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Costura de si
Seams (Karim Aïnouz, 1993) e a “nova autobiografia” norte-americana dos
anos 1980 e 1990
RIO DE JANEIRO - RJ
Dezembro/2016
Aos muitos professores brilhantes que tive a
oportunidade de conhecer. De aula em aula, vocês
tornaram o mundo um lugar um pouco mais
complexo; um pouco mais fantástico.
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SUMÁRIO
1) Introdução ................................................................................................................... 4
4) A “nova autobiografia”............................................................................................ 12
4.1) Política da identidade e subjetividade como via de conhecimento ... 12
4.2) Características ....................................................................................... 13
4.2.1) Personagens “comuns” ..................................................................... 13
4.2.2) Miscelânea formal ............................................................................ 14
4.2.3) Performance de si ............................................................................. 14
4.3) Estudos acadêmicos sobre a “nova autobiografia” ............................ 15
6) Conclusão .................................................................................................................. 26
7) Referências ................................................................................................................ 28
7.1) Bibliografia acadêmica .......................................................................... 28
7.2) Filmes citados ......................................................................................... 30
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1) INTRODUÇÃO
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2) DEFININDO O DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
2.1) Autobiografia
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os elementos formadores de uma linguagem especificamente autobiográfica, que se
repetirão em obras tão diversas quanto as de Jean-Jacques Rousseau, William Butler
Yeats, e Maya Angelou, entre outros.
Mas que elementos seriam esses? Em 1975, o teórico Philippe Lejeune publica
um estudo significativo sobre o tema, buscando organizar e sistematizar um gênero
frequentemente considerado transgressivo e híbrido, escapando tanto dos limites da
ficção quanto da não-ficção (RENZA apud OLNEY, 1980, p. 273). Lejeune propõe então
uma definição da autobiografia baseada em uma espécie de contrato entre leitor e obra: o
que marcaria esse tipo de narrativa seria a pressuposição de que narrador, personagem
principal e autor – cujo nome está, em última instância, na capa – se identificam. A esse
pressuposto Lejeune chama “pacto autobiográfico”, que regeria toda e qualquer expressão
autobiográfica, não apenas a literária (COELHO; ESTEVES, 2010, p. 25-26).
O documentário autobiográfico é, portanto, o documentário cujo autor é também
narrador e personagem principal. Em termos cinematográficos, é aquele cujo autor é ao
mesmo tempo o sujeito que enuncia e o objeto retratado pelo filme (RENOV, 2004, p.
116).
2.2) Documentário
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à moda da “voz de Deus” tem um emissor (ou sujeito) mais facilmente identificado pelo
espectador. Já em uma obra realizada de acordo com os preceitos do Cinema Direto
estadunidense, na qual os acontecimentos parecem se desenrolar sem qualquer
intervenção dos realizadores, o espectador tem mais dificuldade para identificar a “voz”
ou o sujeito do documentário.
A concepção comum do objeto do documentário é ainda mais veementemente
contestada por Nichols. Declarar que o cinema documental apresenta eventos e pessoas
reais, ele comenta, é afirmar que seu objetivo é a reprodução da realidade quando, na
realidade, ele busca representá-lo. Nas palavras do autor (2010, p. 13),
We judge a reproduction by its fidelity to the original – its capacity to reproduce visible
features of the original precisely [...] We judge a representation more by the nature of the pleasure
it offers, the value of insight it produces, and the quality of the perspective it instills. We ask
different things of representations and reproductions, documentaries and documents.
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3) HISTÓRICO DO DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
3.1) Antecedentes
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authenticity as fact, this mode of documentary voice-over is as likely to question what is shown as
to interpret it authoritatively.
Antes de concluir o parágrafo acima, o autor faz uma ressalva: embora importantes
para o desenvolvimento do que viria a ser o documentário autobiográfico, introduzindo a
ideia de um discurso documental subjetivo, mais próximo da emoção do que da razão, as
narrações em primeira pessoa e a câmera participante do Cinéma Vérité não chegam a ser
autobiográficas per se. A classificação caberia, contudo, a dois movimentos que
antecederam à “nova autobiografia” dos anos 1980 e 1990. São eles a vanguarda norte-
americana de 1960 e 1970 e a chamada “escola de Cambridge”, que se inicia na década
de 1970.
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4) A “NOVA AUTOBIOGRAFIA”
4.2) Características
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enquanto componentes políticos, ela inaugurou uma tendência de revisão historiográfica
referida por Beatriz Sarlo (2007, p. 16-17) como “guinada subjetiva”:
Os novos sujeitos do novo passado são esses “caçadores furtivos” que podem fazer da
necessidade virtude, que modificam sem espalhafato e com astúcia suas condições de vida, cujas
práticas são mais independentes do que pensaram as teorias da ideologia, hegemonia e das
condições materiais, inspiradas nos distintos marxismos. [...] O passado volta como um quadro de
costumes em que se valorizam os detalhes, as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades
que já não se encontram no presente.
4.2.3) Performance de si
Como estabelecido no início deste trabalho, o que caracteriza qualquer
autobiografia, fílmica ou literária, é um acordo extradiegético; um “pacto” em que obra e
leitor reconhecem que o escritor, o protagonista e o narrador daquele trabalho (no caso
do filme de não-ficção, o diretor e o que é representado em cena) são equivalentes
(LEJEUNE apud COELHO; ESTEVES, 2010, p. 25-26). Assim, é justo dizer que toda
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autobiografia exige de seu autor uma “performance” ou representação de si mesmo. Mas
se toda autobiografia envolve algum tipo de performance de seu autor, por que destacar
a qualidade como uma especificidade da “nova autobiografia”?
No caso do movimento dos anos 1980 e 1990, a performance não acontece apenas
de uma maneira genérica ao longo do filme. Aqui, sua noção se aproxima mais da
performance artística típica da arte contemporânea, em que o artista usa o próprio corpo
como meio de expressão. Composta na maioria das vezes por quatro elementos (tempo,
espaço, corpo do artista e relação entre ele e plateia), a prática inclui ainda a incorporação
de outros meios, como artes visuais, vídeos, instalações sonoras ou objetos cênicos, na
obra final (MOMA Learning).
Nos filmes da “nova autobiografia”, assim, é comum ver cenas inteiras dedicadas
a performances artísticas. Alegóricas, elas podem tanto compor integralmente as obras
quanto aparecer de maneira pontual, relativamente autônoma em relação ao restante da
obra, representando uma espécie de “fuga onírica”. De todo modo, representam uma
grande ruptura no campo do cinema documental, pois desafiam a definição do gênero
como um “discurso sóbrio” dedicado a, assim como a economia ou a política, descrever
a realidade (NICHOLS, 2010, p. 36). Como veremos a seguir, a performance é um fator
tão relevante para a “nova autobiografia” que Bill Nichols usa o termo para batizar o
movimento em seu léxico pessoal: “modo performático”.
Como vimos nos parágrafos anteriores, a autoinscrição fílmica é uma prática que
remonta às origens do cinema e, ao longo do último século, muitas gerações de diretores
a empreenderam, frequentemente no limite entre o cinema documental e de vanguarda.
Foi apenas nos anos 1990 que, com a “nova autobiografia”, ela começou a ser enquadrada
no gênero documental (RENOV, 2014, p. 41).
Datam da mesma época os primeiros esforços acadêmicos que buscam reconhecer
a prática como um subgênero à parte dentro do panorama de não-ficção. Bill Nichols é,
nesse sentido, fundamental: em Blurred Boundaries, de 1994, ele adiciona aos seus
“modos do documentário” (“documentary modes”), proposta de categorização das
diferentes tendências formais encontradas no gênero desde seu nascimento, um novo
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grupo: o “documentário performático” (“performative documentary"). Enfatizando a
dimensão subjetiva e afetiva do conhecimento em detrimento de sua dimensão cartesiana,
este conjunto de filmes realizados nas décadas de 1980 e 1990, comenta Nichols (2010,
p. 205-206),
...shares a rebalancing and corrective tendency with auto-ethnography (ethnographically
informed work made by members of the communities who are the traditional subjects of western
ethnography, such as the numerous tapes made by the Kayapo people of the Amazon river basin
and by the aboriginal people of Australia). It does not, however, counter error with fact,
misinformation with information. Instead, performative documentaries adopt a distinct mode of
representation in which gaining knowledge and understanding require an entirely different
engagement.
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em uma série de outras mídias, como as artes visuais e os blogs. Se de um lado isso é
importante por entender o fenômeno de uma maneira mais ampla, irrestrita ao campo
cinematográfico, por outro é interessante porque sugere que as categorias delineadas por
Renov – como “ensaio eletrônico”, “etnografia doméstica” e “modo epistolário” –
sobrevivem também em outras formas do fazer audiovisual.
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5) ESTUDO DE CASO: SEAMS, DE KARIM AÏNOUZ (1993)
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5.1) Seams e a “nova autobiografia”
É verdade que Renov (2004, p. 106), ao tentar definir o “novo historicismo” que
nascia com esses filmes, alerta para o fato de que as subjetividades neles retratadas são,
sim, extremamente mutáveis, estando sempre à deriva, evanescentes, obscuras. Mas não
são poucos os que, como Aïnouz, condenam certos aspectos do movimento. O próprio
João Moreira Salles (2003, p. 193) é um deles: “Grande parte desses filmes guarda
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relevância como registro histórico, mas falha como cinema. São quase todos exercícios
de autoindulgência.”
Seams é concebido, assim, como uma espécie de resposta à política identitária dos
anos 1980 e 1990 (AVELLAR; SARNO, 2003, p. 46). Nele, Aïnouz alinha sua
identidade, a de um homossexual latino-americano morando em um lugar estrangeiro, à
identidade feminina das mulheres que o criaram, a avó e as tias-avós. É a partir dessa
identidade sincrética que o diretor explora, então, o machismo no país, construindo “um
discurso de afinidade, e não de identidade”, como escreve Frances Negrón-Montaner
(1996, p. 68).
Seams significa “costuras” em inglês. Não por acaso, a cartela do título surge
sobreposta a um plano do algodão sendo colhido, anunciando a origem de um filme que
é também costura: de suportes, de estratégias, de subjetividades. E a trama final, que
combina em um mesmo bordado as vozes do diretor e de Branca, Zélia, Pinoca, Joanita
e Ilca, é difícil de desfazer.
Ainda assim, este capítulo propõe justamente sua desconstrução, buscando
localizar em Seams alguns dos elementos que, acreditamos, seriam os responsáveis pela
“identidade sincrética” criada pelo diretor-autobiógrafo Aïnouz na obra. Embora haja um
grande número de estratégias narrativas e estéticas empenhadas no engenho, aqui
gostaríamos de destacar as duas das mais importantes: em primeiro lugar, a descoberta da
fonte de sofrimento tanto das irmãs quanto do diretor em um só lugar, a língua; em
segundo, o ato coletivo da narração de história de Maria, um melodrama que afirma o
destino similar das cinco irmãs e do diretor.
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sexo feminino. Branca, avó de Aïnouz, foi abandonada pelo marido com as filhas ainda
pequenas. Joanita casou-se com um homem rico, mas teve de lidar com suas traições
constantes. Ilca e Pinoca nunca realmente amaram os respectivos esposos. Zélia não se
casou. “Desculpe lhe dizer, Karim”, ela explica, constrangida, “mas nunca gostei de
homem, não”. Incapazes de se integrar devidamente à sociedade patriarcal, as cinco
aprenderam a lidar com cautela com o mundo masculino. Transmitiram a lição ao jovem
Aïnouz: “As cinco me ensinaram uma coisa curiosa para uma criança brasileira aprender:
não confiar em machos.”
O filme se inicia com alguns relatos das irmãs sobre o que era ser mulher nos anos
1920 e 1930. Bem-humoradas, contam da primeira moça que vestiu uma minissaia, que
por pouco não foi apedrejada pela cidade inteira; do primo que, ao ver Joanita tendo de
sustentar a casa, afirmou que “mulher que trabalha fora não vale nada”; do triste destino
das mães solteiras, que eram expulsas de seus lares e ficavam à deriva, sem ter para onde
ir.
É logo depois dessa sequência que o diretor começa a esboçar sua primeira
estratégia de identificação com suas correspondentes femininas: mostrar o preconceito
contra tanto as mulheres quanto os homossexuais através de seu enraizamento no idioma.
Seams é um filme feito por um brasileiro sobre o Brasil, mas narrado em inglês.
Talvez em uma tentativa de compensar as barreiras culturais entre Estados Unidos e
Brasil, os momentos iniciais do filme retratam o país de maneira panfletária, clichê: um
lugar exótico, sensual. Depois dos créditos, no entanto, a associação entre o Brasil e o
sexo feminino cai por terra, dando lugar à percepção do próprio cineasta da realidade
brasileira, compartilhada com a avó e as tias-avós: “O Brasil é um lugar muito agressivo,
muito machista. Muito masculino. Muito duro.”
A partir desse momento, os esclarecimentos vocabulares são recorrentes no filme.
“In Portuguese”, diz o narrador, “veado means deer, but it also means faggot, which
means queer. Sapatão means big shoes, but it also means dyker, queer”. Ele continua:
“Puta means whore. It is the worst thing one can call a woman, if one wants to insult her.
If one wants to insult a man, one calls him veado, which means faggot. Every girl fears
to be called a puta. I have feared the word faggot since I was little.”
A tentativa de tradução do português para o inglês revela, através da
descontextualização, o enraizamento do machismo na realidade sociocultural brasileira.
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Atroz tanto no trato da sexualidade feminina quanto da homossexualidade, ele é, ao
mesmo tempo, tão naturalizado que hoje é inseparável da ordem simbólica do discurso.
Como Negrón-Montaner sintetiza, o poder patriarcal vigente é “identificado como
machista e homofóbico e localizado na língua”.
Mais surpreendente ainda é a revelação, via descontextualização, de que esses
termos – para muitos responsáveis por anos de violência e sofrimento – são, em sua raiz,
puro nonsense. Quando traduzidas para o inglês, as palavras perdem sua carga simbólica,
tornando-se meras anedotas, curiosidades de uma língua estranha. A tradução é
insuficiente: as estruturas de hegemonia de uma cultura são tão inerentes a ela que jamais
poderão ser plenamente entendidas por quem vem de fora.
Assim, através desse artifício, Aïnouz declara ao mesmo tempo a impossibilidade
de um dia conseguir traduzir sua experiência pessoal como brasileiro ao espectador norte-
americano, e também alinha sua experiência com todo indivíduo que tenha sido criado de
acordo com os mesmos estigmas sociais – não só a avó e as tias-avós, mas qualquer um
que já teve medo de ser chamado de ‘puta’ ou ‘veado’.
No começo deste capítulo, ressaltamos o fato de que, como grande parte das
“novas autobiografias” fílmicas, uma das estratégias estético-narrativas de Seams é uma
performance artística. A performance em questão é a narração coletiva da história de
Maria, um melodrama que o diretor ouviu muitas e muitas vezes durante a infância e que,
ele confidencia, “me remetia aos destinos da minha avó e da minha mãe”. Defendo aqui
que ela corresponde a uma das estratégias do diretor na criação de uma “subjetividade
fluida” no documentário.
É necessário alertar, contudo, que a qualidade coletiva de narração é apenas
simbólica. Isso porque, nas cenas em que a história de Maria é reencenada, é só a voz de
Aïnouz que preenche o quadro. Ele atribui cada uma das passagens que narra a uma
familiar, é claro, mas sempre de maneira indireta: “Ilca é irônica, picante”; “Pinoca faz
com que a história pareça um conto-de-fadas”. Em um movimento como a “nova
autobiografia”, que demanda que os representados assumam as próprias vozes, o recurso
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pode parecer quase uma afronta. É dessa maneira, porém, que ele consegue alinhavar o
próprio discurso com o das cinco senhoras, como veremos mais tarde.
A história, representada através de uma performance – uma mulher presa em um
cômodo, cercada de fios de algodão – é assim: Maria era uma jovem conhecida das cinco
irmãs. Inteligente, não pôde terminar os estudos. “Como qualquer mulher”, diz Ilca, dona
da língua mais ferina entre as irmãs, “ela foi feita para casar”. Cumprindo o destino que
lhe foi aferido, casou-se com um oficial do exército – um casamento apaixonado, feliz.
Sua tia, porém, era contra o matrimônio. Achava que o noivo não era rico o suficiente.
É a vez de Pinoca contar a história. Logo depois do casamento, Maria começou a
apresentar tumores nas pernas. Não conseguia mais andar. Quando o marido foi realocado
para o Sul, ela não pôde acompanhá-lo. Ficou em casa, sendo cuidada pela tia. O marido,
apaixonado, mandava-lhe cartas diariamente, ano após ano, até que, sem resposta,
desistiu. Maria, por sua vez, não se casou novamente.
Joanita, exímia contadora de histórias, intervém no conto como um deus ex-
machina. Diz que, um dia, sonhou com a tia de Maria, já falecida. Vestida de preto, a
solteirona lhe segredou que, se a sobrinha fosse até o porão, encontraria o baú onde ela
havia reunido as cartas que o jovem oficial mandara ao longo de todos aqueles anos.
Joanita contou a visão a Maria, e lá foi ela ao porão. Como previsto, um baú guardava
cartas e mais cartas do marido que jamais tinham chegado às suas mãos. A tia, invejosa,
tinha escondido a correspondência.
A avó do diretor, Branca, conta que Maria ainda viu o marido três vezes depois
de encontrar as cartas. Já não podiam, contudo, ficar juntos novamente: era tarde demais.
“No tom de voz da minha avó se pode sentir a dor de Maria”, diz Aïnouz em voz-over.
“A história é parecida demais com a sua própria história.” É verdade: na cena seguinte,
descobrimos, através de Joanita, que Branca, abandonada pelo marido, também
alimentava a esperança de um dia reencontrá-lo. Assim como Maria, contudo, o
reencontro jamais aconteceu. Seu marido casou-se com outra.
A semelhança também se estende à trajetória das outras irmãs, com exceção de
Zélia. Afinal, todas seguem, bem ou mal, a cartilha melodramática (SINGER, 2001, p.
38): uma heroína empática; o pathos do amor não-correspondido ou do casamento
impossível; conflitos geracionais; e a dificuldade da independência feminina frente ao
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conservadorismo e as estruturas patriarcais. Mas como reconfigurar a cartilha
melodramática de modo que ela espelhe a trajetória de Aïnouz?
Em “Drama Queens: Latino Gay and Lesbian Independent Film/Video”, Frances
Negrón-Muntaner (1996) oferece uma perspectiva interessante em relação ao tópico. Ela
identifica na história de Maria um lugar de “prazer e sofrimento”, sentimentos comuns às
cinco irmãs e ao próprio Aïnouz no processo de narração do melodrama. O prazer vem
do desejo pelo sexo masculino, expresso aqui pela primeira vez pelas irmãs; o sofrimento,
do platonismo ao que a relação se destina. É, assim, nesse jogo entre prazer e sofrimento
que podemos reconhecer a persona do diretor. Como a avó e as tias-avós, Aïnouz também
sente desejo pelo sexo masculino. Também como elas, porém, acredita que seu destino é
o de um amor não-correspondido, impossível. Ao menos, isto é, no Brasil.
É nessa nota melancólica que acaba o filme. Aïnouz pergunta a Zélia se ela já
dormiu com um homem – e aqui é importante observar que ela é a única das irmãs que
não participa da narração coletiva do melodrama; a única que, em nenhum momento,
expressa qualquer tipo de desejo. Ela hesita em responder. Afinal, fala que não: nunca se
casou. O cineasta então narra o próprio pesadelo, em que Zélia questiona se ele tem uma
namorada. “Não, não exatamente.” E conclui, espelhando uma fala de uma carta da mãe:
“A vida é tão complicada.” O filme termina, assim, sem que Aïnouz consiga assumir sua
homossexualidade plenamente. Não no Ceará. Não no Brasil.
Curiosamente, um comentário do diretor na narração da primeira das cartas da
mãe, de 1988, parece sintetizar esse sentimento. Diante da notícia da internação de
Pinoca, ele reflete, em voz-over: “Não sei o que é pior: viver na cama, incapaz de andar,
como ela está agora, ou só ir embora”. A frase também se aplica, talvez
inconscientemente, a sua própria narrativa. Enquanto as estruturas machistas,
homofóbicas ainda vigorarem no Brasil, a homossexualidade de Aïnouz, parece, não será
plenamente reconhecida.
Seams se baseia, assim, em um contínuo jogo de espelhos entre o diretor e as cinco
senhoras retratadas, utilizando as narrativas de discriminação no Brasil do começo do
século por elas expostas para ilustrar sua própria experiência como homossexual em um
país caracterizado pelo machismo endêmico.
Essa estratégia, que descrevi como a criação de uma “identidade fluida” e busquei
dissecar nesse capítulo, apresenta uma grande inovação em relação ao movimento da
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“nova autobiografia” dos anos 1980 e 1990 em que o filme se insere. Isso porque, se os
filmes do movimento são criticados por serem “autobsortos, excessivamente sentimentais
e repletos das platitudes da política identitária dos anos 1990” (RENOV, 2014, p. 32),
Seams, em sua proposição de uma “identidade fluida”, sincrética, entre diretor e objeto,
consegue oferecer uma alternativa à segmentação excessiva e, por vezes, simplista que
caracteriza o movimento em prol de um entendimento mais complexo e menos
autocentrado da “costura” entre eu e mundo.
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6) CONCLUSÃO
27
7) REFERÊNCIAS
29
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30
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Madame Satã. Direção: Karim Aïnouz. 2002.
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O céu de Suely. Direção: Karim Aïnouz. 2006.
Os dias com ele. Direção: Maria Clara Escobar. 2012.
Otto. Direção: Cao Guimarães. 2012.
Pelé Eterno. Direção: Anibal Massaini. 2004.
Person. Direção: Marina Person. 2007.
Praia do Futuro. Direção: Karim Aïnouz. 2014.
Rain. Direção: Joris Ivens. 1929.
Raul, o início, o fim e o meio. Direção: Evaldo Mocarzel e Walter Carvalho. 2012.
Santiago. Direção: João Moreira Salles. 2007.
Seams. Direção: Karim Aïnouz. 1993.
Thigh Line Lyre Triangular. Direção: Stan Brakhage. 1961.
Tongues Untied. Direção: Marlon Riggs. 1989.
Um homem com uma câmera. Direção: Dziga Vertov. 1929.
Um passaporte húngaro. Direção: Sandra Kogut. 2001.
Viajo porque preciso, volto porque te amo. Direção: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes.
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Window Water Baby Moving. Direção: Stan Brakhage. 1959.
31