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“CONTINUIDADE” E “DESCONTINUIDADE”:
O PROCESSO DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO NA HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Fumikazu Saito*
Resumo
ABSTRACT
* Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador do CESIMA
(PUC-SP). Professor do PEPG em História da Ciência (PUC-SP). Professor do PEPG em Educação Matemática (PUC-SP).
Endereço para correspondência: Rua Marquês de Paranaguá, 111, Prédio I, 2º andar – Consolação. CEP: 01303-050. São Paulo-
-SP-Brasil. fsaito@pucsp.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 183
“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
theses without taking into consideration that these very theses were the results of a
way of thinking the world which was designed and instituted facing the scientific
knowledge of a certain time. In this paper the author proposes that the approach of
the history of science to science teaching should be guided by an approach based
upon current trends in historiography rather than focusing it in the formal aspects of
science. Special attention is given to the context in which Bachelard´s and Kuhn´s
epistemologies were evolved.
Keywords: History of science. Epistemology. Continuity and discontinuity.
Constructing scientific knowledge. Nature of science.
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como veremos mais adiante, as epistemologias de tava essencialmente a-histórica. Na época em que
Bachelard e de Kuhn não parecem dar conta do Bachelard formulou suas ideias, o neopositivismo,
processo histórico da construção do conhecimento expressão do conhecimento filosófico entre as duas
científico e são tomadas com muita cautela por al- grandes guerras mundiais, tinha como meta chegar
guns historiadores da ciência (BELTRAN, SAITO, a uma ciência unificada e, para atingi-la, propunha
2012; SAITO; BROMBERG, 2010; ALFONSO- restringir a própria concepção de ciência à lógica e
-GOLDFARB, 1994). à matemática. Assim como o positivismo clássico,
Devemos ter em conta que a epistemologia é o proposto por Auguste Comte (1798-1857), o neo-
estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos positivismo mantinha a tendência de privilegiar
resultados das diversas ciências. Sua principal a ciência empírica como forma de conhecimento
característica é a reflexão sobre a argumentação válido, buscando, entretanto, novos critérios para
dos processos do conhecimento científico, argu- fundamentá-la. Para os neopositivistas, a ciência
mentação essa que se desenvolve sobre um pano de unificada deveria abranger todos os conhecimentos
fundo em que se entrelaçam diferentes concepções fornecidos pelas ciências empíricas sobre os quais
de ciência e outras posições de natureza ética, es- se aplicaria o método lógico de análise que havia
tética, filosófica, religiosa, política, ideológica etc. sido desenvolvido por matemáticos como Giuseppe
Assim, é sobre esse cenário de fundo que devemos Peano (1858-1932), Gottlob Frege (1848-1925),
situar as diferentes epistemologias da ciência para Alfred North Whitehead (1861-1947) e Bertrand
podermos compreendê-las em seu aspecto mais es- Russell (1872-1970) (PASQUINELLI, 1983;
sencial, tomando-se o cuidado de não extraí-las de SCHILICK, 1975).
seu contexto de modo a subtrair-lhes a historicidade É fácil compreender por que razão a epistemo-
que lhes é inerente. Isso porque toda epistemologia logia dos neopositivistas buscou circunscrever a
é formulada e desenvolvida em meio a posições ciência nos moldes lógico-matemáticos e relegar
conflituosas que conduzem a controvérsias. Em a história a um segundo plano. Naquela época, era
outros termos, as epistemologias de Bachelard e generalizada a sensação de que o edifício da ciência
de Kuhn devem também ser contextualizadas e não demoraria a ficar pronto. Os cientistas, que já
analisadas segundo concepção de conhecimento de não eram mais filósofos naturais, mas especialistas
suas respectivas épocas, visto que a epistemologia em campos de conhecimento específicos e com-
(e também a filosofia da ciência)2 está ancorada a plexos, sentiram-se então preparados para falar de
certos pressupostos discursivos próprios de uma sua própria área de conhecimento. Surgiu aí uma
época. Assim, como abordaremos a seguir, ao espécie de cientista-filósofo ou cientista-historiador
aproximarmos história da ciência do ensino de cuja ordem do dia era assentar a ciência sobre bases
ciências é preciso ter-se em conta que a epistemo- sólidas para garantir o aprimoramento do conheci-
logia também é resultado de uma forma de pensar mento científico (ALFONSO-GOLDFARB, 1994).
e ver o mundo e é elaborada e instituída frente ao Foi nesse contexto, em que a ciência e a episte-
conhecimento científico de uma época. mologia estavam preocupadas com o presente, que
Bachelard renovou alguns pressupostos filosóficos.
Gaston Bachelard Foi no confronto com as ideias neopositivistas que
ele anunciou que a ciência não tinha a filosofia que
Podemos dizer que a epistemologia de Bache- merecia porque ela estaria sempre atrasada em
lard surgiu num momento em que a reflexão sobre relação às mudanças do conhecimento científico
a natureza do conhecimento científico se apresen- (BACHELARD, 2006).
Para Bachelard, o instrumento de análise pri-
2 Por escapar do escopo principal deste artigo, não discutiremos
aqui a diferença entre filosofia da ciência e epistemologia. Cabe,
vilegiado da epistemologia não era a lógica, mas
entretanto, observar que esses dois domínios de conhecimento a história da ciência, concebida como área de
referem-se a assuntos distintos. O que se entende por epistemology conhecimento que investiga e identifica as fases
em países de língua anglo-saxônica é entendido como philosophie
de la science na França, por exemplo, e vice-versa (CARRILHO; efetivas atravessadas pelo desenvolvimento do
SÀÁGUA, 1991). saber científico (BACHELARD, 1996).
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
Segundo Bachelard, “o ato de conhecer dá-se lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de
contra um conhecimento anterior, superando o que, estagnação e até de regressão, detectaremos causas
no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização de inércia à quais daremos o nome de obstáculos
[...] [Assim], aceder à ciência é rejuvenescer es- epistemológicos. (BACHELARD, 1996, p. 17).
piritualmente, é aceitar uma brusca mutação que O obstáculo epistemológico era uma ideia que
contradiz o passado” (BACHELARD, 1996, p. impedia e bloqueava outras ideias, podendo esta
17-18, grifo do autor). Isso significa que as suces- ser hábitos intelectuais cristalizados, teorias cientí-
sivas contradições do passado, que se afiguram ficas dogmáticas, dogmas ideológicos entre outros.
como autênticas rupturas epistemológicas, seriam Portanto, a história da ciência para Bachelard era
as molas propulsoras do desenvolvimento do co- a história da superação desses obstáculos episte-
nhecimento científico. Nesse sentido, a história da mológicos. Nesse sentido, o conhecimento sempre
ciência avançaria com base em sucessivas rupturas avançaria de forma progressiva aproximando-se da
epistemológicas. verdade por meio de um longo trabalho de cons-
Cabe observar que a concepção que subjaz a trução e de retificação, ou seja, rompendo com o
essa ideia tem por base a ruptura entre conhecimen- conhecimento anterior.
to de senso comum e científico (BACHELARD, Podemos dizer que Bachelard foi considerado
1977). Para Bachelard, o conhecimento de senso pelos educadores como o teórico da descontinuida-
comum era mera opinião. Para ele, “a ciência, de. E, talvez, do ponto de vista epistemológico (e
tanto por sua necessidade de coroamento como por não histórico), a ideia de obstáculo epistemológico
princípio, opõe-se absolutamente à opinião [...] A tenha se mostrado bastante atrativa ao educador,
opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades visto ser um conhecimento e não, como se poderia
em conhecimentos [...] Ela é o primeiro obstáculo supor à primeira vista, ausência de conhecimento.
a ser superado” (BACHELARD, 1996, p. 18, grifo Além disso, um obstáculo epistemológico não era
do autor). Isso porque toda opinião já era resposta um conhecimento falso, uma vez que ele permi-
a um problema, e o espírito científico proibia-nos tia produzir respostas satisfatórias, e até mesmo
de termos opiniões sobre questões que não com- corretas, a certos tipos de problemas. Todavia,
preendemos. Assim, Bachelard alertava que, antes, tal conhecimento tornava-se inadequado quando
precisávamos aprender a formular claramente as era transposto ou aplicado a outras categorias
questões e considerar, em seguida, as teorias que de problemas, estagnando assim o progresso do
as responderiam. É nesse sentido que ele afirmava conhecimento científico. Então, para promover o
que o conhecimento científico vivia da agitação avanço do conhecimento era preciso retificá-lo, ou
dos problemas. Em outros termos, o conhecimento seja, corrigi-lo em nome do progresso da ciência.
científico avançaria por meio de sucessivas retifi- No que diz respeito ao ensino de ciências,
cações de erros anteriores. Desse modo, como “o essas ideias fundamentaram diversas pesquisas
ato de conhecer dá-se contra um conhecimento e propostas de ensino de ciências que buscaram
anterior” (BACHELARD, 1991, p. 17), a verdade determinar as concepções prévias dos alunos e
alcançaria pleno sentido quando um problema era propor estratégias didático-metodológicas para
resolvido, ou seja, quando um erro do passado era superá-las (BELTRAN, 2009), inclusive no ensino
retificado: de matemática (MIGUEL; MIORIM, 2005), cuja
área de referência, segundo Bachelard, não teve
Quando se procuram as condições psicológicas do
progresso da ciência, logo se chega à convicção de
que superar obstáculos epistemológicos em seu
que é em termos de obstáculos que o problema do desenvolvimento (BACHELARD, 1996). Além
conhecimento científico deve ser colocado. E não disso, essas ideias foram aceitas por alguns edu-
se trata de considerar obstáculos externos, como a cadores que se prontificaram a buscar obstáculos
complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem epistemológicos enfrentados pelos cientistas no
de incriminar a fragilidade dos sentidos do espírito desenvolvimento do conhecimento científico para
humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que fundamentar suas propostas curriculares e de ensino
aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, de ciência (GIORDAN; VECCHI, 1996). Muitas
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dessas propostas, entretanto, buscaram estabelecer melhor coordenadas”, que “o passado de verdade
um paralelo entre o desenvolvimento da ciência e surge mais claramente progressivo na própria qua-
o desenvolvimento psicológico da criança (GIL- lidade de passado”. Em outros termos, Bachelard
-PÉREZ, 1983), tendo por base a tese de que, no referia-se a uma história que os historiadores da
desenvolvimento psicogenético do indivíduo, da ciência atualmente identificam como “presentista”,
mesma forma que na biologia, a ontogênese repro- isto é, uma história que busca pinçar no passado
duziria a filogênese. Desse modo, tais propostas somente o que é familiar, deixando de lado outros
acabaram se pautando na ideia de que existiria aspectos, que na realidade foram importantes,
um “paralelismo” entre a história do pensamento por serem incompreensíveis. Consequentemente,
científico e o desenvolvimento da inteligência da estudos em história da ciência pautados nessa
criança (GARCIA; PIAGET, 1987). perspectiva tenderam a reforçar a ideia de que
Segundo Beltran (2009), surgiram críticas ciência era um corpo de conhecimentos acabado
severas em relação a essas ideias, visto que seria e verdadeiro, visto que a ciência teria convergido
um absurdo comparar o complexo pensamento de para o momento presente, que seria a etapa mais
Aristóteles ao de uma criança. Além disso, nem aprimorada de seu desenvolvimento (BELTRAN;
o pensamento da Aristóteles é infantil, nem as SAITO, 2012).
crianças deveriam ser pequenos filósofos gregos. Podemos dizer que, na acepção de Bachelard,
Desse modo, alguns educadores que inicialmente a história da ciência é apenas uma história daquilo
defenderam a ideia do paralelismo teriam mudado que deu certo e é verdadeiro, uma vez que é a
de posição. história da retificação dos erros do passado. Uma
No que diz respeito à historia da ciência, embora proposta historiográfica que tenha a epistemologia
a epistemologia de Bachelard muito tenha contri- descontinuísta inspirada no modelo de Bachelard
buído para elaborar perspectivas historiográficas tende, assim, a nos conduzir a uma história da
não continuístas, na medida em que rompera com ciência descontextualizada, visto que deixa de
a visão linear do desenvolvimento da ciência, tão lado outros aspectos ligados à ciência. Em outros
cara aos positivistas e neo-positivistas, sua ideia termos, Bachelard refere-se a uma história que
de progresso, entretanto, continuou fundamentada valoriza apenas as condições internas do discurso
naquelas escolas (BELTRAN; SAITO, 2012). Isso científico, deixando à margem outros desdobra-
porque, na época de Bachelard, a ciência era a mais mentos de natureza social, política, econômica etc.
alta expressão do conhecimento. Era nela que de- Em suma, para o historiador da ciência, a epis-
veriam espelhar-se não só a filosofia, mas também temologia de Bachelard rompera com uma concep-
a história da ciência. A reflexão sobre a ciência, ção cumulativa e linear do conhecimento, embora
assim, deveria acompanhar seus novos desdobra- ainda admitisse a noção de progresso científico.
mentos que, em seu processo construtivo, rompera Entretanto, ainda na mesma esteira, defendendo a
com os erros do passado e avançaria e progrediria descontinuidade no desenvolvimento do conheci-
rumo ao futuro. Consequentemente, nesse contexto, mento científico, uma ideia mais radical seria ainda
faria sentido uma história da ciência que julgasse o proposta por outro filósofo natural, que também
passado, como bem salientou Bachelard: viria a defender uma epistemologia da ruptura,
[...] o historiador da ciência, para bem julgar o introduzindo as noções de incomensurabilidade e
passado, deve conhecer o presente; deve aprender paradigma, como veremos a seguir.
o melhor possível a ciência cuja história se propõe
escrever. E é aqui que a história das ciências, quer
Thomas S. Kuhn
se queira quer não, tem uma forte ligação com a ac-
tualidade da ciência. (BACHELARD, 2006, p. 209).
Em 1963, Kuhn, em A estrutura das revoluções
Segundo Bachelard (2006, p. 209), era o pre- científicas, procurou apresentar um modelo para
sente que iluminava o passado, isto é, “a partir das o desenvolvimento da ciência com base nos mo-
verdades que a ciência actual tornou mais claras e mentos de grandes mudanças conceituais, ou seja,
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
nas revoluções científicas. Essa obra chegaria a acumulativa, o problema agora era explicar como
alcançar um público não especializado na reflexão uma teoria substituía (ou substituíra) outra, ou seja,
da filosofia da ciência, atraindo sociólogos, antro- entender como é que as teorias, que não se acumu-
pólogos e historiadores para a história da ciência. lavam meramente, eram formuladas e justificadas.
Diferentemente da proposta de Bachelard, a de Kuhn então buscou estabelecer estreito contato com
Kuhn procurou redefinir as bases para se explicar a história da ciência, propondo a existência de mo-
a quebra de processo do desenvolvimento do co- mentos de rupturas no processo do desenvolvimen-
nhecimento. to do conhecimento científico. Assim, procurando
Como já mencionamos, a diferença entre as suplantar as teses que defendiam o continuísmo,
ideias de Kuhn e de Bachelard torna-se com- ele buscou justificar a descontinuidade na ciência
preensível se contextualizarmos a concepção de por meio da noção de “paradigma”.
conhecimento em que tais epistemologias foram Em linhas gerais, o “paradigma” seria um
elaboradas. E, nesse sentido, podemos dizer que a conjunto de regras, normas, crenças, teorias etc.
epistemologia de Kuhn surgiu num momento em que forneceria o modelo de problemas e soluções
que as reflexões sobre a natureza do conhecimento aceitáveis por certo período à comunidade cientí-
científico estavam voltadas para as questões meto- fica. Esse período em que os problemas emergiam
dológicas da ciência. e eram definidos e resolvidos pelo paradigma foi
Cabe observar que, embora a proposta episte- denominado por Kuhn “ciência normal” (KUHN,
mológica de Bachelard tenha valorizado a história 1997).
da ciência, tal como vimos anteriormente, grande Podemos dizer que fazer ciência “normal” sig-
parte dos filósofos e pensadores da ciência ainda nificava resolver quebra-cabeças. Segundo Kuhn:
consideravam-na apenas como um espaço da des- A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constan-
crição do contexto das descobertas da ciência: “um temente) para aproximar sempre mais a teoria e os
espaço eventual, exterior ao processo natural e ló- fatos. Essa atividade pode ser vista como um teste ou
gico do conhecimento” (ALFONSO-GOLDFARB, uma busca de confirmação ou falsificação. Em lugar
1994, p. 82). disso, seu objeto consiste em resolver quebra-cabeça,
Alguns filósofos da ciência, notadamente Po- cuja simples existência supõe a validade do paradig-
pper, propuseram novos modelos para explicar ma. O fracasso de uma solução desacredita somente
o desenvolvimento da ciência (POPPER, 1979, o cientista e não a teoria. (KUHN, 1997, p. 111).
1993). Essas propostas, entretanto, buscaram Uma vez aceito o paradigma, a comunidade
explicar a transformação das teorias científicas científica adquiria também os problemas e os cri-
analisando sua coerência e estruturas lógicas. térios para resolvê-los. O sucesso e o insucesso da
Desse modo, dando ênfase ao método científico, solução de problemas não estariam dessa maneira
esses modelos buscaram dar uma explicação lógica necessariamente relacionados às regras impostas
das razões pelas quais as teorias científicas não pelo paradigma, mas à capacidade do pesquisador
se acumulavam como mera sequência umas das em resolver um problema. Assim, a resolução de
outras, mas que uma suplantava a outra (POPPER, problemas fortalecia a ciência “normal”, que pro-
2003). Isso porque do ponto de vista lógico (e não curaria elaborar instrumentos mais sofisticados e
histórico), o natural seria encontrar uma teoria potentes, ampliando a teoria e precisando seus
que explicasse melhor e de forma mais ampla os conceitos (KUHN, 1997).
fenômenos que a anterior explicava. A ciência A ciência “normal”, portanto, seria acumulati-
teria, assim, por propósito a eliminação dos erros va, e o cientista “normal” não buscaria a novidade
das teorias anteriores, substituindo-as por teorias (KUHN, 1997). Razão esta que explicaria os perí-
mais verossímeis de tal modo a aproximar-se da odos em que uma teoria ganharia força e se apri-
verdade de modo progressivo. moraria progressivamente. Contudo, no processo
Podemos dizer que foi sobre esse pano de fundo de articulação teórica e empírica dos paradigmas,
que Kuhn desenvolveu sua tese descontinuísta. o conteúdo informativo de uma teoria aumentaria
Visto que as teorias não se sucediam de forma gradativamente, acabando por colocá-la em risco.
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Assim, contra o pano de fundo proporcionado teorias mais amplas que superariam as anteriores.
pelo paradigma, surgiriam as “anomalias” que o Aspecto este muito diferente do que encontramos
cientista em algum momento teria que dar conta. na proposta epistemológica de Kuhn. Em outros
Segundo Kuhn: “Quanto maior forem a precisão termos, o novo paradigma na perspectiva de Kuhn
e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível não explicaria nem mais, nem melhor os fenômenos
este será como indicador de anomalias e, conse- antes explicados pelo paradigma anterior. O que
quentemente, de uma ocasião para mudança de significa que os conceitos e as teorias existentes
paradigma” (KUHN, 1997, p. 92). no velho paradigma e aqueles formulados dentro
Com a crise do paradigma iniciar-se-ia um perí- do novo seriam incomensuráveis. Segundo Kuhn:
odo de ciência “extraordinária”, em que os cientis- A maior parte dos leitores do meu texto supusera
tas perderiam confiança na teoria que antes haviam que quando eu falei de teorias incomensuráveis,
abraçado, colocando em crise o paradigma vigente queria dizer que elas não podiam ser comparadas.
(KUHN, 1997). Essa crise geraria instabilidades Mas ‘incomensurabilidade’ é um termo retirado da
que se transformariam em verdadeiras revoluções matemática onde não implica tal coisa [...] O que
na ciência. Nesse período, vários novos paradigmas falta não é a comparabilidade, mas uma medida
concorreriam para substituir o anterior. Tais para- de comprimento em termos da qual ambos possam
digmas, entretanto, ainda seriam incompletos por ser medidos direta e exatamente. (KUHN, 1976, p.
não incorporarem a série de normas e explicações 190-191).
que só o paradigma estabelecido poderia fornecer. É Dizer que duas teorias eram incomensuráveis
nesse período que a comunidade científica pautaria não significava necessariamente que não fossem
sua escolha em motivos nada racionais, ou seja, a passíveis de comparação, mas que essa comparação
escolha do novo paradigma dar-se-ia por razões não poderia ser feita por meio de uma redução ou
estéticas, emocionais e até políticas e religiosas. de outros métodos habitualmente discutidos no con-
Todavia, uma vez acabada a crise e estabelecido o texto da filosofia da ciência (KUHN, 2006). Kuhn,
novo paradigma, esse período de “irracionalidade” assim, abria as portas para a história da ciência
seria esquecido. Ocorreria aqui uma verdadeira vasculhar o passado e o presente numa nova busca.
mudança na concepção de mundo: Ou seja, como bem observa Alfonso-Goldfarb,
Guiados por um novo paradigma, os cientistas ado- A busca de como cada cultura, cada comunidade
tam novos instrumentos e orientam seu olhar em científica e cada época construiu, de acordo com
novas direções. E o que é ainda mais importante: seus objetivos e suas formas de ver o mundo, os
durante as revoluções, os cientistas veem coisas critérios das verdades que regeriam sua ciência. E
novas e diferentes quando, empregando instrumentos se as ciências de várias épocas e diversas culturas
familiares, olham para os mesmos pontos já exami- teriam, cada uma, seus próprios critérios do que fosse
nados anteriormente [...] as mudanças de paradigma verdadeiro ou falso, a ciência moderna deixava de
realmente levam os cientistas a ver o mundo definido ser o padrão. Tornava-se tão-só uma ciência entre
por seus compromissos de pesquisa de uma maneira muitas, nem melhor nem mais completa, apesar de
diferente. (KUHN, 1997, p. 145-146). sua pujança. A ciência moderna deveria, a partir
Diferentemente de Bachelard, podemos dizer daí, ser estudada historicamente para que se pudesse
que Kuhn relativizou o processo do desenvolvi- entender a constituição dos critérios que lhe deram
formação. (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p. 86,
mento do conhecimento científico introduzindo
grifo do autor).
nele alguns aspectos não formais da lógica da
pesquisa científica. Com efeito, no que diz respeito No que diz respeito ao ensino de ciência,
à história da ciência, a perspectiva epistemológica podemos dizer que, diferentemente das ideias de
de Bachelard reforça ainda a ideia de que o co- Bachelard, as ideias de Kuhn não chegaram a ter
nhecimento científico avançaria e se aprimoraria muita influência em propostas didático-pedagógi-
de modo natural, superando obstáculos episte- cas. Entretanto, a noção de paradigma parece ter
mológicos. Nessa perspectiva, a ciência no seu influenciado alguns educadores porque o próprio
processo histórico de desenvolvimento elaboraria Kuhn teria observado que a função do paradigma
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
cumpria-se nos manuais científicos e livros didáti- cias historiográficas passaram a ser propostas e,
cos por meio dos quais o jovem estudante é iniciado nelas, levaram-se em consideração não só as con-
na ciência (KUHN, 1997). tinuidades, mas também as rupturas no desenvolvi-
Contudo, no que diz respeito à história da ci- mento no processo de transmissão, transformação e
ência, o termo “paradigma” é utilizado com muita adaptação dos conhecimentos científicos. Todavia,
cautela pelos historiadores, visto ter se transforma- ao contrário das ideias de Bachelard e de Kuhn,
do numa daquelas palavras mágicas que explicam que tiveram grande penetração entre educadores,
tudo.3 Além disso, do ponto de vista filosófico e essas novas perspectivas parecem não ter chegado
historiográfico, o termo é vago e não parece dar sequer a ser consideradas no campo do ensino
conta do desenvolvimento progressivo do conhe- (TRINDADE et al., 2010).
cimento científico. Atualmente, história da ciência não mais se
A ideia de que a mudança de paradigma implica confunde com epistemologia ou filosofia da ciên-
em progresso da ciência é um problema bastante cia. A história da ciência renovou seus pressupos-
complexo que tem recebido atenção de filósofos tos e suas propostas historiográficas nos últimos
da ciência. Contudo, na perspectiva da história da anos, fortalecendo laços com o campo da própria
ciência, não encontramos no passado pessoas dedi- história, da sociologia e de outras áreas das hu-
cadas, de modo consciente, a promover mudanças manidades. Assim, nos dias de hoje, a história da
de paradigma, nem mesmo superando obstáculos ciência, embora mantenha a epistemologia como
epistemológicos. Para alguns historiadores da uma de suas possíveis abordagens, não se limita
ciência, as epistemologias da ruptura de Kuhn e a ela. Novas abordagens metodológicas propõem
Bachelard foram elaboradas num contexto em que a escrever história da ciência envolvendo três esferas
própria ideia de progresso constituía um dos pilares de análise: epistemológica, historiográfica e con-
do fazer científico. Isso significa que é preciso tam- textual, conforme proposta historiográfica apresen-
bém contextualizar a ideia de progresso4, evitando tada e discutida em recente seminário internacional
assumi-la como um dado objetivo, tal como foram (ALFONSO-GOLDFARB, 2008).
admitidas nas epistemologias de Kuhn e Bachelard. Essa nova abordagem nos estudos de história da
ciência tem buscado contextualizar o conhecimento
científico, valorizando o processo da construção
Novas perspectivas historiográficas
deste conhecimento. Assim, diferentemente dos es-
tudos pautados em tendências historiográficas mais
A despeito das críticas ao relativismo suposta-
tradicionais, que têm apenas valorizado resultados,
mente assumido por Kuhn, suas propostas tiveram
novas propostas historiográficas têm enfocado
grande repercussão e juntaram-se à de muitos
suas investigações nos processos que conduziram
estudiosos que buscavam novas abordagens para
a tais resultados, considerando agora uma rede de
a história da ciência. Dentre esses estudiosos po-
inter-relações (ALFONSO-GOLDFARB, 2003;
demos citar aqui Walter Pagel (1898-1983) com o
ALFONSO-GOLDFARB; FERRAZ; BELTRAN,
seu trabalho pioneiro sobre Paracelso, bem como
2004). Desse modo, em vez de adotar uma per-
Frances Yates (1899-1981) sobre a retomada da
spectiva normativa e filosófica, atuais tendências
tradição hermética na época de Giordano Bruno,
historiográficas da história da ciência têm insistido
entre outros5.
na necessidade de contextualizar o conhecimento
A partir desses estudos pioneiros, novas tendên-
científico, procurando compreender a ciência do
3 Na verdade, Kuhn utiliza o termo “paradigma” em mais de passado tal como ela era vista no passado, e não
um sentido. A esse respeito, vide Masterman (1978). como ela deveria ser vista segundo uma perspectiva
4 Convém observar que a noção de “progresso”, que tem por
pressuposto a ideia de que é possível chegar a uma verdade filosófica pré-concebida. Em outros termos, para
absoluta, não é um dado objetivo, mas um valor. A noção de compreendermos a natureza da ciência, por meio
progresso também não pode ser desvinculada do contexto de seu processo de construção histórica, é preciso
histórico. Vide Rossi (2000) e Butterfield (2003).
5 Pagel (1960, 1961, 1982) e Yates (1988, 2001, 2003). Vide avançar além da própria caracterização formal da
também McGuire e Rattansi (1995); Rattansi (1972, 1988). ciência moderna. Isso porque, como bem sugere
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Canguilhem (1977, p. 15), “a ciência atual não se que a ciência progride e aprimora-se deixando de
confunde com essa mesma ciência no seu passado”. lado questões de ordem contextuais importantes.
Nesse sentido, tendências historiográficas atuais Ao proceder dessa maneira, os conteúdos da ciên-
têm procurado situar a ciência do passado no pas- cia são organizados de tal modo a dar ênfase nos
sado, analisando cada etapa do desenvolvimento encadeamentos lógicos dos conceitos sem relação
do conhecimento científico segundo uma rede de com as necessidades extracientíficas.
relações. Assim, estudos recentes em história da Por outro lado, dar ênfase apenas ao contexto
ciência têm mostrado que tanto as rupturas quanto em que a ciência foi elaborada também apresenta
as continuidades devem ser consideradas rel- problemas. Como bem observam Trindade et al
evantes, assim como as influências de fatores refer- (2010, p. 126), os alunos normalmente têm parco
entes à lógica interna dos conceitos e teorias e o conhecimentos de história e praticamente nenhum
papel das influências externas à ciência do período de filosofia. Desse modo,
em que tais conceitos e teorias foram elaborados
ao restringir apenas aos aspectos sociais que propi-
(ALFONSO-GOLDFARB; BELTRAN, 2002, ciaram o aparecimento de determinados conceitos,
2004, 2006; BELTRAN; SAITO, TRINDADE, o educando não é colocado frente aos debates que
2010, 2011; SAITO, 2011). envolveram os estudiosos da época e que propi-
Contudo, esses novos estudos ainda não chega- ciaram a formulação de novos conhecimentos, ou
ram a educadores e professores das várias discipli- ainda de novas formas de se compreender antigos
nas. A perspectiva histórica dominante que permeia conhecimentos.
o material didático para o ensino de ciências, bem
Assim, no que diz respeito ao ensino de ciên-
como veiculadas pelos meios de divulgação cientí-
cias, é preciso começar pela história da ciência e
fica, continua ainda a valorizar uma história linear
não pela epistemologia. Episódios da história da
e progressista. A história da ciência geralmente é
ciência, pautada em tendências historiográficas
utilizada como fonte de exemplos na apresentação
mais atualizadas, pode servir de porta de acesso
das teorias, e espera-se que os discentes construam
às questões epistemológicas da ciência. Para tanto
conhecimento sobre a natureza da ciência por meio
é preciso aproximar o historiador da ciência do
de conceitos científicos. Segundo Trindade et al
educador. Será somente por meio de um diálogo
(2010, p. 125-126), tal forma de abordagem
entre historiadores da ciência e educadores que
apresenta alguns problemas: a aprendizagem não é poderemos superar os desafios que enfrentamos
favorecida porque os alunos são colocados diante de na articulação dessas duas áreas de conhecimento
questões epistemológicas que sequer formularam e
distintas, história e ensino (SAITO, 2010; TRIN-
acabam sendo conduzidos a interpretações sobre um
conceito sem terem estabelecido qualquer tipo de
DADE et al., 2010).
crítica sobre eles. Decorre daí que é absolutamente
inútil a leitura de textos antigos, originais, sem que Considerações finais
se conheçam as condições históricas, sociais, e da
própria ciência do período em foco. As epistemologias descontinuístas às vezes
Os educadores têm buscado utilizar a história mascaram a expectativa de que, por meio delas,
da ciência para propiciar uma formação em que o podemos superar o discurso positivista e progressis-
discente veja a ciência de modo crítico. Todavia, ta do conhecimento científico. A noção de ruptura,
ao pautarem-se em questões formais da ciência, certamente, desconstrói a ideia de acumulação de
os educadores muitas vezes não percebem que, na conhecimento. Todavia, não rompe necessariamen-
maioria das vezes, os estudantes não estão prepa- te com as ideias de linearidade e progresso. Para
rados para elaborar questões de natureza episte- que possamos compreender o desenvolvimento
mológica. Além disso, uma história da ciência que do conhecimento científico, devemos voltar o
apenas ilustre ou encadeie logicamente as ideias nosso olhar para o próprio processo de construção
científicas do passado até o presente numa sequên- da ciência. Devemos compreender que as várias
cia cronológica e linear tende a reforçar a ideia de epistemologias da ciência também fazem parte
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
desse processo e que, portanto, elas também devem construção do conhecimento científico. Todavia,
ser contextualizadas. Diferentes épocas elaboram é importante que o educador tenha consciência de
diferentes epistemologias, assim como diferentes que a História da Ciência não se encontra pronta e
concepções de ciência. Desse modo, ao articular acabada. Ela não deve ser confundida pelo educador
história e ensino é preciso levar em consideração como um repositório fixo de informações onde ele
a visão historiográfica de referência. poderia buscar recursos para articular história e
Isso, entretanto, não significa que devemos ensino em sala de aula. A História da Ciência deve
tornar o professor um historiador. Visto que muitos ser tomada como ponto de partida para resignificar
manuais e livros didáticos de ciência, que buscam os conteúdos e levantar discussões sobre diferentes
aproximar história e ensino, ainda reforçam a ideia modelos de conhecimento, preparando assim o
linear e progressista do desenvolvimento do conhe- discente para as questões epistemológicas mais re-
cimento científico, é preciso aproximar o educador levantes. É nesse sentido que temos dirigido nossos
do historiador da ciência. Isso porque a história da esforços ao articular história e ensino de ciências.
ciência pode ser um instrumento importante para Em outros termos, a História da Ciência pode contri-
o professor que, utilizando-se de fontes adequadas buir na preparação dos alunos para que eles possam
e atualizadas, possa promover entre seus alunos formular questões epistemológicas importantes para
uma visão mais crítica em relação à ciência e à se compreender a natureza da ciência.
REFERÊNCIAS
192 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013
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“Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência
Recebido em 28.11.2012
Aprovado em 29.01.2013
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