
vida com elegância. Assim, o grande desafio é desenvolver uma bioética latino-americana que
corrija os exageros de outras perspectivas e que resgate e valorize a cultura latina no que lhe é
único e singular, uma visão verdadeiramente alternativa que possa enriquecer o diálogo
multicultural. Não podemos esquecer que, na América Latina, a bioética tem o encontro obrigatório
com a pobreza e a exclusão social. Elaborar uma bioética somente no nível micro de estudos de
casos de sabor deontológico somente, sem levar em conta esta realidade, não responderia aos
anseios e necessidades por mais dignidade na vida. Não estamos questionando o valor
incomensurável de toda e qualquer vida que deva ser salva, cuidada e protegida. temos sim que
não perder a visão global da realidade excludente latino-americana na qual a vida se insere.
1. Entendendo a bioética num sentido amplo de ética da vida, não há como escapar à reflexão
sobre esse confronto travado entre vida e antivida e não há como não perceber a tarefa de
resgatar a esperança quando o começo é tão próximo do fim! A vida situa-se dentro de um
contexto que favorece ou mata sua expressão.
Numa consideração de bioética, há uma série de fatores econômicos, sociais, políticos e
psicológicos que interferem diretamente nos problemas éticos da vida humana. Nesta direção,
percebemos ideologias que exploram a vida e a própria morte.
A questão da bioética, pensada somente em torno de assuntos médicos, estritamente ligada à
ética médica, amplia-se. Na América Latina temos de levar em consideração a vida dos
marginalizados pela classe social, pelo sexo, pela raça. A questão de fundo é o lugar social a partir
do qual se pensa a bioética.
Assim, os temas concretos, que a bioética deveria incluir, além dos costumeiros, deveriam tratar
da infraestrutura básica da vida, de tal forma que se levassem em conta as condições reais dos
marginalizados (pobres, mulheres, negros, índios). Poderíamos chegar, assim, a uma pauta de
questões tais como: alimentação, fome, saúde, emprego, racismo, ecologia, direitos reprodutivos,
entre outros.
Percebemos o quanto deve ser levado em conta o contexto mais amplo em que a vida,
dialeticamente, se situa e as ideologias e mecanismos que manipulam a vida e estruturam a
antivida.
2. Ao falar de procriação humana, não podemos ignorar que o mínimo não está acontecendo
ainda. De fato, saúde e direitos reprodutivos não são ainda direitos! E sabemos que uma grande
parcela da população desconhece seus direitos reprodutivos. Mais ainda, como falar de bioética,
ética da vida, se 70% da população não vive, mas sobrevive? Fala-se de procriação medicamente
assistida (para quem?) quando o mínimo, a respeito dos direitos reprodutivos, não foi alcançado!
A conceituação de direitos reprodutivos é uma reivindicação dos movimentos de mulheres que
está se impondo, internacionalmente, e que envolve a ética e a política de saúde. Os direitos
reprodutivos consistem no direito básico de todos os casais e indivíduos (homem e mulher) de
decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e o momento de ter filhos e de
ter informações e acesso aos meios contraceptivos, e no direito de obter um melhor padrão de
saúde sexual e reprodutiva. É o direito de ter relações sexuais prazerosas. Isso inclui o direito de
todos de tomar decisões em relação à reprodução, livres de discriminação, coerção e violência,
termos esses expressos em documentos internacionais sobre direitos humanos.
Assim, com a descoberta pela ciência, a partir da década de 60, dos métodos contraceptivos,
pôde-se ter a liberdade sexual e o controle reprodutivo. Separou-se um processo que nunca
aconteceu anteriormente na história: de um lado a sexualidade, de outro a reprodução. Começa a
ganhar expressão a ideologia de que a reprodução deve ser conduzida racionalmente. É dentro
dessa realidade que surgem com força questões éticas relacionadas aos direitos reprodutivos e
às implicações da participação de governos na questão da política populacional.
Alguns pontos para uma reflexão bioética sobre o aborto: o elevado número de abortos
provocados anualmente no mundo, calculado em torno de 50 milhões, faz refletir. Mesmo que esse
número esteja superestimado, ele dá a impressão de uma reflexão inútil. O aborto é uma questão
complexa porque envolve não somente a mulher, mas também o homem e a sociedade. É visto
ideologicamente como causa quando na verdade é efeito. Nos estudos e debates em geral, o
assunto costuma ser analisado com posições bem definidas: pró ou contra. Precisamos enfocá-lo
de modo mais elaborado, mais discutido em função da qualidade de vida das pessoas. É
imprescindível, no plano social, refletir e debater essa realidade do aborto de maneira desarmada,
tentando entender com amor, sem julgar.
E, no fundo, cada um de nós deveria se perguntar: Qual é meu compromisso com a vida humana
e principalmente com a vida ameaçada na sociedade na qual vivemos?
A função da bioética ponte é a de construir pontes em direção a cada uma das especialidades e
entre as especialidades para possível desenvolvimento de uma bioética global, que vê o bem-estar
humano no contexto do respeito pela natureza.
• A Ética Médica é amplamente definida como bioética, mas trata-se de uma especialidade não
interessada em construir ponte, segundo Potter. A bioética foi definida como especialidade em
1978, por Leroy Walters: “Bioética é um ramo da ética aplicada que estuda as práticas e o
desenvolvimento no campo biomédico”. Esta definição ignora a visão de 1971 da bioética ponte
para o futuro Segundo Potter, um dos dilemas que enfrenta hoje a ética médica é o problema de
quando não aplicar toda a tecnologia disponível. Já em 1971 discutia-se que o problema moral
surge porque a “ciência médica alcançou um sucesso parcial na manutenção da maquinaria sem
manter a pessoa”. Nos tempos presentes, eticistas médicos devem ir além do monitoramento
tecnológico utilizado somente pelos superprivilegiados. Eles devem colaborar com os eticistas
sociais e exigir medidas de saúde para os menos afortunados em casa (nos EUA) e nos países
em desenvolvimento, onde a pobreza combina com AIDS, malária, parasitismo e tuberculose.
• A Ética Ambiental é uma ética que lida com a relação da humanidade com a terra, as plantas,
os animais que crescem nela. Como na medicina, o dilema é como atingir o sucesso a curto prazo
e obter lucro sem destruir as opções futuras de sobrevivência.
• A Ética Agrícola é uma especialidade recente que vê uma obrigação ética de prover reservas
sustentáveis de alimento para uma população mundial em expansão. O dilema é, novamente,
como prover a necessidade de alimentos sem aumentar as dificuldades futuras, ao ignorar a
necessidade de diversidade biológica no mundo natural. A utilização de reservas florestais e as
indústrias de pesca enfrentam problemas que se entrelaçam com os dilemas da ética ambiental e
da agricultura.
• A Ética Religiosa busca uma moralidade básica que transcenda os conflitos sectários. O
dilema básico é o fracasso da educação secular em desenvolver um senso de responsabilidade
individual e integridade moral nos jovens, enquanto os informa dos fatos biológicos básicos da
evolução e da adaptação.
• A Ética Capitalista é uma categoria usualmente não considerada, mas a filosofia do livre
mercado é proclamada como um instrumento para o agir do bem social através da chamada mão
invisível do próprio interesse que Adam Smith, um economista escocês, desenhou em 1776. Mas,
de fato, são as mãos de rapina operando no livre mercado da economia global que cortam as
florestas tropicais e esvaziam o mar de peixes. Essa ética falhou redondamente em resolver o
dilema da simples justiça em equilibrar direitos humanos com a maximização do lucro para
dilema da simples justiça em equilibrar direitos humanos com a maximização do lucro para
poucos.
Segundo Potter, “desde o início chamei de bioética uma nova disciplina que combinaria
conhecimento e reflexão. A bioética deve ser vista como uma abordagem cibernética em relação à
contínua busca de sabedoria pela humanidade, que define como usar o conhecimento para a
sobrevivência humana e para o aperfeiçoamento da condição humana”.
A bioética deve ser pensada como uma nova ciência ética que combina humildade,
responsabilidade e uma competência que é interdisciplinar, intercultural potencializadora do senso
de humanidade.
Conclusão
Relembramos que o advento da bioética muito contribuiu para estabelecer a distinção entre
moral e ética.
MORAL diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de uma determinada
sociedade. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada membro a ela
pertencente recebe (digamos passivamente) e os respeita.
ÉTICA é um juízo de valores, é um processo ativo que vem de “dentro de cada um de nós para
fora”, ao contrário de valores morais que vêm de “fora para dentro” de cada um. A ética exige um
juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica,
cada um de nós vai pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e,
também, os valores morais.
BIOÉTICA é ética. Não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma
reflexão sobre os mesmos e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há
bioética sem liberdade; liberdade para se fazer uma opção, por mais “angustiante” que possa ser.
O exercício da bioética exige, pois, liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem
coação, sem coerção e sem preconceito. A bioética exige também humildade para se respeitar o
diferente, e a grandeza para reformulação, quando se reconhece o equívoco em uma opção.
Condição sine qua non exigida pela bioética, enquanto tal, diz respeito à visão pluralista e
interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. Ninguém é
dono da verdade.
Hoje, a bioética pode ser definida como um instrumental de reflexão e ação, a partir de três
princípios: autonomia, beneficência e justiça. Busca estabelecer um novo contrato social entre
sociedade, cientistas, profissionais da saúde e governos. Além de ser uma disciplina na área da
saúde é também um crescente e plural movimento social preocupado com a biossegurança e o
exercício da cidadania, diante do desenvolvimento das biociências. Procura resgatar a dignidade
da pessoa humana e a qualidade de vida.
Políticas demográficas
Introdução
Numa abordagem sobre o tema “bioética e políticas demográficas”, faz-se necessário, antes de
tudo, falar dos direitos reprodutivos. Como sabemos, saúde e direitos reprodutivos não são ainda
direitos. E também sabemos que uma grande parcela da população desconhece seus direitos
reprodutivos. Mas como falar de bioética, ética da vida, se 70% da população não vive, mas
sobrevive? A conceituação de direitos reprodutivos é uma reivindicação dos movimentos de
mulheres que está se impondo internacionalmente, e que envolve a ética e a política de saúde.
Os direitos reprodutivos consistem no direito básico de todos os casais e indivíduos (homem e
mulher) de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e o momento de ter
filhos e de ter informações e acesso aos meios contraceptivos, e no direito de obter um melhor
padrão de saúde sexual e reprodutiva. É o direito de ter relações sexuais prazerosas. Isso inclui o
direito de todos de tomar decisões em relação à reprodução, livres de discriminação, coerção e
violência, termos esses expressos em documentos internacionais sobre direitos humanos.
Assim, com a descoberta pela ciência, a partir da década de 60, dos métodos contraceptivos,
pode-se ter a liberdade sexual e o controle reprodutivo. Separou-se um processo que nunca
aconteceu anteriormente na história: de um lado a sexualidade, de outro a reprodução. Começa a
ganhar expressão a ideologia de que a reprodução deve ser conduzida racionalmente.
É nesta realidade que surgem com força questões éticas relacionadas aos direitos reprodutivos
e às implicações da participação de governos na questão da política populacional: planejamento
familiar, contracepção e aborto.
Antes de uma reflexão mais pontual, vamos tentar visualizar a problemática das políticas
demográficas.
Políticas populacionais
Desde a Antiguidade até o fim da Idade Média o crescimento demográfico foi de 0,1%. Estima-
se que havia, no tempo do nascimento de Cristo, 250 milhões de pessoas no mundo. Em 1492,
quando Colombo descobriu a América Latina, a população girava em torno de 400 milhões. De
1960 a 1970, a humanidade alcançou o pico máximo de crescimento global: 2,69%. A população
do mundo duplica a cada 33 anos.
Estudos a respeito da demografia são recentes. Datam do século XVIII. A obrigatoriedade do
censo demográfico periódico começou nos Estados Unidos em 1790 e, em seguida, na Inglaterra
e na França, em 1901. A humanidade atingiu a casa do primeiro bilhão em 1850 e em 1930, o
segundo bilhão. Foram necessários milhares de anos para se chegar ao primeiro bilhão, e
somente 80 anos para o segundo. Tivemos três Conferências Mundiais sobre População e
Desenvolvimento: Bucareste (1974), México (1984) e Cairo (1994). A Conferência de Bucareste foi
extremamente pessimista e falou-se em bomba demográfica, mais perigosa que a bomba de
hidrogênio. Na conferência do México, constatou-se que, de um lado, existem países com
crescimento populacional preocupante (Terceiro Mundo) e, de outro, países com déficit
populacional (por exemplo, Alemanha e França).
Na Conferência do Cairo houve certo consenso internacional quanto aos seguintes pontos:
Contracepção – anticoncepção
• Thomas Robert Malthus (1766-1834), economista e demógrafo inglês, descreveu uma teoria de
contenção demográfica conhecida como malthusianismo, que sobrevive ainda hoje com o nome de
neomalthusianismo. A tese é a seguinte: é impossível alcançar o bem-estar geral sem contenção
demográfica, pois o crescimento demográfico é sempre maior que a produção de bens: a
produção de bens cresce em proporção aritmética; a população, em proporção geométrica.
a) o fato: o crescimento populacional vem caindo lenta e sistematicamente, não por força do
controle da humanidade, mas por determinação sua, com meios que descobriu e adotou para
a implementação de um programa populacional;
b) a previsão: por volta do ano 2100, a humanidade passará a ter um crescimento
populacional zero, isto é, nascimentos e mortes se equivalerão. Se a previsão for correta, a
humanidade terá condições de se administrar e os bens disponíveis com muito mais
segurança do que hoje, pois o crescimento populacional implica em demanda sempre
crescente. É claro que isso não é tudo, mas não deixa de ser um dado fundamental.
• É essencial ter presente uma condição posta pelos defensores da natalidade: os recursos
naturais e as capacidades técnicas do homem permitem encarar o futuro com confiança desde
que se saiba partilhar de forma equitativa. Está aqui um nó da questão: os países ricos, com
apenas 20% da população mundial, consomem 80% do que se produz.
• Os países do Primeiro Mundo tem crescimento zero, mas há estabilização econômica por
causa da taxa de substituição pela migração.
Apesar de existirem realmente países que devem aguentar crises populacionais sérias em nível
regional ou nacional, a “bomba demográfica” mundial se revela gradativamente como um mito. Mas
esse mito continua a ser a base da ideologia que se poderia chamar de imperialismo
contraceptivo. A ideologia pode se reduzir à concepção segundo a qual uma população menos
numerosa permite realizar uma melhor economia. Organizações internacionais, que operam em
todo o mundo, parecem ser tão fortemente engajadas na consecução dessa ideologia que
anseiam fortalecê-la por meio de métodos que excedem os princípios e os valores éticos de
numerosas culturas. Tendo fracassado no esforço de reduzir de forma adequada a população em
determinadas áreas do Terceiro Mundo e no esforço de concretizar o “crescimento populacional
zero” no Primeiro Mundo, os protagonistas dessa ideologia tentam atualmente promover em escala
mundial a esterilização e o aborto contraceptivo.
Em determinados países, a população exerce forte pressão, embora, muitas vezes, seja
confundida com problemas subjacentes de injustiça econômica, de subdesenvolvimento de
recursos e de planejamento econômico fraco. A densidade populacional não é necessariamente a
causa original da fome e da pobreza. E uma população de seis bilhões de pessoas não é mais
obrigatoriamente uma população mundial excessiva, levando-se em conta realizações gerais da
produção alimentar e do potencial existente para um sucessivo desenvolvimento dos recursos e da
tecnologia.
O imperialismo contraceptivo impôs aos povos e às culturas toda forma de contracepção,
esterilização ou aborto julgado “eficaz”, sem nenhum respeito pelas tradições familiares, étnicas ou
religiosas de determinada população ou cultura. Tal desrespeito, insensível pela ética e pelos
valores morais no planejamento familiar, poderia ser superado: a) rejeitando o mito do fim do
mundo devido a uma crise populacional; b) considerando o crescimento demográfico no contexto
do desenvolvimento econômico; c) considerando os diferentes problemas, não somente da
superpopulação de determinadas áreas, mas também de subpopulação; d) enfrentando esses
diversos problemas promovendo a justiça econômica por meio do desenvolvimento e da
descentralização.
Não se pode negar a existência, especialmente no Sul de nosso planeta, de um problema
populacional que cria dificuldades ao desenvolvimento. E é bom acrescentar, imediatamente, que
no Norte esse problema se apresenta em termos diversos: aqui, o preocupante é a quebra do
índice de natalidade, com repercussões sobre o envelhecimento da população, que se torna
incapaz mesmo de se renovar biologicamente. Esse fenômeno é por si só suscetível de constituir
um obstáculo para o desenvolvimento.
Por outro lado, parece ser algo muito alarmante verificar em numerosos países a difusão de
campanhas sistemáticas contra a natalidade, por iniciativa dos próprios governos, em contraste
não só com a identidade cultural e religiosa desses mesmos países, mas também com a natureza
do verdadeiro desenvolvimento. Acontece frequentemente que tais campanhas são devidas a
pressões e financiadas por capitais provenientes do estrangeiro e mesmo, em alguns casos,
postas como condição a que se subordinam os auxílios e a assistência econômico-financeira.
Em qualquer hipótese, trata-se de absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das
pessoas interessadas, homens e mulheres, não raro submetidas a intoleráveis pressões, incluindo
as econômicas, a fim de cederem a essa nova forma de opressão.
Retrato do Brasil6: número médio de filhos chega a 5,3 quando a mãe é de família com renda
per capita de até R$ 50,00.
A taxa de fecundidade das mulheres brasileiras que vivem em famílias com rendimento per
capita inferior a R$ 50,00 é 3,8 vezes maior do que a das mulheres de famílias com rendimento
superior a R$ 1.000,00.
Segundo o IBGE, enquanto as brasileiras de maior renda têm, em média, 1,11 filhos, entre as de
menor renda essa taxa é de 5,3.
A diferença é encontrada também quando se analisa a taxa de fecundidade de acordo com os
anos de estudo. As brasileiras sem instrução ou que não completaram nem a primeira série do
ensino fundamental têm, em média, 4,12 filhos. Entre as que completaram pelo menos o ensino
médio, essa taxa cai para 1,48.
O rendimento familiar per capita, sem dúvida, atua no sentido de estabelecer grandes
diferenças. Mas é com o aumento da escolaridade feminina que são observados os maiores
declínios relativos nas taxas.
Na maioria dos países da Europa7, as taxas de natalidade preocupam: as taxas de natalidade
têm diminuído nas últimas décadas, trazendo as famílias com uma criança muito perto da norma
estatística.
Na Espanha, Suécia, Alemanha e Grécia, a taxa de fertilidade total – ou o número médio de
crianças que se espera que uma mulher venha a dar à luz, com base nos indicadores atuais, era de
1,4 ou menos no último ano, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em nenhum país da Europa Ocidental a taxa alcançou 2,1 – a marca, segundo os demógrafos,
que representa uma exata reposição da população. Em contraste, os Estados Unidos têm uma
taxa de 2,0 que os demógrafos atribuem a um grande movimento de imigração.
Embora essa tendência tenha estado evidente por vários anos, suas consequências construídas
lentamente estão agora vindo à tona, com mais e mais países da Europa Ocidental reconhecendo
e chamando a atenção para o espectro de uma força de trabalho menos competitiva, menos
benefícios aos que se aposentam e um sistema de aposentadoria que vai sofrer cortes cada vez
mais profundos.
Poderia-se evitar muitos abortos se fossem colocadas em prática todas as disposições legais
de prevenção e contracepção.
No Brasil, o movimento de mulheres, em aliança com professionais da saúde, conseguiu, em
1983, elaborar um modelo assistencial para a saúde da mulher: PAISM – Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher8, que objetiva atender as mulheres de modo integral em todas as fases
de sua vida: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade. De fato, o atendimento à mulher
pelo sistema de saúde tem-se limitado, quase que exclusivamente, ao período gravídico-puerperal
e, mesmo assim, de forma deficiente. As repercussões biopsicossociais da gravidez não
desejada, abortamento e acesso a métodos e técnicas de controle da fertilidade têm sido
relegados a piano secundário. “Poucas mulheres têm acesso à cobertura integral oferecida pelo
PAISM. O atendimento à grande maioria se limita à verificação do peso e da pressão arterial,
consolidando a mais evidente distorção do programa – a quantidade em detrimento da qualidade.
Por exemplo, as ações de planejamento familiar estão abaixo de 10 % da necessidade da
população9.” Embora tenha sido assumido pelo governo brasileiro desde 1985, até hoje só foi
implantado precariamente.
A Constituição Federativa do Brasil (1988), no seu Art. 226, parágrafo 7, reza: “Fundado nos
princípios de dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar
é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para
o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e
privadas”. E para regular o parágrafo 7 deste artigo da Constituição, foi sancionada a Lei n. 9.263,
de 12 de janeiro de 1996 e as Portarias 144/97 e 48/99 do Ministério da Saúde que normatizam
os procedimentos, permitindo que o SUS (Sistema Único de Saúde) os realize gratuitamente, em
acesso universal. Atualmente, são estes os critérios legais para a realização da esterilização
cirúrgica pelo SUS: ter capacidade civil plena; ter no mínimo dois filhos vivos e ter mais de 25 anos
de idade, independentemente do número de filhos; manifestar por escrito a vontade de realizar a
esterilização, no mínimo 60 dias antes da realização da cirurgia; ter tido acesso a serviço
multidisciplinar de aconselhamento sobre anticoncepção e prevenção de DST/AIDS, assim como a
todos os métodos anticoncepcionais reversíveis; ter consentimento do cônjuge, no caso da
convivência conjugal. O serviço que realizar o procedimento deve oferecer todas as opções e
métodos anticoncepcionais reversíveis e seguros, bem como serviço multidisciplinar de
aconselhamento sobre anticoncepção, visando desencorajar a esterilização precoce informando
sobre os riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais e dificuldade de reversão. A lei impõe,
ainda, restrições quanto à realização da laqueadura durante o parto cesáreo, buscando coibir o
abuso de partos cirúrgicos realizados exclusivamente com a finalidade de proceder à esterilização.
Alguns impactos da lei: falta de insumos adequados, ou seja, a oferta de todos os métodos
contraceptivos reversíveis existentes dificilmente será incluída pela CEME na sua lista de
distribuição, pelo rápido avanço tecnológico dessa área e pela falta de oferta de todos os meios e
métodos no mercado brasileiro; clientela eleitoral; arraigada cultura de resistência à esterilização
entre médicos e outros profissionais da saúde; idade mínima estabelecida pela lei: risco de
arrependimento por se tratar de método irreversível.
Como questão social, temos um quadro grave no país: o uso massivo da esterilização feminina e
da pílula anticoncepcional; a falta de oferta de métodos reversíveis e de práticas educativas nos
serviços públicos de saúde; uma profunda desinformação da população sobre todos os meios de
se evitar a gravidez; e tudo isso dentro de um contexto de acentuada pobreza e relações de gênero
desiguais.
No entanto, dada a forma perversa como tem sido tratada a anticoncepção no país, faz-se
necessário um sério trabalho educativo com profissionais da saúde e com a população, a fim de
superar a cultura do método único e irreversível e reinstaurar uma demanda diversificada e
democratizada.
Segundo o CELSAM (Centra Latino-Americano Saúde da Mulher), associação sem fins
lucrativos que reúne outras importantes ONGs e médicos ligados à saúde feminina na América
Latina, que tem por objetivo contribuir para elevar a qualidade de vida e de saúde da mulher, com
sede em Belo Horizonte (MG), na América Latina, 116 milhões de mulheres geram, em média, três
filhos cada uma. Quase metade destas mulheres em idade fértil não usa métodos contraceptivos
de planejamento familiar. Dezessete por cento dos bebês nascem de mães com menos de 19
anos e um quarto das gestações não é planejada.
O resultado é que muitas mulheres simplesmente não têm acesso aos métodos que lhes
permitiriam exercerem seus direitos de cidadãs, usufruindo de uma qualidade de vida melhor e
gerando filhos em condições mais equilibradas.
Aconselhamento genético
Aborto
Aborto: conceituações
Etimologicamente, aborto, do latim abortus, significa privação de nascimento porque vem de ab,
que quer dizer privação, e ortus, nascimento. No corpo do ensaio, usarei a palavra aborto como
sinônimo de abortamento: “alguns autores preferem o termo abortamento para designar a
interrupção dolosa da gravidez, antes do sexto mês, com o argumento de que aborto seria o
produto desta intervenção, e porque a palavra abortamento guardaria maior significação técnica.
Entretanto, o termo, na forma contraída, é o mais comumente utilizado, seja popularmente, seja na
linguagem erudita e ambos possuem o mesmo sentido. Ademais, aborto, pela sua sinonímia
revela, por si só, o caráter de abortar” (Parreira, 1993:47-64).
Uma conceituação clássica do aborto, representando um consenso para a maioria das correntes
filosóficas, médicas e religiosas seria “a expulsão ou extração de toda ou qualquer parte da
placenta ou das membranas, sem um feto identificável, ou de um recém-nascido vivo ou morto, que
pese menos de quinhentos gramas. Na ausência do conhecimento do peso, uma estimativa da
duração da gestação de menos de vinte semanas completas, contando desde o primeiro dia do
último período menstrual normal, pode ser utilizada” (Abel, 1980:99). Ou do ponto de vista médico,
“aborto é a interrupção da gravidez até a 20a ou 22a semana, ou quando o feto mede até 16,5 cm.
Este conceito foi formulado baseado na viabilidade fetal extrauterina e é mundialmente aceito pela
literatura médica” (Rosas, 1996:15). “O estágio de viabilidade extrauterina foi definido
arbitrariamente por diferentes organismos nacionais e internacionais, e está sujeito a modificações
em função do aperfeiçoamento da medicina neonatal e da melhora da taxa de sobrevivência dos
bebês de baixo peso” (Hottois, Parizeau, 1993:31).
“Na visão estritamente médica, obstétrica de aborto, a palavra é reservada para a interrupção de
gestação até 24 semanas de gravidez, ou seja, até a ocasião em que o feto passa a se tornar
capaz de vida, independentemente do útero materno; daí em diante o fato passaria a se chamar
parto prematuro. Não há diferença substancial, salvo a exigência que a lei faz de que, para se
denominar algo como aborto, é indispensável que tenha ocorrido a morte do nascituro, a vida do
qual é o valor a ser juridicamente preservado (Almeida, 1998).
Distingue-se aborto espontâneo, aquele que acontece por causas naturais. Segundo uma
pesquisa realizada na França10, 75% das concepções terminam em aborto: 60% antes de reparar
o atraso da menstruação e 15% quando a gravidez é conhecida; em dois terços dos abortos
espontâneos precoces (antes da sétima semana de amenorreia), o aborto é uma espécie de
eliminação dos produtos da concepção apresentando uma anomalia cromossômica.
O aborto provocado ou induzido é aquele que acontece pela intervenção especial do homem. As
causas ou motivos costumam chamar-se de indicações (Anjos, 1976:19-20; Barchifontaine,
1993:19): indicação médica ou terapêutica, quando o aborto é provocado para salvaguardar a vida
ou a saúde da mãe; indicação eugênica, quando o aborto é provocado para se livrar de um
nascituro com taras, anomalias, defeitos ou doença fetal previstos, eventualmente já constatados
em exame pré-natal; indicação socioeconômica, quando o aborto é provocado por falta de
condições para criar uma família, moradia sem espaço, insegurança de emprego, baixo salário,
doenças na família, responsabilidade com os idosos, sensibilidade à defesa da qualidade de vida
acima de sua quantidade numérica, falta de proteção à mãe solteira e aos filhos excepcionais;
indicação psicossocial, quando o aborto é provocado por medo da discriminação da mãe solteira,
complicação de filho sem pai, desonra da família, incapacidade de tomar conta do filho, medo da
gravidez e de seus riscos, falta de vontade de ter filhos ou este filho, para não perder seu emprego,
seu sustento ou forma física, gravidez indesejada causada pelo fracasso dos meios
anticoncepcionais, as exigências da educação dos filhos; indicação ética, quando o aborto é
provocado por motivos chamados morais, como a gravidez resultante de estupro (violência carnal),
incesto, adultério, relação fora do matrimônio; indicação cultural, quando o aborto é provocado pela
mudança do papel da mulher e da família na sociedade, sociedade de consumo e sua propaganda
pelos bens materiais, culturais e conforto físico; indicação política, quando o aborto é provocado
por causa da política de salários, de seguridade social, do serviço de maternidade que reprimem a
taxa de natalidade, medo de uma explosão demográfica e de superpopulação, mentalidade
antivida. Do ponto de vista médico, encontramos também outra terminologia e tipos de aborto
(Diniz, Almeida, 1998:126-7): interrupção eugênica da gestação (IEG), interrupção em função de
valores racistas, sexistas e étnicos; interrupção terapêutica da gestação (ITG), interrupção em
nome da saúde da mulher; interrupção seletiva da gestação (ISG), interrupção em função de
patologias incompatíveis com a vida extrauterina; interrupção voluntária da gestação (IVG),
interrupção em nome da autonomia reprodutiva da mulher ou do casal, gravidez indesejada por
estupro ou relação consensual: há limites gestacionais à prática.
Do ponto de vista legal, “aborto é a interrupção da gravidez com intuito de morte do concepto,
não fazendo alusão à idade gestacional” (Rosas, 1996:15). Mas a grande maioria das legislações
mundiais apontam 12 semanas: “o melhor estudo sobre o assunto é o realizado por Rahman, que
vem fazendo um acompanhamento da legislação mundial desde 1985, ocasião da publicação do
primeiro relatório comparativo, sendo que o último levantamento foi publicado em junho de 1998,
com dados relativos até janeiro do mesmo ano” (Diniz, Almeida, 1998:129).
No sentido moral, “aborto é a interrupção de uma gravidez em um modo fatal para o nascituro.
Em sede moral, exige-se que a interrupção da gravidez seja um ato humano e, portanto, de
qualquer forma voluntária” (Anjos, 1976:29-30). Fatal é o elemento que distingue o aborto da
aceleração do parto, na qual a interrupção do processo normal da gravidez permite ainda a vida do
nascituro. “O aborto moral baseia-se na realidade do aborto médico, mas acrescenta a
peculiaridade da instância ética: o peso da valoração da vida. Assim, aborto moral é o
comportamento abortivo negativo enquanto intervém a responsabilidade numa ação que traz um
contravalor neste âmbito da gestação” (Vidal, 1981:217).
No âmbito da bioética, “o aborto espontâneo refere-se à interrupção espontânea da gravidez
antes da viabilidade (em torno de 25 ou 26 semanas de gestação). As interrupções de uma
gravidez após essa época são chamadas de partos precoces, ou no caso de parto de um feto que
já morreu, partos de natimortos. A terminologia comumente utilizada no caso de um aborto induzido
é diferente. Nesse caso, a viabilidade não é um ponto chave. Qualquer interrupção de gravidez por
meio de técnicas médicas ou cirúrgicas denomina-se aborto, independente do estágio” (Reich,
1995:1).
“O aborto precoce é aquele realizado no primeiro trimestre ou até 12 semanas de gestação,
depois é chamado de aborto tardio. Nos Estados Unidos os índices de complicações gerais dos
abortos legais realizados no primeiro trimestre são menores do que 0,5 mortes por 100.000
abortos realizados. As complicações médicas associadas ao aborto induzido têm uma relação
direta com o tempo de gestação e com o tipo de procedimento utilizado para interrompê-la. A
maior parte dos abortos (mais de 90%) nos Estados Unidos é realizada dentro das primeiras 12
semanas de gestação, período em que essa prática é mais segura. Complicações mais graves
podem ocorrer quando o aborto é realizado após esse período” (Reich, 1995:2). A respeito do
aborto precoce, há um consenso geral de que “embora o feto possa exibir reflexos primitivos antes
da vigésima semana de gestação, não há evidência que o cérebro e o sistema neurológico
estejam suficientemente desenvolvidos, nem sequer na vigésima quarta semana, para que o feto
sinta dor; as técnicas de aborto do segundo trimestre que poderiam parecer mais humanas ou
apresentar mais respeito pelo feto, em geral implicam em maior risco para a mulher; os médicos
comprometidos nos procedimentos abortivos têm a intenção de oferecer os procedimentos mais
seguros para a mulher e consideram que o benefício para a mulher substitui a meta de minimizar o
dano ao feto” (Reich, 1995:5).
O Código Penal Brasileiro – Decreto-lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940, Artigos 124 a 128,
reza:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento:
Art.124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção
de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro:
Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão de 3 (três) a 10
(dez) anos.
Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão de 1 (um) a 4
(quatro) anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior se a gestante não é maior de 14 (quatorze)
anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave
ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço se, em
consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão
corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevem a
morte.
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
1. Aborto necessário: se não há outro meio de salvar a vida da gestante.
2. Aborto no caso de gravidez resultante de estupro: se a gravidez resulta de estupro e o aborto
é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
a) Na visão da lei natural (ordem estabelecida por Deus, realidade estática), a moral tem
princípios absolutos e indiscutíveis, iluminados pelo que podemos chamar de “teologia
escatológica”, pois aponta para uma situação ideal do homem e da mulher, da sociedade e da
ação histórica. A estrutura física da fecundidade humana é, portanto, algo sagrado, intocável e
inalterável (encarnação dos desígnios de Deus).
Hoje há um novo modo de entender a lei natural, pelo qual se pode dizer que a nossa
participação racional é o próprio plano de Deus. Deste ponto de vista, a base para o juízo moral
não reside em atos predeterminados como intrinsecamente maus, mas na resposta da pessoa ao
chamado de Deus nas realidades concretas da existência. Para muitas pessoas, a lei natural,
como embasamento da posição do Magistério da Igreja Católica, deve evoluir. De fato, a missão
do homem é humanizar o criado, romper com o fatalismo e estender o domínio humano sobre as
forças cegas da natureza. Em matéria de fecundidade, no mesmo tempo que o homem domina a
tecnologia, ele deve estender também seu domínio sobre a perspectiva, sobre o dever coletivo,
prever mais seguramente e confiar menos no acaso que a reação religiosa interpreta como
providencial.
b) A escola genética (Callahan, 1970:378) define como humano todo ser que tem um código
genético. Desde que o genótipo esteja presente no momento da fertilização, isso significa que o
indivíduo que está se desenvolvendo é humano a partir da concepção. Crescimento e
desenvolvimento são simplesmente a explicitação do que está inscrito no código genético desse
indivíduo particular.
1. A grande maioria dos zigotos não se implanta no útero; será possível que a natureza
desperdiça tantas pessoas ao eliminar tantos zigotos?
2. Antes da nidação, não existe individualização, e sem individualização não se pode falar de
pessoa.
3. Para que haja pessoa se requer informações genéticas que não estão presentes no zigoto,
também informações operativas exógenas e a informação que possui o zigoto é operativa
para gerar os processos ulteriores do desenvolvimento.
4. Entre o zigoto e a pessoa futura não existe relação física contínua como da potência ao ato,
porque o zigoto sozinho é potência em termos de informação genética; se não entram em
jogo muitos elementos exógenos, a potência que é o zigoto nunca passará a ser ato;
somente com seis a oito semanas o embrião terá as características de formação física e
fisiológica.
5. O processo do zigoto para a pessoa futura não é um contínuo físico senão um
desenvolvimento em continuidade, porque no período inicial embrionário (seis a oito
semanas) sucedem importantíssimas e decisivas mudanças qualitativas.
Conclusão
A respeito da anticoncepção ou planejamento familiar, é importante observar que o
conhecimento científico do mecanismo reprodutor do ser humano é relativamente recente. Da
década de 20 à década de 30, dois médicos, Ogino e Knaus, descobriram o período fértil e infértil
da mulher (tabelinha). Somente na década de 60 temos a descoberta dos métodos químicos,
notadamente a pílula, por Pincus e Rook. Antes dessas descobertas, para evitar filhos de forma
segura, só tínhamos a abstinência sexual ou a castração. A grande mudança que se operou foi de,
no campo da esterilização, manter os órgãos reprodutores intactos (vasectomia ou ligação
tubária), sem o risco de reproduzir. Com a anticoncepção, pode-se ter a liberdade sexual e o
controle reprodutivo. Separou-se um processo que nunca aconteceu anteriormente na história. De
um lado a sexualidade, de outro a reprodução. Começa a ganhar expressão a perspectiva cultural
de que a reprodução deve ser conduzida racionalmente. É na perspectiva dessa realidade que
surgem com força questões éticas relacionadas a controle da natalidade, direitos reprodutivos,
paternidade responsável e as implicações da participação de governos na questão da política
populacional.
Na realidade em que vivemos, em condições socioeconômicas ruins, com uma taxa elevada de
analfabetismo, falta de educação sexual adequada, torna-se difícil para a maioria da população
usar os métodos naturais (tabelinha, Billings). Por isso, consideramos como “mal menor”, ou
melhor dizendo, “bem maior”, o uso dos métodos artificiais para chegar a um planejamento familiar
e à paternidade responsável, a partir de uma informação honesta sobre todos os meios de
anticoncepção para que o casal possa escolher livre e conscientemente, junto com o médico, a
melhor maneira de planejar sua família. É melhor usar um método artificial do que abortar.
Numa reflexão sobre o aborto, é bom lembrar que “a tolerância é um conceito essencial para o
exercício da democracia, designa o fato de se abster de intervir nas ações ou opiniões de outras
pessoas, mesmo quando essas opiniões ou ações nos parecem desagradáveis, ou moralmente
repreensíveis. Portanto, tolerar é em primeiro lugar estar de acordo sobre o fato de que as
diferenças vão permanecer, sobre a persistência de desacordos fundamentais, permitindo a
justaposição harmoniosa de grupos que não tenham a mesma visão do mundo. O fiador dessa
harmonia é o Estado republicano, universalista, baseado na existência da obediência política da
pessoa pública e na liberdade interna de cada um no foro privado” (Ardaillon, 1998:4-5). Quanto à
tolerância diante da diversidade moral: “a diversidade não é atraente e pode ofender porque
possuir crenças particulares contra outras pessoas, é o mesmo que atrair o julgamento. Uma visão
canônica de conteúdo pretensamente universal tem dentes. Assim, tanto o judaísmo ortodoxo como
o catolicismo condenam o aborto por conveniência, assim como a eutanásia. Essas religiões
consideram tais atividades erradas não apenas por seus fiéis, mas para todas as pessoas”
(Engelhardt, 1998:44).
“O aborto é uma das questões paradigmáticas da bioética porque nele reside a essência trágica
dos dilemas morais que, por sua vez, são nó conflitivo da bioética. Para certos dilemas morais não
existem soluções imediatas. Os dilemas-limite, os Teyku (noção talmúdica que significa problema
não solucionado no raciocínio moral, indica os limites da razão para a resolução de dilemas
morais), dos quais, talvez, o aborto componha um de seus melhores exemplos, são situações que
desafiam os estranhos (inimigos) morais à coexistência pacífica” (Engelhardt, 1998-167).
“A bioética substitui a proibição pela liberdade incorporando a ética da responsabilidade. Neste
sentido, a bioética passa a ser entendida como a resultante moral do conjunto de decisões e
medidas técnico-científicas, políticas e sanitárias, individuais ou coletivas, públicas ou privadas –
que proporcionam aumento de cidadania e diminuição da exclusão social” (Garrafa, 1999).
Assim, em relação à bioética, o problema é integrar na justa medida e para cada caso concreto,
uma ética da tolerância, uma ética da responsabilidade e uma ética de solidariedade, “sendo a
tolerância uma conquista no caminho em direção à solidariedade, o laço que une pessoas como
corresponsáveis pelo bem umas das outras” (Zoboli, 1999:20-21).
Introdução
Ao conjunto de técnicas que auxiliam o processo de reprodução humana foi dado o nome de
técnicas de reprodução assistida (TRA), as quais podem ser divididas em métodos de baixa e de
alta complexidade. Entre as técnicas de baixa complexidade podemos incluir o coito programado
e a inseminação intrauterina (IIU), que apresentam a vantagem de menores custos, além de não
precisarem ser realizadas em centros de reprodução assistida. Entre as técnicas de alta
complexidade incluímos a fertilização in vitro (FIV) convencional e a injeção intracitoplasmática de
espermatozoide (ICSI) – em inglês, intracytoplasmatic sperm injection.
As técnicas de reprodução assistida despertam questões muito controvertidas, mexendo com
preconceitos e afetando diretamente as mulheres. Além de colocar em cheque algumas certezas
com relação a gênero e a família, como a necessidade de um casal para gerar um filho, ou mesmo
de um relacionamento prévio entre um homem e uma mulher, a tecnologia da reprodução assistida
mexe diretamente com a saúde das mulheres, despertando preocupações éticas e políticas.
Atualmente, essa é uma área de grande expansão na pesquisa científica, e a maior parte das
experiências vem sendo feita em mulheres, a título de “tratamento”. Além de ser uma área de
pesquisa, os tratamentos contra infertilidade mobilizam grandes interesses da indústria de
medicamentos e jogam para último plano as preocupações com os aspectos éticos da questão.
O Brasil carece de uma legislação específica sobre a reprodução medicamente assistida. O
código de ética médica (1988), através de quatro artigos, não especifica ou limita nada, desde que
os participantes estejam cientes do procedimento. Em novembro de 1992, o Conselho Federal de
Medicina baixou a Resolução n°- 1.358/92, sobre a utilização da reprodução assistida.
Transferência de citoplasma (mulheres com mais de 40 anos ou que produzem óvulos fracos).
De 10 a 20% do óvulo de uma doadora jovem é transferido para o óvulo da paciente para dar
origem a embriões de melhor qualidade e com maior poder de implantação.
Indicação
A indicação é a infertilidade que atinge 20% da população: a percentagem é igual para ambos
os sexos. Mas cuidado: a causa mais comum de infertilidade masculina é a varicocele, uma
dilatação anormal das veias na área genital, que atinge aproximadamente 15% da população
masculina, chegando a 30% entre os homens inférteis. Depois da cirurgia da varicocele, a taxa de
gravidez fica em 40% mais alta que os 25% de bebê de proveta. Outro exemplo é a reversão de
vasectomia, cuja taxa de gravidez sobe para 70% depois da cirurgia. Por isso o diagnóstico é
importante, já que é possível tratar as causas sem precisar da fertilização assistida. Assim, se opta
pela reprodução assistida nos casos mais complicados: contagem baixa de espermatozoides, no
homem; obstrução das duas trompas e problemas graves de ovulação, na mulher.
O sucesso de gravidez com as técnicas de reprodução assistida diminui conforme a idade
aumenta. Em mulheres de até 30 anos, a taxa fica em torno de 45%; aos 35 anos diminui para
35%; de 35 a 40 anos, a chance é de 25 a 30%; e acima de 40 anos, de 18 a 20%.
Antes de optar pela reprodução assistida, o casal precisa ser bem analisado, pois deve ser a
última opção.
Alguns riscos
Segundo Corrêa12, todas aquelas etapas da FIV comportam riscos, como os efeitos
indesejáveis de doses elevadas de hormônios, o desconforto ligado ao monitoramento laboratorial
de todo o processo, as repetidas intervenções médico-cirúrgicas etc. A transferência de vários
embriões é responsável pelos principais efeitos iatrogênicos para a saúde de mulheres e bebês,
ligados às gestações múltiplas (baixo peso ao nascer, problemas respiratórios de recém-nascidos
e outros danos associados às gestações de mais de um feto). Esse procedimento “padrão” na
medicina reprodutiva acabou por ser caracterizado como uma má prática médica, passando a ser
mais fortemente criticado. Apesar do surgimento da crítica, mesmo no campo médico, e de
propostas para limitar o número de embriões gerados e transferidos na FIV, nem todas as equipes
seguem, efetivamente, essa tendência.
As possibilidades e propostas de intervenção sobre o embrião são mais do que uma interface
entre clínica e pesquisa na área de reprodução. É muito importante deixar assinalado que a
pesquisa com embriões depende do “tratamento” proposto através da FIV. Assim, esses
desdobramentos “mais tecnológicos” não podem ser desvinculados da discussão das implicações
de ordem social, ética, psicológica e mesmo legal ligadas à medicalização do desejo de filhos.
Segundo Oliveira13, as novas técnicas de reprodução conceptivas propiciam a materialização
de desejos sexistas, racistas, eugênicos e potencializam a exploração de classe, basta que se
possa pagar por eles. O recorte de classe é o sustentáculo de tais desejos, cujas decorrências
são: a exploração de classe (mulheres/casais ricos custeiam o “tratamento” das pobres e assim se
livram de parte da super-hormonização e obtêm óvulos); o tráfico e a comercialização de
embriões, sêmen, óvulos (há vários sites que comercializam óvulos); a industrialização e a venda
de óvulos obtidos do tecido ovárico de mulheres ainda vivas, de cadáveres de mulheres e de fetos
abortados. À medida que as tecnologias conceptivas se expandem, sua concepção industrial
também cresce: os óvulos tornam-se matéria-prima e são tirados do ovário de uma mulher para
serem implantados no útero de outra. Essas mulheres serão consideradas procriadoras, como
animais de procriação, vendidas como tais.
Alguns questionamentos
Algumas questões precisam ser resolvidas do ponto de vista legal quanto à possibilidade de se
realizar a fecundação extracorpórea:
• Quanto à experimentação com embriões ou fetos humanos, é preciso decidir se são pessoas
humanas ou simples produtos da concepção, visto que sua conceituação implica também em
princípios éticos.
• Deve o embrião ou feto possuir um estatuto jurídico ou ele se apoia no direito da mãe? Por se
tratar de duas pessoas jurídicas (embrião e mãe), existe o perigo de intervenções médicas e do
Estado no período da gravidez em detrimento da mãe? Se a mãe não quiser se submeter a uma
intervenção terapêutica, gerando um conflito entre o seu direito e o direito do feto, a quem os
tribunais protegem?
• Qual o estatuto do embrião (congelado) fora do útero? A quem eles pertencem? Se somente os
pais têm direitos sobre eles, o que fazer em caso de morte do casal? Qual será doravante sua
relação social? No caso de divórcio, podem ser objeto de uma divisão? Qual o direito da clínica de
dá-los a um terceiro? Possuem direitos de herança? No caso de morte do pai, a mãe pode
implantá-los? Possuem os mesmos direitos que outros irmãos nascidos quando o pai estava vivo?
É crime vender embrião? Que itens podem constar num contrato de doação de embriões? Quais
são as garantias de que a clínica não utilizará os embriões sem conhecimento dos pais? Quem
controlará bancos de gametas e embriões?
• A pessoa gerada por reprodução medicamente assistida pode ter o direito de conhecer seus
pais genéticos?
Legislação
“É vedado ao médico:
Art. 67 – Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre os métodos
contraceptivos ou conceptivos, devendo o médico sempre esclarecer sobre a indicação, a
segurança, a reversibilidade e o risco de cada método.
Art. 68 – Praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo e
devidamente esclarecidos sobre o procedimento.
Art. 122 — Participar de qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos, políticos,
raciais ou eugênicos.
Art. 127 – Realizar pesquisa médica em ser humano sem submeter o protocolo à aprovação e
acompanhamento de comissão isenta de qualquer dependência em relação ao pesquisador.”
Normas Éticas para utilização das Técnicas de Reprodução
Assistida (Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de
Medicina)14
Regulamenta, entre outras coisas, as experiências com embriões humanos, células reprodutivas,
material genético, indicando o princípio de indisponibilidade de material biológico e da pessoa.
Em seu artigo 13, a lei define como crime a produção, armazenamento ou manipulação de
embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível.
Reflexões bioéticas
Infertilidade
A realidade socioeconômica do país interpela, já que, com a técnica de bebê de proveta, por
exemplo, o casal tem chance de 20% a 25% de engravidar, e cada tentativa custa de R$ 8.000,00
a R$ 10.000,00. E, muitas vezes, é necessário fazer mais de uma tentativa. Devemos pensar num
justo equilíbrio entre direitos individuais e coletivos face à existência de milhares de crianças
totalmente carentes de ambiente e cuidados familiares. Há também o problema da equação justa
da alocação de verbas para a saúde e o estabelecimento de prioridades.
Embriões congelados
Embriões congelados deixados em clínicas de reprodução por casais que não querem mais ter
filhos deflagram debate ético e religioso.
Depois de 20 anos de uso das técnicas de inseminação artificial no Brasil, o bebê de proveta
faz tanto sucesso que provoca um efeito inesperado: a explosão populacional nos laboratórios de
reprodução assistida. As melhores clínicas acumulam milhares de embriões congelados. Os
embriões são o excedente de tratamentos de fertilização artificial e estão estocados em
geladeiras de nitrogênio líquido à espera de uma decisão dos pais sobre nova inseminação. O
problema é que a maioria não pretende ter mais filhos, mas também rejeita doar os embriões para
outros casais. Resultado: os médicos são obrigados a manter as geladeiras ligadas porque a
destruição dos embriões é proibida pelo Conselho Federal de Medicina.
Na técnica do FIVET (fecundação in vitro e transferência do embrião), a mesma necessita da
constituição de embriões excedentes. Existe, em nível mundial, uma irredutível controvérsia sobre a
liceidade do destino dos embriões excedentes, baseada na diversidade de opiniões acerca do
estatuto do embrião: tem ele, ou não, a mesma dignidade da pessoa humana plenamente
desenvolvida? Merece, ou não, a mesma proteção e respeito? Face a essa controvérsia, há
apenas a solução de garantir que todos os embriões excedentes sejam, mais tarde, transferidos
para a mulher.
A polêmica sobre a destruição dos embriões congelados vai além da discussão sobre ética
médica. Médicos e especialistas em bioética dividem o debate com padres e rabinos. A Igreja
Católica e a Congregação Israelita Paulista querem que o embrião seja tratado como um ser
humano e defendem a norma do Conselho Federal de Medicina: jogar fora embriões congelados é
assassinato, eles são seres humanos plenos. A Igreja Católica também desaprova o uso de
técnicas de inseminação artificial: essas técnicas criam o problema dos embriões congelados; o
melhor é evitar que eles sejam produzidos.
A favor da destruição dos embriões: o médico que não descarta embriões que sobram é um
aprendiz de feiticeiro, pois faz o feitiço e depois não sabe desfazer. Embrião congelado não é
vida; a vida comega no momento que ele está no útero, não antes disso.
O problema surge quando o casal se separa e não consegue chegar a um acordo. Ou em casos
em que o pai morre e o sêmen fica.
Redução de embriões
No Brasil, onde o aborto é proibido, a redução de embriões é ilegal, como diz explicitamente a
resolução do CFM. Essa resolução é de uma enorme prudência e defesa da saúde e da vida da
mulher. Ela limita em até quatro embriões para a implantação para cada ciclo de reprodução
assistida. Atualmente, a gravidez múltipla é considerada, pelos profissionais mais conscientes da
área, como uma má prática da FIV, visto que já é possível evitar o implante múltiplo de embriões e
viabilizar a gravidez que resulte em bebês. No Brasil, considerando-se a resolução do CFM e a
ilegalidade do aborto, a redução de embriões é ilegal, mas prática corrente. No dia em que
legalizarmos o aborto, a redução de embriões será automaticamente legalizada.
Clínicas de infertilidade
Como se percebe, as condições para a fecundação in vitro e para a inseminação artificial são
substancialmente as mesmas para vários moralistas católicos. Eles frisam que o dom da vida
deve se situar no contexto de um relacionamento personalizado no amor . Na caminhada da
conquista da verdade, das descobertas, observamos a conflitividade dos princípios ético-
religiosos já estabelecidos num contexto sócio-histórico-cultural e técnico determinado, com as
novas realidades e descobertas técnicas no campo da medicina. São questões de fronteira, que
de um lado (ético-religioso) procura-se sempre salvaguardar a dignidade do ser humano, o
respeito à vida, e de outro (científico), procura-se sempre descobrir algo novo do ser humano,
quando por vezes técnicas agressivas brincam com a vida. E a situação de conflito, na qual
encontramos o posicionamento ético-religioso, a moral católica deve ser repensada à luz das
conquistas das ciências humanas.
Uma pergunta instigante: em tempos em que mulheres estéreis já se podem reproduzir; em que
a clonagem de seres humanos é perspectiva próxima; em que os pais escolhem as características
de seus bebês e até em que pessoas do mesmo sexo já podem partilhar um processo de
maternidade (por exemplo, retirada de óvulo de mulher, fecundação em banco de sêmen,
implantação do embrião no útero de outra), como ficarão o erotismo, a sexualidade e a ligação
afetiva entre os protagonistas (pais, mães e filhos) da utilização dessas mudanças?
Conclusão
Embasando-me no relatório-parecer sobre reprodução medicamente assistida do Conselho
Português de Ética para as Ciências da vida, concordo que “O princípio da não-instrumentalização
da pessoa humana aplicado à utilização das técnicas de reprodução medicamente assistida leva-
nos a concluir que essas técnicas:
1. Não devem ser eticamente rejeitadas por motivo da dissociação que de fato estabelecem
entre ato sexual e procriação.
2. Não constituem um método alternativo à reprodução natural e só devem ser utilizadas quando
não for possível, por outros meios, o tratamento da infertilidade.
3. Devem aplicar-se exclusivamente a casais heterossexuais com garantias de estabilidade
(legalmente constituídos ou não) e de condições adequadas para o completo e harmônico
desenvolvimento do nascituro, ficando excluídas as situações em que ele viesse a ter só mãe
ou só pai, quer por inseminação post mortem, quer por procriação de uma mulher isolada
(sem ligação, nem de direito nem de fato, a um homem) ou de um homem isolado (por
recurso a mãe de substituição).
4. Devem excluir o recurso a mães de substituição, quer estas contribuam ou não com seus
ovócitos.
5. Devem igualmente excluir outras formas de instrumentalização do processo reprodutivo,
como a criação de embriões só para fins de investigação, a criação de seres humanos
geneticamente idênticos por clonagem ou outros meios, a transferência de embriões
humanos para o útero em outras espécies, e a fusão interespecífica de gametas ou
embriões.”
Sem dúvida, a bioética não deve e nem pode ignorar o processo legislativo em curso nessa
área. Mas um contexto complexo como este, que implica sexualidade, reprodução, família,
casamento, futuras gerações e o próprio conceito de vida, coloca desafios permanentes, e que se
renovam, para o debate sobre ética, ciência e política, bem como para a reflexão bioética de um
modo geral, que deve se manter aberta e permeável às vozes ativas no campo da reprodução
humana.
Cabe-nos, portanto, aceitar o desenvolvimento tecnológico por um lado e enfrentá-lo ao mesmo
tempo, deixando de lado respostas imediatas e simplistas de aprovação ou reprovação, mas
buscando a articulação de uma permanente discussão sobre os desejos e poderes nas relações
de gênero focalizando as estruturas jurídicas, antropológicas e psicológicas da maternidade e da
paternidade.
12. CORRÊA, Marilena Cordeiro Dias Villela. Ética e reprodução assistida: a medicalização do desejo de filhos. In:
BIOÉTICA. Brasília: Conselho Federal de Medicina, vol.9, n. 2, 2001, p. 71-82.
13. OLIVEIRA, Fátima. As novas tecnologias reprodutivas conceptivas a serviço da materialização de desejos
sexistas, racistas e eugênicos? In: BIOÉTICA. Brasília: Conselho Federal de Medicina, vol.9, n. 2, 2001, p. 99-112.
14. Cfr. Anexo 4.
15. Cfr. Anexo 3.
16. Cfr. Anexo 4.
Capítulo 5
Genoma humano
Introdução
1a Revolução: Teoria celular, elaborada nos anos de 1838 e 1839. A célula foi descoberta em
1665 pelo físico inglês Robert Hooke (1635-1703). Quase dois séculos depois, o botânico alemão
Mattias-Jakob Schleiden (1804-1881) e o zoólogo prussiano Theodore Schwann (1810-1882)
elaboraram a Teoria Celular, respectivamente em 1838 e 1839, que diz: todos os seres vivos são
constituídos por células. A célula é uma unidade morfológica e funcional dos seres vivos e elas se
agrupam para formar os tecidos, estes se reúnem para formar os órgãos.
2a Revolução: Teoria da Evolução de Darwin/Wallace, elaborada em 1858. A Teoria da
Evolução é uma das maiores revoluções intelectuais de todos os tempos. Reuniu evidências de
que os seres vivos evoluem e, no aspecto cultural, separou definitivamente a ciência da religião. O
evolucionismo é uma ideia antiga. Muitos filósofos, desde os gregos e naturalistas, formularam
teorias tentando explicá-lo, todavia uma teoria científica comprovada em fatos só foi elaborada em
1858, isoladamente, pelos naturalistas ingleses Charles Robert Darwin (1809-1882) e Alfred
Russel Wallace (1823-1913), que reuniram dados de que os seres vivos sofrem modificações e já
nascem com as “variações” que possibilitam sobreviver em um determinado meio. A descendência
com estas variações é a evolução.
3a Revolução: Descoberta da estrutura da molécula de DNA – Ácido Desoxirribonucleico (a
dupla hélice), em 1953, pelo biólogo norte-americano James Dewey Watson, pelos físicos ingleses
Francis Harry Compton Crick e Maurice Huge Frederick Wilkins e pela cristalógrafa inglesa
Rosalind Franklin (1920-1958). Watson e Crick conseguiram, através das fotografias obtidas por
Rosalind – que trabalhava no Laboratório dirigido por Maurice Wilkins, King’s College, Londres,
Inglaterra – propor o modelo da estrutura do DNA, uma hélice dupla, que “guarda” e transmite o
código de produção de proteínas (código genético). A engenharia genética – ramo da biologia
molecular que utiliza biotecnologias específicas para a recombinação genéticas – é uma
decorrência direta da descoberta da dupla hélice, portanto é considerada parte da 3a Revolução
da Biologia.
Célula
O mundo vivo, microrganismos, plantas, animais e o ser humano são constituídos de células.
O núcleo da célula contém os cromossomos: 23 pares no ser humano.
Os cromossomos são constituídos do DNA (Ácido DesoxirriboNucleico), molécula que guarda
todas as informações codificadas na forma de genes. O DNA é compactado dentro do núcleo
celular em 23 pares de cromossomos.
O DNA é constituído de quatro bases ou “letras”: adenina (A), citosina (C), guanina (G), timina
(T). O genoma humano é formado por 3,5 bilhões de pares de bases. Sequências de milhares de
letras formam “palavras”: os genes (mais ou menos 50 mil).
Estima-se que as células produzem um milhão de proteínas diferentes. São elas que fazem
funcionar nosso corpo.
O fato de conhecermos o código de um gene não significa que sabemos qual proteína ele
produz e como ela interage com outras substâncias para fazer o corpo funcionar. Apenas uma
ínfima parte do genoma (três por cento) é formada por genes, sequências de DNA que sintetizam
proteínas. O restante é uma sopa de letrinhas que se acredita não fazer sentido. O próprio gene é
inócuo, exceto por sua capacidade de produzir e liberar proteínas. Um simples gene pode conter o
código de uma dezena de diferentes proteínas e ser responsável por muitas funções. Para realizar
suas tarefas, essas substâncias podem variar em quantidade, operar em diferentes combinações
ou passar por modificações. Estima-se que em nosso organismo sejam codificadas um milhão de
proteínas. O que é preciso fazer agora é ligar essas substâncias aos genes que as produzem,
localizá-los corretamente no genoma e descobrir como é o processo de codificação. É isso que
permitirá corrigir os casos de mau funcionamento genético e evitar que as doenças apareçam.
As letras A, C, T e G formam os genes, estruturas com funções específicas. Estima-se que sejam
cerca de 50 mil genes distribuídos ao longo do DNA.
Cada cromossomo carrega um trecho de fita de DNA. Junto, no núcleo da célula, reúnem todas
as informações genéticas de uma pessoa.
O corpo humano é constituído de 100 trilhões de células, todas elas contêm uma cópia completa
de DNA.
As promessas da descoberta
A conquista científica do mapeamento genético deve demorar até 50 anos para ser totalmente
compreendida. Até lá, os cientistas ainda precisam identificar cerca de 90% de genes, separar
pedaços inúteis do DNA e encontrar maneiras eficientes de controlar as mutações que ocorrem
dentro das células. Vejamos os próximos passos:
Hoje, alguns tipos de câncer e doenças hereditárias já podem ser diagnosticados com testes
genéticos. Vários genes foram identificados com base em dados do Projeto Genoma Humano. No
entanto, esses testes beneficiam poucas pessoas.
De 6 meses a 1 ano: Os cientistas esperam separar os genes do lixo genético, que estima em
cerca de 97% do DNA. Esse é um passo decisivo para localizar com exatidão e entender o
funcionamento de cada gene.
Em 5 anos: Estima-se que o genoma esteja realmente pronto, com a identificação de 100% dos
genes. Leis de alguns países, como os Estados Unidos, protegerão os cidadãos de discriminação
genética. Serão criados bancos de dados genéticos; com eles, será possível saber se
determinado paciente sofrerá ou não efeitos colaterais ao tomar um medicamento.
Em 10 anos: Testes genéticos estarão disponíveis para o diagnóstico antecipado e preciso de
mais de 25 doenças, como o câncer, diabetes e enfarte. A terapia genética, hoje ainda restrita e
ineficaz, começará a ter seus primeiros sucessos nas doenças cardíacas, hemofilia e alguns
tumores. O diagnóstico precoce e a consequente mudança de hábitos de vida permitirão diminuir o
risco de surgimento de doenças genéticas.
Em 20 anos: Já estarão disponíveis os diagnósticos e tratamentos genéticos para doenças
mentais. Os geneticistas aprenderão como realizar a terapia genética em genes específicos de
embriões sem afetar o restante do DNA do futuro bebê. Os médicos poderão receitar remédios
personalizados depois de consultar o DNA do paciente.
Em 30 anos: Doenças hereditárias serão eliminadas com a correção de genes defeituosos. Os
cientistas conhecerão os mecanismos genéticos envolvidos no processo de envelhecimento. A
análise completa do genoma de uma pessoa será um exame comum e custará menos de
U$1.000,00. Os testes laboratoriais, como os de sangue, serão substituídos por análises
computadorizadas de células, mesmo nas doenças mais comuns.
Em 50 anos: A terapia genética estará disponível para a maioria das doenças. Com os avanços
da genética, a expectativa média de vida das pessoas poderá chegar aos 90 anos.
Medicina preditiva
A sequência completa do genoma humano – a lista, em ordem, de todas as bases químicas
contendo as informações necessárias para formar um ser humano – é uma conquista científica de
primeira grandeza. Erros nessas instruções biológicas causam a maioria das doenças humanas
ou contribuem para elas. O conhecimento da raiz biológica dos seres humanos e de outras
espécies irá transformar a medicina, permitir o desenvolvimento de novos remédios, expandir o
número de doenças tratáveis e facilitar os diagnósticos.
O nosso código genético é agora um livro aberto à leitura de todos os interessados. Isso cria
uma expectativa de que as doenças com causas ligadas a problemas em nossos genes –
catalogados em mais de 11.000 – estão com os dias contados. Infelizmente, não é bem assim.
Deu-se um passo gigantesco no campo do conhecimento da biologia molecular humana. Os
resultados práticos disso, porém, ainda estão a décadas de distância. A ciência não sabe sequer
ler direito as informações que acabam de ser decifradas.
Com o Projeto Genoma Humano entramos na era da medicina preditiva. O que é medicina
preditiva e quais as repercussões do projeto genoma humano? Do ponto de vista da bioética, a
medicina preditiva é a medicina preventiva genética e cria a possibilidade de prevenir doenças
passíveis de prevenção, sem discriminações; ampliar propostas de tratamentos e curas; e garantir
a dignidade humana, considerando-se os contextos socioculturais. A medicina preditiva ainda é um
campo repleto de incógnitas, inclusive técnicas e científicas, algumas incomensuráveis, o que a
torna alvo de esperanças, desconfianças e medo. A medicina preditiva é um caminho a se
construir, visando responder aos anseios do que deve ser: a possibilidade de aumentar a
qualidade de vida e minorar o sofrimento sempre, e de curar quando possível.
Biopoder
O conhecimento confere poder e o poder cresce por si mesmo, ou melhor, em aliança ambívoca
com a riqueza: um promove o outro e ambos progridem. O latifundiário do Brasil Colônia detinha o
biopoder primitivo, emanado do saber tecnológico – manejo das culturas, do gado, dos escravos.
Oswaldo Cruz, eliminando a febre amarela e a varíola no Rio de Janeiro e elevando o instituto que
fundou ao primeiro lugar no mundo em medicina tropical, foi o brasileiro de maior biopoder de
nossa história. Nos tempos atuais, o biopoder é exercido principalmente pelas multinacionais que
fabricam medicamentos e aparelhos para diagnóstico e cirurgia, bem como pelas empresas que
produzem linhagens novas de animais, plantas e micróbios. Nas universidades e institutos de
pesquisa, cada vez mais o biopoder produz conhecimento, que reverte em mais biopoder.
Aceitando-se uma sociedade democrática capitalista, o biopoder pode ser benéfico, como o de
Oswaldo Cruz. Mas é preciso combater suas distorções, como fez a campanha de abolição da
escravatura contra o biopoder do latifundiário. Como a genética moderna continuará abrindo novos
campos para o biopoder, é urgente intensificar as discussões sobre seus aspectos éticos.
Igualmente importante é inibir a proliferação do pseudobiopoder, pelo desmascaramento e controle
da atividade de charlatões, ingênuos ou de má-fé (Frota – Pessoa, 1997; 5 – 253 – 261). As
aplicações da engenharia genética estão revolucionando a agronomia. Criou-se dúvidas sobre a
legitimidade de certas patentes. A própria privacidade das pessoas parece ameaçada pelo
biopoder da genética molecular, capaz de, no nível de DNA, esquadrinhar nossa Constituição.
Existe um exagerado temor em relação aos tratamentos de doenças hereditárias por transferência
de genes: genoterapia de células somáticas e até germinativas. Portanto, emerge uma crescente
preocupação sobre como serão utilizados, nessa área, os aportes gerados pelos saberes
oriundos do Projeto Genoma Humano, sobretudo via seus resultados mais imediatos – os “Kits de
diagnósticos genéticos” – o que traz à tona as imensas preocupações de ordem moral e ética na
área da medicina fetal, da genética e da clonagem, sob a égide da engenharia genética e o
biopoder decorrente da manipulação da vida. Os tópicos citados levantam preocupações sobre as
quais precisamos refletir, opinar e decidir (Oliveira; 1997:177).
Seria o fim da fatalidade? A medicina está no alvorecer de uma revolução que vai mexer com
tudo: tanto com os corpos quanto com as mentes. No século XXI o ser humano será mais do que
nunca senhor do seu destino, com capacidades de intervir diretamente no mecanismo fundamental
de sua existência, de seu futuro e de sua saúde. Existem enormes perspectivas de consequências
imprevisíveis, sobre as quais já se debruçam pesquisadores, cientistas, filósofos. Essa revolução
chama-se medicina genética.
Não se trata mais de simplesmente cuidar dos órgãos doentes. Trata-se de demonstrar a loteria
da hereditariedade e de suas injustiças distribuídas ao acaso. O segredo reside numa longa
molécula de DNA, que forma os cromossomos, dobrado no centro da cada uma de nossas células,
como uma fita magnética no ventre de um computador. Nessa fita química estão inscritas as
etapas de nossa vida. Ela é o suporte dos genes que recebemos de nossos antepassados. É aí
que repousam dezenas de milhares de instruções que definem nossas características físicas e
dirigem a fabricação de proteínas, aquelas fundações sobre as quais nosso corpo é construído.
Decodifica-se o programa para prever as doenças, muito antes de elas se manifestarem. Isto já
está sendo realizado. Modificam-se seus dados para que elas sejam eliminadas. Isto já começa a
ser feito. Os pesquisadores já aprenderam a destrinchar a cadeia vital do DNA, a recopiá-la e a
transferir pedaços dela de uma criatura para outra. Agora estão em condições de alterar a natureza
programando qualquer organismo vivo. Pesquisam os genes das bactérias, a fim de produzir
medicamentos e vacinas; modificam aqueles das plantas, a fim de criar híbridos eficientes;
fabricam-se novas raças de animais, que Noé não poderia ter imaginado em sua arca. O ser
humano era sem dúvida o próximo da lista.
Começamos com uma nova etapa do Gênesis: no sétimo dia, Deus descansou, após ter criado
o mundo; no oitavo, o homem toma conta das coisas e se reprograma a si mesmo.
Sabe-se hoje que existem mais de três mil doenças hereditárias – da hemofilia à miopatia,
passando por diversas formas de câncer, todas provocadas por defeito de um ou vários genes.
Analisando o DNA de um adulto ou de um feto, podem-se atualmente identificar inúmeras dessas
afecções, sem que haja o menor sintoma delas: algumas, como a coreia de Huntington, constituem
verdadeiras bombas de efeito retardado. Mas surgem dificuldades: deve-se diagnosticar, quando
não se sabe curar? Deve-se interromper uma gravidez quando se descobre que a criança que vai
nascer traz em seus cromossomos um erro que lhe permitiria, contudo, viver normalmente dezenas
de anos?
Os pesquisadores falam hoje da existência em torno de 6.000 doenças genéticas. Até
recentemente, pesquisar um gene era como ler um alfabeto do fim para o começo: como não era
possível entrar ele, estudavam-se as proteínas por ele codificadas. A partir da segunda metade da
década de 80, e, sobretudo agora, com o desenvolvimento, do Projeto Genoma Humano, a ciência
está conseguindo cada vez mais estudar o próprio gene. O novo método consiste em localizar o
gene responsável por uma determinada doença e isolá-lo, e tem uma valiosa aplicação prática: o
diagnóstico pré-natal. Estudar um gene significa observar em seu interior a sequência dos pares
em que se agrupam as quatro substâncias indispensáveis para que haja a vida: adenina, timina,
citosina e guanina, a que se agrupam em pares e integram o DNA. Há cerca de 3,5 bilhões desses
pares no corpo humano e, aproximadamente, 30 mil genes. O diagnóstico pré-natal é feito sempre
que os pais o requisitam – ou por saberem que integram grupos genéticos de risco ou porque já
tiveram algum filho não saudável. Por exemplo, o risco de alguém que seja filho de pai e mãe
esquizofrênicos tornar-se também esquizofrênico é de 12%. Esse índice sobe para 46% quando
ambos os cônjuges são portadores da enfermidade.
Um esclarecimento se faz necessário: Existe a terapia somática, que afeta apenas a pessoa
que está sendo tratada e a terapia germinal, a qual implica mudanças que podem passar às
gerações futuras. Até o momento, todos os esforços na terapia genética em seres humanos se
concentram nas células somáticas. O grande receio é que, se a terapia genética somática em
seres humanos
é aceita pela medicina, haverá fortes motivos para estender a terapia genética também às
células germinativas. Embora as terapias de células germinativas e de zigotos sejam muito
promissoras para o futuro, o abuso da tecnologia do DNA para fins não-terapêuticos levanta sérias
questões éticas acerca de nossa relação com a posteridade. Técnicas de junção de genes podem
ser usadas para eugenia positiva a fim de mudar as características básicas da natureza humana
em vez de para curar desordens cromossômicas. Podem, além disso, tornar-se um instrumento da
malevolência tirânica que manipule seres humanos para fins políticos e sociais.
O PGH é o maior e mais promissor dentre todos os projetos já desenvolvidos no campo das
ciências biológicas. Pretende-se, até o ano 2005, a identificação e o mapeamento de todos os
genes humanos e o sequenciamento dos três bilhões de pares de base que constituem o nosso
genoma. Como objetivos secundários, visa-se à descoberta de novas ferramentas diagnósticas e
de novos tratamentos para doenças de etiologia genética e à transferência do conhecimento para
outras áreas, por exemplo, estimulando o desenvolvimento da biotecnologia moderna na
agricultura e zootecnia.
Pela sua própria natureza, o PGH cerca-se de algumas incertezas éticas, legais e sociais
(ELSI). Reconhecendo isso, o projeto dedicou 10% de seu orçamento total à discussão desses
temas. Esta questão é tão importante que a UNESCO adotou, em 1997, a chamada “Declaração
Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos”. Três itens se destacam na agenda ELSI:
Subjacentes a esses itens existem cinco princípios básicos sobre os quais está sendo
constituído o edifício ético consensual do PGH: autonomia, privacidade, justiça, igualdade e
qualidade. O princípio da autonomia estabelece que os testes deverão ser estritamente voluntários
após aconselhamento apropriado, e que a informação resultante deles é absolutamente pessoal.
O princípio da privacidade determina que os resultados dos testes genéticos de um indivíduo
não poderão ser comunicados a outra pessoa sem seu consentimento expresso, exceto talvez a
familiares com elevado risco genético, e mesmo assim após a falha de todos os esforços para
obter permissão do paciente.
O princípio da justiça garante proteção aos direitos de populações vulneráveis, tais como
crianças, pessoas com retardo mental ou problemas psiquiátricos e culturais especiais.
O princípio da igualdade rege o acesso igual aos testes independentemente de origem
geográfica, raça, etnia e classe socioeconômica.
Finalmente, o princípio da qualidade assegura que todos os testes oferecidos terão
especificidade e sensibilidade adequados e serão realizados em laboratórios capacitados com
monitoração profissional e ética. A questão crucial é que não existem maneiras legais de
implementar e garantir que esses princípios éticos serão aceitos – e provavelmente de interesses
econômicos – para implementação de testes genéticos sem adesão a eles.
Toda a problemática ELSI vai convergir na interação social de três elementos:
A humanidade espera pela conclusão do Projeto Genoma Humano, que acontecerá daqui a uma
década, com a mesma ansiedade de alguém que espera pela realização de um sonho que
acontecerá amanhã. O sonho que está em jogo é grande: a conquista da chave da vida. Todo
sonho tem o seu preço, e o PGH já começa a cobrar do ser humano novas posições éticas. Dos
cerca de US$ 3 bilhões orçados para o mapeamento e sequenciamento de todo o genoma, os
EUA entram com 50%. Depois vem a Grã-Bretanha com 15%, enquanto a França, a Itália, o Japão
e a Alemanha praticamente se equivalem no restante do investimento do projeto. Quando todos os
genes estiverem nas mãos dos pesquisadores e cientistas, a propriedade do genoma humano
será então fatiada de forma mais ou menos proporcional a quanto cada país investiu?
A questão das patentes foi levantada pela primeira vez pelos americanos, em 1988, quando o
PGH ainda não existia oficialmente. O protagonista da história foi uma ratinha de um laboratório
dos EUA, batizada de Myc Mice, que entrou para a história da genética por ter sido o primeiro
animal oficialmente reconhecido como uma invenção do homem. Seus criadores foram os biólogos
americanos da Harvard Medical School, em Boston, que inocularam na cobaia um oncogene (gene
do câncer) humano capaz de desencadear o câncer de mama. Geneticamente, ela não era mais a
mesma após a experiência. Era um animal produzido em laboratório.
A coisa ficou no ar e pegou fogo quando a equipe do geneticista Craig Venter, do Instituto
Nacional de Saúde de Maryland, EUA, isolou, em 1990, de uma só vez, 337 genes. A conquista foi
festejada nos principais laboratórios do mundo. Pouco depois, o Instituto de Maryland requereu
patentes para todos os genes descobertos. A discussão começou e está na ordem do dia.
Questiona-se a tentativa de controlar a exploração comercial dos genes, um patrimônio que pode
ser considerado de toda a humanidade.
Na ordem ética que terá de chegar na virada do século, à medida que o PGH vá concluindo suas
pesquisas, existem situações absolutamente novas. Imagine-se a seguinte cena entre empregador
e empregado: “temos vaga, mas não podemos admiti-lo porque sua ficha genética diz que o
senhor tem propensão ao câncer de pulmão”. Ou então, a alguém que procura um convênio
médico, diz o vendedor: “tudo bem, saudável, mas nós cobraremos uma taxa adicional porque sua
ficha genética mostra que o senhor é um sério candidato ao diabetes daqui a alguns anos”. No
item convênio, pode também ocorrer o contrário: uma bela modelo ou um excepcional atleta,
saudáveis de corpo por dentro e por fora, apresentam as suas fichas privilegiadas e tentam
barganhar um desconto. Ou, então, jornais podem algum dia estampar a seguinte manchete:
Aberta a CPI do caso das fichas genéticas. Quer dizer, alguém começou a vender fichas genéticas
limpas mas frias.
Sem dúvida, é preciso cuidado a fim de se evitar discriminações para que não se forme um
quadro de pessoas geneticamente não aceitas.
Reflexões bioéticas
Além de apontar caminhos para a cura de doenças e outras revelações extraordinárias, o
Projeto Genoma Humano traz, nas mesmas proporções, dilemas éticos, como a necessidade de
Projeto Genoma Humano traz, nas mesmas proporções, dilemas éticos, como a necessidade de
futuras legislações, e ainda dúvidas de natureza econômica, sobre os interesses que movem as
pesquisas: é necessário estar atento ao perigo do uso indevido das informações genéticas. Estes
avanços devem ser usados para proteger e beneficiar os seres humanos e não para estigmatizá-
los. As descobertas científicas não são, e nunca serão, éticas ou antiéticas. Será antiética a sua
utilização de forma atentatória aos valores que cultivamos, como o respeito à vida, à
individualidade, à diversidade; valores como a compreensão e a solidariedade.
Conhecimento é poder. Portanto, tem muita gente apavorada com o que irá ocorrer agora com o
sequenciamento do genoma humano. De fato, entre as ondas de bioliberalismo (tudo o que se
sabe fazer deve ser feito) e de biofundamentalismo (a intocabilidade/ sacralidade da vida, “salta
aos olhos” que, sendo a bioética o consenso possível temporário e mutável entre diferentes setores
da sociedade, envolve questões de poder, pois consenso sempre tem a ver com a força política
dos grupos protagonistas. Em qualquer consenso, quern “pode” mais, embora sempre “leve tudo”,
leva mais, sempre. Isto é, a bioética não é apolítica.
• Novas tecnologias farmacêuticas: milhares de drogas deverão ser criados para doenças
que antes não tinham tratamento. As drogas serão feitas especialmente para cada indivíduo,
diminuindo os efeitos colaterais; produção de vacinas.
• Terapia gênica: genes com erro poderão ser substituídos, acabando com doenças na sua
origem.
• Diagnóstico mais preciso das doenças genéticas (medicina preditiva) e talvez até a cura de
algumas delas.
Patenteamento do genoma
Privacidade
Quem terá direito de acesso às informações genéticas de cada indivíduo? Apenas ele próprio, o
cônjuge, familiares, pais adotivos, empregadores, seguradoras de saúde, instituições de ensino ou
militares, a polícia? É uma das perguntas ainda sem resposta. Segundo a posição do Comitê
Internacional de bioética da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), a pessoa tem o direito de guardar apenas para si, se desejar, as informações
sobre sua herança genética, mas garantir esse direito será um famoso desafio.
A divisão brasileira da Polícia Criminal Internacional (INTERPOL) cria um banco de dados de
DNA para localizar crianças desaparecidas em parceria com a USP (Universidade de São Paulo)
e a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Também coleta material genético de pais que
tiveram seus filhos desaparecidos. É também uma arma para a polícia para evitar tráfico,
sequestros e roubo de crianças. O teste do pezinho passa a ser feito em todas as crianças recém-
nascidas no país. Assim, nas próximas décadas, o governo terá a informação genética de toda a
população!
Como basta uma gotinha de sangue para acessar o genoma, as leis têm que garantir a
privacidade genética do indivíduo.
Carteira genética. A carteira de identidade poderá incluir um código de barra que expresse o
genoma do portador. A pessoa será como cristal, totalmente transparente, ao menos no seu
aspecto biológico-genético. A carteira genética poderá ser colocada a serviço de uma prática de
contratação de empregos que estigmatiza pessoas portadoras de herança genética anômala. O
fator genético poderá tornar-se um elemento de estratificação e discriminação social ao lado do
fator racial, étnico, sexual e socioeconômico. Também os convênios privados de saúde e de
aposentadoria e as apólices de seguro de vida poderão usar os testes. Essas instituições querem
diferenciar as quotas de pagamento de acordo com o baixo ou alto risco de contrair determinadas
doenças de tratamento longo e custoso.
Discriminação
A crença no determinismo promulgada pelo mito dos genes suscita a questão da culpabilidade
moral e jurídica. Uma disposição genética para a conduta antissocial torna uma pessoa culpada ou
inocente perante a lei? Ao longo desta década, nosso sistema terá de repensar as bases
filosóficas sobre as quais construímos conceitos como livre-arbítrio, culpa, inocência e fatores
atenuantes. Não há dúvida de que a pesquisa da ligação entre determinismo genético e conduta
humana continuará e de que novas descobertas irão se tornar imediatamente relevantes para a
acusação e a defesa dos acusados de crimes. O foco incidirá no conceito de livre-arbítrio porque o
pressuposto da filosofia ocidental, desde Agostinho, subjacente a nossa compreensão de lei, é o
de que a culpa só pode ser atribuída a um agente humano que age livremente.
O espectro no horizonte genético é o de que as disposições genéticas que possam ser
confirmadas em certas formas de conduta constituirão compulsão, e isso nos colocará em uma
bifurcação no caminho jurídico: ou declaramos inocente a pessoa com uma disposição genética
para o crime e a libertamos, ou a declaramos constitucionalmente deficiente de modo a justificar o
encarceramento e o isolamento do resto da sociedade. O primeiro caminho poria em risco o bem-
estar da sociedade; o segundo, violaria os direitos individuais.
As implicações éticas, se for confirmada uma base biológica, genética para o
homossexualidade, poderiam seguir mais de um percurso. O fato científico não determina a
direção da interpretação ética desse fato. A questão ética central é esta: a disposição genética
para a homossexualidade torna o portador desse gene inocente ou culpado? Logicamente as duas
respostas são possíveis.
Por um lado, uma pessoa homossexual poderia afirmar que, como herdou o gene gay e não
escolheu uma orientação gay por vontade própria, é inocente. A posição da inocência biológica
poderia ser sustentada por um argumento adicional: a atividade homossexual não é pecaminosa,
mas simplesmente uma forma natural de expressão sexual entre outras. Seria possível ir ainda
mais longe e dizer que, como foi herdada biologicamente, ela é vontade de Deus, que a
predisposição homossexual de uma pessoa é uma dádiva de Deus.
Por outro lado, poderíamos seguir o caminho oposto e identificar o gene gay a uma disposição
carnal para o pecado. A sociedade poderia afirmar que o corpo herdado por nós pertence a quern
somos – quern sou como eu é determinado, pelo menos em parte, pelo que meus pais me legaram
– e que uma disposição herdada para o comportamento homossexual é exatamente como outras
disposições inatas, por exemplo, a luxúria, a ganância ou formas similares de concupiscência
compartilhadas pela raça humana em geral, e tudo isso constitui o estado de pecado original em
que nascemos.
Para além da questão de culpa ou inocência, os eticistas antecipam outra questão: o risco de
estigma. A presença do gene gay em um feto poderia ser considerada um defeito genético e
fundamento para o aborto? Os testes genéticos de rotina levariam a uma redução geral de
pessoas homossexuais de uma maneira paralela à redução de crianças com síndrome de Down?
Isso seria considerado discriminação de classes?
Eugenismo
Previdência Social
Segundo previsões de cientistas, dentro de 40 anos, a expectativa de vida dos seres humanos
será de 90 anos e não 70 como agora, graças ao gene da longevidade. Se muita gente optar pelo
gene da longevidade, os sistemas previdenciários vão ter de se adaptar a uma nova situação.
Quern vai pagar a conta?
Clonagem
Com o advento da ovelha Dolly, gestada a partir de uma célula de uma outra ovelha, a
comunidade científica começou a discutir a possibilidade de clonagem de seres humanos. Clonar
significa a reprodução do idêntico. Há dois tipos de clonagem: clonagem reprodutiva e clonagem
terapêutica. Segundo parecer da ONU, a clonagem para a produção de tecidos humanos deve ser
fruto de pesquisa, porque pode ajudar a salvar vidas. Mas a clonagem de indivíduos – reprodutiva
– é condenada pela entidade. Voltaremos ao assunto no próximo capítulo.
Terapia gênica
Alerta
Cientistas lembram que fatores ambientais e culturais têm influência tão forte na vida e no
comportamento quanto à herança genética. Os genes e a genética estão envolvidos em quase
tudo. Estão claramente envolvidos no fato de eu estar careca ou de eu ser ruivo, o que são coisas
triviais; mas também, provavelmente, contribuem para eu ter ou não hipertensão, para ter ou não a
doença de Alzheimer. Os genes provavelmente definem minhas habilidades atléticas, minha
inteligência e daí para frente; eles estão por trás do que faço.
Também há a questão do ambiente: algumas coisas são mais influenciadas pelo meio ambiente,
outras mais pelos genes. Inteligência, por exemplo, não sabemos se se deve mais aos genes ou
ao ambiente. Os estudos que comparam gêmeos são perfeitos como exemplo: você tem dois
indivíduos com o mesmo código genético, e se eles crescem em ambientes diferentes, apesar de
terem muitas similaridades, se tornarão indivíduos diferentes.
Conclusão
O anúncio do rascunho (mapeamento) genético humano lança a mais profunda pergunta ético-
filosófica: quem é a pessoa humana? Seremos somente o nosso código genético? Poderemos
“fabricar” o ser humano nos laboratórios? Poderemos dar-nos “a vida eterna” pela conservação e o
rejuvenescimento de nossas células? O que é ser pessoa? Quem somos nós?
Estamos diante de questões bioéticas de grande vulto. É necessário e importante lutar por uma
legislação que fiscalize os feitos e efeitos da engenharia genética, pois, esta e outras
biotecnologias são saberes que encerram um poder incomensurável, além do que muitos destes
conhecimentos são sigilosos. As biotecnologias produzem “coisas” de grande utilidade para a
humanidade, mas também podem criar instrumentos de discriminação, como o “certificado de
predisposição para doenças”; as testagens genéticas compulsórias (diagnóstico genético
populacional) e a “a carteira de identidade genética”. Também podem fabricar armas
bioengenheiradas letais.
Provavelmente, cada pessoa terá respostas diferentes às perguntas acima enumeradas. Em
uma sociedade democrática é indispensável que os valores individuais sejam plenamente
assegurados, sem o cerceamento de qualquer tipo de liberdade, a não ser que ela prejudique a
liberdade de outra pessoa.
Estas questões estão sendo agora cuidadosamente consideradas por comissões de ética que
existem em qualquer instituição de ensino ou pesquisa, criadas em nosso país por legislação que
também estabeleceu órgãos nacionais de controle, como a Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (Conep) e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Obviamente que não se trata pura e simplesmente de temer os perigos, mas de perceber
também os benefícios e novas esperanças que surgem. Sem dúvida, os conhecimentos podem ser
utilizados para a prevenção e cura de doenças incuráveis que hoje infernizam os seres humanos.
Mas é bom lembrar que nem tudo o que cientificamente é possível, logo, ipso facto, seria
eticamente admissível. Surge, com urgência e necessidade, a bioética ou ética da vida.
Não há razão, portanto, para a histeria de certos grupos anticiência de desenvolvimento de
“elites genéticas”. O conhecimento científico, em si, não é bom nem mau. O que existem são
aplicações éticas ou não-éticas deste conhecimento. Cabe à sociedade em geral, e a cada um de
nós em particular, manter-se vigilante para que esse conhecimento seja aplicado visando ao
máximo de felicidade para o maior número de pessoas.
Para aprofundar ainda mais a nossa reflexão, aconselho a leitura da Declaração sobre a
produção e uso científico e terapêutico estaminais embrionárias humanas19, Documento da
Pontifícia Academia para a vida (Academia do Vaticano que estuda os problemas éticos
relacionados com a vida na perspectiva cristã católica) - 2000; da Declaração Íbero-Latino-
americana sobre direito, bioética e genoma humano20 (2001), recomendando a difusão, o estudo,
o intercâmbio sobre os aspectos sociais, éticos e jurídicos relacionados com a genética humana, a
partir da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos e da
Manifestação do Conselho Federal de Biologia21 sobre os organismos geneticamente
modificados (OMGs) 2002, recomendando a promoção da defesa da soberania dos povos e das
nações sobre seu patrimônio genético e o uso de uma linguagem acessível na discussão dos
aspectos éticos no uso da biotecnologia.
17. PETERS, Ted. Genética, teologia e ética. In: PETERS, Ted e BENNETT, Gaymon (Orgs.). Construindo pontes entre
a Ciência e a religião. Tradução Luís Carlos Borges; supervisão científica Eduardo R. Cruz. São Paulo: Edições Loyola
e Editora UNESP, 2003, p. 117-134.
18. Cfr. Anexo 5 a íntegra da Declaração.
19. Cfr. Anexo 6.
20. Cfr. Anexo 7.
21. Cfr. Anexo 8.
Capítulo 6
Clonagem humana
Introdução
A finitude física é uma certeza intragável e impossível de se compartilhar. Os filósofos dizem que
a cada um pertence a sua própria morte, não a dos outros. Adiar ao máximo esse encontro foi o
maior desafio da ciência. Se pouco a pouco o homem dominou a natureza, por que não alcançaria
a imortalidade e se faria à imagem e semelhança de Deus? Os alquimistas, que na Idade Média
perseguiram o elixir da longevidade, ficariam excitados se pudessem ver o cenário que inaugura o
século XXI. Ao mesmo tempo fascinante e amedrontador.
Tudo indica que o fio condutor da economia neste século será a biotecnologia, tendo como
locomotiva o Projeto Genoma Humano e a clonagem. É um aprofundamento “no mundo do
infinitamente pequeno e no mundo do infinitamente complexo” (Teilhard de Chardin). Entreabre-se
um cenário fantástico em que realidade e ficção científica se dão as mãos. A possibilidade de “um
admirável mundo novo” (Aldous Huxley), ou de um “Frankenstein” (Mary Shelley) nos inquietam…
Estamos entrando definitivamente num mundo novo. O desenvolvimento rápido da ciência e da
técnica, na área da biologia, genética e medicina, traz muitas novidades associadas a esperanças
e temores, com enormes desafios éticos para a humanidade. Está em jogo nada mais nada
menos que o bem maior, que é a própria vida humana!
Alguns fatos científicos são a ponta do iceberg de uma revolução subterrânea silenciosa em
curso cuja relevância e possíveis consequências só muito recentemente começamos a perceber. A
clonagem da ovelha Dolly na Escócia (Instituto Rosling pelo Dr. Wilmut) no início de 1997, espantou
o mundo científico e a humanidade em geral. O anúncio recente da decifração do código genético
humano (26/6/2000) nos introduziu definitivamente na era da genômica. “Estamos aprendendo a
decifrar a linguagem com que Deus descreveu a vida”, disse o Presidente Clinton, no dia do
anúncio.
Ética e tecno-ciência
Em nenhum outro momento da história humana a ciência e a técnica colocaram tantos desafios
para o ser humano quanto hoje. Fala-se que a medicina mudou mais nos últimos cinquenta anos
que nos 50 séculos precedentes. Aumentou espantosamente a responsabilidade do ser humano
em relação ao seu próprio futuro, uma vez que o que antes era atribuído ao acaso, à natureza, ao
destino, à vontade de Deus, passa doravante a ter a interferência direta da ação humana.
Basicamente, existem quatro atitudes fundamentais quando entramos na discussão ética e
tecno-ciência em relação à natureza humana.
1. A ciência tem o direito de fazer tudo o que é possível! Nessa visão, o único limite é aquele
imposto pela capacidade técnica e imaginação humana. O direito de conhecer é uma liberdade
humana básica, e qualquer cerceamento é visto como uma violação dos direitos do pesquisador.
Caso se tenha a capacidade de fazer algo, assume-se que se tem o direito de fazê-lo.
2 . A ciência não tem o direito de intervir no processo da vida pois este é sagrado!
Popularmente é dito que “os cientistas não deveriam querer ser Deus”. Deus é o dono da vida, a
Ele a vida pertence, é considerada intangível como dom sagrado. Submissão e obediência cega
aos processos biológicos é o que se espera do ser humano. É obvio que esta atitude radicalizada
não favorece tipo de progresso científico algum, que acaba sempre visto como usurpador dos
“direitos de Deus”.
3 . A ciência não tem o direito de mudar as qualidades humanas mais características! Essa
abordagem insiste que há um limite para a intervenção científica e que este limite é a natureza da
pessoa humana como ela é atualmente entendida e valorizada. Levantam-se questões de ordem
política em que a ciência é produzida. O que aconteceria se este conhecimento para mudar a
natureza humana caísse nas mãos de um “Hitler”, por exemplo, ou então a possibilidade de se
clonar pessoas.
Precisamos estar conscientes dessas visões, para avaliar criticamente quando a utilização do
conhecimento científico beneficia ou não a humanidade. Não se trata de pura e simplesmente
satanizar a ciência de forma ingênua. Ética e ciência precisam andar juntas e se iluminar
mutuamente, no objetivo maior de preservar e aperfeiçoar a vida e a dignidade do ser humano.
Do que falamos?
Faz parte da nossa natureza tentar entender como as coisas funcionam e querer melhorá-las.
Estamos dando continuidade a algo que começou há muito tempo, nos primórdios da História
humana. Individualmente, todos os dias tomamos decisões que, de alguma forma, afetam outras
pessoas e o mundo em que vivemos. A tendência é que no futuro a clonagem se torne um
procedimento cada vez mais seguro e viável, cujos resultados poderão ser usados em benefício da
humanidade. O objetivo é conhecer o mecanismo essencial da vida. O código genético é
responsável por todas as características físicas de uma pessoa e também por boa parte do seu
comportamento. Ao entender como esse mecanismo funciona, talvez possamos melhorá-lo ou
corrigir alguns de seus defeitos.
Uma das dificuldades da reflexão sobre a clonagem provem do fato que o mesmo termo,
evocando sempre uma “reprodução do idêntico”, designa operações diversas, cujas modalidades
e finalidades são diferentes. E mais, a clonagem pode se reportar a entidades biológicas
diferentes. Do ponto de vista ético ou jurídico, não é o mesmo clonar um gene humano para fazer
produzir por bactérias insulina para tratar diabéticos, clonar células da pele para obter tecidos e
assim tratar grandes queimados e clonar um embrião, uma criança ou um adulto humanos; em
outras palavras, devemos fazer a diferença entre clonagem reprodutiva e clonagem terapêutica.
Clonagem de seres humanos significa criação de seres humanos adultos copiados de outros. É
uma forma de reprodução assexuada. Isso representaria uma verdadeira reviravolta da condição
humana: o modo sexuado de procriação faz com que todo ser humano, até agora, deva sua
existência a duas pessoas, de sexos diferentes, tão indispensáveis uma como a outra. Assim, o
modo sexuado de geração mostra que a vida humana é o fruto de uma relação entre duas
pessoas, um homem e uma mulher. A clonagem de seres humanos permitiria a emancipação da
reprodução humana de toda forma de relação. Admiti-la socialmente transformaria radicalmente a
sociedade, as representações a respeito da procriação e da relação entre os sexos.
Vejamos: um dos encantos da clonagem da ovelha Dolly é que a célula somática (não sexual)
extraída da glândula mamária que lhe deu origem se transformou em célula reprodutora – portanto,
Dolly não tem pai. Isso abre caminho para estonteantes batalhas éticas e judiciais.
Assim, a clonagem tem duas finalidades diferentes: a mais polêmica é a clonagem reprodutiva,
cujo objetivo é formar um novo ser humano geneticamente idêntico a outro. A motivação, nesse
caso, seria ajudar casais inférteis ou que perderam um filho e gostariam de ter outro igual. A
técnica consiste em fertilizar um óvulo sem núcleo com o material genético de uma célula da
pessoa que deseja ser clonada. A outra categoria é a clonagem terapêutica, na qual embriões são
clonados para obter células-tronco. Pesquisadores acreditam que essas células indiferenciadas –
com potencial para se transformar em qualquer um dos cerca de 220 tipos de célula do corpo –
podem ser cultivadas para uso em transplantes e no tratamento de doenças degenerativas. Como
seriam obtidas a partir de um embrião clonado do próprio paciente, não haveria risco de rejeição.
O processo é igual ao da clonagem reprodutiva, mas em vez do embrião ser implantado no útero
para formar um feto, ele é cultivado em pratinhos de laboratório por no máximo sete dias e, depois,
destruído para a retirada das células.
Células-tronco
As células-tronco são a base da clonagem humana. São células ainda não especializadas, que
chamamos de pluripotentes, e podem se diferenciar em vários tecidos. Ou seja, tornam-se células
de coração, de fígado ou de pele, por exemplo. Quando o óvulo se junta ao espermatozoide e
forma o embrião, há apenas uma célula que começa a se dividir e, no início, todas são iguais.
Estas células vão se dividindo até que recebem uma ordem, não sabemos como, para se
especializarem. Algumas se transformam em célula de fígado; outras, de ossos. Isto ocorre por
volta do 14° dia da fecundação.
O lado positivo da clonagem embrionária é abrir novas perspectivas de sobrevivência e de cura
de doenças. Os seres vivos são concebidos a partir da multiplicação de uma única célula-ovo,
contendo em seu DNA toda a informação hereditária. Antes de começar a se dividir e a se
diversificar para formar os tecidos do corpo, as células do embrião, batizadas de células-tronco,
são indiferenciadas. Podem funcionar como curinga de órgãos doentes, ajudando a substituir seus
tecidos degenerados.
A técnica que gerou a ovelha Dolly é a mesma utilizada para a reprodução de seres humanos e
para a clonagem com fins terapêuticos:
2. Por meio de choques elétricos, funde-se ao óvulo uma célula contendo material genético da
pessoa a ser clonada.
3. O óvulo com os novos genes é colocado num meio que estimula sua multiplicação e a
formação do embrião. Para cura: cultivado em laboratório, o embrião dá origem a células-tronco.
Antes de se diferenciarem para formar o corpo humano, elas são induzidas a se transformar em
tecidos específicos e, depois, injetadas para substituir células doentes dos órgãos: neurônios,
células do coração, células hepáticas. Para reprodução: o embrião é introduzido no útero da mãe
de aluguel para que as células se multipliquem, se diferenciem e deem origem ao clone humano.
O grande problema é que essas células são derivadas de embriões excedentes de processos
de fertilização in vitro. Tais embriões, normalmente descartados com consentimento do casal, são
destruídos para extrair as células-tronco embrionárias. Para algumas pessoas, isso significa
destruir uma vida, o que seria inaceitável. Essa é uma questão delicada, que envolve aspectos
morais, culturais e religiosos. Vale lembrar que estamos falando de um embrião de cinco dias,
basicamente um conglomerado amorfo de células, que se fosse gerado no ventre de uma mulher
teria somente 20% de chance de se transformar em um bebê. Uma coisa se pode garantir: aquele
embrião excedente trará muito mais benefícios na forma de células-tronco embrionárias do que em
uma lata de lixo.
Outro argumento contra o uso de células-troco embrionárias é o medo de que seja criado um
comércio de embriões. Seguindo essa argumentação, não deveriam ser permitidas transfusões de
sangue nem doações de órgãos, pois isso também poderia degenerar em comércio. A proibição
cega invariavelmente leva ao atraso da ciência e da melhoria da qualidade de vida. Precisamos,
sim, de legislação e vigilância, para introduzir o desenvolvimento das células-tronco embrionárias
no Brasil sem ferir direitos nem deveres.
Pesquisas mais recentes descobriram a existência de células-tronco adultas que também são
pluripotentes, isto é, podem gerar células de outros órgãos e tecidos. Descobriu-se células-tronco
de medula óssea, tecido fetal e cordão umbilical. Esta é uma boa notícia, pois são eliminadas não
só as questões ético-religiosas envolvidas na utilização das células-tronco embrionárias, mas
também os problemas de rejeição imunológica, já que células-tronco do próprio paciente adulto
podem ser utilizadas para regenerar seus tecidos ou órgãos lesados. Prevê-se o desaparecimento
das filas para transplantes e, em vez de transplantes de órgãos, serão feitos transplantes de
células retiradas do próprio paciente. Não há dúvida de que a terapia com células-tronco adultas
será a medicina do future O que preocupa os pesquisadores é que a ameaça de clonagem de
seres humanos freie as pesquisas de clonagem terapêutica.
O que é um embrião?22
Essa definição é importante para a discussão sobre células-tronco – aquelas que seriam
indicadas para a produção de órgãos usados para transplantes.
De forma teórica, para que possamos produzir um determinado órgão, devemos partir de células
muito jovens denominadas pluripotenciais. Como o nome indica, essas células possuem a
capacidade de se transformar em vários tipos de tecidos presentes no organismo. Em tese, uma
única célula dessa linhagem, sofrendo um estímulo adequado, poderia originar um fígado ou um
rim, ou quem sabe um coração. Então seria muito compensador e gratificante para as pessoas
que precisam de um novo fígado, rim ou coração, que pudéssemos fabricar um desses órgãos. Ele
sairia da “linha de produção” novinho em folha e pronto para substituir o órgão velho ou danificado.
Essas células-tronco podem ser obtidas a partir de várias fontes. As mais divulgadas na
atualidade são: a partir da medula óssea, do sangue do cordão umbilical e da própria estrutura do
pré-embrião em desenvolvimento. No entanto, apesar de já ser possível obter a célula-tronco e dos
vários estudos em andamento, a maneira pela qual fazemos essas células se transformarem em
um determinado tipo de tecido ainda não foi determinada. Portanto, temos os “ingredientes”, mas
ainda não sabemos a “receita do bolo”.
Os estudos mais recentes demonstram, por exemplo, que já é possível produzir células
sanguíneas a partir das células-tronco da medula óssea e do sangue do cordão umbilical. Porém,
não há nada comprovado em humanos sobre como essas células podem originar outros órgãos e
quais os estímulos mais adequados de diferenciação devem ser aplicados.
Do ponto de vista ético retirar células-tronco da medula óssea ou do cordão umbilical é um ato
aceitável, pois nenhum comprometimento sério é causado ao doador das mesmas. Questões
éticas, morais e mesmo científicas surgem quando tentamos trabalhar com células-tronco que
seriam retiradas da estrutura que corresponde aos primeiros 14 dias de desenvolvimento humano,
após a concepção. Será que estaríamos retirando essas células de um embrião? Ou de um feto?
Ou de um pré-embrião? Estaríamos comprometendo o desenvolvimento de um novo ser? A
sociedade deveria diferenciar uma estrutura com potencial para se desenvolver de uma outra da
qual esse potencial já foi colocado em ação? É nesse ponto que a definição precisa de vários
estágios de desenvolvimento. É necessário que a comunidade científica esclareça a sociedade e
seus membros dos períodos do desenvolvimento humano para que a discussão sobre as
consequências de se retirar células-tronco dessa estrutura, no período inicial de desenvolvimento,
fique clara e não cause problemas de consciência, éticos ou morais, nem aos cientistas nem à
sociedade como um todo.
Reflexões bioéticas
Discernimento ético
O discernimento ético deve ser feito tomando consciência da ambivalência de todo progresso
humano. Esta situação de ambivalência é expressa hoje pela categoria da sociedade do risco.
Vivemos num momento histórico em que é preciso tomar decisões de caráter técnico: para isso é
preciso avaliar o risco e, em consequência, ponderar as opções de acordo com as vantagens e os
inconvenientes24.
Diante da situação de risco não há outra atitude ética senão a da responsabilidade. Foi o
filósofo alemão, H. Jonas, que sublinhou de modo especial o princípio de responsabilidade para a
ética do presente, sobretudo tratando-se das opções a fazer diante dos avanços científico-
tecnológicos25. Na responsabilidade, não podemos esquecer as gerações subsequentes: é
preciso servir-se da criação e realizar os progressos levando em conta que as gerações
posteriores também hão de desfrutar dos bens que nós utilizamos.
As duas referências anteriores – medida do risco e apelo à responsabilidade – levam a um
terceiro critério de conteúdo axiológico. Os riscos e a responsabilidade devem ser medidos a
partir do valor do autêntico processo de humanização. É o critério da humanização que dá sentido
e orientação às decisões a tomar no campo do progresso científico-tecnológico. Por humanização
entende-se a realização “do homem todo e de todos os homens”, isto é, buscar o bem integral de
todas as pessoas por igual.
Biotecnologia
A biotecnologia, na ordem do dia, é o divisor de águas entre a atual era da informação digital
para a “nova era” da informação genética digital (biodigital), que por meio de recombinações, de
engenharia genética, indubitavelmente controlará todos os processos relativos à agricultura e à
pecuária (e, portanto, à subsistência da espécie humana), ao meio ambiente – e às suas
consequentes zonas de influência sobre o homem —, e à saúde, nascimento, vida e morte do
próprio homem (por intermédio das diversas aplicações do “Projeto Genoma Humano”, da
manipulação genética, das técnicas de procriação humana artificial etc.).
O ponto crucial, que constitui o vértice de todas as variáveis implicadas nas pesquisas
biotecnológicas, reside no fato de que os limites a serem estabelecidos para essas investigações
não irão advir do grau de evolução em que se encontra o conhecimento científico (visto que não há
limites para a ciência), mas dos valores éticos (bioéticos) aceitos pela sociedade internacional. É
nesse contexto que se abre o espaço para a fundamental intervenção reguladora do Direito.
É digna de elogio qualquer tentativa que pretende construir uma humanidade melhor; não se
pode condenar, em princípio, o desejo de conseguir uma melhora da espécie humana, mesmo em
terreno tão importante como a genética. Entretanto, também é preciso reconhecer que existem
limites a esse desejo de melhora ou de variação, limites que são ao mesmo tempo referências
positivas para uma melhor orientação do progresso.
Na reflexão atual, a clonagem de seres humanos acarreta alguns contravalores, tais como:
• O ser humano tem a dignidade de pessoa e não pode ser reduzido a um “objeto”; no processo
de clonagem existem tantas e tais intervenções que é quase impossível deixar de tratar a realidade
humana como um “objeto”.
• Na célula da qual se obtém o núcleo clônico é preciso realizar previamente importantes
“manipulações”, o que pode dar lugar a sérias “deformações” transmissíveis ao novo ser;
lembrando como os responsáveis pela clonagem de Dolly tiveram de contar com a criação de
quimeras e monstros antes de obter o resultado perseguido; seria eticamente razoável destruir um
número grande de embriões para obter um clone humano?
A biodiversidade também é um critério ético a ser levado em conta na espécie humana.
Algumas perguntas de cunho antropológico: a clonagem humana coloca em cheque a unicidade
do ser humano? Rompem-se com ela as fronteiras da identidade única de cada ser humano? A
alma é também clonada? A clonagem não seria uma realização tecnológica de reencarnação?
Não seria também um passo muito próximo em direção à imortalidade? O momento é propício
para se revisarem as raízes neoplatônicas desta antropologia da dicotomia entre corpo e alma. A
sugestão seria entender a alma como princípio vital do ser, pensar o ser humano como corpóreo e
“animado” ou espiritual e cuidar para que a descrição do ser humano como “composto de corpo e
alma” não venha distorcer nossa compreensão de seu caráter unitário e indivisível. Com esta luz,
entende-se que também o ser clonado tem seu princípio vital próprio que o impulsiona a construir
sua história, agindo e reagindo em um meio ambiente dado e na rede de relações humanas em
que interage. Ali se tecem as características da identidade de sua personalidade. É então
importante distinguir a identidade biológica da identidade biográfica. Ao clonar características
genéticas, clona-se a biologia do indivíduo, não sua personalidade. Nestes termos, parece ficar
claro a inexistência de elos entre a clonagem humana e a reencarnação e imortalidade.
Mas, estas razões éticas que invalidam, no estágio atual da reflexão bioética, a viabilidade moral
da clonagem de seres humanos não deveriam cortar as asas do pensamento humano.
O homem deve continuar levantando graves questões filosóficas relacionadas com o sentido da
evolução humana.
Porém, mais do que em leis e castigos, temos de confiar numa tomada de consciência ética por
parte da humanidade inteira. É necessária uma elevação da responsabilidade que ande par a par
com o progresso científico-técnico. À ciência deve acompanhar a consciência, se quisermos que a
aventura humana caminhe para cotas cada vez mais elevadas de humanização para todos, e de
modo especial para os indivíduos e os grupos menos favorecidos.
Realidade brasileira
As leis e penalidades conseguirão conter as pesquisas quando não só interesses mas também
convicções teóricas somam em favor da clonagem (pelo menos em fase anterior à implantação)?
Isto sugere que o momento atual seja de diálogo e retomada de referenciais éticos fundamentais
para se estabelecerem diretrizes e normas, bem além das leis e penalidades. Nos mais diversos
ambientes em que se reflete a bioética hoje, cresce a convicção de que as leis e penalidades são
insuficientes para gerarem uma resposta ética aos novos tempos com seus novos desafios.
“A ética do laboratório terá de ser decidida em conjunto com a ética da sociedade”, diz o
geneticista Carlos Alberto do Vale, da Universidade de São Paulo, e acrescenta: “Desconfio das
proibições categóricas assim como desconfio das permissões categóricas”.
“A sociedade é que deve pregar o regulamento na porta do laboratório”, sugere o biólogo
americano Steve Grebe. Parodiando o político francês Georges Clemenceau (1841-1929), Grebe
adverte: “Assim como se diz que a guerra é assunto grave demais para ser decidido pelos
generais, a ciência é perigosa demais para ser decidida apenas pelos cientistas”.
No Brasil, a explosão do tema foi enfrentada pela da Comissão Nacional Técnica de
Biossegurança, do Ministério de Ciência e Tecnologia, que julgou estar este assunto
suficientemente legislado na chamada “Lei de Biossegurança” (Lei n. 8974, Decreto n. 1752/95)26.
Ali se contemplam aspectos de tecnologia aplicada à genética e reprodução humanas e se
condenam como crime a manipulação genética de células germinais humanas; a intervenção em
material genético humano in vivo, a não ser em casos de terapia genética; a produção,
armazenamento e/ou manipulação de embriões humanos. Para infratores estão previstas multas e
penas de três meses a vinte anos de prisão. Mas logo entram os comentários levantando dúvidas
de interpretação: a proibição de manipular “células germinais humanas” compreenderia realmente
a clonagem efetuada a partir de células somáticas adultas?
Para dialogar, há uma iniciativa brasileira formulada pelo Conselho Nacional de Saúde, do
Ministério da Saúde, que resultou na Resolução 196/9627 sobre a Ética em pesquisa envolvendo
seres humanos. Esta resolução propicia ao Brasil uma Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa, bem como incentiva a instauração de Comitês de Ética em Pesquisa nas diversas
instituições que desenvolvem as pesquisas, instituindo uma verdadeira rede de “comunidades de
ética na base”.
Em nível internacional, temos a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos
Humanos da Unesco (1997)28 que é um verdadeiro hino à dignidade humana. Este documento, no
fundo, complementa a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)29. A Declaração
Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos da Unesco objetiva assegurar o
desenvolvimento da genética humana, na perspectiva de respeito da dignidade e direitos humanos
do indivíduo e ser benéfica para a humanidade como um todo. O progresso da pesquisa em
genética humana, que traz uma grande esperança para a saúde e bem-estar da humanidade, pode
também ser usado com objetivos danosos, contrários à dignidade humana, aos direitos humanos
ou respeito pela integridade da raça humana. A Declaração lembra três princípios vitais, que são
fundamentais na proteção da humanidade em relação às implicações da biologia e da genética:
dignidade humana, liberdade de pesquisa e solidariedade humana.
Conclusão
O respeito pela dignidade individual, liberdade e direitos humanos é um imperativo ético, a partir
do qual nascem princípios vitais de proteção do indivíduo afirmado na Declaração: a rejeição de
toda discriminação em base a características genéticas: a exigência do consentimento livre e
proteção da confidencialidade dos dados genéticos associados com o indivíduo.
Ciência e ética não precisam e não devem ser consideradas como antagônicas, pelo contrário,
necessitam-se e se iluminam reciprocamente. É esta a perspectiva que garante o respeito pela
dignidade humana e por mais qualidade de vida. Precisamos zelar por vigilância ética no âmbito
técnico-científico, que é uma instância de discernimento relacionada com o bom ou mau uso que
se fizer dos novos conhecimentos científicos. Necessitamos além do conhecimento científico,
sabedoria ética, a fim de proteger o ser humano, este universo singular que traz em seus genes a
história da humanidade.
Não seria simplesmente tragicômico a humanidade ter o domínio do mais íntimo da matéria
(átomo), do Universo (cosmos) e de si própria (gene) e se perder num projeto de morte, sem se
entender e organizar num projeto global de mais qualidade de vida e felicidade, utilizando-se dos
conhecimentos e instrumentos da tecno-ciência à sua disposição?
A clonagem como forma de reprodução é um procedimento caracterizado pelo desconhecido,
comprovadamente perigoso, que não deve ser realizado em seres humanos. Porém, não sigamos
o modelo americano que transformou a clonagem no inimigo público número um; vamos investir no
lado bom da clonagem, na clonagem terapêutica. Esta sim fará do nosso mundo, um admirável
mundo novo.
Lembremo-nos de que a ciência deve servir às pessoas e as pessoas não devem ser postas a
serviço da ciência.
Para refletir
Selecionamos a seguir alguns textos paradigmáticos e polêmicos para discussão e reflexão.
O clone mexe diariamente com nosso imaginário. Antes da ovelha Dolly, já se pensava em
duplicar as pessoas. Lembremos uns dez anos atrás, quando Calvin, das histórias em quadrinhos,
produziu vários clones para não ter de executar tarefas aborrecidas, como levantar cedo, tomar
banho, ir à escola. Não deu certo isso. Cada “replicante” desejava o mesmo que ele: nenhum
queria cumprir as tarefas chatas, ou seja, ser escravo de Calvin. Mas esse fracasso, nos
quadrinhos, não perturbou o imaginário, tão humano, de ter um duplo. Devemos perguntar: o que
move esse desejo?
Nascer sempre exigiu um pai e uma mãe. Simplificando, cada um de nós é, geneticamente,
metade seu pai, metade sua mãe. Enquanto estivemos presos à reprodução natural, não havia
como fugir disso, como ter uma cópia perfeita, completa. A condição humana esteve sujeita a
essas limitações e a outras. Mas, na Segunda metade do século XX, as fronteiras do humano
foram sendo superadas.
Faz só uns 20 anos que se difundiu a possibilidade de saber o sexo do feto. Ninguém mais
precisa preparar um estoque de roupinha azul e outro rosa. Antes de nascer o bebê, ele já tem
nome, personalidade, brinquedos. Mas o ultrassom que informa o sexo também permite práticas
odiosas, como o aborto sistemático de fetos femininos, praticado no Oriente.
De todo modo, o controle do futuro pelo ser humano se ampliou muito. O Projeto Genoma talvez
seja o que mais mobiliza esses desejos de controle. Poderemos, assim espera-se, acabar com
alguns defeitos congênitos antes mesmo do nascimento. Faz parte da condição humana superar
os limites que a natureza colocou para nós.
Mas a clonagem de um ser humano vai mais longe: pretende gerar alguém que não nasça de
dois genitores, e sim de um só. Ora, muito antes de Calvin, a ideia mais forte por trás da clonagem
já aparecia na trilogia “A Oréstia”, de Ésquilo, 2.500 anos atrás.
Orestes matou a mãe, para vingar o pai, assassinado por ela. As Fúrias, uma espécie de
semideusas, querem puni-lo. A deusa da sabedoria, Atena, propõe que ele seja julgado. O deus
Apolo o defende no júri: ele pergunta por que as Fúrias perseguem o matador da mãe, mas nada
fizeram contra ela, assassina do esposo? Elas respondem que só punem crimes contra o sangue;
um casal não está nesse caso. Mas os jurados absolvem Orestes.
São dois os argumentos contra as Fúrias. O primeiro é que o contrato, unindo o casal, é tão
importante (ou mais) que os elos de sangue. Se toleramos crimes contra os contratos, não teremos
sociedade, apenas clãs em guerra uns contra os outros. Este argumento, nós aceitamos sem
dificuldade. Já o segundo, hoje, soa muito estranho. A mulher, diz, Apolo, não passa de um vaso,
que recolhe o sêmen do homem. Tudo o que alguém será está na semente de seu pai. O papel da
mãe é passivo. Daí que ela seja subordinada ao homem. Ora, por uns bons 2.000 anos essa tese
será sustentada, com certo êxito, e só será refutada com a moderna genética.
Será a clonagem um modo de voltarmos aos tempos de Ésquilo ou à ideia de que um ser nasça
de apenas um genitor? É claro que nada impede clonar uma menina com base na mãe. Enquanto
Ésquilo, num paradigma machista, entendia que todos nós, homens ou mulheres, viríamos só do
pai, hoje teríamos meninas copiando a mãe, meninos replicando o pai. Quer dizer, não se trata de
voltar ao machismo, mas, talvez, de voltar aos tempos pré-contratuais.
O contrato não é só um procedimento capitalista. Simboliza a essência de uma sociedade
democrática, na qual as pessoas ocupam seus lugares não pelo que são (por seu status), mas
pelo que fazem, combinam e pactuam. Como forma de ordenação do mundo, ele é recente. Foi
teorizado há apenas 400 anos. É praticado há somente 200. Não chegou a dominar o mundo. Um
filme como o chinês “Nenhum a menos” (1999), todo construído sobre a impossibilidade dos
diálogos e dos contratos, mostra como é difícil construir a sociedade sobre a relação negociada
com o outro.
Estará terminando, tão precocemente, a era dos contratos? Dispensar a associação de um
homem com uma mulher para ter um filho pode ser sinal disso. O narcisismo atual faria gerar filhos
de um só. Mas concluamos com duas notas.
Primeira: esse é um desejo, não necessariamente algo viável. Calvin já o percebeu: nada
garante que nossa cópia seja nosso escravo. Se o filho-cópia nos dispensa da negociação com a
parceira (ou o parceiro) para gerá-lo, ele também é um outro em relação a nós, e teremos de
negociar com ele, para criá-lo. Mesmo o que geneticamente é cópia será, socialmente, um outro. O
sonho narcisista pode dar bem errado.
Segunda: ainda que a clonagem seja uma técnica tão nova, o desejo de não dever nada a
ninguém, até na geração de um ser humano, não é novo. Citei Ésquilo, não por tola erudição, mas
porque nossos desejos talvez sejam bem arcaicos, atávicos. As técnicas tem poder quando ativam
os nossos desejos: são eles que devemos conhecer, é com eles que devemos negociar.
É o sonho final dos raelianos: fazer viver um ser humano 100% construído em laboratório.
Embora nenhuma lei internacional enquadre ou proíba essas experiências, a clonagem humana
é condenada pela grande maioria dos cientistas, dos médicos, ou dos filósofos. “Se a notícia for
exata, trata-se de uma atividade pura e simplesmente criminosa”, disse na França o professor
Atlan, sobre o clone humano anunciado pela seita raeliana.
A identidade dessa seita não esclarece muito as coisas. É francesa, dirigida por seu fundador, o
jornalista esportivo francês Claude Vorilhon que, em 1973, encontrou um extraterrestre nas
montanhas vulcânicas de Auvergne, na França.
Esse extraterrestre era muito tagarela. Ensinou-lhe muitas coisas. Os seres humanos foram
criados em laboratório e depois colocados sobre a terra há 25 mil anos. Esta história é relatada
pela Bíblia. Infelizmente, houve um erro de tradução da palavra “Elohim” que significa “aqueles que
caíram do céu”, como sabe o jornalista, foi traduzia pela palavra “Deus”. Daí veio toda a confusão.
Um pouco mais tarde, por ocasião de uma viagem extraterrestre, Vorilhon, já “rebatizado” Rael,
recebeu a missão de realizar clonagens humanas. Por quê? Ora, porque simplesmente a
clonagem é a chave da vida eterna.
A próxima etapa será a clonagem pela “via acelerada”, com o objetivo de reproduzir um adulto e
“nele armazenar nossa personalidade, nossa memória, o acervo de informações acumuladas em
nosso cérebro sob a forma de fluxos eletroquímicos”. Além disso, será preciso pensar no último
estágio, “a criação de um ser vivo totalmente artificial, 100% forjado em laboratório”. Somente
então se abrirá o caminho para a vida eterna.
Religião: O que distingue a seita raeliana da maioria das outras é seu gênio científico. Não
apenas porque ela afirma que “a ciência é uma religião” (o mesmo dizem outras seitas), mas ainda
porque ela tem projetos científicos muito ambiciosos e porque, finalmente, soube seduzir cientistas
de grande competência.
Entre eles estão os seis especialistas que deram origem ao nascimento do primeiro clone
humano. E também uma pesquisadora francesa, Brigitte Boisselier, que deu a notícia na Flórida.
Brigitte tem um duplo doutorado em química analítica na França e nos Estados Unidos e um “colar
de plumas” da Ordem dos Anjos de Rael, uma Ordem na qual mulheres colocam a serviço de seus
profetas “sua beleza interior e exterior”.
Podemos facilmente imaginar que um profeta tão obstinado como Rael não se contenta apenas
em fazer progredir a ciência e a religião. Ele produz também uma filosofia e dá conselhos para a
vida cotidiana. Há oito anos, no Canadá, Rael mandou distribuir preservativos para meninos de 13
anos em frente a escolas. No ano seguinte, recomendou a masturbação. Mais recentemente,
incentivou os jovens católicos do Canadá a “queimar as cruzes” – o que não é uma coisa muito
cortês, se se levar em conta que o profeta é meio-irmão de Jesus, pois nasceu no dia de Natal, de
1945, de uma relação adúltera entre um judeu refugiado e uma mulher chamada Maria.
Proibição – A seita foi proibida e definida como “perigosa” na França, mas não nos outros
países. Na maioria das vezes, o povo se contenta em considerar os raelianos como tipos
burlescos, barrocos, parecidos como tantos outros cérebros que surgem em nossas sociedades
modernas.
Serão delirantes? Exaltados? Sim, mas esses tipos ridículos souberam atrair cientistas de
altíssimo nível. E, além disso, a hipótese de um nascimento por clonagem, embora preocupe tantos
cientistas, não é considerada como absolutamente impensável. Ninguém duvida que, a partir de
agora, um nascimento desse tipo possa ocorrer a qualquer momento.
Sem testes: Boisselier, uma química francesa, faz parte da seita dos raelianos, grupo que
acredita que a raça humana foi clonada por extraterrestres e que a clonagem é a chave para a vida
eterna. A Clonaid, com sede nas Bahamas, promete ainda o nascimento de quatro outros bebês
clonados para as próximas semanas: mais um da América do Norte, um da Europa e dois da Ásia.
Segundo Boisselier, dois casais estão usando células preservadas de filhos mortos e um outro é
um casal de lésbicas. Outras 20 tentativas estão marcadas para janeiro. “Acredito que cada casal
deve escolher a criança que deseja ter, mesmo se não tiver nenhum problema de fertilidade”.
Segundo ela, a Clonaid não solicitou pagamento dos casais, mas alguns fizeram contribuições à
empresa.
O trabalho da Clonaid é visto com repúdio e ceticismo pela comunidade científica internacional.
O geneticista Axel Kahn, diretor do Centro Francês de Genética Molecular, considerou “revoltante e
repulsivo” o anúncio. “Enquanto a seita raeliana não produzir a prova científica dessa procriação
industrial, pela qual se trata a vida humana da mesma forma como se fabrica uma salsicha, não
devemos considerar o anúncio”, afirmou, lembrando que a diretora da Clonaid “já se habituou a
proclamar verdades não confirmadas pelos fatos”.
Os presidentes dos EUA George Bush, e da França Jacques Chirac, também criticaram.
George Bush classificou a clonagem humana como algo “profundamente perturbador” e defendeu
uma legislação para proibir todo tipo de clonagem, inclusive com fins terapêuticos. Chirac pediu
que todos os Estados proíbam e punam qualquer tentativa de clonar seres humanos.
Disputa – Com o anúncio de ontem, a Clonaid assume, pelo menos temporariamente, a
liderança da corrida para clonar o primeiro ser humano, travada ao lonço dos últimos dois anos
com os médicos Severino Antinori, na Itália e Panayiotis Zavos, nos EUA. No início do mês, Antinori
disse que seu primeiro clone, um menino, nasceria em Janeiro. De Roma, ele menosprezou o
anúncio da Clonaid, dizendo que a empresa não tem credibilidade científica. “(A notícia) me faz rir
e ao mesmo tempo me preocupa, porque cria confusão entre aqueles que fazem pesquisa
científica séria”, disse.
Ian Wilmut, o “pai” de Dolly afirma: “nossa experiência com mamíferos mostra que, atualmente,
qualquer tentativa de clonar seres humanos é intrinsecamente insegura”.
Wilmut diz que a clonagem hoje ainda é uma espécie de “loteria”, na qual é impossível prever
quais clones vão vingar ou não. Pesquisadores de vários países já clonaram ovelhas, porcos,
camundongos, uma gata, cavalos, jumentos e, mais recentemente, ratos, mas a eficiência do
processo é baixíssima. De acordo com ele, um dos fatores que interfere no processo da
experiência é o tipo de célula adulta cujo núcleo é extraído para implantação: algumas, como as
que circundam o óvulo, parecem ter mais chances de produzir clones saudáveis do que outras.
Cada espécie também requer uma estratégia diferenciada de transferência de núcleo, lembra o
pesquisador. Uma das hipóteses para o fracasso na clonagem de primatas, segundo ele, é a de
que na extração do núcleo da célula adulta sejam perdidas as proteínas que produzem o fuso
mitótico, onde os cromossomos se prendem durante a divisão celular. Nas tentativas de clonagem
de primatas, os cromossomos se espalham pela célula e ela não se divide.
De acordo com Wilmut, porém, a maioria dos problemas apresentados pelos clones – de fígado,
pulmão, deficiências imunológicas, obesidade – são provavelmente causados por problemas na
reprogramação do genoma da célula adulta. O genoma de uma espécie funciona como o conjunto
de programas de uma rede de computadores: cada seção ou célula especializada de um tecido
usa um grupo deles, embora todos tenham acesso a todos os programas. É exatamente esse o
maior desafio da clonagem: fazer com que o genoma de uma célula adulta especializada volte a
“rodar” os programas (genes) capazes de produzir um embrião.
Wilmut propõe uma abordagem multidisciplinar para enfrentar esses problemas, unindo esforços
de geneticistas, especialistas em embriologia e patologistas.
22. FG Press 1 a 15 de julho de 2002. Clínica de Ginecologia e Obstetrícia Dr. Flávio Garcia de Oliveira.
23. PEREIRA, Lygia V. O admirável mundo novo da clonagem. In: VALLE, Silvio e TELLES, José Luiz (0rgs). Bioética e
b iorrisco: ab ordagem transdisciplinar . Rio de Janeiro: Editora Interciência, 2003. p. 31-45.
24. G. BECHMANN (ed.), Risiko und Gesellschaft. Grundlagem und Ergeb nisse interdisziplinären Risiko-forchung ,
Opladen 1993.
25. H. JONAS, Das Prinzip Verantwortung , Frankfurt 4 1979.
26. Cfr Anexo 3.
27. Cfr Anexo 4.
28. Cfr Anexo 5.
29. Cfr Anexo 1.
Anexos
A Assembleia Geral
Proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir
por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da
sociedade tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por
desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de
ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto
entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a
sua jurisdição.
Artigo I – Todos os homens nascem livre e iguais em dignidade.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
Artigo II – Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de raça, cor, sexo, língua ou religião.
Artigo III – Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão.
Artigo V – Ninguém será submetido à tortura ou castigo cruel desumano ou degradante.
Artigo VI – Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa
humana perante a lei.
Artigo VII – Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção
da lei.
Artigo VIII – Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais competentes, remédio
efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX – Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X – Todo homem tem direito a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele.
Artigo XI – Todo homem acusado de ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até
que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei.
Artigo XII – Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou
na correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação.
Artigo XIII – Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência, dentro das
fronteiras de cada Estado.
Artigo XIV – Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e gozar asilo em
outros países.
Artigo XV – Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
Artigo XVI – Os homens e as mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família.
Artigo XVII – Todo homem tem direito à prioridade.
Artigo XVIII – Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião.
Artigo XIX – Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão.
Artigo XX – Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
Artigo XXI – Todo homem tem direito de tomar parte no governo do próprio país e de ter acesso
ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
Artigo XXII – Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis a sua
dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
Artigo XXIII – Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições
justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
Artigo XXIV – Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas
de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Artigo XXV – Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar.
Artigo XXVI – Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos
graus elementares e fundamentais.
Artigo XXVII – Todo homem tem direito a participar livremente da vida cultural da comunidade,
de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.
Artigo XXVIII – Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e
liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo XXIX – Todo homem tem deveres para com a comunidade, na qual é possível o livre e
pleno desenvolvimento de sua personalidade. No exercício de seus direitos e liberdades, todo
homem está sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de
assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer
às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Artigo XXX – Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o
reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa do direito de exercer qualquer atividade ou
praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer direitos e liberdades aqui estabelecidos.
2. Reprodução assistida – 1992
Igualmente assinada por Ivan de Araújo Moura Fé, presidente, e Hércules Sidnei Pires Liberal,
secretário, em 11 de novembro de 1992, a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal de
Medicina, sobre a utilização da Reprodução Assistida, tem o seguinte teor:
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições que lhe confere a Lei n. 3.268, de 30
de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto n. 44.045, de 19 de julho de 1958:
Considerando a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com
implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la.
Considerando que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários dos casos
de infertilidade humana.
Considerando que as técnicas de Reprodução Assistida têm possibilitado a procriação em
diversas circunstâncias em que isto não era possível pelos procedimentos tradicionais.
Considerando a necessidade de harmonizar o uso destas técnicas com os princípios da ética
médica.
Considerando, finalmente, o que ficou decidido na Sessão Plenária do Conselho Federal de
Medicina realizada em 11 de novembro de 1992, resolve.
Art. 1° — Adotar as Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida
anexas à presente Resolução, como dispositivo doentológico a ser seguido pelos médicos.
Art. 2° — Esta Resolução entra em vigor na data da sua publicação.
Normas técnicas
I. Princípios gerais
1. Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos
limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de
maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.
2. Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do
companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.
As clínicas, os centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle
de doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição e transferência de
material biológico humano para a usuária de técnicas de RA, devendo apresentar como requisitos
mínimos:
1. Um responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que será,
obrigatoriamente, um médico.
2. Um registro permanente (obtido mediante informações observados ou relatadas por fonte
competente) das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou recém-nascidos,
provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos
procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e pré-embriões.
3. Um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico
humano que será transferido aos usuários das técnicas de RA, com a finalidade precípua de evitar
a transmissão de doenças.
As clínicas, os centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criar
a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que
impeça ou contraindique a gestação na doadora genética.
1. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num
parentesco até segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho
Regional de Medicina.
2. A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
3. Lei n° 8.974, de 05 de Janeiro de 1995 –
Biossegurança
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º — Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das
técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização,
consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando proteger
a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente.
Art. 2º — As atividades e projetos, inclusive os de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento
tecnológico e de produção industrial que envolvam OGM no território brasileiro, ficam restritos ao
âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão tidas como responsáveis pela
obediência aos preceitos desta Lei e de sua regulamentação, bem como pelos eventuais efeitos
ou consequências advindas de seu descumprimento.
§ 1º — Para os fins desta Lei consideram-se atividades e projetos no âmbito de entidades como
sendo aqueles conduzidos em instalações próprias ou os desenvolvidos alhures sob a sua
responsabilidade técnica ou científica.
§ 2º — As atividades e projetos de que trata este artigo são vedados a pessoas físicas enquanto
agentes autônomos independentes, mesmo que mantenham vínculo empregatício ou qualquer outro
com pessoas jurídicas.
§ 3º — As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais,
financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos neste artigo, deverão
certificar-se da idoneidade técnico-científica e da plena adesão dos entes financiados,
patrocinados, conveniados ou contratados às normas e mecanismos de salvaguarda previstos
nesta Lei, para o que deverão exigir a apresentação do Certificado de Qualidade em
Biossegurança de que trata o art. 6º, inciso XIX, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos
eventuais efeitos advindos de seu descumprimento.
Art. 3º — Para os efeitos desta Lei, define-se:
I – organismo – toda entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de transferir material genético,
incluindo vírus, príons e outras classes que venham a ser conhecidas;
II – ácido desoxirribonucleico (ADN), ácido ribonucleico (ARN) – material genético que contém
informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência;
III – moléculas de ADN/ARN recombinante – aquelas manipuladas fora das células vivas,
mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético que possam multiplicar-se
em uma célula viva, ou ainda, as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação.
Consideram-se, ainda, os segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN
natural;
IV – organismo geneticamente modificado (OGM) – organismo cujo material genético
(ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética;
V – engenharia genética – atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinante.
Parágrafo único. Não são considerados como OGM aqueles resultantes de técnicas que
impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a
utilização de moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, tais como: fecundação in vitro,
conjugação, transdução, transformação, indução poliploide e qualquer outro processo natural;
Art. 4º — Esta Lei não se aplica quando a modificação genética for obtida através das seguintes
técnicas, desde que não impliquem a utilização de OGM como receptor ou doador:
I – mutagênese;
II – formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal;
III – fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida
mediante métodos tradicionais de cultivo;
IV – autoclonagem de organismos não-patogênicos que se processe de maneira natural.
Art. 5º – (VETADO)
Art. 6º – (VETADO)
Art. 7º Caberá, dentre outras atribuições, aos órgãos de fiscalização do Ministério da Saúde, do
Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária e do Ministério do Meio
Ambiente e da Amazônia Legal, dentro do campo de suas competências, observado o parecer
técnico conclusivo da CTNBio e os mecanismos estabelecidos na regulamentação desta Lei:
I – (VETADO)
II – a fiscalização e a monitorização de todas as atividades e projetos relacionados a OGM do
Grupo II;
III – a emissão do registro de produtos contendo OGM ou derivados de OGM a serem
comercializados para uso humano, animal ou em plantas, ou para a liberação no meio ambiente;
IV – a expedição de autorização para o funcionamento de laboratório, instituição ou empresa
que desenvolverá atividades relacionadas a OGM;
V – a emissão de autorização para a entrada no País de qualquer produto contendo OGM ou
derivado de OGM;
VI – manter cadastro de todas as Instituições e profissionais que realizem atividades e projetos
relacionados a OGM no território nacional;
VII – encaminhar à CTNBio, para emissão de parecer técnico, todos os processos relativos a
projetos e atividades que envolvam OGM;
VIII – encaminhar para publicação no Diário Oficial da União resultado dos processos que lhe
forem submetidos a julgamento, bem como a conclusão do parecer técnico;
IX – aplicar as penalidades de que trata esta Lei nos artigos 11 e 12. Art. 8º – É vedado, nas
atividades relacionadas a OGM:
I – qualquer manipulação genética de organismos vivos ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural
ou recombinante, realizados em desacordo com as normas previstas nesta Lei:
II – a manipulação genética de células germinais humanas;
III – a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos
genéticos, respeitando-se princípios éticos tais como o princípio de autonomia e o princípio de
beneficência, de acordo com o art. 6é, inciso I V, e com a aprovação prévia da CTNBio;
IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir
como material biológico disponível;
V – a intervenção in vivo em material genético de animais, excetuados os casos em que tais
intervenções se constituam em avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento
tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio da responsabilidade e o
princípio da prudência, e com aprovação prévia da CTNBio;
VI – a liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM em desacordo com as normas
estabelecidas pela CTNBio e constantes na regulamentação desta Lei.
§ 1º – Os produtos contendo OGM, destinados à comercialização ou industrialização,
provenientes de outros países, só poderão ser introduzidos no Brasil após o parecer prévio
conclusivo da CTNBio e a autorização do órgão de fiscalização competente, levando-se em
consideração pareceres técnicos de outros países, quando disponíveis.
§ 2º – Os produtos contendo OGM, pertencentes ao Grupo é conforme definido no Anexo I desta
Lei, só poderão ser introduzidos no Brasil após o parecer prévio conclusivo da CTNBio e a
autorização do órgão de fiscalização competente.
§ 3º – (VETADO)
Art. 9º – Toda entidade que utilizar técnicas e métodos de engenharia genética deverá criar uma
Comissão Interna de Biossegurança (CIBio), além de indicar um técnico principal responsável por
cada projeto específico.
Art. 10º – Compete à Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) no âmbito de sua Instituição:
I – manter informados os trabalhadores, de qualquer pessoa e a coletividade, quando suscetíveis
de serem afetados pela atividade, sobre todas as questões relacionadas com a saúde e a
segurança, bem como sobre os procedimentos em caso de acidentes;
II – estabelecer programas preventivos e de inspeção para garantir o funcionamento das
instalações sob sua responsabilidade, dentro dos padrões e normas de biossegurança, definidos
pela CTNBio na regulamentação desta Lei;
III – encaminhar à CTNBio os documentos cuja relação será estabelecida na regulamentação
desta Lei, visando a sua análise e a autorização do órgão competente quando for o caso;
IV – manter registro do acompanhamento individual de cada atividade ou projeto em
desenvolvimento envolvendo OGM;
V – notificar à CTNBio, às autoridades de Saúde Pública e às entidades de trabalhadores, o
resultado de avaliações de risco a que estão submetidas as pessoas expostas, bem como
qualquer acidente ou incidente que possa provocar a disseminação de agente biológico;
VI – investigar a ocorrência de acidentes e as enfermidades possivelmente relacionados a
OGM, notificando suas conclusões e providências à CTNBio.
Art. 11º – Constitui infração, para os efeitos desta Lei, toda ação ou omissão que importe na
inobservância de preceitos nela estabelecidos, com exceção dos parágrafos 1º e 2º e dos incisos
de é a VI do art. 8é, ou na desobediência às determinações de caráter normativo dos órgãos ou
das autoridades administrativas competentes.
Art. 12º – Fica a CTNBio autorizada a definir valores de multas a partir de 16.110,80 UFIR, a
serem aplicadas pelos órgãos de fiscalização referidos no art. 7é, proporcionalmente ao dano
direto ou indireto, nas seguintes infrações:
I – não obedecer às normas e aos padrões de biossegurança vigentes;
II – implementar projeto sem providenciar o prévio cadastramento da entidade dedicada à
pesquisa e manipulação de OGM, e de seu responsável técnico, bem como da CTNBio;
III – liberar no meio ambiente qualquer OGM sem aguardar sua prévia aprovação, mediante
publicação no Diário Oficial da União;
IV – operar os laboratórios que manipulam OGM sem observar as normas de biossegurança
estabelecidas na regulamentação desta Lei;
V – não investigar, ou fazê-lo de forma incompleta, os acidentes ocorridos no curso de
pesquisas e projetos na área de engenharia genética, ou não enviar relatório respectivo à
autoridade competente no prazo máximo de 5 (cinco) dias a contar da data de transcorrido o
evento;
VI – implementar projeto sem manter registro de seu acompanhamento individual;
VII – deixar de notificar, ou fazê-lo de forma não imediata, à CTNBio, e às autoridades da Saúde
Pública, sobre acidente que possa provocar a disseminação de OGM;
VIII – não adotar os meios necessários à plena informação da CTNBio, das autoridades da
Saúde Pública, da coletividade, e dos demais empregados da instituição ou empresa, sobre os
riscos a que estão submetidos, bem como os procedimentos a serem tomados, no caso de
acidentes;
IX – qualquer manipulação genética de organismo vivo ou manejo in vitro de ADN/ARN natural
ou recombinante, realizados em desacordo com as normas previstas nesta Lei e na sua
regulamentação.
§ 1º – No caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
§ 2º – No caso de infração continuada, caracterizada pela permanência da ação ou omissão
inicialmente punida, será a respectiva penalidade aplicada diariamente até cessar sua causa, sem
prejuízo da autoridade competente, podendo paralisar a atividade imediatamente e/ou interditar o
laboratório ou a instituição ou empresa responsável.
Art. 13º – Constituem crimes:
I – a manipulação genética de células germinais humanas;
II – a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos
genéticos, respeitando-se princípios éticos tais como o princípio de autonomia e o princípio de
beneficência, e com a aprovação prévia da CTNBio;
Pena – detenção de três meses a um ano.
§ 1º – Se resultar em:
a) incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias;
b) perigo de vida;
c) debilidade permanente de membro, sentido ou função;
d) aceleração de parto;
Pena – reclusão de um a cinco anos.
§ 2º – Se resultar em:
a) incapacidade permanente para o trabalho;
b) enfermidade incurável;
c) perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
d) deformidade permanente;
e) aborto;
Pena – reclusão de dois a oito anos.
§ 3º – Se resultar em morte;
Pena – reclusão de seis a vinte anos.
III – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem
como material biológico disponível;
Pena – reclusão de seis a 20 anos.
IV – a intervenção in vivo em material genético de animais, excetuados os casos em que tais
intervenções se constituam em avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento
tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio da responsabilidade e o
princípio da prudência, e com aprovação prévia da CTNBio;
Pena – reclusão de três meses a um ano.
V – a liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM em desacordo com as normas
estabelecidas pela CTNBio e constantes na regulamentação desta Lei.
Pena – reclusão de um a três anos.
§ 1º – Se resultar em:
a) lesões corporais leves;
b) perigo de vida;
c) debilidade permanente de membro, sentido ou função;
d) aceleração de parto;
e) dano à propriedade alheia;
f) dano ao meio ambiente;
Pena – reclusão de dois a cinco anos.
§ 2º – Se resultar em:
a) incapacidade permanente para o trabalho;
b) enfermidade incurável;
c) perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
d) deformidade permanente;
e) aborto;
f) inutilização da propriedade alheia;
g) dano grave ao meio ambiente; Pena – reclusão de dois a oito anos;
§ 3º – Se resultar em morte;
Pena – reclusão de seis a 20 anos.
§ 4º – Se a liberação, o descarte no meio ambiente ou a introdução no meio de OGM for
culposo:
Pena – reclusão de um a dois anos.
§ 5º — Se a liberação, o descarte no meio ambiente ou a introdução no País de OGM for
culposa, a pena será aumentada de um terço se o crime resultar de inobservância de regra técnica
de profissão.
§ 6º – O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de
responsabilidade civil e criminal por danos causados ao homem, aos animais, às plantas e ao
meio ambiente, em face do descumprimento desta Lei.
Art. 14º – Sem obstar a aplicação das penas previstas nesta Lei, é o autor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio
ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.
Disposições Gerais e Transitórias
Art. 15º – Esta Lei será regulamentada no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de sua
publicação.
Art. 16º – As entidades que estiverem desenvolvendo atividades reguladas por esta Lei na data
de sua publicação, deverão adequar-se às suas disposições no prazo de 120 dias, contados da
publicação do decreto que a regulamentar, bem como apresentar relatório circunstanciado dos
produtos existentes, pesquisas ou projetos em andamento envolvendo OGM.
Parágrafo único. Verificada a existência de riscos graves para a saúde do homem ou dos
animais, para as plantas ou para o meio ambiente, a CTNBio determinará a paralisação imediata
da atividade.
Art. 17º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 18º – Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 5 de janeiro de 1995; 174º da Independência e 107º da República
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Nelson Jobim
José Eduardo de Andrade Vieira
Paulo Renato Souza
Adib Jatene
José Israel Vargas
Gustavo Krause
Anexo I
Para efeitos desta Lei, os organismos geneticamente modificados classificam-se da seguinte
maneira:
Grupo I: compreendem os organismos que preenchem os seguintes critérios:
A. Organismo receptor ou parental
– não-patogênico;
– isento de agentes adventícios;
– com amplo histórico documentado de utilização segura, ou a incorporação de barreiras
biológicas que, sem interferir no crescimento ótimo em reator ou fermentador, permita uma
sobrevivência e multiplicação limitadas, sem efeitos negativos para o meio ambiente.
B. Vetor/inserto
– deve ser adequadamente caracterizado e desprovido de sequências nocivas conhecidas;
– deve ser de tamanho limitado, no que for possível, às sequências genéticas necessárias para
realizar a função projetada;
– não deve incrementar a estabilidade do organismo modificado no meio ambiente;
– deve ser escassamente mobilizável;
– não deve transmitir nenhum marcador de resistência a organismos que, de acordo com os
conhecimentos disponíveis, não o adquira de forma natural.
D. Outros organismos geneticamente modificados que poderiam se incluir no Grupo I, desde que
reúnam as condições estipuladas no item C anterior:
– micro-organismos construídos inteiramente a partir de um único receptor procariótico (incluindo
plasmídeos e vírus endógenos) ou de um único receptor eucariótico (incluindo seus cloroplastos,
mitocôndrias e plasmídeos, mas excluindo os vírus) e organismos compostos inteiramente por
sequências genéticas de diferentes espécies que troquem tais sequências mediante processos
fisiológicos conhecidos.
Grupo II: todos aqueles não incluídos no Grupo I.
4. Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde/MS
I. Preâmbulo
II.2. Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o
ser humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de
informações ou materiais.
II.8. Risco da pesquisa – possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual,
social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente.
II.12. Indenização – cobertura material, em reparação a dano imediato ou tardio, causado pela
pesquisa ao ser humano a ela submetida.
II.15. Vulnerabilidade – refere-se a estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou
motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao
consentimento livre e esclarecido.
II.16. Incapacidade – refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil
para dar seu consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado de acordo
com a legislação brasileira vigente.
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais quanto potenciais, individuais ou coletivos
(beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
III.2. Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não
esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa e, portanto,
deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução. Os procedimentos referidos incluem, entre
outros, os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, socióloga, econômica,
física, psíquica ou biológica, sejam elas farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade
preventiva, diagnóstica ou terapêutica.
a) ser adequada aos princípios que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a
incertezas;
c) ser realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido
por outro meio;
d) prevalecer sempre as probabilidades dos benefícios esperados sobre os riscos previsíveis;
f) ter plenamente justificada, quando for o caso, a utilização de placebo, em termos de não
maleficência e de necessidade metodológica;
g) contar com o consentimento livre e esclarecido do sujeito da pesquisa e/ou seu representante
legal;
l) respeitar sempre os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como os
hábitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades;
n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as
comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver
benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo
de pesquisa deve incluir, sempre que possível, disposições para comunicar tal benefício às
pessoas e/ou comunidades;
Respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento
livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais
manifestam anuência à participação na pesquisa.
IV.1. Exige-se que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que se inclua
necessariamente os seguintes aspectos:
g) a garantia de sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados confidenciais
envolvidos na pesquisa;
a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada uma das
exigências acima;
c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos
da pesquisa ou por seus representantes legais; e
d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retirada pelo sujeito da pesquisa ou por seu
representante legal e uma arquivada pelo pesquisador.
IV.3. Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessários
para o adequado consentimento, deve-se ainda observar:
b) a liberdade do consentimento deverá ser particularmente para aqueles sujeitos que, embora
adultos e capazes, estejam expostos a condicionamentos específicos ou à influência de
autoridade, especialmente estudantes, militares, empregados, presidiários, internos em centros de
readaptação, casas, abrigos, asilos, associações religiosas ou semelhantes, assegurando-lhes a
inteira liberdade de participar ou não da pesquisa, sem quaisquer represálias;
c) nos casos em que seja impossível registrar o consentimento livre e esclarecido, tal fato deve
ser devidamente documentado, com explicação das causas da impossibilidade, e parecer do
Comitê de Ética em Pesquisa;
f) quando o mérito da pesquisa depender de alguma restrição de informação ao sujeito, tal fato
deve ser devidamente explicitado e justificado pelo pesquisador e submetido ao Comitê de Ética
em Pesquisa. Os dados obtidos a partir dos sujeitos da pesquisa não poderão ser usados para
outros fins que os não previstos no protocolo e/ou no consentimento.
V. Riscos e benefícios
Considera-se que toda pesquisa envolvendo seres humanos envolve risco. O dano eventual
poderá ser imediato ou tardio, comprometendo o indivíduo ou a coletividade.
VI. Não obstante, os riscos potenciais, as pesquisas envolvendo seres humanos serão
admissíveis quando:
V.4. O Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição deverá ser informado de todos os efeitos
adversos ou fatos relevantes que alterem o curso normal do estudo.
V.6. Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou não no termo
de consentimento e resultante de sua participação, além do direito à assistência integral, têm
direito à indenização.
V.7. Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao
direito de indenização por dano. O formulário do consentimento livre e esclarecido não deve conter
nenhuma ressalva que afaste essa responsabilidade ou que implique ao sujeito da pesquisa abrir
mão de seus direitos legais, incluindo o direito de procurar obter indenização por danos eventuais.
Protocolo a ser submetido à revisão ética somente poderá ser apreciado se estiver instruído
com os seguintes documentos, em português:
VI.1. folha de rosto: título do projeto, nome, número da carteira de identidade, CPF, telefone e
endereço para correspondência do pesquisador responsável e do patrocinador, nome e assinatura
dos dirigentes da instituição e/ou organização;
VI.2. descrição da pesquisa, compreendendo os seguintes itens:
j) orçamento financeiro detalhado da pesquisa: recursos, fontes e destinação, bem como a forma
e o valor da remuneração do pesquisador;
l) declaração de que os resultados da pesquisa serão tornados públicos, sejam eles favoráveis
ou não; e
Toda pesquisa envolvendo seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um Comitê de
Ética em Pesquisa:
VII.1. As instituições nas quais se realizem pesquisas envolvendo seres humanos deverão
constituir um ou mais de um Comitê de Ética em Pesquisa – CEP, conforme suas necessidades.
VII.4. Composição – O CEP deverá ser constituído por colegiado com número não inferior a 7
(sete) membros. Sua constituição deverá incluir a participação de profissionais da área de saúde,
das ciências exatas, sociais e humanas, incluindo, por exemplo, juristas, teólogos, sociólogos,
filósofos, bioeticistas e, pelo menos, um membro da sociedade representando os usuários da
instituição. Poderá variar na sua composição, dependendo das especificidades da instituição e
das linhas de pesquisa a serem analisadas.
VII.5. Terá sempre caráter multi e transdisciplinar, não devendo haver mais que metade de seus
membros pertencentes à mesma categoria profissional, participando pessoas dos dois sexos.
Poderá ainda contar com consultores “ad hoc”, pessoas pertencentes ou não à instituição com a
finalidade de fornecer subsídios técnicos.
VII.6. No caso de pesquisas em grupos vulneráveis, comunidades e coletividades, deverá ser
convidada um representante como membro “ad hoc” do CEP, para participar da análise do projeto
específico.
VII.7. Nas pesquisas em população indígena deverá participar um consultor familiarizado com os
costumes e tradições da comunidade.
VII.9. Mandato e escolha dos membros – A composição de cada CEP deverá ser definida a
critério da instituição, sendo pelo menos, metade dos membros com experiência em pesquisa,
eleitos pelos seus pares.
A escolha da coordenação de cada Comitê deverá ser feita pelos membros que compõem o
colegiado, durante a primeira reunião de trabalho. Será de três anos a duração do mandato, sendo
permitida recondução.
VII.12. Liberdade de trabalho – Os membros dos CEPs deverão ter total independência na
tomada das decisões no exercício das suas funções, mantendo sob caráter confidencial as
informações recebidas. Deste modo, não podem sofrer qualquer tipo de pressão por parte de
superiores hierárquicos ou pelos interessados em determinada pesquisa, devem isentar-se de
envolvimento financeiro e não devem estar submetidos a conflito de interesse.
b) emitir parecer consubstanciado por escrito, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, identificando
com clareza o ensaio, documentos estudados e datas de revisão. A revisão de cada protocolo
culminará com seu enquadramento em uma das seguintes categorias:
aprovado
com pendência: quando o Comitê considera o protocolo como aceitável, porém identifica
determinados problemas no protocolo, no formulário do consentimento ou em ambos, e
recomenda uma revisão específica ou solicita uma modificação ou informação relevante, que
deverá ser atendida em 60 (sessenta) dias pelos pesquisadores;
retirado: quando, transcorrido o prazo, o protocolo permanece pendente;
não aprovado; e
aprovado e encaminhado, com o devido parecer, para apreciação pela Comissão nacional
de Ética e Pesquisa-CONEP/MS, nos casos previstos no capítulo VIII, item 4.c.
a) a revisão ética de toda e qualquer proposta de pesquisa envolvendo seres humanos não
poderá ser dissociada da sua análise científica. Pesquisa que não se faça acompanhar do
respectivo protocolo não deve ser analisado pelo Comitê.
VIII.1. Composição: A CONEP terá composição multi e transdisciplinar, com pessoas de ambos
os sexos e deverá ser composta por 13 (treze) membros titulares e seus suplentes, sendo 05
(cinco) deles personalidades destacadas no campo da ética na pesquisa e na saúde e 08 (oito)
personalidades com destacada atuação nos campos teológico, jurídico e outros, assegurando-se
de que pelo menos um seja da área de gestão da saúde.
Os membros serão selecionados, a partir de listas indicativas elaboradas pelas instituições que
possuem CEP registrados na CONEP, sendo que 07 (sete) serão escolhidos pelo Conselho
Nacional de Saúde e 06 (seis) serão definidos por sorteio.
Poderá contar, também, com consultores e membros “ad hoc”, assegurada a representação dos
usuários.
VIII.3. O mandato dos membros do CONEP será de quatro anos com renovação alternada a
cada dois anos, de sete ou seis de seus membros.
VIII.4. Atribuições do CONEP – Compete à CONEP o exame dos aspectos éticos da pesquisa
envolvendo seres humanos, bem como, a adequação e atualização das normas atinentes. A
CONEP consultará a sociedade sempre que julgar necessário, cabendo-lhe, entre outras, as
seguintes atribuições:
1. genética humana;
2. reprodução humana;
3. fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos novos (fases I, II e III) ou não
registrados no país (ainda que em fase IV) ou quando a pesquisa for referente a seu uso com
modalidades, indicações, doses ou vias de administração diferentes daquelas
estabelecidas, incluindo seu emprego em combinações;
4. equipamentos, insumos e dispositivos para a saúde novos, ou não registrados no país;
5. novos procedimentos ainda não consagrados na literatura;
6. população indígena;
7. projetos que envolvam aspectos de biossegurança;
8. pesquisas coordenadas do exterior ou com participação estrangeira e pesquisas que
envolvam remessa de material biológico para o exterior; e
9. projetos que, a critério do CEP, devidamente justificado, sejam julgados merecedores de
análise pela CONEP;
10. prover normas específicas no campo da ética em pesquisa, inclusive nas áreas temáticas
especiais, bem como recomendações para aplicação das mesmas;
h) informar e assessorar o MS, o CNS e outras instâncias do SUS, bem como do governo e da
sociedade, sobre questões éticas relativas à pesquisa em seres humanos;
i) divulgar esta e outras normas relativas à ética em pesquisa envolvendo seres humanos;
j) o CONEP, juntamente com outros setores do Ministério da Saúde, estabelecerá normas e
critérios para o credenciamento de Centres de Pesquisa. Este credenciamento deverá ser
proposto pelos setores do Ministério da Saúde, de acordo com suas necessidades, e aprovado
pelo Conselho Nacional de Saúde; e
c) relatório anual de suas atividades, incluindo sumário dos CEP estabelecidos e dos projetos
analisados.
IX. Operacionalização
IX.1. Todo e qualquer projeto de pesquisa envolvendo seres humanos deverá obedecer às
recomendações desta Resolução e dos documentos endossados em seu preâmbulo. A
responsabilidade do pesquisador é indelegável, indeclinável e compreende os aspectos éticos e
legais.
e) manter em arquivo, sob sua guarda, por 5 anos, os dados da pesquisa, contendo fichas
individuais e todos os demais documentos recomendados pelo CEP;
IX.3. O Comitê de Ética em Pesquisa Institucional deverá estar registrado junto à CONEP/MS.
IX.4. Uma vez aprovado o projeto, o CVEP passa a ser corresponsável no que se refere aos
aspectos éticos da pesquisa.
IX.5. Consideram-se autorizados para execução, os projetos aprovados pelo CEP, exceto os
que se enquadrarem nas áreas temáticas especiais, os quais, após aprovação pelo CEP
institucional deverão ser enviados à CONEP/MS, que dará o devido encaminhamento.
IX.6. Pesquisas com novos medicamentos, vacinas, testes diagnósticos, equipamentos e
dispositivos para saúde deverão ser encaminhados do CEP à CONEP/MS e desta, após parecer,
à Secretaria de Vigilância Sanitária.
IX.7. As agências de fomento a pesquisas e o corpo editorial das revistas científicas deverão
exigir documentação comprobatória de aprovação do projeto pelo CEO e/ou CONEP, quando for o
caso.
X. Disposições transitórias
X.l. O Grupo Executivo de Trabalho – GET, constituído através da Resolução CNS 170/95,
assumirá as atribuições da CONEP até sua constituição, responsabilizando-se por:
X.3. Os CEP das instituições devem proceder, no prazo de 90 (noventa) dias, ao levantamento e
análise, se for caso, dos projetos de pesquisa em seres humanos já em andamento, devendo
encaminhar à CONEP/MS. A relação dos mesmos.
Artigo 1º
O genoma humano subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e
também ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Num sentido simbólico, é a
herança da humanidade.
Artigo 2º
a) Todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos humanos,
independentemente de suas características genéticas.
b) Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas características
genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade.
Artigo 3º
O genoma humano, que evolui por sua própria natureza, é sujeito a mutações. Ele contém
potencialidades que são expressas de maneira diferente segundo o ambiente natural e social de
cada indivíduo, incluindo o estado de saúde do indivíduo, suas condições de vida, nutrição e
educação.
Artigo 4º
O genoma humano em seu estado natural não deve dar lugar a ganhos financeiros.
Artigo 5º
a) Pesquisas, tratamento ou diagnóstico que afetem o genoma de um indivíduo devem ser
empreendidas somente após a rigorosa avaliação prévia dos potenciais riscos e benefícios a
serem incorridos, e em conformidade com quaisquer outras exigências da legislação nacional.
b) Em todos os casos é obrigatório o consentimento prévio, livre e informado da pessoa
envolvida. Se esta não se encontrar em condições de consentir, o consentimento ou autorização
deve ser obtido na maneira prevista pela lei, orientada pelo melhor interesse da pessoa.
c) Será respeitado o direito de cada indivíduo de decidir se será ou não informado dos
resultados de seus exames genéticos e das consequências resultantes.
d) No caso de pesquisas, os protocolos serão, além disso, submetidos a uma revisão prévia em
conformidade com padrões ou diretrizes nacionais e internacionais relevantes relativos a
pesquisas.
e) Se, de acordo com a lei, uma pessoa não tiver a capacidade de consentir, as pesquisas
relativas a seu genoma só poderão ser empreendidas com vistas a beneficiar diretamente sua
própria saúde, sujeitas à autorização e às condições protetoras descritas pela lei. As pesquisas
que não previrem um benefício direto à saúde somente poderão ser empreendidas a título de
exceção, com restrições máximas, expondo a pessoa apenas a riscos e ônus mínimos e se as
pesquisas visarem contribuir para o benefício da saúde de outras pessoas que se enquadram na
mesma categoria de idade ou que tenham as mesmas condições genéticas, sujeitas às condições
previstas em lei, e desde que tais pesquisas sejam compatíveis com a proteção dos direitos
humanos do indivíduo.
Artigo 6º
Ninguém será sujeito à discriminação baseada em características genéticas que vise infringir ou
exerça o efeito de infringir os direitos humanos, as liberdades fundamentais ou a dignidade
humana.
Artigo 7º
Quaisquer dados genéticos associados a uma pessoa identificável e armazenados ou
processados para fins de pesquisa ou para qualquer outra finalidade devem ser mantidos em
sigilo, nas condições previstas em lei.
Artigo 8º
Todo indivíduo terá o direito, segundo a lei internacional e nacional, à justa reparação por danos
sofridos em consequência direta e determinante de uma intervenção que tenha afetado seu
genoma.
Artigo 9º
Com o objetivo de proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, as limitações
aos princípios do consentimento e do sigilo só poderão ser prescritas por lei, por razões de força
maior, dentro dos limites da legislação pública internacional e da lei internacional dos direitos
humanos.
Artigo 10º
Nenhuma pesquisa ou aplicação de pesquisa relativa ao genoma humano, em especial nos
campos da biologia, genética e medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos,
às liberdades fundamentais e à dignidade humana dos indivíduos ou, quando for o caso, de grupos
de pessoas.
Artigo 11º
Não serão permitidas práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem
reprodutiva de seres humanos. Os Estados e as organizações internacionais competentes são
convidados a cooperar na identificação de tais práticas e a determinar, nos níveis nacional ou
internacional, as medidas apropriadas a serem tomadas para assegurar o respeito pelos
princípios expostos nesta Declaração.
Artigo 12º
a) Os benefícios decorrentes dos avanços em biologia, genética e medicina, relativos ao
genoma humano, deverão ser colocados à disposição de todos, com a devida atenção para a
dignidade e os direitos humanos de cada indivíduo.
Artigo 13º
As responsabilidades inerentes às atividades dos pesquisadores, incluindo o cuidado, a cautela,
a honestidade intelectual e a integridade na realização de suas pesquisas e também na
apresentação e na utilização de suas descobertas, devem ser objeto de atenção especial no
quadro das pesquisas com o genoma humano, devido a suas implicações éticas e sociais. Os
responsáveis pelas políticas científicas, em âmbito público e privado, também incorrem em
responsabilidades especiais a esse respeito.
Artigo 14º
Os Estados devem tomar medidas apropriadas para fomentar as condições intelectuais e
materiais favoráveis à liberdade na realização de pesquisas sobre o genoma humano e para levar
em conta as implicações éticas, legais, sociais e econômicas de tais pesquisas, com base nos
princípios expostos nesta Declaração.
Artigo 15º
Os Estados devem tomar as medidas necessárias para prover estruturas para o livre exercício
das pesquisas com o genoma humano, levando devidamente em conta os princípios expostos
nesta Declaração, para salvaguardar o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais
e à dignidade humana e para proteger a saúde pública. Eles devem buscar assegurar que os
resultados das pesquisas não sejam utilizados para fins não-pacíficos.
Artigo 16º
Os Estados devem reconhecer a importância de promover, nos diversos níveis apropriados, a
criação de comitês de ética independentes, multidisciplinares e pluralistas, para avaliar as
questões éticas, legais e sociais levantadas pelas pesquisas com o genoma humano e as
aplicações das mesmas.
Artigo 18º
Os Estados devem envidar todos os esforços, levando devidamente em conta os princípios
expostos nesta Declaração, para continuar fomentando a disseminação internacional do
conhecimento científico relativo ao genoma humano, a diversidade humana e as pesquisas
genéticas e, a esse respeito, para fomentar a cooperação científica e cultural, especialmente entre
os países industrializados e os países em desenvolvimento.
Artigo 19º
a) No quadro da cooperação internacional com os países em desenvolvimento, os Estados
devem procurar encorajar:
1. que seja garantida a avaliação dos riscos e benefícios das pesquisas com o genoma
humano, e que sejam impedidos os abusos;
2. que seja desenvolvida e fortalecida a capacidade dos países em desenvolvimento de
promover pesquisas sobre biologia e genética humana, levando em consideração os
problemas específicos desses países;
3. que os países em desenvolvimento possam se beneficiar das conquistas da pesquisa
científica e tecnológica, para que sua utilização em favor do progresso econômico e social
possa ser feita de modo a beneficiar todos;
4. que seja promovido o livre intercâmbio de conhecimentos e informações científicas nas áreas
de biologia, genética e medicina.
Artigo 20º
Os Estados devem tomar medidas apropriadas para promover os princípios expostos nesta
Declaração, por meios educativos e relevantes, inclusive, “inter alia”, por meio da realização de
pesquisas e treinamento em campos interdisciplinares e da promoção da educação em bioética,
em todos os níveis, dirigida em especial aos responsáveis pelas políticas científicas.
Artigo 21º
Os Estados devem tomar medidas apropriadas para encorajar outras formas de pesquisa,
treinamento e disseminação de informações, meios estes que conduzam à conscientização da
sociedade e de todos seus membros quanto as suas responsabilidades com relação às questões
fundamentais relacionadas à defesa da dignidade humana que possam ser levantadas pelas
pesquisas em biologia, genética e medicina e às aplicações dessas pesquisas. Também devem
se propor a facilitar a discussão international aberta desse tema, assegurando a livre expressão
das diversas opiniões socioculturais, religiosas e filosóficas.
Implementação da Declaração
Artigo 22º
Os Estados devem envidar todos os esforços para promover os princípios expostos nesta
Declaração e devem promover sua implementação por meio de todas as medidas apropriadas.
Artigo 23º
Os Estados devem tomar as medidas apropriadas para promover, por meio da educação, da
formação e da disseminação da informação, o respeito pelos princípios acima mencionados e
para fomentar seu reconhecimento e sua aplicação efetiva. Os Estados também devem incentivar
os intercâmbios e as redes entre comitês éticos independentes, à medida que forem criados, com
vistas a fomentar uma cooperação integral entre eles.
Artigo 24º
O Comitê Internacional de Bioética da Unesco deve contribuir para a disseminação dos
princípios expostos nesta Declaração e para fomentar o estudo detalhado das questões
levantadas por suas aplicações e pela evolução das tecnologias em questão. Deve organizar
consultas apropriadas com as partes envolvidas, tais como os grupos vulneráveis. Deve fazer
recomendações, de acordo com os procedimentos estatutários da Unesco, dirigidas à
Conferência Geral, e emitir conselhos relativos à implementação desta Declaração, relativos
especialmente à identificação de práticas que possam ser contrárias à dignidade humana, tais
como intervenções nas células germinativas.
Artigo 25º
Nada do que está contido nesta Declaração pode ser interpretado como uma possível
justificativa para que qualquer Estado, grupo ou pessoa se engaje em qualquer atividade ou realize
qualquer ato contrário aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, incluindo, “inter alia”, os
princípios expostos nesta Declaração.
6. Declaração sobre a produção e o uso científico e
terapêutico das células estaminais embrionárias
humanas 2001
A finalidade deste documento é dar uma contribuição ao debate em curso na literatura científica
e ética e na opinião pública sobre a produção e a utilização das células estaminais embrionárias.
De fato, considerando a importância cada vez maior que vem assumindo o debate acerca de seus
limites e licitude, impõe-se uma reflexão que coloque em evidência suas explicações éticas.
Na primeira parte, serão brevemente expostos os dados mais recentes fornecidos pela ciência
sobre as células estaminais e pela biotecnologia, a propósito de sua produção e uso. Na segunda
parte, serão evidenciados os problemas éticos mais relevantes levantados por essas novas
descobertas e aplicações.
Aspectos científicos
Uma definição, vulgarmente aceita, de “célula estaminal” – embora alguns aspectos requeiram
maior aprofundamento – é esta: uma célula que tem duas características:
Há cerca de trinta anos estas células tem constituído um amplo campo de pesquisa, quer em
tecidos adultos1, quer em tecidos embrionários, quer ainda na cultura in vitro de células estaminais
embrionárias de cobaias2. Mas a atenção pública concentrou-se recentemente nelas por causa de
um novo objetivo alcançado: a produção de células estaminais embrionárias humanas.
Hoje, a preparação de células estaminais embrionárias humanas (ES, ESc, Embryo Stem
cells) implica3:
5. a repetida subcultura dessas colônias, que leva à formação de linhas celulares capazes de
se multiplicarem indefinidamente, conservando as características de células estaminais (ES)
durante meses e anos.
Todavia, essas ES constituem apenas o ponto de partida para a preparação das linhas de
células diferenciadas, ou seja, de células com características próprias dos distintos tecidos
(musculares, nervosos, epiteliais, hemáticos, germinais etc.). Os métodos para obtê-las ainda
estão em fase de estudo4; mas a inoculação das ES humanas em cobaias (ratos) ou a sua cultura
in vitro em circunstâncias controladas até à sua combinação demonstrou que elas são capazes de
dar origem a células diferenciadas que derivariam, numa evolução normal, dos três estratos
embrionários: endoderma (epitélio intestinal), mesoderma (cartilagem, osso, músculo liso e
estriado) e exoderma (epitélio neural, epitélio escamoso)5.
Esses resultados abalaram não só o mundo científico e biotecnológico – particularmente médico
e farmacológico –, mas também o mundo comercial e dos meios de comunicação: grandes eram
as esperanças de que as aplicações daí derivadas haveriam de abrir sendas novas e mais
seguras para a terapia de graves doenças – sendas há muitos anos procuradas6. Mas, sobretudo,
foi abalado o mundo político7. De modo particular nos Estados Unidos – onde o Congresso já há
anos é contrário a sustentar com fundos federais pesquisas em que sejam destruídos embriões
humanos — fizeram-se sentir, além de outras, as fortes pressões do NIH (National Institutes of
Health), para obter fundos pelo menos para utilizar as células estaminais produzidas por grupos
privados, e as recomendações feitas pelo NBAC (National Bioethics Advisory Committee) –
instituído pelo Governo Federal para o estudo do problema –, para que sejam atribuídos fundos
públicos não apenas para pesquisa sobre células estaminais embrionárias, mas também para a
sua produção; mais ainda, insiste-se para que seja rescindida de vez a proibição legal vigente
relativa ao uso de fundos federais para a pesquisa sobre embriões humanos.
Registram-se pressões na mesma direção também na Inglaterra, no Japão, na Austrália.
A clonagem terapêutica
Tornava-se claro que o uso terapêutico das ES, como tais, possuía riscos notáveis, sendo ele,
como se constatou em experiências com ratos, causador de tumores. Assim, seria preciso
preparar linhas especializadas de células diferenciadas conforme a necessidade; e o tempo
requerido para obtê-las não era breve. Mas, ainda que fosse possível consegui-lo, seria muito difícil
ter a certeza da absoluta ausência de células estaminais durante a inoculação ou a implantação
terapêutica, com os respectivos riscos; além disso, ter-se-ia de recorrer a ulteriores tratamentos
para superar a incompatibilidade imunológica. Por esses motivos, foram propostas três vias de
“clonagem terapêutica”8, capazes de preparar células estaminais embrionárias humanas
pluripotenciadas com uma informação genética bem definida, para se obter depois a desejada
diferenciação.
Na fase atual, a pesquisa científica está mais inclinada para a primeira via, mas é óbvio, como
veremos, que as três soluções apontadas são inaceitáveis do ponto de vista moral.
Ao lonço desses 30 anos de estudos das células estaminais adultas (ASC – Adult Stem Cells)
ficou claro que existem em muitos tecidos adultos, células estaminais, mas capazes de dar origem
somente a células próprias de certo tecido, isto é, não se pensava na possibilidade de uma nova
programação delas. Nos anos mais recentes9, porém, descobriram-se também em vários tecidos
humanos células estaminais pluripotenciadas – na medula óssea (HSCs), no cérebro (NSCs), no
mesênquima (MSCs) de vários órgãos e no sangue do cordão umbilical (P/CB: Placental/Cord
Blood) —, isto é, células capazes de dar origem a outros tipos de célula, em sua maioria
hemáticas, musculares e nervosas. Descobriu-se como reconhecê-las, selecioná-las, ajudá-las a
desenvolver-se e levá-las a formar diversos tipos de célula madura por meio de fatores de
crescimento e outras proteínas regularizadoras. Aliás, foi já percorrido um notável caminho no
campo experimental, aplicando inclusive os métodos mais avançados de engenharia genética e de
biologia molecular para a análise do programa genético que opera nas células estaminais10, e
para a comutação de genes desejados em células estaminais ou progenitoras que, implantadas,
sejam capazes de devolver a tecidos doentes suas funções específicas11. Basta dizer, apoiado
nos textos transcritos, que, no homem, as células estaminais da medula óssea, de onde se formam
todas as várias linhas de células hemáticas, tem como sinal identificador a molécula CD34, e que,
depois de purificadas, são capazes de reconstruir toda a população hemática em pacientes que
recebem doses ablativas de radiações e de quimioterapia, e isso numa velocidade proporcional à
quantidade de células usadas. Além disso, já há indícios de como guiar o desenvolvimento de
células estaminais nervosas (NSCs) utilizando diversas proteínas – tais como a neurorregulina e a
proteína duas hosteomorfógena (BMP2, Bone Morphogenetic Protein 2) – que são capazes de
encaminhar as NSCs para se tornarem neurônios ou glúten (células neuronais de apoio, produtoras
de mielina) ou mesmo músculo liso.
A satisfação, embora prudente, resultante de muito dos trabalhos citados é um índice das
grandes promessas que as “células estaminais adultas” reservam para uma terapia eficaz de
muitas patologias. Assim D. J. Watt e G. E. Jones afirmam: “As células estaminais musculares, seja
de linha mioblástica embrionária, seja da adulta, podem tornar-se células da maior importância
para tecidos distintos do original, e ser a chave de futuras terapias, inclusive para doenças
diversas das de origem miógena” (p. 93); J. A. Nolta e D. B. Kohn ressaltam: “Os progressos no
uso da comutação genética nas células estaminais hematopoéticas permitiu iniciar experiências
clínicas. AS informações assim obtidas orientação avanços futuros. Em última análise, a terapia
genética poderá permitir o tratamento de doenças genéticas e adquiridas sem as complicações
dos transplantes de células alogênicas” (p. 460); e D.L. Clarke e J. Frisen confirmam: “Estes
estudos sugerem que as células estaminais nos diferentes tecidos adultos podem ser muito mais
semelhantes do que até hoje se pensava, às células embrionárias humanas, chegando a ter alguns
casos um repertório muito parecido”, e “demonstram que as células nervosas adultas possuem
uma ampla capacidade de desenvolvimento e são potencialmente aptas a ser usadas para
produzir uma variedade de tipos celulares para transplante em diversas doenças”.
Todos esses progressos e os resultados já alcançados no campo das células estaminais adultas
(ASC) deixam entrever não só sua grande plasticidade, mas também uma ampla possibilidade de
aplicações, presumivelmente não distintas das utilizações das células estaminais embrionárias
(ES), visto que a plasticidade depende em grande parte de uma informação genética, que pode
ser reprogramada.
Evidentemente, não é possível ainda confrontar os resultados terapêuticos real e possivelmente
alcançados utilizando as células estaminais embrionárias e as células estaminais adultas. Quanto
a estas, estão já em curso, em vários laboratórios farmacêuticos, experimentações clínicas12 que
deixam prever bons resultados e abrem sérias esperanças num futuro mais ou menos próximo.
Quanto às células estaminais embrionárias, embora várias tentativas experimentais tenham dado
sinais positivos13, sua aplicação no campo clínico – devido precisamente aos graves problemas
éticos e legais conexos – requer uma séria ponderação e um grande sentido de responsabilidade
diante da dignidade de todo o ser humano.
Problemas éticos
1. Partindo de uma completa análise biológica, o embrião humano vivo é, a partir da fusão dos
gametas, um sujeito humano com uma identidade bem definida, que começa, a partir
daquele instante, o seu próprio desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual, de forma
que, em nenhuma etapa posterior, se pode considerar como um simples aglomerado de
células14.
2. Conseqüentemente, como “indivíduo humano”, tem direito à sua própria vida: e por isso,
toda a intervenção que não seja em benefício do próprio embrião constitui um ato que viola
este direito. A teologia moral sempre ensinou que, no caso do “jus certum tertii”, o sistema
do probabilismo não é aplicável15.
3. Assim, a ablação da massa celular interna (ICM) do blastócito, que lesiona grave e
irremediavelmente o embrião humano, interrompendo sua evolução, é um ato gravemente
imoral e portanto, gravemente ilícito.
4. 4. Nenhum fim considerado bom, como seja o uso das células estaminais obtidas a partir
deles para a preparação de outras células diferenciadas para procedimentos terapêuticos há
muito esperados, pode justificar tal intervenção . Um fim bom não torna boa uma ação que,
em si mesma, é má.
5. Para um católico, tal posição está confirmada pelo Magistério explícito da Igreja que, na
encíclica Evangelium vitae – referindo-se à Instrução Donum vitae da Congregação para a
Doutrina da Fé —, afirma: “A Igreja sempre ensinou – e ensina – que tem de ser garantido ao
fruto da geração humana desde o primeiro instante de sua existência, o respeito
incondicional que é moralmente devido ao ser humano em sua totalidade e unidade corporal
e espiritual: ‘O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua
concepção e, por isso, desde esse mesmo momento devem lhe ser reconhecidos os direitos
da pessoa, entre os quais, e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano
inocente à vida’” (n.60)16
O segundo problema ético pode ser formulado assim: “É moralmente lícito efetuar a
chamada ‘clonagem terapêutica’ por meio da produção de embriões humanos clonados e sua
posterior destruição para a produção de ES”?
“A resposta é negativa”, pela seguinte razão:
Todo o tipo de clonagem terapêutica que implique a produção de embriões humanos e sua
posterior destruição com o fim de obter células estaminais é ilícita; cai-se no mesmo problema
ético anteriormente exposto, que não pode ter senão uma resposta negativa.
O terceiro problema ético pode-se formular assim: “É moralmente lícito utilizar as ES e as
células diferenciadas delas obtidas que sejam eventualmente fornecidas por outros
pesquisadores ou encontradas à venda”?
“A resposta é negativa”, porque:
Para além de compartilhar, formalmente ou não, a intenção moralmente ilícita do agente
principal, no caso em exame dá-se a cooperação material próxima na produção e manipulação de
embriões humanos por parte do produtor ou fornecedor.
Em conclusão, resultam evidentes a seriedade e a gravidade do problema ético levantado pela
vontade de estender ao campo de pesquisa humana a produção e/ou o uso de embriões humanos,
mesmo por motivos humanitários.
A possibilidade, já comprovada, de utilização de células estaminais adultas para conseguir os
mesmo objetivos pretendidos com as células estaminais embrionárias – apesar de se exigirem
ainda muitos passos, em ambas as áreas aliás, até se obter resultados claros e definitivos —
indica-a como a via mais razoável e mais humana a percorrer para um progresso correto e válido
neste novo campo que se abre à pesquisa e a promissoras aplicações terapêuticas. Essas
representam, sem dúvida, uma grande esperança para um número considerável de pessoas
doentes.
Prof. Juan de Dios Vial Correa – Presidente Exmo. e Revmo. Mons. Elio Sgreccia. – Vice-
Presidente
Vaticano, 25 agosto, de 2000.
(Texto original de “L’Osservatore Romano”, sexta-feira, 25 agosto 2000, p. 6.)
7. Declaração Íbero-latino-americana sobre direito,
bioética e genoma humano
Considerando que os constantes avanços que estão sendo produzidos sobre o conhecimento do
genoma humano, e os benefícios que poderão obter-se de suas aplicações e derivações,
convidam a manter um diálogo aberto e permanece sobre suas consequências para o ser humano.
Destacando a importância que comportam para esse diálogo a Declaração Universal da Unesco
sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997, adotada e elaborada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1998, assim como o Convênio do Conselho da Europa para a
Proteção dos Direitos Humanos e Biomedicina de 1997.
Assumindo que é irrenunciável a participação dos povos íbero-latino–americanos no debate
intemational sobre o genoma humano, com a finalidade de que possam aportar suas próprias
perspectivas, problemas e necessidades.
Os participantes nos Encontros sobre Direito, Bioética e Genoma Humano de Manzanillo (1996),
de Buenos Aires (1998) e de Santiago (2001), procedentes de diversos países da Íbero-América e
da Espanha, e de diferentes disciplinas relacionadas com a bioética,
DECLARAMOS
QUINTO: Algumas aplicações da genética humana operam já como uma realidade cotidiana em
nossos países sem uma adequada e completa regulamentação jurídica, deixando em situação
indefesa e de vulnerabilidade tanto o paciente quanto aos seus direitos, como o profissional da
saúde quanto à sua responsabilidade. Isto torna necessário que, mediante processos
democráticos e pluralistas, se promova uma legislação que regule, ao menos, os seguintes
aspectos.
a) o manejo, o armazenamento e a difusão da informação genética individual, de tal forma que
garanta o respeito, a privacidade e a intimidade de cada pessoa.
b) a atuação do geneticista como conselheiro ou assessor do paciente e de seus familiares e
sua obrigação de guardar a confidencialidade da informação genética obtida;
c) o manejo, o armazenamento e a disposição dos bancos de amostras biológicas (células,
DNA etc.), que deverão ser regulamentados garantindo que a informação individualizada não
seja divulgada sem assegurar o direito a privacidade do indivíduo, nem seja usada para fins
distintos daqueles que motivaram sua coleta;
d) o consentimento livre e informado para a realização de provas genéticas e intervenções
sobre o genoma humano, que deve ser garantido por instâncias adequadas, em particular
quando se trate de menores, incapacitados e grupos vulneráveis que requerem uma atenção
especial.
SEXTO: Além dos profundos questionamentos éticos que geram o patenteamento do material
genético humano, cabe reiterar em particular:
a) a necessidade de proibir a comercialização do corpo humano, de suas partes e de seus
produtos;
b) a necessidade de reduzir nesse assunto o objeto das patentes aos limites restritos do
aporte científicos realizado, evitando extensões injustificadas que coloquem obstáculos a
futuras pesquisas, e excluindo-se a possibilidade de patentear a informação e o material
genético. Assim, limitar as expectativas de ganhos das empresas com fins lucrativos, de modo
a facilitar o acesso a todos seres humanos sem distinções econômicas.
c) a necessidade de facilitar a pesquisa neste campo mediante o intercâmbio livre e irrestrito
da informação científica, em especial o fluxo de informação dos países desenvolvidos para os
países em desenvolvimento.
SÉTIMO: Sem prejuízo de reafirmar a validade universal dos princípios contidos na Declaração
Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997, estimam que este texto, além
de seu valor jurídico próprio, deveria constituir o primeiro passo de um processo normativo que
haveria de culminar com Convênio ou Tratado Internacional sobre Genoma Humano e os Direitos
Humanos.
RESOLVEMOS:
O Conselho Federal de Biologia (CFBio está acompanhando os novos avanços que vêm
ocorrendo na biotecnologia e pretende, com o presente documento, propor uma orientação no
exercício profissional, introduzindo uma variável que seja compatível com as atividades de cada
Biólogo e respeite as diferentes formas de vida e suas interações com o meio ambiente.
Diante desse quadro de grandes inovações, o CFBio houve por bem criar um grupo para a
elaboração do presente documento, composto pelos colegas. Professora Doutora Mayana Zatz,
coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da
Universidade de São Paulo, Professora Doutora Luiza Chomenko, da FEPAM do Estado do Rio
Grande do Sul e conselheira do Conselho Regional de Biologia da 3a Região – CRBio-3.
Professor Doutor Celso Luiz Marino, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual “Júlio de
Mesquita Filho”— UNESP, Campus de Botucatu no Estado de São Paulo, e conselheiro do
Conselho Regional de Biologia da la Região – CRBio-1, e com a inestimável colaboração da
Professora Doutora Lygia Pereira do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Cabe
registrar que os três membros do grupo do Estado de São Paulo são partícipes dos Projetos de
Genoma da FAPESP.
Historicamente, sabe-se que os grandes avanços da ciência movidos pelo instinto dos
pesquisadores que sempre tiveram a liberdade de desenvolver suas pesquisas sem se preocupar
para onde ela os levaria. Nas últimas décadas, os resultados gerados nas bancadas dos
laboratórios foram rapidamente integrados na atual forma de vida da sociedade. Por sua vez, a
evolução do modelo de desenvolvimento mundial promove o aumento da atividade biotecnológica
por meio dos avanços obtidos na técnica do DNA recombinante e nos métodos de transformação
genética de células de plantas e animais que tornaram possível a transferência de genes de várias
classes de organismos, ultrapassando os limites impostos pela incompatibilidade sexual. Essas
técnicas são ferramentas que podem ser analisadas a partir de muitas perspectivas, e possuem o
potencial de aportar benefícios e riscos, iguais a outras tecnologias. No entanto, outorgam também
à humanidade um novo poder sem precedentes, pois permitem manipular de forma seletiva o
germo plasma, e assim desenvolver organismos geneticamente modificados, mas ao mesmo
tempo trazem um dilema ético e moral para a sociedade. Dessa conjuntura, começa-se a
vislumbrar a possibilidade de ações sobre a vida e a avaliar os riscos nos campos ético e
sociológico. Verifica-se que há uma questão importante que se relaciona com o fato de serem as
atividades dos cientistas protegidas pelas barreiras de seus laboratórios; barreiras, por vezes,
intransponíveis, pois a ciência pode exercer esse totalitarismo e não buscar a percepção da
sociedade. Pelo fato de as pesquisas nem sempre serem submetidas a comitês de ética ou ao
rígido cumprimento dos princípios definidos por esta, pode-se pressupor que as noções de
segurança dependam de cada pesquisador. A sociedade encontra-se cada dia mais preocupada
com aspectos relacionados às atividades científicas e a seus efeitos. Essa participação iniciou-se
logo após a Segunda Guerra Mundial, quando a tecnologia nuclear e as pesquisas da definição da
molécula do DNA causaram impactos. Por um lado, isso fez com que as populações humanas
procurassem estar mais informadas, obter conhecimentos para Ter condições de exercer e exigir
seus direitos. Por outro lado, aumentaram as preocupações com o perigo de ser desenvolvidos
organismos mutantes ou novos agentes químicos que possam, além do impacto no meio ambiente,
colocar em risco o futuro da espécie humana neste planeta. Portanto, é fundamental que a
sociedade seja informada de maneira compreensível e, sobretudo, neutra sobre as atividades
científicas, a fim de permitir-lhe decisões e tomadas de posição equilibradas e concretas, nunca
emocionais.
Em todo o mundo, e no Brasil não poderia ser diferente, é motivo de grande polêmica o
emprego dos organismos geneticamente modificados (OMGs), considerados por alguns
pesquisadores como uma tecnologia avançada, capaz de produzir grandes progressos em
questões relacionadas com mais saúde, mais e melhores alimentos, entre outros aspectos. Outros,
contrariamente, temem que possa haver riscos ao meio ambiente ou à saúde do homem e, ainda
criar dependência econômica cada vez maior dos países “pobres” em relação àqueles mais
desenvolvidos, detentores da maioria das tecnologias e patentes.
Por um lado a ciência avança e disponibiliza uma grande quantidade de informações para os
pesquisadores diariamente, por outro lado, a gestão da vida continua demonstrando claramente
que os sistemas vivos são complexos, diversos e mantidos por estruturas de auto-organização que
lhes permitem interagir com o meio ambiente, sendo esta a base da manutenção da vida. No
momento em que se introduzem mecanismos externos de regulação nos sistemas vitais, deve-se
atentar para o fato de que as alterações podem vir a promover modificações na dinâmica vital,
operacional e evolutiva dos organismos envolvidos, levando inclusive a discussões sobre sua
valoração e as formas de utilizá-los.
O CFBio vem procurando avaliar cuidadosamente a polêmica existente, bem como a divulgação
de resultados, adotando uma postura de muita cautela e cuidado, principalmente considerando-se
que em grande parte os pesquisadores envolvidos são biólogos. Além disso, a adoção de uma
posição definitiva ainda não foi possível, pois não se tem suficientes garantias da ausência de
riscos à saúde, ao meio ambiente, à agricultura, aos aspectos socioeconômicos e culturais.
Também se entende que urge ampliar as discussões sobre a liberação ampla de produção, uso,
consumo de OGMs, relacionando estes com os aspectos éticos envolvidos, pois tem-se a noção
de que apenas a exigência de identificação ou rotulagem de OGMs não propicia garantias de
qualidade e segurança.
Faz-se necessário que sejam estabelecidos normas e comportamentos aceitáveis e éticos, os
quais englobem as várias tendências e respeitem a pluralidade de opiniões. Entretanto destaca-se
como indispensável que a base legal e o regulamento legislativo que dispõem sobre o
desenvolvimento científico e tecnológico da nação sejam cuidadosamente elaborados, baseando-
se principalmente em aspectos de responsabilidade, justiça e ética.
Recomendações
• A promoção da defesa da soberania dos povos e da nação sobre seu patrimônio genético, por
meio da criação de estratégias sustentáveis que propiciem condições adequadas de preservação
da biodiversidade e da vida das populações humanas envolvidas nestes processos.
• Que a discussão dos aspectos éticos no uso da biotecnologia deve ser conduzida no piano da
informação científica à sociedade, em uma linguagem acessível, do argumento, e não através da
consciência privada, sendo abominável falar em foro íntimo quando o assunto em questão é por
exemplo a ética (sem esse cuidado, corre-se o risco de agir de forma que ocorra uma defesa
corporativa contra os interesses de toda a sociedade).
1. Fonte: Documento de Trabalho do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida do Portugal: Lisboa, 5 de
janeiro de 1999.
2. Cfr. Anexo 1.
3. Cfr. Anexo 4: Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS.
4. Principais trechos do script do vídeo em que Van Rensselaer Potter fala de sua intuição pioneira a respeito da
bioética, que foi apresentado especialmente para o IV Congresso Mundial de Bioética (Tóquio – 1998).
5. Observatório de Imprensa – Matérias – 26 de fevereiro de 2003. http:// observatorio.ig.br/artigos.
6. Folha de São Paulo, 7 de março de 2003, p. C7.
7. Estado de São Paulo, A8, 27 de dezembro de 2002.
8. Cfr. Anexo 2.
9. Cfr. Anexo 3.
10. Cfr. Anexo 4.
11. PETERS, Ted. Genética, teologia e ética. In: PETERS, Ted e BENNETT, Gaymon (Orgs.). Construindo pontes entre
a ciência e a religião. Tradução Luís Carlos Borges; supervisão científica Eduardo R. Cruz. São Paulo: Edições Loyola e
Editora UNESP, 2003, pp. 117-134.
12. Cfr. Anexo 6.
13. Cfr. Anexo 7.
14. Cfr Anexo 8
15. PEREIRA, Lygia V. O admirável mundo novo da clonagem . In: VALLE, Silvio e TELLES, José Luiz (0rgs). Bioética
e b iorrisco: ab ordagem transdisciplinar . Rio de Janeiro: Editora Interciência, 2003. pp. 31-45.
16. Cfr. Anexo 3.
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