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CAPOEIRA

Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354
Vol. 2 | Nº. 2 | Ano 2016

Túlio Muniz
UNILAB
“IMPEACHMENT’, EUFEMISMO PARA O
GOLPE
_____________________________________
RESUMO

Nesta edição a revista Capoeira - Humanidades e Letras publica,


na secção de artigos, textos que são crônicas sobre do processo de
impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Palavras-chave: impeachment; crônicas; Brasil;
____________________________________
ABSTRACT
In this special edition Capoeira – Humidades e Letras published,
in section of articles, texts that are chronicles on the impeachment
process of President Dilma Rousseff.
Keywords: impeachment process; chronicles; Brazil;

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
capoeira.revista@gmail.com

Editores deste número:


Marcos Carvalho Lopes
marcosclopes@unilab.edu.br

Túlio Muniz
túlio@unilab.edu.br
Túlio Muniz

“IMPEACHMENT’, EUFEMISMO PARA O GOLPE

Túlio Muniz1

O processo deflagrado contra a presidenta2 Dilma Rousseff a partir de dezembro de


2015 tem por adjetivo “impeachment” meramente por questões formais. Neste texto,
“impeachment” será devidamente grafado com aspas, pois seu desenrolar configura-se como
Golpe na democracia brasileira, a qual se supunha consolidada.

Têm sido muitas as publicações recentes a tratarem do tema, dada a amplitude e


exigência de reflexão concomitante ao desenrolar dos fatos. CAPOEIRA visa, nesta edição,
colaborar com análises que não negligenciem quanto a aspectos latentes na sociedade brasileira,
cuja maioria inclina-se à direita ao menos sinal não de perda, mas de compartilhamento de
territórios sócio-econômicos-acadêmicos-raciais, de territórios concretos, mas também
imaginários e, portanto, ‘mais reais do que o real’ (Castoriardis).
O Golpe não tem uma origem exata. Trata-se de um acontecimento rizomático,
abarcando vários agentes e atores, sociais e político-institucionais, a tensionarem e a produzirem
acontecimentos que resultam no misto de transe e êxtase no qual o país se encontra, com
bizarrices tais como a maior rede de TV do país exibir a melhor forma de cozer um ovo enquanto
a presidenta depunha no Senado na manhã do último dia 29 de Agosto.
Se há perplexidade e indignação em setores da sociedade brasileira a acusar o
Golpe, entre muitos outros prevalece indiferença e mesmo certo jubilo. Daí tentarmos alargar a
busca de compreensão das ambivalências, alteridades e ambiguidades em curso, e em choque,
para, quiçá, superar algumas, interagir com outras.

O governo Dilma Rousseff perdeu, em 2013, grande oportunidade de viragem e


transformação definitiva da postura da classe política perante a sociedade. Nas manifestações

1
Agradeço imensamente ao vários comentários críticos da versão prévia deste artigo compartilhada com diversos
interlocutores. Foram determinantes para correção de rumos que resultou nesta versão final.
2
: “Só os ignorantes me chamam ‘presidente’. A palavra não existia porque a função não existia. Existe a função,
existe a palavra, que denomina a função. Sou presidenta, e quem me chamar ‘presidente’ é ignorante”. Pilar del Rio,
presidenta da fundação José Saramago, no documentário ‘José e Pilar’. Ver trecho in
https://www.youtube.com/watch?v=G7W6ainaOhs.

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“Impeachment”, eufemismo para o golpe

populares daquele ano, todos os “estratos sociais”3 se encontram nas ruas, protestando juntos
contra os altos gastos em mega-eventos desportivos – as Copas das Confederações e do Mundo –
, em detrimento de melhorias na infraestrutura para transporte individual ou coletivo, de
priorização de políticas públicas de Segurança, Saúde, Educação, Habitação.
A resposta aos protestos foi repressão policial pesada, nenhuma reforma na
representatividade política-partidária, e o estabelecimento de apenas um programa amplo e
importante, o Mais Médicos. O governo não compreendeu que 2013 não tratou-se “apenas de
um deslocamento de palco – do palácio para a rua –, mas de afeto, de contaminação, de potência
coletiva. A imaginação política se destravou e produziu um corte no tempo político” 4.
Ao contrário, uma direita diversificada, e até então desarticulada, teceu uma rede que
antes se supunha sub-reptícia, utilizando de seus agentes institucionais e midiáticos, de discursos
repressivos com vieses tanto policialescos quanto religiosos. Janaína Pascoal, advogada a
defender o Golpe, no Senado: "O único... se tiver alguém fazendo algum tipo de composição
neste processo é Deus. Foi Deus que fez com que várias pessoas, ao mesmo tempo, cada uma na
sua competência, percebessem o que estava acontecendo com o nosso país, e conferisse a essas
pessoas coragem pra se levantarem e fazerem alguma coisa a respeito" (sessão do Senado,
30/08/2016).
As esquerdas, por sua vez, não conseguiram assimilar as manifestações de 2013 no
sentido de se unirem e, sobretudo, de agregarem cidadãos em torno de novas possibilidades de
representação institucional, ao contrário do que ocorreu em Espanha a partir de 2011 – sendo
evidente que entre a sociedade espanhola e a brasileira existem disparidades de práticas e
perspectivas políticas e democráticas, algumas a serem expostas, a seguir.
O discurso agenciador do Golpe encurralou seus adversários na condição de
delinqüentes a destruir o país, através da corrupção sistêmica que não cessou no governo de
‘concertacion’5 iniciado por Lula em 2003 e foi mantido por Dilma. Ambos não reduziram o
‘defict democrático’ no país, ao não promover plebiscitos e a referendos acerca de temas
polêmicos - inclusive o da legitimidade do ‘impeachment’.

3
“A rigor, é mais correto falar de estratos altos, médios e baixos, do que de classes altas, médias e baixas. Os
primeiros constituem um critério de classificação social diferente do de classe e são válidos e úteis como ferramenta
de análise sociológica”. BRESSER PEREIRA,Luis Carlos . CLASSES E ESTRATOS SOCIAIS NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO , mimeo, 1981, acessível em
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1965/TD117.pdf;jsessionid=A8E1AB3CE9E946E18E
CEBAE751D205BF?sequence=1.
4
PELBART, Peter Pal, "Anota aí: eu sou ninguém", São Paulo,Folha de São Paulo, 19/07/2013.
5
“A Concertación permaneceu na presidência do Chile de 1990 a 2010, quando houve a eleição de Sebastián Piñera,
da direita chilena. Além de Aylwin, haviam sido eleitos pela coalizão todos os presidentes chilenos desde a
redemocratização Eduardo Frei Ruiz-Tagle, Ricardo Lagos e Michelle Bachelet”, in
https://pt.wikipedia.org/wiki/Concertaci%C3%B3n.

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Túlio Muniz

Optando pela ‘concertacion à brasileira’ em detrimento da sustentação popular, o PT se


viu tragado pelo monstro repressor e conservador que emergiu das telas dos aparelhos de TV e de
computadores conectados à internet. Impotente enquanto produtor e opositor de discursos ultra-
conservadores que, supunha-se, prosperavam apenas no “Brasil Profundo”, o PT sucumbiu, e a
direta articulada demonstrou nas ruas que o profundo está à flor da pele, e habita as maiores
cidades do país.
Tudo corroborado por uma elite jurídica cujos agentes, não raro, prescindem de ritos
legais para seletivamente atribuir responsabilidades e penas a infratores de determinado corolário
político-ideológico, isentando a outros igualmente suspeitos de desvios no trato com a coisa
pública.
Essa elite jurídica, a mais cara do mundo, sustentada por considerável parcela do
orçamento nacional6, sem deter sequer um voto popular, avoca para si o papel de protagonista da
governação, consentindo com o Golpe desde que seus privilégios sejam mantidos, defenestrando
os que dela destoam7.
Contudo, para compreender o apoio ao Golpe, não basta atribuir à direita e à mídia o
papel de ‘mão invisível’ a manipular milhões de pessoas que se dispuseram a sair às ruas em
defesa do Golpe.
O vulgo ‘jeitinho brasileiro’ é um tipo de ‘devir bandido’ latente na mentalidade da
sociedade. Prevalece entre boa parte, – senão entre a maioria – dos brasileiros a recusa em:
- descriminalizar drogas, enquanto o tráfico e o consumo são tolerados, o primeiro tendo
por vezes conexões com forças de segurança e o segundo vitimando jovens que não pode ter
acesso a drogas controladas e de qualidade;
- descriminalizar o aborto, enquanto milhões de mulheres o praticam clandestinamente
todos os anos;
-de não efetivar a criminalização da homofobia e do racismo;

6
“Vários ‘penduricalhos’ (auxílios etc) garantem ao Judiciário e ao MP contracheques mais gordos (...) Aqui, gasta-
se com o Judiciário 1,3% do PIB, a geração anual de riquezas do país. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, 0,14%.
Na Colômbia, 0,21%. No Chile, 0,22%. Em Portugal, 0,28%. Na Alemanha, 0,32%”, in
http://www.cartacapital.com.br/politica/a-casta-do-judiciario-foi-protagonista-do-impeachment.
Ver também DA ROS, Luciano, "O Custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória", da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acessível in http://www.conversaafiada.com.br/brasil/o-custo-absurdo-
da-justica-do-brasil.
7
Em 30 de Agosto, a então vice-procuradora geral da República, Ela Wiecko de Castilho pediu dispensa do cargo
por ter sido ‘flagrada’ (termo usado na imprensa) participando de protesto contra o golpe realizado na Universidade
de Coimbra, Portugal, onde ela se encontrava frequentando curso de verão, em Junho de 2016. O ‘flagrante’ se deu
após, em entrevista, Castilho tecer severas críticas à permanência de Michel Temer na Presidência.

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“Impeachment”, eufemismo para o golpe

-deixar de celebrar, via programas de TV diários, a morte por assassinato de


aproximadamente 60 mil pessoas por ano – sendo a imensa maioria composta por negros, e
sobretudo, jovens negros ;
– não cultuar o saudosismo de uma ditadura jamais resolvida, anistiada pelo
establishment, e presente no clamor pela volta dos militares ao poder – estes, aliás, merecem
atenção específica em suas posturas relativamente discretas nos últimos anos diante dos
acontecimento políticos.
E mesmo entre os que se consideram ‘progressistas’, no cotidiano pululam as pequenas
contravenções, e se percebe o ‘devir bandido’ nos atos que querem fazer prevalecer interesses de
minorias em instâncias de representações supostamente coletivas (nos sindicatos, na academia,
nas associações comunitárias etc.), nas tentativas de manipulações e favorecimento aos amigos
em concursos e seleções públicas, na burla à lei do silêncio ou do trânsito – na Bahia, cometer
deliberadamente uma infração de trânsito se chama, no vulgo, ‘dar uma roubada’.
O ‘devir bandido’ prolifera também entre os mais ricos. Estes, além de não pagarem
impostos na mesma proporção que os pobres e a classe média8, evadem divisas e sonegam, como
se não habitassem no mesmo país em que vigora uma das maiores desigualdades sociais e
defasagem na distribuição de renda do mundo.
É forçoso constatar que o avanço de políticas institucionais de redistribuição de renda da
última década e meia, através do programa Bolsa Família, e da ampliação do acesso dos mais
pobres à universidade, pouco sensibilizou aos mais ricos e não se deu, pari passu, à consolidação
de mentalidade progressista para a maioria mais pobre. Em todas as classes e estratos sociais,
paira o contentamento com agentes midiáticos medíocres, ‘novos padres’ (Deleuze e Guattari),
maestros do circo da violência legitimada, por exemplo, pela pornografia musical que incentiva
entre outros, os abusos sexuais, o culto ao estupro.
Estupidificados pela carnavalização midiática, pobres e ricos prescindem de reflexão e
sensatez, e aceitam como consequências naturais do débâcle político a subtração de direitos
sociais e trabalhistas adquiridos ao longo de décadas. Assimilando leituras do mundo oriundas da
mídia em vez de elaboraram suas próprias interpretações, aprofundam assim sua condição de
“analfabetos políticos” (Brecht). Não é em vão que uma dentre as muitas das nefastas atitudes do
governo interino golpista foi cancelar programa de erradicação do analfabetismo, no âmbito do
Ministério da Educação.

8
“Brasil, o paraíso dos ricos”, in http://www.cartacapital.com.br/revista/915/brasil-o-paraiso-dos-ricos.

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Túlio Muniz

O que se observa nas recentes manifestações de rua contra o Golpe é a presença mínima
de ‘gente comum’, os que estão fora de associações de classes tais como partidos políticos,
sindicatos e os movimentos de sem-terra e sem-teto – importantíssimos na resistência inicial.
Essa ‘gente comum’ parece se encontrar num limbo entre o conformismo e o medo de
repressão policialesca, pois, se os mais pobres conquistaram algum avanço e direito, convivem
em seu cotidiano com a violência estatal, esta ora em choque ora em conluio com a violência
criminal. A região Nordeste, a mais pobre do país e mais beneficiada pelo Bolsa Família, assiste,
nesta mesma década e meia, um paradoxal aumento vertiginoso da violência urbana. Este é o
país no qual os golpes se impõem não com as armas a cercar palácios, mas a intimidarem a
população em suas casas e nos bairros nos quais vivem, nas cidades pelas quais transitam.
No Nordeste, mas também nos maiores centros urbanos do Sul e Sudeste, sobremaneira
em São Paulo e Rio de Janeiro, o Estado só governa mediante acordos não escritos com as
facções criminosas comuns9. Hoje, interlocutores entre institucionalidade e criminosos galgam
cargos de destaque nos governos de direita10.
A sociedade na qual todos transgridem ‘cordialmente’(para não esquecer Sérgio
Buarque de Holanda), na qual milhões concordam a manipulação dos media e um com o Golpe
civil, marcha célere para outra ditadura civil-militar que se prenuncia após o Golpe em
curso. Essa sociedade é resultado da descrença na democracia que consente com o Golpe: “Em
um ano, apoio à democracia no Brasil cai de 54% para 32%”, anuncia neste início de Setembro o
resultado de pesquisa da ONG Corporación Latinobarómetro, no relatório “El declive de la
democracia 2016”11.
“Carrascos voluntários” de si mesmos, os brasileiros assistem a bandidos golpista e
entreguistas a governarem as instituições em prol de seus próprios interesses, e o governo do
cotidiano, das ruas, a ser exercido pelos criminosos comuns, que impõem toques de recolher,
determinam acessos à vias públicas, intimidam, julgam, condenam e matam à revelia de um
Estado ausente, quando não conivente com o crime.

9
Ver, p. ex., matéria no El Pais, de 29/08/2016, “VIOLÊNCIA NO BRASIL. Acordo pela paz entre PCC e Comando
Vermelho derruba homicídios em Fortaleza. Facções dominam periferias de uma das capitais mais violentas do Brasil e
proíbem ciclo de vingança das gangues locais”. In:
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/19/politica/1471617200_201985.html
10
O atual ministro da Justiça , Alexandre Moraes, era secretário de Segurança de São Paulo – quando, mesmo sem
autorização judicial, chegou a comandar invasão de escola para retirar estudantes que as ocupavam. Antes, como
advogado, atuou em defesa do Primeiro Comando da Capital(PCC), uma das maiores facções criminosas do país.
11
Cf. Latinobarómetro, in http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp,
e jornal O POVO, de 05/09/2016, in
http://www.opovo.com.br/app/maisnoticias/mundo/dw/2016/09/05/noticiasdw,3656768/em-um-ano-apoio-a-
democracia-no-brasil-cai-de-54-para-32.shtml.

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“Impeachment”, eufemismo para o golpe

Após a consumação do Golpe pelo Senado Federal, as grandes cidades têm sido palcos
para mobilizações expressivas. Contudo, delas participam, majoritariamente, pessoas com
alguma filiação partidária-associativa. A ‘gente comum’ permanece fora. Atraí-la para novas
manifestações vai depender de um reposicionamento de movimentos nela que despertem, pela
sensibilidade, consciência crítica conta o Golpe.
Desde 2013 a direita teve na mídia aliado poderoso para manipular milhões e estimulá-
los a irem às ruas. Movimentos organizados que coordenam a resistência ao Golpe sabem que
não podem contar com o poder e o alcance da mídia. Será importante, como foi nos anos de 1970
e 1980, a ação de igrejas, de artistas e, sobremaneira nos dias atuais, de movimentos em redes
virtuais que potencializem desejos e afetos positivos contra a violência institucional e midiática
que se impõe. Esta, caso se prolongue, pode levar a um colapso social inédito, não sendo poucas
as análises que preconizam mesmo uma guerra civil.
Não se trata, portanto, portanto, de aguardar ‘espontaneísmo das massas’, mas de
reascender o sentimento coletivo que grassou em 2013, incompreendido pelo governo e
organizações sociais. Em 2013, grande parte das multidões que foram às ruas era, visivelmente,
da ‘classe média’, composta também dessa ‘gente comum’, não-estuturada, apartidária e sem
vínculos militantes.
Marilena Chauí, sem considerar que integram a ‘classe média’ milhões de pessoas ali-
nhadas com a esquerda e centro esquerda, principalmente no meio acadêmico, não hesitou em
generalizar a ‘classe média’ como sendo uma “abominação política, porque é fascista, é uma a-
bominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante”12. Contu-
do, se foi essa ‘classe média’ a promotora de ‘panelaços’ quando a presidenta Dilma Rousseff se
pronunciava na TV, é ela quem agora emite um silêncio retumbante que pode ser um sintoma de
preocupação, inquietude e, quiçá, de reflexão acerca dos acontecimentos recentes e a falta de
perspectivas futuras.
Aqui recorremos à análise de Boaventura Santos que demonstra o paradoxo da ‘nova
classe média, “tipicamente ingrata a quem lhe dá condições para ascender ao novo estatuto e ten-
de a identificar-se com os que estão acima dela e não com os que estão abaixo”. Ao mesmo tem-
po, afirma Boaventura Santos, essa “nova classe média que agora se mostra ingrata ao PT, não
será mais leal durante muito tempo a outros governos. Para que seja leal terá de ser intimidada.
Penso que se houver a curto prazo um ciclo político pós-PT, ele será dominado pela inculcação

12
13/05/2014, durante o lançamento do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”, em
São Paulo.

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do medo que leve à resignação das classes médias e populares perante uma quebra do nível de
vida que de todos modos vai ocorrer”13.
Nesse sentido, se é fato que foi dessa ‘classe média’, fomentada pela mídia, que emergiu
o Leviatã que durante 2015 e 2016 inundou as ruas vestido de verde-amarelo clamando pelo
Golpe, dela mesma pode vir o potencial para reverter sua tendência majoritária à direita. As
reformas trabalhistas e a perda de conquistas como acesso a aposentadoria, à universidade
pública e gratuita, e mesmo ao ensino superior particular subsidiado, o aprofundamento da crise
econômica que se anuncia, entre outros, atingem em cheio também a ‘classe média’.
Esta deve compreender que a permanência de restrição de ascensão socioeconômica aos
mais pobres e a manutenção de hierarquia social entre mais ricos e mais pobres, são fatores que
lhe proporcionam uma cômoda e ilusória ‘zona de conforto’. Que essa é a única via de redução
da violência e da criminalidade que a todos vitimam, guardadas as proporções – por exemplo, as
raciais e as de qualidade de vida em zonas urbanas de habitação, as quais, entre outras,
desfavorecem imensamente aos mais pobres, mas não invulnerabiliza aos mais ricos.
A ‘pacificação’ do país somente será alcançada pelo compartilhamento de direitos e
avanços, fatores que podem minimizar a desigualdade. A ‘pacificação’ enunciada pelo governo
golpista significa aprofundar as diferenças sociais e aumentar a violência de Estado.
Em menos de 90 dias de usurpação do poder sem voto popular, o governo golpista
anunciou cortes orçamentais em todas as áreas sociais e intenções de dilapidar direitos
trabalhistas, reduzir e obstar aposentadorias, congelar por décadas investimentos públicos,
cercear debates ideológicos nas escolas – uma esdrúxula proposta de “Escola sem partido” que
tem entre seus autores um ator de filmes pornográficos.
O governo golpista busca um realinhamento acelerado com as grandes potências do
Norte Global. Nomeadamente com os EUA, com a abertura da exploração de recursos naturais,
no que o caso mais grave é a extração de petróleo do pré-sal, com a chefia da diplomacia
brasileira a sustentar discursos e ações de distanciamento com a África e os BRICS (Brasil mais
Rússia, Índia, China e Áfirca do Sul) e, o mais grave, com os países Latino Americanos não
alinhados com a ‘globalização hegemônica” (B. Santos).
Diante de tantas ambiguidades, agir é preciso, pois, caso prossiga refém da anomia, a
sociedade brasileira vê o aceleramento do ‘fascismo social’14 que pavimenta a trilha para que se
estabeleça o fascismo legítimo.

13
Boaventura Santos,30/08/2015, em entrevista para Folha de S. Paulo.
14
“O fascismo social pode existir tanto em sociedades do Norte como do Sul e caracteriza-se pela crise do contrato
social, ou seja, pela ideia de que noções como as de igualdade, justiça, solidariedade e de universalidade deixam de

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“Impeachment”, eufemismo para o golpe

O Brasil nestes tempos de golpe é constituído uma sociedade a ser descolonizada de si


mesma. Não se trata apenas de uma ‘sociedade líquida’, mas múltipla, ambivalente, e que ‘jamais
foi moderna’. Dificilmente essa sociedade conseguirá superar, sozinha, o fascismo que se
prenuncia.
Talvez um estado grotesco de in-governação seja evitado, ou ao menos minimizado,
pela inédita e necessária atenção do exterior, de respeitados veículos de imprensa estrangeira, de
manifestações públicas de intelectuais, artistas, e mesmo parlamentares e governos sul e norte-
americanos, e europeus.
Os desdobramentos dos acontecimentos que presenciamos atualmente dependerão
também de resoluções de organizações e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário,
sobretudo da OEA e da ONU, e de atitudes como as anunciadas pelos governos da Bolívia,
Venezuela e Equador, que chamaram seus embaixadores em Brasília tão logo o golpe
parlamentar foi consumado no Senado federal.
Destarte, é igualmente importante mirar em exemplos de entidades como a
Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), cuja atuação, pressão e
intervenção na Guiné-Bissau, em 2012, travou e mesmo reverteu o golpe de Estado promovido
no país naquele ano. Um acontecimento paradigmático para governos, como o atual governo
golpista brasileiro, que voltam às costas para a África, desconsiderando o continente como
gerador de referência de democracia e governação, mantendo para com África uma postura ‘sub-
imperialista’ (Marini) e epistemicida (Maria Paula Menezes).
Em tempo: são relevantes e crescentes os manifestos, individuais e coletivos,de
políticos, artistas e intelectuais brasileiros, um coro de vozes que se recusam ao papel de
“estrangeiros em sua própria terra” (Sérgio Buarque de Holanda).
A questão é saber até que ponto esses ‘olhares estrangeiros’ constrangem aos cordiais
homens que assaltam o Estado brasileiro e, desde sempre, o convertem num “Estado contra a
Sociedade”.

Túlio Muniz
Túlio Muniz é historiador (graduação e mestrado
pela UFC), doutor em Sociologia/Pós-
Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de
Estudos Sociais (CES) da Universidade de
Coimbra, Portugal, e jornalista profissional.
Professor Adjunto da UNILAB.

ter valor e que a sociedade como tal não existe mas, sim, simples indivíduos e grupos sociais em prossecução dos
seus interesses.” In http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7738

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 2 | Ano 2016 | p. 24

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