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SEMIÓTICA E TEXTO 183

Ler o espaço teatral


José Simões de Almeida Jr1

Ao utilizarmos o termo “leitura” relaci- proposital ou não. Porém, nestes casos,


onado à atividade teatral, ele nos remete ini- quando uma linguagem se sobressai, ela será
cialmente a uma forte noção textocentrista; compreendida como fazendo parte do con-
e por consequência, a função do “leitor” junto do espetáculo, e portanto envolvendo
também fica atrelada a este contexto. a apreciação estética do leitor/espectador e
O teatro já ultrapassou a ditadura evidentemente a capacidade de decodificar
reducionista do texto como a matriz do fazer as mensagens produzidas pelos artistas. O fato
teatral, da qual emanavam todas as chaves denota a complexidade para a delimitação
para a sua compreensão e elaboração. da linguagem teatral e dos processos ine-
Atualmente, o texto dramático é um elemen- rentes à figura do leitor.
to integrante do processo teatral, que pode O leitor de um espetáculo teatral está
estar presente ou não no processo cênico. No diante de um processo de comunicação
entanto, parto da premissa de que não existe distinto daquele da leitura de um texto, pois
teatro sem texto. existem vários sistemas de signos que são
O espetáculo é sempre resultado de uma emitidos durante a sua ação, “sendo que não
partitura, ou daquilo que podemos chamar há um elemento isolável na representação
de texto cênico, cuja origem pode ter sido teatral que seja o equivalente dos signos
um texto dramático ou não. Este texto cênico linguisticos” (Bulik, 2001:36); de tal forma
final, que é o espetáculo, na maioria das vezes que ao considerarmos a “leitura” teatral,
não pode ser reduzido à escrita ou a quais- estamos considerando a existência de um
quer outros códigos iconográficos para sua processo de comunicação multisensorial, com
estruturação. É fácil observarmos estas uma ou várias mensagens de caráter forte-
impossibilidades de tradução: nos roteiros e mente estético e levemente semântico, ex-
diários de montagem publicados por alguns pressas por ícones; isto diante de um leitor/
grupos teatrais, principalmente os relaciona- espectador que fragmenta, distancia-se e
dos com a vanguarda teatral preocupados em separa todas as informações para sua com-
registrar a sua pesquisa, o seu espetáculo, preensão/percepção no espaço mental.
etc. Estes roteiros impressos de forma algu- O enunciado “ler o teatro” está ampla-
ma conseguem reproduzir a totalidade do mente associado aos trabalhos realizados nos
texto cênico apresentada pelo grupo. anos setenta por Anne Ubersfeld. Seus es-
A linguagem teatral é formada por vários critos são o ponto de partida para a reflexão
códigos cênicos, num evento polissêmico; sobre os processos de comunicação teatral
porém, acredito que esta linguagem não se e sobre a linguagem teatral. Mesmo que para
forma pela somatória dos códigos, mas surge Ubersfeld (1996) o teatro, apesar de conter
pela relação/interação entre os códigos de todos os elementos fundamentais (emissor,
diferentes linguagens, com o sentido que se receptor, a existência de um sistema de signos
deseja comunicar no evento teatral. que constituem a linguagem teatral) não se
Podemos notar algumas vezes que, em reduz à comunicação2, devido principalmen-
determinados espetáculos, uma ou outra lin- te a sua função poética. Ao estabelecermos
guagem especifica destoa do conjunto e uma leitura da atividade teatral, nos depa-
mantêm as suas especificidades, como no ramos com os complexos processos
caso de uma cenografia que difere de todo comunicacionais que envolvem a transmis-
o processo da encenação de um dado são e recepção de múltiplas linguagens.
espetáculo, nele exercendo uma função pra- A idéia é considerar o teatro como um
ticamente autônoma. Esta ação pode ser local de mediação capaz de receber as mais
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diversas emissões sígnicas, sendo o local Apesar da existência de vários tipos de


capaz de canalizar pontos de referência em área teatral (lieu théâtral), eles apresentam
comum entre os artistas e o público para uma pelo menos três características fundamentais
construção dos sentidos. e comuns que constituem o espaço da
Em seu livro “Lire le Théâtre I” Anne mediação. O primeiro seria a delimitação,
Ubersfeld coloca, no centro de suas refle- pois a área teatral (lieu théâtral) é sempre
xões para uma “leitura” do teatro, a neces- circunscrita a um determinado edifício, que
sidade de compreendermos a função do pode ou não ser específico para a atividade
espaço teatral: o papel do espaço no texto, teatral. A segunda característica é a presença
na representação, na perfomance, na de uma zona de atuação dos artistas, e outra
arquitetura teatral, etc, mediado por funções zona de atuação dos espectadores. Mesmo
sociopolíticas e socioculturais. quando o espetáculo não se encontra na
A estrutura proposta por Ubersfeld é relação estática de palco e platéia, a exemplo
baseada em cinco tipos de espaços: espaço do palco à italiana, estas duas estruturas
teatral (espace théâtral), espaço cênico (es- persistem. E a terceira é a descontinuidade
pace scénique), espaço dramático (espace que caracteriza o processo da criação teatral,
dramatique) e as áreas: teatral (lieu théâtral) isto é, a capacidade de segmentação e frag-
e cênica (lieu scénique). mentação da área teatral (lieu théâtral).
O que podemos perceber é que Ubersfeld É o local de confronto de atores e es-
propõe dois pares de conceitos, um geral e pectadores, dentro de uma estreita relação
abstrato (espaço) e outro específico e delimi- com a forma da sala, que reflete a estrutura
tado (área). Assim temos o espaço teatral da sociedade, facilmente perceptível na es-
(espace théâtral) construído por todas as outras trutura inicial do palco à italiana: a pers-
estruturas teatrais. Desta forma, o espaço teatral pectiva era determinada a partir do olhar do
(espace théâtral) pode ser compreendido como príncipe, em um processo de hierarquização
sinônimo do teatro. O espaço teatral (espace do olhar, que ocorre até hoje na maioria das
théâtral) não pode ser confundido com o salas de teatro. Tal hierarquização é deter-
edifício teatral. O edifício teatral é denomi- minada pela posição social ou pelo poder
nado como área teatral (lieu théâtral)3. econômico. Em geral, os melhores lugares
Ubersfeld reconhece o espaço no teatro (entende-se, o espaço do olhar privilegiado),
como a base da organização de um processo são os mais caros da sala. Muitos espetáculos
comunicacional, como organizador da per- tentam romper com essa hierarquização num
cepção ou reorganizador das experiências processo de democratização do olhar, mas
apresentadas no evento teatral, seja no plano esbarram na estrutura financeira: em geral
individual ou coletivo, enfim o espaço en- são espetáculos para poucas pessoas, em salas
quanto canal das mediações. pequenas, de modo a reduzir o “privilégio
Utilizando como base os trabalhos de do olhar”. Outros, uniformizam os preços dos
Anne Ubersfeld este artigo pretende desta- ingressos e não indicam o lugar que o
car alguns aspectos da leitura / interferência espectador vai ocupar, o que também impede
do espaço no teatro, mais especificamente do a ruptura com a hierarquia do olhar.
edifício teatral4 construído ou não para a É preciso salientar que este olhar comum
atividade teatral: o edifício teatral compre- que se espera da cena é praticamente impos-
endido como um signo intencional, de caráter sível, pois sempre haverá o recorte proposto
fortemente sociocultural que precede a re- pelo encenador e os vários ângulos da
presentação, e que será incorporado a ela. montagem, as diferentes distâncias e posi-
A área teatral (lieu théâtral) é o edifício ções de cada espectador em relação à cena,
teatral, definido pela sua relação física e etc, além de todas os outros atributos ine-
arquitetônica com o conjunto da cidade;mas rentes ao processo da recepção teatral.
é também o conjunto de características Mesmo um espetáculo montado em uma
materiais de relação entre o palco e a platéia, determinada área teatral (lieu théâtral) e,
como l´Opéra de Paris, Teatro Municipal de posteriormente, montado em outra área se-
São Paulo, o teatro grego, o anfiteatro ro- melhante, apresentará diferenças profundas
mano, etc. nos processos de recepção, pois cada área
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teatral implica num sistema de signos determi- o local reservado aos atores, com coordena-
nados que interferem na comunicação teatral. das e dimensões precisas para o desenvol-
Ocorre também a interferência do espaço vimento das suas atividades.
na produção da dramaturgia; podemos citar A área cênica (lieu scénique) é uma área
Shakespeare, que conhecia muito bem a área particular com características próprias. Tra-
teatral para a qual estava escrevendo (teatro ta-se de uma área circunscrita, delimitada do
elisabetano), suas limitações, entradas e espaço, de caráter duplo. A área cênica (lieu
saídas, a profundidade do palco, a ilumina- scénique)5 corresponde à zona de atuação ou
ção, os vários níveis para a atuação, e assim à área de jogo que pode ser modificada a
por diante. Da mesma forma aqueles que cada encenação, alterando a estrutura cena/
realizavam espetáculos em carroções, influ- sala presente na área teatral. Ela é codificada
enciados pelo teatro greco-romano e da Idade de um modo preciso pelos hábitos cênicos
Média, elaboravam seus textos a partir das de uma época e de um lugar, sendo o local
especificidades de um espaço aberto. da representação de espaços socioculturais,
A relação entre dramaturgia e área teatral como é o caso do espaço dividido em
é facilmente perceptível nas cenas anteriores mansões no teatro medieval. É uma
ao palco moderno, pois a área teatral apre- simbolização espacial da hierarquia de
senta uma relação psíquica e arquitetônica maneira horizontal, não da sociedade feudal,
com o conjunto da sociedade (Ubersfeld, mas da imagem que os homens faziam dela.
1996b:50). Dessa forma podemos traçar uma (Ubersfeld, 1996b:117)
relação da dramaturgia com a evolução das A maioria das atividades no teatro ainda
cidades e das áreas teatrais: da arena demo- se encontra imersa em um edifício teatral
crática do teatro grego de Ésquilo, Sófocles, que apresenta uma série de especificidades,
Eurípides e Aristófanes ao anfiteatro do pão sejam elas: técnicas (disposição da platéia,
e circo do Teatro Romano, da fábula Atelana, número de poltronas, boca de cena,
dos mimos, ou mesmo as mansões da Idade urdimento, profundidade do palco), histó-
Média, onde não havia um espaço especifico ricas (prédios construídos em um determi-
para a representação e a área teatral era a nado estilo ou época) e sociais (locais com
cidade. Ou seja: do palco elisabetano de valorização de status pessoal e cultural).
Shakespeare até o palco à italiana da pers- Não sabemos ao certo qual é o grau de
pectiva e da ilusão, até as inúmeras possi- interferência destas especificidades no lei-
bilidades de áreas teatrais no teatro moderno. tor teatral. No entanto, fica claro que o
Mesmo com a predominância do palco à Ubersfeld tem razão ao propor que a leitura
italiana, a nova dramaturgia da cena cami- do teatro passe pelo estudo do espaço. Pois
nha para romper com esta área teatral. é nele que o leitor/espectador se encontra
Dentro da área teatral constrói-se a área e interage para a construção dos sentidos
cênica (lieu scénique), que se define como do evento teatral.
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Bibliografia _______________________________
1
Universidade de Sorocaba – ECA-USP.
2
É necessário, no entanto, compreender que
Bulik, L. Comunicação e teatro.São
tais afirmações visavam responder ao teórico
Paulo:Villepress, 2001. Georges Mounin que não considerava o teatro
Fachin, L. Questões de ilusão teatral. In: como um processo de comunicação, pois subor-
Aletria (Revista de estudos de literatura), Belo dinava a comunicação a uma intenção de comu-
Horizonte, n.7, p.267-278, 2000. nicar (Ubersfeld, 1996:31).
3
Martin-Barbero, J. Dos meios às comu- Traduzo lieu théâtral por “área teatral” e não
por “lugar teatral”, para valorizar na língua por-
nicações: comunicação, cultura e hegemonia.
tuguesa o sentido de ‘visível’ e ‘delimitado’ acen-
2ed. Rio de Janeiro: UFRJ,2001. tuado por Ubersfeld em sua definição do termo.
Mcauley, G. Space in performance: 4
No Brasil o edifício teatral é denominado
making meaning in the theatre. S.I: Michigan ‘espaço teatral’.
5
Press, 1999. No Brasil não se utiliza o termo ‘área cênica’
Ubersfeld, A. Lire le théâtre I .Paris:, (lieu scénique), mas sim o termo ‘espaço cênico’
(espace scénique), que também é compreendido como
Belin,1996a.
sinônimo de ‘palco’ ou ‘cena’. Porém, na França e
_____. Lire le théâtre II. Paris: Belin, nos Estados Unidos (playing área) o termo área cênica
1996b (lieu scénique) corresponde à cena ou área de atuação.

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