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CARLOS LACERDA

Fundação Educacional de Penápolis - FUNEPE


Presidente: Fábio José Garcia Ramos Gimenes
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Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Penápolis - FAFIPE

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Coordenadoria Administrativa
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Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

CARLOS LACERDA
© 2019 Editora FUNEPE
Editora FUNEPE
Editor-Chefe:
Prof. Me. Thiago Mazucato
thiago@funepe.edu.br

Comissão Editorial:
Profa. Dra. Alessandra Guimarães Soares Profa. Me. Sabrina Ramires Sakamoto
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Conselho Editorial:
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Prof. Dr. Fernando Fabrizzi Prof. Dr. Wanderli Aparecido Bastos
Profa. Me. Gisele A. A. Corral dos Santos

Coleção Clássicos & Contemporâneos


Organizador: Prof. Me. Thiago Pereira da Silva Mazucato

Carlos Lacerda / autora: Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar ── Pená-


A282c polis: Editora FUNEPE, 2019.
70 p.

ISBN: 97885-93683-220

1. Ciências Socias. 2. Lacerda, Carlos. I. Título.

CDD: 300 (20a)


CDU: 30

ISBN: 97885-93683-220

Editora FUNEPE
Avenida São José, 400 - Vila Martins - Penápolis/SP - (18) 3654-7690
www.funepe.edu.br/editora - editora@funepe.edu.br
Sumário

Apresentação da Coleção, 7

Apresentação, 9

Aprendendo o ofício: a campanha contra Getúlio Vargas, 17

Regime de emergência ou exceção? A campanha contra Jusce-


lino Kubitschek, 23

Da vitória da UDN ao desapontamento com Quadros, 29

Liberalismo econômico à brasileira, 37

Regime militar: da aprovação à ruptura, 43

A Frente Ampla, 51

Considerações Finais, 63

Referências, 65
Apresentação da Coleção

A coleção "Clássicos & Contemporâneos" surge na Edito-


ra FUNEPE como resultado de um processo de intensificação da
prática da pesquisa dentro da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Penápolis (FAFIPE/FUNEPE). Mais especificamente,
vinculado ao Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) o
Grupo de Pesquisa "Sociologia, Política e Cidadania" vem produ-
zindo diversas pesquisas de iniciação científica, assim como a
pós-graduação (especialização) "Diversidade, Inclusão e Cidada-
nia", no âmbito da disciplina Pensamento Político Brasileiro e
Cultura Política Brasileira, realizam, dentre outras atividades de
ensino e pesquisa, estudos sobre pensadores clássicos e contem-
porâneos.

Neste sentido, a instituição, por meio da Editora FUNEPE,


sensibilizada por este conjunto de ações de ensino e pesquisa,
procurou articular uma rede de pesquisadores no campo mais
amplo das Humanidades, para que escrevessem sobre autores
específicos que tivessem trabalhado em suas pesquisas. A linha
editorial traçada para esta coleção consistiu em produzir mate-
riais bibliográficos de excelência, que pudessem ser utilizados

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

tanto por estudantes de graduação em estágios iniciais, quanto


pelo público leitor mais amplo.

A Coleção Clássicos & Contemporâneos, devido à sua ca-


racterística de possuir um escopo temático bastante amplo den-
tro das Humanidades, procurará trazer publicações das mais di-
versas áreas — Sociologia, História, Filosofia, Política, Antro-po-
logia, Geografia, Literatura, Psicologia, Educação, Economia, Di-
reito, e tantas outras áreas correlatas.

O seu fio condutor será sempre o de apresentar ao leitor


uma trajetória do autor que dá nome a cada título da coleção:
tanto em sentido biográfico quanto em sentido intelectual, apre-
sentando sempre as principais ideias e teses do autor retratado.

Thiago Mazucato
Organizador da Coleção Clássicos & Contemporâneos

8
Introdução

CARLOS LACERDA – “...minha ambi-


ção é ser completamente uma pes-
soa. Contraditória. Numerosa. Curi-
osa. Completa e variada, abrangente
e insaciável pessoa. Sedento de hu-
manidade e paixão. Quero conhecer
o Céu, o Inferno, o Purgatório e todos
os mundos possíveis.” (LACERDA,
1966e, p. 15)

Carlos Lacerda é uma das mais conhecidas e controversas


figuras da história brasileira do século XX. Político pouco estu-
dado e alvo de rótulos zombeteiros ou ofensivos, seu nome des-
perta ainda hoje, num país de memória curta, reações que vão
da mais incondicional admiração ao mais declarado repúdio.
Quem foi Carlos Lacerda? O jornalista “destruidor de presiden-

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

tes”? O atuante governador da Guanabara? O polemista de lín-


gua mordaz? Como entender a transformação de um jovem se-
guidor dos ideais marxistas em um político favorável ao golpe
militar? O objetivo deste trabalho é lançar um pouco de luz so-
bre uma figura fascinante, resgatando a trajetória político-ideo-
lógica e os aspectos mais relevantes do pensamento de Carlos
Lacerda, a fim de concebê-los dentro do quadro sempre com-
plexo e contraditório de nossa vida política nacional.
Carlos Frederico Werneck de Lacerda nasceu no Rio de
Janeiro em 30 de abril de 1914, filho do casal Maurício e Olga.
Tanto seu pai, quanto seu avô, Sebastião, tinham seguido car-
reira política e o ambiente doméstico era progressista. Seus tios,
Fernando e Paulo, que “eram realmente comunistas” (LACERDA,
1987, p. 28), iniciaram Lacerda no pensamento socialista.
No final da República Velha, a Revolução de 30 encontrou
a família Lacerda unida em torno do tenentismo e oposta ao en-
tão governo do Presidente Washington Luís. Os Lacerda foram
simpatizantes do movimento de Outubro, que levou Getúlio Var-
gas ao poder, e só vieram a romper com ele alguns anos mais
tarde, quando Vargas abandonou os valores liberais que eles res-
paldavam.

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Lacerda iniciou sua vida profissional muito cedo. Com 15


anos começou a colaborar no Diário de Notícias e logo destacou-
se pela desenvoltura, tanto na expressão escrita quanto falada.
A profissão contribuiu para a sua carreira política: a forma de
perceber o mundo, a facilidade em expressar-se, e o senso de
oportunidade revelam a formação jornalística e a intimidade
com o mundo das notícias.
Em 1932, Lacerda seguiu o clássico caminho dos rapazes
de boa família e ingressou na Faculdade Nacional de Direito.
Abandonou o curso alguns anos depois, mas sem antes ter rece-
bido a forte influência de dois professores marxistas, Edgard Cas-
tro Rebelo e Leônidas Rezende. A experiência o levou a ingressar
na “Juventude Popular” – braço da militância comunista –, e foi
como uma das lideranças desse grupo que Lacerda propôs,
em1934, o nome de Luís Carlos Prestes para Presidente da Re-
pública1. No ano seguinte, o governo Vargas, a pretexto de im-
pedir um golpe revolucionário, conseguiu poderes especiais no
Congresso e desmantelou a chamada Aliança Nacional Liberta-
dora.

1
Apesar de sua simpatia pelo PCB, nunca chegou a filiar-se a esse partido.

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

A ruptura com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), bem


como o envolvimento com a direita, só veio a ocorrer alguns
anos mais tarde, em 1939. O motivo parece ter sido a enco-
menda de uma matéria, pela revista Observador Econômico, so-
bre o comunismo no Brasil. Lacerda tinha a opção de aceitar a
incumbência e relativizar os riscos do comunismo no país ou
transferir o artigo a outro repórter, com o perigo que tal decisão
acarretava para os correligionários. O Partido o aconselhou a
aceitar a tarefa, mas, depois de publicado o artigo, Lacerda foi
acusado de traição (LACERDA, 1987). A reprovação dos compa-
nheiros abalou suas convicções e dissolveu sua lealdade para
com a esquerda em geral e os comunistas em particular. A de-
cepção final sobreveio quando o movimento “queremista” con-
ciliou o líder Luís Carlos Prestes ao ditador Getúlio Vargas.
Nessa mesma época, Lacerda casou-se com Letícia, mas
por uma questão de princípios - não acreditava nos sacramentos
da igreja - seu casamento foi realizado apenas no civil. Teve dois
filhos, Sérgio e Sebastião e mais tarde uma menina, Maria Cris-
tina. Sua aproximação com a religião só ocorreria depois de de-
vidamente rompido com a esquerda.

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Em 1947, Lacerda ingressou na política como vereador do


Distrito Federal pela União Democrática Nacional (UDN). Foi re-
cordista em número de votos, mas renunciou no ano seguinte
devido à dificuldade da Câmara em exercer poder sobre o pre-
feito nomeado2. Alcançou fama e projeção nacional por meio da
publicação de uma coluna, a “Tribuna da Imprensa” no jornal
“Correio da Manhã”. O sucesso jornalístico lhe permitiu arreca-
dar recursos para fundar seu próprio jornal e, em 27 de dezem-
bro de 1949, lançar o primeiro número do a “Tribuna da Im-
prensa: um jornal que diz o que pensa porque pensa o que diz”
Foi dessa plataforma midiática que Lacerda comandou a
campanha do “mar de lama” que desembocou no suicídio de
Vargas em 1954. A comoção em torno da morte do Presidente o
forçou a um curto exílio, mas não abalou seu prestígio e, ainda
nesse mesmo ano, foi eleito deputado federal com recorde de
votos. Lacerda adentrou a vida parlamentar como um líder de
expressão nacional que contribuiu a posicionar a UDN como al-
ternativa política.
Em 1955, Lacerda liderou uma campanha política contra
o candidato Juscelino Kubistchek pavimentando sua fama de

2
O senado havia retirado da Câmara de vereadores o poder de examinar os
vetos do prefeito que por sua vez era nomeado pelo Presidente da República.

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

“destruidor de presidentes”. Voltou a se eleger deputado federal


em 1958, mas renunciou ao mandato para concorrer às eleições
para Governador do Estado da Guanabara, surgido depois da
transferência da capital para Brasília.
Os primeiros anos da década de 1960 correspondem ao
apogeu político de Lacerda. Como líder da UDN e aspirante a go-
vernador de um estado que funcionava como caixa de ressonân-
cia das aspirações nacionais, ele foi fundamental nas manobras
que levaram seu partido a apoiar a candidatura de Jânio Qua-
dros. Contudo, pouco meses depois de assumir a presidência, a
incompatibilidade entre a liderança personalista e populista de
Quadros e as convicções simultaneamente liberal e conserva-
dora, modernizadora e autoritária de Lacerda, os apartou. O dis-
curso proferido por Lacerda na televisão, em 24 de agosto de
1961, foi considerado peça fundamental na renúncia de Qua-
dros. Com Joao Goulart fora do país, Lacerda conspirou com o
esquema militar que buscava impedir a posse do vice-presi-
dente. Durante a presidência deste, consagrou-se como uma das
principais lideranças civis contra seu governo e contribuiu forte-
mente para o golpe militar de 1964.
O declínio do prestígio e poder político de Lacerda coin-
cidem com essa nova etapa da história do Brasil. Ele ainda tentou

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

articular uma resistência ao governo militar mediante a criação


de uma Frente Ampla que congregasse as figuras marginalizadas
pelo novo regime. Aproximou-se de seus antigos adversários,
Juscelino Kubistchek e João Goulart, ambos no exilio, mas o mo-
vimento foi proibido e Lacerda cassado. Faleceu em 21 de maio
de 1977 sem ter conseguido recuperar seus direitos políticos.
Carlos Lacerda destacou-se pela inteligência e vasta cul-
tura. Dominava o idioma francês, mas também falava inglês. Sua
reconhecida habilidade oratória assegurava a conquista de vo-
tos, sobretudo entre o eleitorado feminino, que o irreverente
humor carioca apelidara de “malamadas” de Lacerda. Dispunha
de enorme energia e capacidade de trabalho sendo capaz de
emendar algumas noites sem dormir. Sempre escreveu muito e
deixou uma profusão de colunas, artigos e discursos que nos per-
mitem acompanhar seu pensamento político de forma pratica-
mente ininterrupta. A análise dessa produção nos revela um es-
tadista pragmático, que não hesitava em se contradizer e justifi-
car suas contradições ao tratar de alcançar um fim político.
Ainda assim, parte dessas inconsistências também pode ser atri-
buída ao fato de Lacerda frequentemente escrever seus textos
no calor das circunstâncias, privado de uma perspectiva mais dis-
tanciada dos acontecimentos.

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

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Aprendendo o ofício: a campanha contra
Getúlio Vargas

Um ano após a fundação do jornal a Tribuna da Imprensa,


Getúlio Vargas foi eleito presidente pelo voto popular. A eleição
do antigo ditador indignou Lacerda, que via na posse de Vargas,
o retorno do populismo e autoritarismo que haviam marcado o
Estado Novo. “A liberdade, em 37, foi suprimida. Em 51, é escar-
necida. Em 37, negaram-na. Em 51, enxovalharam-na” (LA-
CERDA, 1951a, p. 4). No dia da posse, o jornal estampava a man-
chete “Rumo ao desconhecido” e alertava para o perigo de Var-
gas trair a Constituição democrática como havia feito preceden-
temente. Durante os anos seguintes, o jornal não deu trégua e
sistematicamente fez oposição ao Presidente eleito.
As críticas eram inicialmente políticas, denunciando as
deficiências do governo. “Falta no ministério, em conjunto, re-

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

levo político e envergadura. O Sr. Vargas serve ao país um minis-


tério ralo e requentado” (LACERDA, 1951b, p. 4). Nem o Ministro
da Agricultura, pertencente à UDN, era poupado. João, apesar
de “brilhante usineiro”, seria incapaz de fazer a reforma agrária
prometida por Vargas durante sua campanha para “caçar votos
dos trabalhadores” (LACERDA, 1951b, p. 4). Segundo Lacerda, o
único objetivo de Getúlio, depois da cansativa campanha eleito-
ral era descansar, sendo o ministério “a medida de sua inércia”
(LACERDA, 1951b, p. 4). Denúncias de malversação de fundos e
prejuízo ao patrimônio nacional também eram recorrentes. La-
cerda chegou até a ser preso (1/12/1952), com base em Lei de
Segurança Nacional decretada durante o Estado Novo, mas sua
prisão levantou uma onda de solidariedade em defesa da liber-
dade de expressão que permitiu sua rápida libertação por deci-
são da Suprema Corte Federal.
De investida em investida, Lacerda foi intensificando seus
ataques contra a oligarquia Vargas aproximando-se gradativa-
mente do círculo familiar do Presidente. As denúncias de corrup-
ção tornavam-se cada vez mais explícitas com as manchetes da
Tribuna da Imprensa estampando: “Porque Lutero [filho de Var-
gas] é ladrão” (TI, 31 julho/1° agosto de 1954) ou “Somos um
povo honrado governado por ladrões” (TI, 2 agosto de 1954). A

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

crise estourou na madrugada do 5 de agosto, quando, em tenta-


tiva de assassinar Carlos Lacerda, foi morto seu amigo e guarda
costas o Major Rubens Vaz. Em editorial emocionado, o jorna-
lista relatava o caso e acusava:

Mas, perante Deus, acuso um só homem como respon-


sável por esse crime. E o protetor dos ladrões, cuja im-
punidade lhes dá audácia para atos como o desta noite.
Esse homem chama-se Getúlio Vargas. Ele é o responsá-
vel intelectual por esse crime. Foi a sua proteção, foi a
covardia dos que acobertaram os crimes dos seus asse-
clas que armou de audácia os bandidos. Assim como a
corrupção gera a violência, a impunidade estimula os cri-
minosos. (LACERDA, 1954b, p. 1)

A investigação revelou o envolvimento do Palácio do Ca-


tete no crime cometido na Rua Toneleiros, expondo ainda mais
a figura do Presidente e municiando a oposição que exigia a re-
núncia de Vargas. Incansável, Lacerda prometia:

Darei o resto de minha vida para que o espírito Vargas,


a infâmia Vargas, o crime que se chama Vargas, esse fri-
eza moral, essa ambição sinistra, essa mentira cínica,
essa promiscuidade porca de um governo que rouba o
povo para com o dinheiro do povo enganar o povo, de-
sapareçam da face desta nação tão digna de melhores
dias e de homens mais dignos à frente de seus destinos.
(LACERDA, 1954c, p. 4)

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

Havia uma saída legal: “a solução para a crise de governo,


para a crise de autoridade, para a crise moral que devasta o país
está na substituição do sr. Getúlio Vargas pelo seu sucessor cons-
titucional” (LACERDA, 1954d, p. 4).
A prisão de Gregório Fortunato expôs a rede de pistolei-
ros ligada ao crime tornando insustentável a permanência de
Vargas no poder. Pressionado a renunciar, o Presidente cometeu
suicídio na manhã do dia 24 de agosto. Algumas horas antes, La-
cerda cumprimentara o novo Presidente, Café Filho. Frente as
acusações de que havia provocado o suicídio de Vargas, Lacerda
defendeu-se:

Os que arrumaram o atentado da Rua Toneleiros são os


responsáveis pela tragédia da Rua do Catete. [...] Nunca
pregamos nem praticamos a violência. Nunca organiza-
mos atentados. Nunca usamos o nome do sr. Getúlio
Vargas para enganar o povo e corromper a Nação. Com-
batemos seu Governo com lealdade. Expusemos, nesse
combate desigual, a vida e a própria honra. [...] Rubens
Vaz e Getúlio Vargas são vítimas dos mesmos crimino-
sos. [...] Quando conhecer, devidamente, o nome desses
mandantes, o povo saberá quem provocou o suicídio de
Getúlio Vargas. [...] Lamentando, profundamente, a
morte trágica do Presidente Getúlio Vargas, não pode-
mos permitir que os que o levaram ao suicídio ainda se
aproveitem de sua morte para continuar o suplício do
Brasil. (LACERDA, 1954e, p. 4)

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

O leitor atual, acostumado a uma imprensa mais isenta,


certamente estranhará o estilo jornalístico de Lacerda, o rebus-
camento quase literário, a subjetividade de suas críticas políti-
cas. O jornalismo da época não era necessariamente assim, mas
Lacerda buscava mais do que informar com rigor, queria provo-
car e sugestionar os leitores da Tribuna da Imprensa.

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Regime de emergência ou exceção? A
campanha contra Juscelino Kubistchek

Entre junho e agosto de 1955, Lacerda liderou, através


das páginas da Tribuna da Imprensa, uma campanha a favor do
adiamento das eleições que iriam ser realizadas naquele ano e a
adoção de um regime de emergência. É preciso lembrar que não
se tratava mais de um jornalista desconhecido, mas um jovem
político com renome nacional e capacidade de se fazer ouvir. Se-
gundo ele, os muitos anos de varguismo haviam tornado obso-
leto o sistema eleitoral favorecendo o domínio da oligarquia con-
trolada pelo binômio Partido Social Democrático e Partido Tra-
balhista Brasileiro (PSD-PTB). Enquanto não fosse realizada uma
reforma eleitoral com a adoção de uma cédula oficial e novo ca-
dastramento de eleitores, as eleições não poderiam ser conside-
radas legitimas. “O que está errado é pretender que 25 anos de

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

intoxicação deletéria podem ser curados com uma eleição cele-


brada com as mesmas leis, os mesmos métodos e os mesmos
homens que participaram de toda essa infâmia contra a nação”
(LACERDA, 1955f, p. 4). Para evitar que os herdeiros da oligar-
quia retomassem o poder, era melhor “um ‘golpe’ dos democra-
tas do que a eleição dos golpistas” (LACERDA, 1955e, p. 4). E jus-
tificava: “Por eleições foram alçados ao poder alguns dos mais
antidemocráticos governantes de vários países - inclusive Vargas
em 1950” (LACERDA, 1955e, p. 4). Para Lacerda, se a democracia
“é o governo da maioria”, as minorias não tinham o “direito de
governar o Brasil como se fossem maioria” (LACERDA, 1955c, p.
4). Fica clara aqui a posição de Lacerda enquanto político elitista,
remanejando os pressupostos da democracia liberal com o fim
de atender objetivos partidários particulares.
Além dessa primeira razão, Lacerda invocava a própria
constituição de 1946. A tecnicalidade alegada consistia na im-
probabilidade de um candidato conquistar a maioria absoluta
dos votos. Naquele então, o pluripartidarismo brasileiro permi-
tia o lançamento de vários candidatos à presidência, vencendo o
que tivesse maioria. Porém, a existência de um turno único tor-
nava quase impossível, para qualquer pretendente, a obtenção

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

da maioria absoluta dos votos válidos (50%+1)3. “Sempre que a


lei diz ‘maioria’ quer dizer maioria absoluta, quando se trata de
maioria simples, isto é qualquer n° de votos superior ao do ob-
tido pelos demais concorrentes, tem o cuidado de esclarecer que
se trata de ‘maioria simples’ ” (LACERDA, 1955c, p. 4).
Na verdade, a constituição de 46 não fazia referência a
maioria absoluta, mas desde 1950, este era o argumento favo-
rito da UDN para tentar invalidar as eleições. Cabe assinalar que
tanto o Legislativo quanto o Judiciário brasileiro não se sensibili-
zaram com os argumentos apresentados pela UDN nas vezes em
que foi apreciada e julgada essa questão.
A leitura dos artigos de Lacerda nesse período revela a
figura de um “liberal” que não hesitava em apelar para meios
pouco ortodoxos para fazer valer seus objetivos. Lacerda não se
julgava um antidemocrata. Acreditava estar defendendo uma
nova democracia, mais sólida e consistente e não a de aparên-
cias que governava o Brasil e era dominada pelos políticos tradi-
cionais do PSD e do PTB. O povo não sabia mais votar e acabava
elegendo políticos em quem não devia confiar. Isto ocorria por-

3
Lacerda não procurava resolver esse impasse propondo a realização de 2
turnos, tal como iria fazer a constituição de 1988.

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

que o povo era como uma criança, sendo um alvo fácil de mani-
pulação por uma minoria de políticos ambiciosos e inescrupulo-
sos.
A crise não poderia ser solucionada por meio de uma elei-
ção. A única forma de alcançar um novo modelo democrático se-
ria pela adoção temporária de um regime de emergência. “Pelo
horror de sacrificar dois ou três anos de licenciosidade pseudo-
democrática” sacrificava-se “o futuro dos filhos, assim como a
possibilidade de implantar uma democracia autêntica no Brasil”
(LACERDA, 1955e, p. 4). O regime de emergência se impunha
como única alternativa viável para o país. “Estamos diante de um
caso de cirurgia de urgência. Caso bem simples, aliás. Mas cirúr-
gico, não clínico. Não adianta postar-se diante do doente e lhe
recomendar um discurso da duas em duas horas e uma mesa re-
donda às refeições” (LACERDA, 1955d, p. 4).
Embora Lacerda se dissesse a favor de um regime de
emergência e não de exceção, frequentemente os confundia.
Ainda que ele não adentrasse nas especificidades do funciona-
mento do regime, é possível inferir que ele defendia a entrega
de plenos poderes ao executivo por um prazo pré-determinado.
Em artigo intitulado “Proposta concreta para resolver a crise”,

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Lacerda (1955j, p. 4) sugeria uma redução no número de parti-


dos e a revisão do alistamento eleitoral. O Congresso Nacional
deveria entrar em recesso até janeiro de 1956 quando se convo-
cariam eleições para uma nova Assembleia Constituinte que te-
ria a função de examinar, discutir e emendar a Constituição. En-
quanto isso, o regime seria parlamentarista com a chefia do ga-
binete exercida por um militar. “Às Forças Armadas compete, em
defesa da República do Brasil e do futuro de seu povo, tudo
aquilo que os civis não tiveram força para fazer sozinhos, na re-
cuperação moral e reconstrução material do país” (LACERDA,
1955h, p. 4).
Muitas questões ficam em aberto, até porque Lacerda
era mais um homem de ação do que voltado para a reflexão aca-
dêmica. Mesmo assim, é possível perceber que ele pretendia re-
tirar o controle do governo das mãos da classe política, ainda que
a direção exercida pelos militares fosse provisória. Uma vez rea-
lizadas as reformas que levariam à “implantação definitiva de
uma democracia autêntica” (LACERDA, 1955i, p. 4) o poder seria
restituído à liderança civil. A todos aqueles que se opunham à
participação dos militares em assuntos políticos, Lacerda reba-
tia:

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

Todas as revoluções e golpes dos últimos trinta e poucos


anos foram de ou com os militares. Em nenhum deles,
em movimento algum, prevaleceu entre eles o bonapar-
tismo, o militarismo, qualquer das formas clássicas ou
modernizadas de usurpação. Não precisa, pois, a Nação
temer uma tradição que não existe” (LACERDA, 1955g,
p. 4).

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Da vitória da UDN ao desapontamento
com Quadros

Jânio Quadros foi eleito Presidente da República em 3 de


outubro de 1960. Completava, assim, a fulminante carreira polí-
tica iniciada treze anos antes ocupando sucessivamente os car-
gos de vereador, deputado estadual, prefeito, governador de
São Paulo e deputado federal pelo Paraná. O 15º Presidente da
República era uma mato-grossense jovem, de 43 anos, eleito por
uma frente suprapartidária composta pela UDN e partidos me-
nores como o Partido Trabalhista Nacional (PTN), Partido Demo-
crata Cristão (PDC), Partido Republicano (PR), Partido Liberal
(PL). A UDN vivia uma fase de ascensão política: não somente
conquistara a Presidência da República (com 48% dos votos e
sem controvérsia sobre maioria absoluta) como também o go-
verno da novíssima Guanabara com a eleição de Carlos Lacerda.
Lacerda chegou a cogitar concorrer à Presidência em
1959, mas percebendo que dificilmente obteria apoio partidário

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

suficiente, preferiu defender a candidatura de Jânio Quadros e


aumentar as chances de vitória da UDN. Apesar de Quadros in-
sistir em manter sua independência política – chegou a renunciar
à indicação oficial da UDN e só a reassumiu com a garantia de
não estar vinculada a qualquer compromisso partidário -, La-
cerda e a UDN provavelmente confiaram que conseguiriam ma-
nobrá-lo quando necessário.
Abandonando suas divergências com o ex-governador
de São Paulo, a quem se referira no passado como “o mais falso,
o mais mercurial homem público até hoje aparecido no Brasil”
(LACERDA, 1955a, p. 4) e atribuíra ser “ o filho de Hitler com
Macunaíma, o ‘herói sem nenhum caráter’ ” (LACERDA, 1955b,
p. 4), Lacerda assistiu-o lealmente durante a campanha presi-
dencial. Segundo ele, Jânio era o candidato da “juventude do
povo brasileiro, no sentido mais nobre da palavra, no sentido de
descomprometimento, da gratuidade, da generosidade de sua
atuação, no sentido dessa doação total da pessoa a uma causa.
No sentido próprio da juventude” (LACERDA, 1960a, p. 4). Eleito
presidente, Quadros partiu para uma longa viagem à Europa e só

30
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

anunciou seu Ministério quatro dias antes da posse. Dos 10 mi-


nistros civis, apenas três eram da UDN, embora os cargos ocupa-
dos por eles fossem de destaque 4.
O estilo de Quadros no poder era inconfundível. Carismá-
tico e de perfil conservador, agradou a todos aqueles que dese-
javam mudanças dentro de limites ordeiros. Lacerda, que tam-
bém disputava parte desse grupo eleitoral, respeitou o talento
político do presidente. Foi sobretudo no plano internacional, na
aplicação de uma política externa independente, que Lacerda
extravasou sua frustração com o processo de marginalização que
a UDN em geral e ele em particular sofreram logo após a posse
de Quadros.
No dia 7 de fevereiro de 1961, a Tribuna da Imprensa
anunciava que, a partir de março ocorreria o reatamento das re-
lações diplomáticas com a União Soviética e outros países comu-
nistas como China, Hungria, Bulgária e Romênia. Quadros e seu
chanceler pretendiam flexibilizar a política externa e não se ali-
nhar automaticamente aos Estados Unidos para permitir ao Bra-
sil estabelecer negócios com vários parceiros. Em um cenário
marcado pela Guerra Fria e o temor ao comunismo, é evidente

4
A pasta de relações Exteriores foi para Afonso Arinos, Fazenda para o
banqueiro baiano Clemente Mariani e Minas e Energia para João Agripino.

31
Coleção Clássicos & Contemporâneos

que a adoção de uma política externa independente geraria con-


trovérsias. Lacerda, já em seu discurso de posse de 5 de dezem-
bro de 1960, advertira que não toleraria: “em seu território o co-
munismo, nem sob a forma aberta e franca de outrora, que
chega ao assassinato e ao terror, nem sob a forma atual, que se
disfarça de nacionalista e populista” (LACERDA, 1960c, p. 4). Ao
longo de suas manifestações é possível observar que Lacerda
emprega os termos comunismo e comunista sempre em sentido
pejorativo, derrogatório, não demonstrando o conhecimento
que ele de fato tinha sobre a ideologia e quem a professava.
É preciso reconhecer que a revolução de Fidel Castro, ao
aproximar o regime comunista – outrora geograficamente dis-
tante – dos países latinos, havia contribuído a desestabilizar o
frágil equilíbrio do continente americano. Não se sabe a que
ponto Lacerda realmente temia o comunismo ou simplesmente
cultivava esse receio da classe média nacional para avançar seus
interesses políticos. “Diante da ditadura comunista em Cuba só
há um crime: é não lutar contra ela. E essa luta, que é a dos cu-
banos, também é dos homens livres de todo o mundo. Pois en-
quanto não surgir a liberdade em Cuba, a liberdade no mundo
poderá ser destruída” (LACERDA, 1961b, p. 4). Ciente de que a
América Latina tampouco era um exemplo de liberdade política,

32
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

ao contrário do que afirmava a propaganda anticomunista sobre


os países capitalistas serem livres e civilizados, ele contornava o
argumento diferenciando os regimes de força.

Uma coisa é compreender, ainda que não desejando


aquele tipo de ditadura indevidamente tolerado, que
constitui ainda uma contingência da evolução dos nos-
sos povos, e esse tipo de ditadura totalitária, técnica,
quase que cientificamente organizada na implantação,
numa nação americana, basta por si só para significar
crescente e iminente ameaça à paz e à liberdade de to-
dos os povos do Hemisfério Ocidental” (LACERDA,
1961b, p. 4)

Usando dessa perspectiva, uma ação contra uma dita-


dura de esquerda era não somente justificável como aconselhá-
vel. A intervenção era necessária para defender a liberdade dos
povos, pouco importando se contrariasse os princípios diplomá-
ticos brasileiros ou da própria ONU: de autodeterminação dos
povos e não ingerência estrangeira. No caso da tentativa de in-
vasão da Baía dos Porcos (17 abril 1961), o desembarque de cu-
banos em seu próprio país sequer poderia ser considerado como
intervenção estrangeira. Lacerda recorria a ardiloso sofisma para
pregar que, uma intervenção com objetivo de manter hegemo-
nia numa área de influência, consistia em uma defesa da justiça
e da democracia. “Se o que chamam de intervenção estrangeira

33
Coleção Clássicos & Contemporâneos

é a ajuda dos Estados-Unidos à expedição cubana, o que temos


a declarar é apenas que essa ajuda não tenha sido maior e mais
eficaz”(LACERDA, 1961b, p. 4).
A declaração de Lacerda não pode ser imputada a uma
aliança incondicional com os Estados Unidos, até porque, como
govenador da GB, manifestou-se diversas vezes contra o capita-
lismo norte-americano. O que se depreende de seu raciocínio é
que, quando se tratava de combater uma ditadura de esquerda,
qualquer ação era legítima. Seus verdadeiros alvos eram inici-
almente a desenvoltura e independência com a qual Jânio Qua-
dros governava e, num segundo momento, o governo João Gou-
lart. A política externa de Quadros, apesar de conduzida por um
colega de partido, era apenas um pretexto para criticar um pre-
sidente avesso a interferência da UDN. Ao atribuir implicações
domésticas a questões de política externa, Lacerda pretendia
convencer os eleitores de que Quadros estava se desviando dos
valores liberais que o haviam levado ao poder.
Em discurso proferido na tv em 24 de agosto de 1961,
posterior à condecoração de Ernesto Che Guevara com a Ordem
Nacional do Cruzeiro do Sul, Lacerda conclamou:

34
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Ofereçamos ao Presidente tudo que ao nosso alcance


esteja para que ele possa licitamente, legitimamente,
democraticamente governar como conquistou o poder
[...]Para isto é essencial, sem dúvida, que ele não se
perca mais nos descaminhos de uma politica que é con-
trária a tudo aquilo por que urge e pugna a imensa mai-
oria do povo brasileiro. (LACERDA, 1963, p. 338)

O que pretendia Lacerda ao censurar Jânio? Visava ele


sua renúncia? Tinha em vista um golpe militar? Pretendia insu-
flar uma insurreição da classe média para forçar o Presidente a
rever suas posições? Em caso de renúncia, Lacerda certamente
não desejava a ascensão da coligação PSD/PTB por meio da
posse do vice-presidente João Goulart. Em caso de golpe militar,
sabia que ainda lhe faltava articular o suporte das forças arma-
das em torno de seu nome para o exercício de uma liderança ci-
vil. Possivelmente, Lacerda só aspirava a exibir sua força, provar
que sem ele e seu partido, seria impossível a Quadros governar.
Anos mais tarde, ele reconheceu que “a renúncia foi uma sur-
presa para mim porque, entre outras coisas, eu não acreditava
nela” (LACERDA, 1987, p. 310).
Verifica-se que a veemência com que Lacerda criticava a
política externa de Quadros resultava da dificuldade em repro-
var outros aspectos de sua gestão. O Presidente, com sua política

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

de austeridade econômica, retórica moralista e estilo persona-


lista exibia poucos flancos vulneráveis para um político dispu-
tando o mesmo eleitorado.

36
Liberalismo econômico à brasileira

Definir Carlos Lacerda como um liberal não dá conta da


pluralidade de seu pensamento, nem do clima nacionalista que
impregnava o Brasil daquele período. “O Nacionalismo, antes de
ser uma reivindicação econômica, é um sentimento, uma exigên-
cia de ‘self-respect’, de respeito próprio” (LACERDA, 1957, p. 4).
Lacerda tinha orgulho do Brasil, de seu enorme potencial de
crescimento, mas também se exasperava com o contraste em
relação aos países desenvolvidos.
Como liberal que afirmava ser, Lacerda restringia a parti-
cipação do Estado aos setores básicos da infraestrutura econô-
mica do país. O Estado devia retirar-se das atividades nas quais
o “cidadão possa e queira fazer melhor do que ele e sem perigo
para a coletividade” (LACERDA, 1954a, p. 4). O maior risco de um
Estado excessivamente empreendedor era o de viciar o indiví-
duo a esperar tudo dele, fazendo com que desaparecesse seu

37
Coleção Clássicos & Contemporâneos

espírito realizador. Uma sociedade harmoniosa deveria combi-


nar doses justas de planejamento econômico com liberdade de
iniciativa. O planejamento sem liberdade fomentava o Estado to-
talitário, a liberdade sem planejamento levava à anarquia (LA-
CERDA, 1963). Propiciar liberdade total no campo econômico
equivaleria a “dar liberdade a uma raposa num galinheiro” (LA-
CERDA, 1963, p. 95). Cabia ao Estado fornecer direções gerais e
orientações básicas. Como governador da GB, Lacerda enfrentou
graves problemas decorrentes da falta de uma infraestrutura só-
lida para atender as necessidades da população. Serviços funda-
mentais como água, eletricidade e transporte demandavam re-
forma e, durante todo seu governo, Lacerda centralizou a gestão
das obras, em atuação destoante dos princípios da livre iniciativa
e mercado aberto.
Lacerda não acreditava no protecionismo como alavanca
para o desenvolvimento. “Em nome da industrialização, se faz o
consumidor pagar mais do que ele pagaria num regime de livre
concorrência” (LACERDA, 1961a, p. 4). Era favorável à implanta-
ção de multinacionais no Brasil conquanto oferecessem serviço
adequado e cumprissem uma rigorosa legislação a fim de defen-

38
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

der os interesses nacionais. A remessa de lucros, controlada, fa-


ria parte do acordo. Numa entrevista ao jornalista Otto Lara Re-
zende constatava:

Não há dúvida de que devemos adotar um estatuto para


o capital estrangeiro. Não há inconveniente, antes pelo
contrário, em regular o fluxo de juros para fora. O capital
estrangeiro só entra nos países de onde sabe que pode
sair. Você bota dinheiro num banco sabendo que, de-
pois, você não vai poder retirá-lo? Mas, se o banco tem
liquidez, então você bota cada vez mais dinheiro nele.
(LACERDA, 1964a)

E gracejava:

Em matéria de capital, prefiro estar com aquela velha


máxima de Marx, que o capital não tem pátria. O que
importa é usá-lo, esteja onde estiver, em benefício de
nossa pátria. Não me interessa saber se o capital é ale-
mão, se é isto ou aquilo. O que me interessa é obrigá-lo
a produzir em favor do Brasil5. (LACERDA, 1964a)

Mas enganam-se aqueles que consideram que Lacerda


estaria irrestritamente predisposto ao capital estrangeiro:

5
Marx está sendo citado fora de contexto. Esse autor se referia ao fato da
exploração capitalista, exercida pela classe burguesa, não estar limitada por
fronteiras nacionais devendo ser portanto combatida pela união internacional
da classe operária.

39
Coleção Clássicos & Contemporâneos

Afirmamos que a política econômica deve ser inequivo-


camente ditada pelo interesse nacional, [...] Nenhum
pais pode resolver seus problemas com a politica im-
posta pelo FMI [...] A obsessão de ‘primeiro arrumar a
casa’ financeiramente leva a destruí-la economica-
mente. [...] A política econômica a seguir deve basear-se
nos recursos nacionais. A contribuição estrangeira deve
ser condicionada à sua utilidade real, e não as miragens
da ‘ajuda’ de fora. (LACERDA, 1966, p. 70-1)

Durante seu governo, devido à relutância do Governo Fe-


deral em liberar fundos, Lacerda não titubeou em recorrer a re-
cursos e investimentos estrangeiros para realizar obras no Es-
tado da GB. Mas fiel a seus propósitos, também não hesitou em
propor, em 1962, a desapropriação da Cia Telefônica do Rio de
Janeiro por considerar que ela não prestava bons serviços à co-
munidade. A desapropriação só não foi bem-sucedida por inter-
ferência do Governo Federal.
As ideias liberais de Carlos Lacerda precisam ser compre-
endidas dentro do contexto político da época. Os países do cha-
mado Terceiro Mundo buscavam um novo protagonismo nas re-
lações internacionais: visavam defender seus interesses nacio-
nais numa postura de maior independência frente aos mais de-
senvolvidos. Lacerda reflete essa complexidade, adere ao mo-
delo econômico liberal, mas sem abrir mão do nacionalismo.

40
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Como governador, exerceu uma atividade centralizadora e inter-


vencionista para alcançar as metas prometidas.

41
42
Regime militar: da aprovação à ruptura

Um dos momentos mais intrigantes da carreira de La-


cerda trata de sua colaboração e posterior ruptura com os mili-
tares. A dualidade de seu pensamento emerge em três episódios
distintos: a prorrogação do mandato de Castelo Branco, a decla-
ração do AI n°2 e a formação da Frente Ampla.
Mesmo sem ter participado diretamente da Revolução
Militar de 1964, Lacerda celebrou sua vitória pois, praticamente
desde o início do Governo Goulart, advogava uma solução de
força para a situação política nacional. O próximo na linha de su-
cessão era Rainieri Mazzili - Presidente da Câmara dos Deputa-
dos -, cujo mandato expiraria ao cabo de trinta dias. O seu suces-
sor, o futuro Presidente, deveria agradar a todas as facções mili-
tares e também contar com o apoio dos sete governadores civis
pró revolução6.

6
Carlos Lacerda (GB), Magalhães Pinto (MG), Adhemar de Barros (SP), Ney
Braga (PR), Maurício Borges (GO), Ildo Meneghetti (RS), Fernando Correia
da Costa (MT).

43
Coleção Clássicos & Contemporâneos

Lacerda teve participação determinante na escolha do


Marechal Castelo Branco, Chefe do Estado Maior das Forças Ar-
madas, como novo Presidente da República designado a comple-
tar o mandato Jânio/Jango. Desejoso de evitar um candidato civil
que pudesse minar suas próprias pretensões nas eleições presi-
dências de 1965, ele apoiou e convenceu os demais governado-
res a respaldar Castelo Branco “o mais intelectual dos marechais
e o mais marechal dos intelectuais” (LACERDA, 1964b, p. 8).
Passados alguns dias, Lacerda partiu para uma tempo-
rada na Europa onde aproveitou para se apresentar como em-
baixador informal, e a face civil, da Revolução. Desincumbiu-se
da missão auto imposta com a verve característica. Ainda no ae-
roporto de Orly em Paris, quando jornalistas lhe pediram expli-
cação sobre uma revolução sem sangue, retrucou: “as revolu-
ções no Brasil são como os casamentos na França” (Lacerda,
1987, p. 368). Na Alemanha, ao ser indagado sobre violência po-
lítica no Brasil, objetou que em nada se assemelhavam às atroci-
dades cometidas pelo nazismo. Sobre a possível participação
americana no movimento revidou com: “Que eu saiba não. Nós
não nos beneficiamos com o Plano Marshall” (LACERDA, 1964b,
p. 8).

44
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Lacerda não identificara o caráter eminentemente militar


do movimento de 31 de Março que levaria à implantação de uma
ditadura e, presumia que o poder voltaria em breve aos civis
como nos movimentos militares anteriores de 1945 e 19557.

Foi o Movimento de 31 de Março um mero golpe militar


para tirar o Goulart, [...] ou foi esse episódio o fim do
Estado Novo, o recomeço de uma evolução difícil e aci-
dentada pela qual o Brasil sai das formas primitivas de
sua condição para ter acesso as formas superiores da or-
ganização democrática do governo e da sociedade naci-
onal. (LACERDA, 1964e, p. 3)

Em junho, as discussões sobre a reforma da Lei eleitoral,


provocaram a volta precipitada de Lacerda. A UDN se indispu-
sera com o governo em exercício devido à tese da maioria abso-
luta: caso nenhum candidato à Presidência viesse a obter a mai-
oria absoluta, a decisão recairia sobre o Congresso. Embora a
maioria absoluta fosse a bandeira desfraldada pela UDN cada
vez que perdia uma eleição para um candidato adversário, havia
dois problemas a confrontar. Por um lado, o próprio Lacerda ha-
via assumido o governo estadual com apenas 36,5% dos votos,

7
A oficialidade brasileira, ainda em março de 1964, era vista por muitos como
ostensivamente legalista. Dentro das Forças Armadas era possível identificar
três grupos distintos: conspiradores ativos, legalistas não ativists e oficias
favoráveis à Revolução.

45
Coleção Clássicos & Contemporâneos

por outro, o congresso era maioria PSD. Com seus interesses em


jogo, Lacerda voltou-se contra essa proposta para as eleições de
1965. “Todavia, por uma questão de tática política, eu poderia
aceitá-la para 1970, nos termos em que a coloca a emenda do
líder (da UDN) Pedro Aleixo” (LACERDA, 1964c, p. 8).
Outra contrariedade a empanar as pretensões de Lacerda
era a discussão, cada vez mais concreta, da prorrogação do man-
dato de Castelo Branco por mais um ano. As eleições presidên-
cias seriam adiadas para 3 de outubro de 1966 sob pretexto de
permitir a consolidação das reformas revolucionárias. Ao intuir
o crescente endurecimento do regime militar, Lacerda escreveu
a Bilac Pinto (presidente da UDN): “Bilac, numa palavra, votada
a prorrogação, não haverá eleições nem em 66, nem tão cedo.
Isto é, o 10 de novembro de 1937 com a aprovação do Con-
gresso” (VIANA, 1975, p. 112).
Apesar desse vislumbre de lucidez, Lacerda apostava no
retorno à normalidade democrática e julgava que o Congresso
conseguiria manter sua independência face ao Executivo militar
e aprovar uma anistia parlamentar beneficiando os candidatos
cassados: Juscelino, Jânio e Jango, seus maiores adversários nas
urnas. Lacerda planejava apresentar-se como o candidato civil

46
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

leal as ideias revolucionárias: “A prorrogação do mandato presi-


dencial dará aos adversários da Revolução as bandeiras necessá-
rias à sua vitória nas urnas. Dêem-me essas bandeiras agora e eu
vencerei a eleição, não em 1966, mas em 1965” (LACERDA,
1964c, p. 8).
O maior desafio de Lacerda consistia em prestigiar as for-
ças que haviam derrotado seus adversários de longa data com a
desaprovação a um regime que minava suas próprias ambições
presidenciais. A alternativa era persuadir o comando militar a
confiar em sua capacidade de se eleger. O que Lacerda não per-
cebia, é que esse mesmo argumento, impelia seus opositores a
concordar com a prorrogação. Cassados os grandes líderes do
PSD e PTB, a faixa presidencial estava acessível a qualquer lide-
rança que soubesse tomar a dianteira. Foi dentro desse espírito
que a prorrogação do mandato de Castelo Branco foi proposta
pelo Senador Daniel Krieger (UDN-RS) e contou com o apoio de
outros aspirantes udenistas à Presidência da República como Bi-
lac Pinto e Magalhães Pinto. Em 22 de julho de 1964, a Emenda
Constitucional n° 9 instituiu a maioria absoluta e a prorrogação.
Lacerda reagiu cautelosamente a esse adiamento em
seus planos. Em alguns meses, conseguiu manobrar a UDN para
indicá-lo como candidato à sucessão de Castelo Branco. Foi

47
Coleção Clássicos & Contemporâneos

nesse momento que passou a fazer a distinção entre revolução


e processo revolucionário. Segundo ele, a revolução não come-
çava, nem terminava em Castelo Branco: ela era “um processo
de transformação profunda do Brasil preparando-o para a De-
mocracia” (LACERDA, 1964d, p. 3). Lacerda equilibrava-se entre
desincompatibilizar-se com o Governo sem romper com os mili-
tares e atrair os inconformados com a situação vigente. Seu ob-
jetivo era audacioso, ser o candidato civil das Forças Armadas e
conseguir o apoio daqueles setores da população adversos à re-
volução.

Não rompi com ninguém [referindo-se a Castelo


Branco]. Muito menos com uma revolução que não é de
ninguém, muito menos dos que foram com ela ao Poder,
mas nada tem em comum com ela e nem sabem por que
ela foi feita. Entendo que é tempo de oferecer ao país
um Governo revolucionário, isto e de renovação pro-
funda e verdadeira. (LACERDA, 1964d, p. 3)

Na realidade, ao combater à prorrogação do mandato de


Castelo e consagrar-se candidato na convenção da UDN, Lacerda
alcançou resultado oposto ao que pretendia, municiando os es-
trategistas do governo a não abrir mão do papel dos militares no
novo regime.

48
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

Sem ter sido um elemento chave na determinação das


forças mais profundas que levaram à ruptura institucional de
1964, Lacerda foi sem dúvida um protagonista importante nos
ataques ao governo Quadros/Goulart. O regime instituído pelos
militares contou com sua aprovação inicial, defendendo a inter-
venção em nome do sistema democrático e apelando para uma
lógica carregada de ambiguidades que nem seu brilhantismo re-
tórico conseguia justificar. Ao se sentir marginalizado do novo
esquema de poder, decepcionou-se com o establishment militar
e passou a fomentar um movimento de oposição chamado
Frente Ampla.

49
50
A Frente Ampla

O Movimento de 31 de Março realizou-se dentro de um


contexto de profunda polarização política e ideológica que opôs,
de um lado, aqueles que sustentavam a nova ordem e de outro,
as forças que a ela se opunham. Lacerda, ao perceber o viés au-
toritário do novo regime e sua incompatibilidade com o próprio
projeto de alcançar a Presidência da República, passou a articu-
lar uma resistência a este. A Frente Ampla não inaugurou a re-
sistência ao novo regime que já reunia lideranças sindicais, o mo-
vimento estudantil, setores progressistas da Igreja e alguns se-
tores da classe média. O que Lacerda procurou fazer foi direci-
onar, em torno de sua liderança, a oposição ao regime militar.
A primeira vez que o ex-governador da GB mencionou a
Frente Ampla foi em agosto de 1966, numa entrevista à revista
Visão. Nela, ele se referia à Revolução de 1964 como “apenas um
miserável golpe militar divorciado dos rumos da Revolução Bra-
sileira” (LACERDA, 1966a, p. 3) Em tais circunstâncias urgia: “a

51
Coleção Clássicos & Contemporâneos

união das grandes tendências democráticas brasileiras, das mais


renovadoras e progressistas, desde que democráticas, às conser-
vadoras, mas também democráticas” (LACERDA, 1966a, p. 3). A
Frente Ampla deveria ser “uma união ampla, mas profunda [...],
superando divergências e ressentimentos para lutar por todos os
meios” (LACERDA, 1966a, p. 3) inclusive às armas, caso necessá-
rio. Ela deveria constituir-se em “um entendimento nacional
com base na representação dos líderes autênticos – das princi-
pais correntes de opinião popular do Brasil” (LACERDA, 1966b,
p. 4).
Desde que se fosse a favor da democracia, ninguém de-
veria ser discriminado, pois o que estava em jogo era o futuro do
país. “Ora na Frente Ampla está quem não é contra a revolução
de 1964, pois dela participou, que sou eu. E quem não deseja a
volta ao passado, e sim a construção de um futuro democrático
para o povo brasileiro” (LACERDA, 1967a, p. 4). A Frente Ampla
aspirava “a participação de elementos do Movimento Democrá-
tico Brasileiro (MDB) e também da Aliança Renovadora Nacional

52
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

(ARENA) e de elementos de nenhum dos dois partidos” (LA-


CERDA, 1967a, p. 4)8. Ela pretendia conversar “livremente com o
governo e a oposição, visando a reforçar as tendências que ca-
minham na mesma direção: democracia e desenvolvimento, me-
diante a pacificação dos brasileiros” (LACERDA, 1967a, p. 4).
Para pôr em prática seu projeto, Lacerda contatou as
principais lideranças brasileiras não envolvidas - ou até contrá-
rias- à Revolução. Em novembro de 1966, viajou para Portugal
para reunir-se com o ex-Presidente Juscelino Kubistchek, que lá
vivia em exílio voluntário desde sua cassação. Do encontro entre
ambos resultou a Declaração de Lisboa. No ano seguinte, foi a
vez de conversar com João Goulart, radicado em Montevideo.
Tentou também atrair outras personalidades políticas como Ad-
hemar de Barros, Jânio Quadros e Leonel Brizola, mas sem su-
cesso.
A ação de Lacerda precisa ser interpretada dentro das cir-
cunstâncias políticas daquela época. O bipartidarismo criado
pelo governo Castelo Branco restringia a atuação dos cassados e

8
O AI n°2 havia abolido os partidos políticos e o Ato Complementar n°4
(20/11/1965) instituiu as bases do bipartidarismo com a ARENA
representando os interesses do regime e o MDB os da oposição.

53
Coleção Clássicos & Contemporâneos

a Frente Ampla pretendia insurgir-se contra as imposições deter-


minadas pelos dois primeiros Atos Institucionais. Ela deveria
evadir os controles autoritários estabelecidos pelo Governo e
desembocar na formação de um terceiro partido. Para que tal
situação se concretizasse ainda em 1967, Lacerda precisava re-
colher 600.000 assinaturas favoráveis à criação desse novo ins-
trumento. Na tentativa de consegui-las, Juscelino e ele declara-
ram que seriam apenas membros da Frente Ampla que eventu-
almente contaria com direção própria e autônoma.
Lacerda empenhou-se nesse projeto que recebeu o tiro
de misericórdia quando o Governo Costa e Silva baixou o de-
creto-lei proibindo sua existência. O decreto visava reprimir a
crescente turbulência contra o regime militar, com demonstra-
ções estudantis, militância do setor sindical e uma maior influên-
cia da Frente Ampla entre os setores conservadores oposicionis-
tas da sociedade.
Apesar da Frente Ampla ter se constituído em movi-
mento com ampla repercussão nacional, ela não obteve o resul-
tado político almejado pelo seu idealizador. Em primeiro lugar,
despertava desconfiança, o fato de Lacerda ser o único, dos três
principais integrantes da Frente Ampla, a gozar ainda de seus di-
reitos políticos. Muitos partidários de PSD/PTB julgavam que as

54
Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

tratativas de Lacerda não passavam de manobra política para


obter seu apoio. Em caso de eleições presidenciais em 1970, ele
seria o único nome dentro do movimento a poder concorrer,
sendo seu maior adversário, não Juscelino ou Jango, mas o re-
gime militar. Lacerda bem que tentou demovê-los dessa inter-
pretação:

Já promovi um entendimento com o principal, o maior,


o mais popular, o mais forte, o mais respeitável dos ad-
versários, que é precisamente o ex-presidente Ku-
bistchek. Procurei-o na adversidade, no desterro, não no
Poder. Ele me apertou a mão quando tudo parecia con-
tra mim, não quando eu era tido como o favorito dos
deuses – os de cá e os de lá.” [...] Não é a primeira vez,
Deus queira que não seja a última, em que adversários
políticos se unem para pacificar o Brasil e obter medidas
de profundo interesse para o seu povo”. (LACERDA,
1967a, p.4)

Em fins de 1967, ao sentir que tanto ele quanto a Frente


Ampla se encontravam sob a mira do governo militar, Lacerda
articulou um recuo estratégico. A nota conjunta assinada por ele
e Jango em Montevideo declarava: “movidos exclusivamente
pela preocupação com o futuro de nosso país, não cogitamos de
novos partidos, nem de futuras candidaturas à Presidência da
República” (LACERDA, 1967d, p. 1). A atitude de se resguardar

55
Coleção Clássicos & Contemporâneos

politicamente pode ser interpretada como um desejo de fazer


oposição ma non troppo.
Outro aspecto curioso da Frente Ampla e que possivel-
mente contribuiu para o seu insucesso foi a falta de unidade do
movimento. Jamais chegou a haver uma declaração que reunisse
a assinatura dos três políticos nela envolvidos, sendo Lacerda o
único elemento de contato. Considerando que a Frente era su-
prapartidária, que PSD e PTB eram aliados históricos e que Jus-
celino e Jango haviam sido eleitos Presidente e vice em 1955,
causa estranheza essa situação. Aparentemente, a aproximação
não ocorreu por desentendimentos pessoais entre os dois ex-
presidentes, que a distância geográfica tampouco contribuiu a
melhorar. Mas não teria sido possível aos três políticos se encon-
trarem no Uruguai, em Portugal ou qualquer outro país? Muito
provavelmente, Lacerda não tinha interesse em articular uma re-
conciliação que poderia diminuir sua liderança na frente Ampla.
Mantendo contatos individuais com ambos, ele garantia o apoio
de cada um deles sem, no entanto, beneficiá-los.
Lacerda parece ter manipulado as circunstâncias, visando
sempre seus interesses, buscando criar um caminho que o le-
vasse à Presidência da República. Aceitando a Revolução de 1964

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

como um fato consumado, seu pragmatismo político transpa-


rece em suas declarações: “É impossível aceitar a permanência,
além de 1970, da eleição indireta, expediente escuso e provisó-
rio que a nação não deve mais tolerar (LACERDA, 1967c, p. 1). E
prosseguia: “A retomada pelo processo democrático, pela elei-
ção direta, é essencial para conquistar, ao mesmo tempo, o di-
reito de decisão, que pertence ao povo” (LACERDA, 1967d, p. 1).
A Frente Ampla não chegou a se constituir numa verda-
deira oposição porque ela não rompeu efetivamente com o ideá-
rio que levou ao golpe militar. O regime militar encontrou muito
mais resistência em outros atores políticos do que propriamente
na liderança de Lacerda.

Não pedimos anistia ampla, imediata, e sim revisão de


punições injustas com direito de defesa e julgamento
pelo poder competente, que é o Judiciário. Não reivindi-
camos uma Constituição inteiramente nova, [...]. Reivin-
dicamos a revisão da Constituição, da Lei de Segurança,
da Lei de Imprensa, esta última a rigor, nem precisa exis-
tir”. (LACERDA, 1967a, p.4)

Embora Lacerda se dissesse contrário a determinadas


facções dentro da instituição castrense, ele não negava a Revo-
lução.

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

Não atribuímos ao Movimento de 64 todos os males da


pátria [...] Entendemos que que o movimento militar de
64 foi um episódio da Revolução brasileira, isto é, do
processo de transformação pelo qual vem este país pas-
sando, entre dores e agonia, há muitos anos. Foi em
parte desvirtuado e traído, mas constitui um marco de
novos rumos, que é preciso corajosa e impessoalmente
adotar. (LACERDA, 1967a, p. 4)

O objetivo da Frente Ampla não era combater o regime


tecnocrático militar, mas “substituir o sistema oligárquico que
dominava o país. Nem os movimentos militares conseguiram
acabar com esse domínio” (LACERDA, 1967a, p. 4). E explicava:
“Na verdade não houve ainda Revolução. Houve uma interven-
ção armada para afastar do Poder a desordem que por erros de
todos os lados, ameaçava o país, arquidividido por precauções
secundárias em vez de se unir por aspirações comuns (LACERDA,
1967b, p. 1). Para Lacerda, os militares deviam sair da política
militante, mas sem abandonar sua obra, que deveria ficar a
cargo de “quem tenha a mesma concepção e a mesma diretriz
que os inspira, a saber um sentido democrático de vida pública
e um propósito de imprimir eficiência e orientação definitiva ao
esforço nacional” (LACERDA, 1967c, p. 1).
Fiel ao seu estilo de martelar no ponto fraco do adversá-
rio, o ex-governador da Guanabara concentrou-se na política
econômica liberal do novo regime. Ele criticava as medidas de

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

liberalização da economia que não haviam sido tomadas “para


facilitar a iniciativa privada, mas sim, unicamente, a iniciativa
americana no Brasil” (LACERDA, 1966d, p. 4). A luta contra a in-
flação havia sido mais prejudicial do que benéfica: não somente
a guerra não havia sido ganha como a consequente estagnação
levaria à “satelização do Brasil” (LACERDA, 1966a, p. 3) e a uma
maior dependência em relação aos Estados Unidos. O acordo
com o FMI tampouco havia logrado bons resultados, “nenhum
país pobre resolveu seus problemas com a política imposta pelo
FMI. Ao contrário, seus resultados, no Brasil, em dois anos e sete
meses, são: desestímulo, desorientação, desemprego, decadên-
cia, desordem e desespero” (LACERDA, 1966c, p. 4). E em apa-
rente negação dos seus valores liberais afirmava: “A ideia de que
o desenvolvimento das nações como os EUA se fez com moeda
sanada, equilíbrio orçamentário e total obediência às virtudes
sacrossantas do capital estrangeiro é uma ideia historicamente
falsa, economicamente errada e politicamente envenenada”
(LACERDA, 1966a, p. 4).
Essas declarações de Lacerda não devem ser interpreta-
das como uma desistência de suas convicções anteriores, mas
atribuídas ao seu senso de oportunidade, inserindo em seu dis-
curso tons nacionalistas para encontrar pontos de convergência

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

com as teses desenvolvimentistas que inspiravam certos setores


do país. Ele era um liberal, pois clamava por maior participação
dos interesses privados no processo de desenvolvimento do
país, mas também era nacionalista ainda que não desejasse ser
confundido com o “...antiamericanismo condenável de naciona-
listas histéricos ou de comunistas” (LACERDA,1966a, p. 3). La-
cerda, diferentemente das teses desenvolvimentistas em voga,
propunha a defesa dos interesses nacionais, mas dentro dos
marcos do sistema capitalista internacional.
Os alicerces do regime foram balançados durante o ano
de 1968 devido às inúmeras manifestações populares conduzi-
das por estudantes e/ou igreja. Esses movimentos brotavam es-
pontaneamente, sem a orientação de algum partido, e a Frente
Ampla se viu ultrapassada pela corrente dos acontecimentos. La-
cerda, que em campanhas anteriores, havia conseguido mobili-
zar os sentimentos da população, agora via seu movimento res-
trito ao meio político, sem conseguir alcançar as massas. O insu-
cesso resultou possivelmente de seu discurso, cujas contradi-
ções revelavam a ambição política. Ele se via, como o líder que
levaria adiante a obra do Movimento de 31 de Março, fazendo a
transição entre o período inicial da Revolução (1964-1970) e o

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Carlos Lacerda | Mônica Heinzelmann Portella de Aguiar

posterior. Seu objetivo não era negar o regime militar, mas su-
perá-lo, o que talvez ajude a explicar as reticências de Juscelino
e Jango em relação a Frente Ampla.
Apesar de suas limitações, a Frente Ampla causou des-
conforto suficiente para que o governo decretasse sua proibição
em 5 de abril de 1968 (Portaria n° 177). Em 13 de dezembro, o
Presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional n° 5 colocando
o Congresso em recesso por prazo indeterminado e atribuindo
novos poderes ao Executivo. Ao novo Ato, seguiram-se uma série
de cassações e no dia 30 de dezembro de 1968 foi a vez de La-
cerda perder seus direitos políticos por um prazo de dez anos. O
jornalista, “destruídos de presidentes”, ex-governador da GB,
ex-articulador da Frente Ampla faleceu em 21 de maio de 1977
sem tê-los recuperado.

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62
Considerações finais

Lacerda é uma figura política marcada pelas contradições


do Brasil e pode ser definido como um “liberal-autoritário”. Seu
liberalismo era personalista, oscilava de acordo com as circuns-
tâncias da conjuntura nacional e seu pragmatismo político feria
os princípios mais consistentes das instituições democráticas.
Ele foi um retrato das ambiguidades da classe média urbana de
então, dividida entre o exemplo democrático vindo do exterior,
e a tradição autoritária do sistema político brasileiro. No que diz
respeito a sua visão econômica, ainda que mais consistente, ela
também ilustrava os múltiplos caminhos que discutiam o desen-
volvimento nacional.
Em entrevista dada no ano de sua morte, Lacerda con-
cluiu: “... o que podia fazer, eu fiz. Algumas coisas tenho certeza
de que fiz bem. Outras, mais ou menos, e em outras errei” (LA-
CERDA, 1977). Em editorial pela sua morte, o jornalista e amigo

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Coleção Clássicos & Contemporâneos

Hélio Fernandes (1977, p. 1) escreveu nunca ter um homem am-


bicionado tanto o poder quanto Carlos Lacerda, mas que havia
desejado “o Poder com devoção, com grandeza, com seriedade,
com a consciência de que estava preparado para exercê-lo no
sentido coletivo e não no individual”. Em defesa de Carlos La-
cerda, talvez caibam as generosas palavras que ele escreveu
para interceder por Caryl Chessman (prisioneiro norte-ameri-
cano executado em 1960): “o perdão não é para os inocentes,
mas precisamente para os culpados” (LACERDA, 1960b, p. 4).

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Referências

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