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O trabalho do assistente social na esfera estatal

Raquel Raichelis
Professora na Pontifíícia Universidade Catoí lica de Saã o Paulo, PUC/SP

O trabalho do assistente social na esfera estatal


Objetivos do texto

Colaborar para a reflexaã o sobre o trabalho do assistente social na esfera


estatal, em suas diferentes instaâ ncias de poder, na perspectiva de ampliaçaã o da
esfera puí blica de direitos, em um difíícil contexto que vem interpelando o
Serviço Social frente aà s novas manifestaçoã es e expressoã es da questão social,
resultantes das transformaçoã es do capitalismo contemporaâ neo: o
aprofundamento da desigualdade social, o desemprego estrutural e a
precarizaçaã o das relaçoã es de trabalho, a reforma conservadora do Estado, os
processos de redefiniçaã o dos sistemas de proteçaã o social e da políítica social.

1 Serviço Social e relações sociais capitalistas – uma referência necessária

Analisar a profissaã o e os desafios do projeto profissional na esfera estatal


supoã e apreendeâ -los na dinaâ mica soí cio-histoí rica, que configura o campo em que
se desenvolve o exercíício profissional e problematizar as respostas profissionais
– teoí ricas, teí cnicas e eí tico-polííticas – que traduzem a sistematizaçaã o de
conhecimentos e saberes acumulados frente aà s demandas sociais dirigidas ao
Serviço Social.

Para enfrentar essa complexa tarefa, vamos pontuar em largos traços


algumas das premissas que orientam a anaí lise do Serviço Social inserido na
dinaâ mica da vida social, no aâ mbito das relaçoã es tensas e contraditoí rias entre o
Estado e a sociedade, que colocam limites e abrem possibilidades para o
exercíício profissional, como resultado do trabalho individual e coletivo dos seus
profissionais.

A primeira premissa eí que as profissoã es saã o construçoã es histoí ricas que


somente ganham significado e inteligibilidade se analisadas no interior do
movimento das sociedades nas quais se inserem.
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Para isso, eí importante ter presente as determinaçoã es sociopolííticas do


Serviço Social em sua origem e os processos que levam aà sua organizaçaã o como
profissaã o, condicionados pelas necessidades derivadas do desenvolvimento
capitalista, jaí em sua idade madura, ou seja, em seu estaí gio monopolista.

As condiçoã es propíícias aà profissionalizaçaã o do Serviço Social (e de tantas


outras profissoã es) foram criadas a partir da crescente intervençaã o do Estado
capitalista nos processos de regulaçaã o e reproduçaã o social, por meio das polííticas
sociais puí blicas.

Embora a Igreja Catoí lica tenha importaâ ncia singular na configuraçaã o da


identidade que marca a geâ nese do Serviço Social no Brasil, foi o contexto do final da
Segunda Guerra Mundial, de aceleraçaã o industrial, das migraçoã es campo-cidade e do
intenso processo de urbanizaçaã o, aliados ao crescimento das classes sociais urbanas,
especialmente do operariado, que vai exigir respostas do Estado e do empresariado
aà s necessidades de reproduçaã o social das classes trabalhadoras nas cidades.

·0 esse processo, indutor da presença de um crescente conjunto de instituiçoã es


sociais, que cria o espaço ocupacional para o Serviço Social emergir como
profissaã o, no contexto em que a questão social se poã e como alvo da
intervençaã o do Estado, por meio das polííticas sociais puí blicas 1.

A segunda premissa eí a particularidade do Serviço Social como profissaã o, de


intervir nos processos e mecanismos ligados ao enfrentamento da questão social, em
suas mais agudas manifestaçoã es, que se renovam e se atualizam diante das
diferentes conjunturas sociopolííticas. Trata-se de novas e velhas questoã es derivadas
da desigualdade social, caracteríística do capitalismo monopolista, em suas muí ltiplas
faces e dimensoã es, com as quais os assistentes sociais convivem no cotidiano
profissional.

1 Como amplamente analisado por Iamamoto e Carvalho (1982), em plena ditadura de Vargas, eí
criada, em 1942, a Legiaã o Brasileira de Assisteâ ncia (LBA), primeira instituiçaã o assistencial de porte
nacional, bem como as grandes instituiçoã es patronais que iraã o configurar o que hoje conhecemos como
sistema S – entre elas, SESI,
SENAI, SESC, SEBRAE.

A crescente centralizaçaã o das polííticas sociais pelo Estado capitalista, no


processo de modernização conservadora2 no Brasil, gera o aumento da demanda pela
execuçaã o de programas e serviços sociais, impulsionando a conexaã o entre políítica
social e Serviço Social no Brasil3 e a consequente expansaã o e diversificaçaã o do
mercado profissional.

Essas ponderaçoã es nos levam à terceira premissa, relativa ao fundamento da


profissionalizaçaã o do Serviço Social, a partir da estruturaçaã o de um espaço
socioocupacional determinado pela dinaâ mica contraditoí ria que emerge no sistema
estatal em suas relaçoã es com as classes sociais e suas distintas fraçoã es, e que
transforma as sequelas da questão social em objeto de intervençaã o continuada e
sistemaí tica por parte do Estado.
O caminho da profissionalizaçaã o do Serviço Social eí , na verdade, o
processo pelo qual seus agentes – ainda que desenvolvendo uma auto-
representaçaã o e um discurso centrados na autonomia dos seus valores e
da sua vontade – se inserem em atividades interventivas cuja dinaâ mica,
organizaçaã o, recursos e objetivos saã o determinados para aleí m do seu
controle (NETTO, 2005, p. 71-72).

Instaura-se, assim, um lugar especíífico do Serviço Social na divisaã o social e


teí cnica do trabalho, por meio da constituiçaã o de um mercado de trabalho que passa
a requisitar agentes habilitados para a formulaçaã o e implementaçaã o das polííticas
sociais, entre os quais o assistente social.
Para os assistentes sociais seraí reservada, prioritariamente, a relaçaã o com os
segmentos sociais mais vulnerabilizados pelas sequelas da questaã o social e que
buscam, nas polííticas puí blicas especialmente nas polííticas sociais, em seus
programas e serviços, respostas aà s suas necessidades mais imediatas e prementes.

2 Vaí rios autores, entre eles, Mattoso (1995), incorporaram o conceito de modernização
conservadora nas anaí lises do modelo de desenvolvimento econoâ mico-social adotado no Brasil pelos
governos militares. As bases deste “modelo”, conduzidas segundo os interesses do grande capital
monopolista, reforçaram o desenvolvimento dependente e associado e a integraçaã o subordinada do
Brasil na (des) ordem capitalista internacional, promovendo intensa centralizaçaã o e concentraçaã o no
seu interior. Para maior desenvolvimento da anaí lise, consultar Netto (1991), especialmente o cap.1.
3 Para aprofundamento da reflexaã o sobre as relaçoã es entre políítica social e Serviço Social,
consultar Behring e Boschetti, 2006.

Neste aâ mbito, configura-se o mercado de trabalho para o assistente social,


quando ele
·1 investido como um dos agentes executores das polííticas sociais. Como
observa Netto (2005, p. 74), “prioritariamente no patamar terminal da açaã o
executiva”, onde o assistente social eí convocado a realizar as mais variadas
atividades na administraçaã o de recursos e implementaçaã o de serviços,
considerando a tendeâ ncia cada vez maior de setorizaçaã o da políítica social
(políticas sociais no plural) e a capilaridade que os serviços sociais e
assistenciais assumem para gerir as demandas do capital e das massas
trabalhadoras.

As principais mediaçoã es profissionais (que naã o saã o as uí nicas) saã o, portanto, as


polííticas sociais que, apesar de historicamente revelarem sua fragilidade e pouca
efetividade no equacionamento das respostas requeridas pelo níível crescente de
pobreza e desigualdade social, teâ m sido a via por exceleâ ncia para as classes
subalternas terem acesso, mesmo que precaí rios e insuficientes, aos serviços sociais
puí blicos.

Assim sendo, eí o proí prio Estado o grande impulsionador da profissionalizaçaã o


do assistente social, responsaí vel pela ampliaçaã o e constituiçaã o de um mercado de
trabalho nacional, cada vez mais amplo e diversificado, acompanhando a direçaã o e
os rumos do desenvolvimento capitalista na sociedade brasileira.

A quarta premissa eí que a centralidade do Estado, na anaí lise das polííticas


sociais, naã o significa reduzi-las ao campo de intervençaã o estatal, uma vez que para a
sua realizaçaã o participam organismos governamentais e privados que estabelecem
relaçoã es complementares e conflituosas, colocando em confronto e em disputa
necessidades, interesses e formas de representaçaã o de classes e de seus segmentos
sociais.

A quinta premissa eí que a reflexaã o sobre o trabalho do assistente social na


esfera estatal remete necessariamente ao tema das relaçoã es, ao mesmo tempo
recííprocas e antagoâ nicas, entre o Estado e a sociedade civil, uma vez que o Estado
naã o eí algo separado da sociedade, sendo, ao contraí rio, produto desta relaçaã o, que se
transforma e se particulariza em diferentes formaçoã es sociais e contextos histoí ricos.

Para finalizar, a última premissa destaca que embora seja frequente observar
o tratamento das categorias Estado e governo como sinoâ nimos – considerando que eí
o governo que fala em nome do Estado –, esse uso indiscriminado pode gerar
confusoã es com graves implicaçoã es polííticas (uma delas eí supor que assumir o poder
governamental eí equivalente a conquistar o poder do Estado).

Refletir sobre o Estado capitalista implica considerar referir-se a certo nuí mero
de instituiçoã es – o governo (executivo) nos nííveis central e subnacionais, a
administraçaã o puí blica, as forças militares, de segurança e policiais, os sistemas
judiciaí rio e legislativo nos seus diferentes nííveis de poder –, que compoã em em
conjunto a arena de conflitos e a condensaçaã o de forças polííticas denominadas
Estado.
2 Serviço Social, trabalho profissional e transformações recentes nas esferas
estatal e societária

Os anos 1990 foram palco de um complexo processo de regressoã es no aâ mbito


do Estado e da universalizaçaã o dos direitos, desencadeando novos elementos que se
contrapoã em ao processo de democratizaçaã o políítica, econoâ mica e social em nosso
paíís, no contexto de crise e reorganizaçaã o do capitalismo em escala internacional.

Esse quadro desencadeia profundas transformaçoã es societaí rias, determinadas


pelas mudanças na esfera do trabalho, pela reforma gerencial do Estado (ou
contrarreforma nos termos de Elaine Behring, 2003), pelos processos de redefiniçaã o
dos sistemas de proteçaã o social e da políítica social que emergem nessa conjuntura, e
pelas novas formas de enfrentamento da questão social, com grandes mudanças e
rebatimentos nas relaçoã es puí blico/privado.

De um lado, observa-se o processo de destituiçaã o de direitos que vem no rastro


da reforma conservadora do Estado e da economia e que desencadeia um crescente
e persistente processo de sucateamento dos serviços puí blicos, de ofensiva
sistemaí tica contra

os novos direitos consagrados na Constituiçaã o de 1988, a partir de ampla


mobilizaçaã o de forças sociais que lutaram pela democratizaçaã o da sociedade e do
Estado no Brasil.

De outro, mais aleí m dessas destituiçoã es, o que estaí em curso eí o esvaziamento
da proí pria noçaã o de direitos relacionado a uma suposta desnecessidade de tudo que
eí puí blico e estatal. Nas palavras de Vera Telles, trata-se do “encolhimento do
horizonte de legitimidade dos direitos”, que transforma direito em privileí gio em
nome da necessaí ria modernização da economia, cuja refereâ ncia maior eí o mercado e
suas demandas e prerrogativas.
O agravamento da questão social decorrente do processo de re-estruturaçaã o
produtiva e da adoçaã o do ideaí rio neoliberal repercute no campo profissional, tanto
nos sujeitos com os quais o Serviço Social trabalha – os usuaí rios dos serviços sociais
puí blicos – como tambeí m no mercado de trabalho dos assistentes sociais que, como
o conjunto dos trabalhadores, sofre o impacto das mudanças que atingem o exercíício
profissional.

3 Como se expressa esse processo?

A esfera da produção eí palco de intensas transformaçoã es e re-estruturaçoã es.


Afirmam-se as condiçoã es estruturais do capitalismo global financeirizado e o
fabuloso desenvolvimento tecnoloí gico e informacional, que promovem intensas
mudanças nos processos e relaçoã es de trabalho, gerando terceirizaçaã o,
subcontrataçaã o, trabalho temporaí rio, parcial e diferentes formas de precarizaçaã o e
informalizaçaã o das relaçoã es de trabalho4, para citar apenas algumas das profundas
mudanças em curso na esfera da produçaã o e no mundo do trabalho.

4 Mais de 50% da força de trabalho brasileira encontram-se na informalidade, e o desemprego


aberto saltou de 4% no começo dos anos 1990 para 8% em 2002, mesmo segundo metodologia
conservadora do IBGE. Portanto, para Oliveira (2007, p. 34), “entre o desemprego aberto e o trabalho
sem-formas, transita, entre o azar e a sorte, 60% da força de trabalho brasileira”.

No âmbito estatal, o retraimento das funçoã es do Estado e a reduçaã o dos


gastos sociais veâ m contribuindo para o processo de desresponsabilizaçaã o em
relaçaã o aà s polííticas sociais universais e o consequente retrocesso na consolidaçaã o e
expansaã o dos direitos sociais.
Trata-se de uma dinaâ mica societaí ria que atinge as diferentes profissoã es, e
tambeí m o Serviço Social, que tem nas polííticas sociais seu campo de intervençaã o
privilegiado.

Contudo, a pesquisa realizada pelo conjunto CFESS/CRESS sobre mercado de


trabalho do assistente social em níível nacional (2005) indica que os assistentes
sociais continuam sendo majoritariamente trabalhadores assalariados,
principalmente dos organismos governamentais, com eâ nfase para o campo da
seguridade social nas polííticas de sauí de e assisteâ ncia social.

Mas os processos de re-estruturaçaã o produtiva atingem tambeí m o mercado de


trabalho do assistente social, com a reduçaã o de postos governamentais,
principalmente nos nííveis federal e estadual, e a sua transfereâ ncia para os
municíípios em virtude dos processos de descentralizaçaã o e municipalizaçaã o dos
serviços puí blicos.

Intensificam-se os processos de subcontrataçaã o de serviços individuais dos


assistentes sociais por parte de empresas de serviços ou de assessoria na prestaçaã o
de serviços aos governos, acenando para o exercíício profissional privado
(autoâ nomo), temporaí rio, por projeto, por tarefa, em funçaã o das novas formas de
gestaã o das polííticas sociais.

Em alguns campos de atuaçaã o, como eí o caso da habitaçaã o social, entre


outros, a terceirizaçaã o vem se consolidando como novo modelo de produçaã o e
gestaã o da habitaçaã o, no qual o projeto, a obra, a operaçaã o, sua fiscalizaçaã o e
gerenciamento, bem como o trabalho social passam a ser contratados atraveí s de
processos licitatoí rios, sem que, no

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entanto, a administraçaã o puí blica consiga manter a regulaçaã o e o controle
estrateí gico de todo o processo.

Na políítica de assisteâ ncia social, nos marcos da implantaçaã o em todo o


territoí rio nacional, do Sistema UÚ nico de Assisteâ ncia Social – SUAS, e dos Centros de
Refereâ ncia de Assisteâ ncia Social – CRAS, verifica-se tambeí m a adoçaã o, pelos estados
e municíípios, de variadas modalidades de terceirizaçaã o, pela mediaçaã o de empresas
ou de ONGs, na contrataçaã o de profissionais e na prestaçaã o de serviços
socioassistenciais, configurando-se a açaã o indireta do Estado na produçaã o dos
serviços puí blicos.

As consequeâ ncias dessa forma de conduçaã o das polííticas puí blicas para o
trabalho social saã o profundas, pois a terceirizaçaã o desconfigura o significado e a
amplitude do trabalho teí cnico realizado pelos assistentes sociais e demais
trabalhadores sociais, desloca as relaçoã es entre a populaçaã o, suas formas de
representaçaã o e a gestaã o governamental, pela intermediaçaã o de empresas e
organizaçoã es contratadas; aleí m disso, as açoã es desenvolvidas passam a ser
subordinadas a prazos contratuais e aos recursos financeiros destinados para esse
fim, implicando descontinuidades, rompimento de víínculos com usuaí rios,
descreí dito da populaçaã o para com as açoã es puí blicas.

O que eí mais grave nessa dinaâ mica de terceirização dos serviços públicos eí que
se trata de um mecanismo que opera a cisaã o entre serviço e direito, pois o que
preside o trabalho naã o eí a loí gica puí blica, obscurecendo-se a responsabilidade do
Estado perante seus cidadaã os, comprimindo ainda mais as possibilidades de
inscrever as açoã es puí blicas no campo do direito.

No âmbito da sociedade civil, as duas uí ltimas deí cadas veâ m sendo palco de
muí ltiplas tendeâ ncias que se expressam com grande visibilidade, ganhando a opiniaã o
puí blica: o crescimento das ONGs e as propostas de parcerias implementadas pelo
Estado em suas diferentes esferas, principalmente nos planos municipal e local.
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Se isso naã o eí novo no campo das polííticas sociais, a conjuntura de 1990 traz
novos elementos que precisam ser analisados.

Na virada dos anos 1990, intensificam-se as parcerias e transfereâ ncias de


responsabilidades puí blicas para as iniciativas da sociedade civil, de repasse da
prestaçaã o de serviços para organizaçoã es naã o governamentais, empresariais ou sem
fins lucrativos.

O crescimento e a multiplicaçaã o das ONGs expressam uma diferenciaçaã o do seu


perfil, quando se transformam em novos sujeitos polííticos: se, nas deí cadas de 1970 e
1980, as ONGs atuavam na retaguarda, assessorando a luta dos movimentos
populares, a partir de 1990, elas passam a disputar recursos, lugares e
reconhecimento puí blicos, ao lado de outros atores que integram o cenaí rio políítico.

·2 interessante observar que essa denominaçaã o eí atualmente bastante


abrangente: grande parte das instituiçoã es sociais se autointitulam ONGs,
inclusive as tradicionais entidades filantroí picas e assistenciais, contribuindo
para dificultar a diferenciaçaã o de projetos, concepçoã es e praí ticas, uma vez
que tambeí m todas assumem um aparente consenso em torno do discurso do
combate aà pobreza e de defesa da cidadania.

Integrantes do assim denominado “terceiro setor”, essas organizaçoã es


expressam um amplo movimento associativo que abarca um conjunto heterogeâ neo
de entidades sociais, organizaçoã es empresariais, ONGs dos mais variados tipos, que
atuam no desenvolvimento de projetos socioeducativos, em grande parte voltados
ao atendimento de crianças, adolescentes e famíílias em situaçoã es de risco social e
pobreza.
Tal movimento, que sinaliza um aumento expressivo do associativismo civil no
Brasil, se de um lado decorre do fortalecimento da sociedade civil e da ampliaçaã o da
participaçaã o políítica de segmentos organizados, eí consequeâ ncia, ao mesmo tempo,
das mudanças do papel do Estado na economia e na vida social.

Por esse processo, o Estado deixa de prestar serviços diretos aà populaçaã o e


passa a estabelecer parcerias com organizaçoã es sociais e comunitaí rias, incluindo-se
aíí as fundaçoã es e institutos empresariais que, atualizando seu discurso, convertem a
assisteâ ncia social e a filantropia privadas para a linguagem do capital – agregar valor
ao negócio, responsabilidade social das empresas, ética empresarial saã o alguns dos
termos que passam a ser recorrentes.

Nesse contexto sociopolíítico, ressurge com intensidade o discurso da


participaçaã o comunitaí ria, da solidariedade social e do estíímulo a iniciativas privadas
nas açoã es sociais.

Nesse contexto, dissemina-se, simultaneamente, uma versaã o comunitarista de


conceber a sociedade civil, que passa a ser incorporada como sinoâ nimo de “terceiro
setor”. A sociedade civil, nesses termos, eí definida como um conjunto indiferenciado
de organizaçoã es, identificadas sob a denominaçaã o geneí rica de entidades sem fins
lucrativos, passando por cima das clivagens de classe, da diversidade dos projetos
polííticos e das instaâ ncias de representaçaã o políítica como sindicatos e partidos.
Reitera-se a noçaã o da comunidade abstrata, valorizando-se relaçoã es de
solidariedade social e ajuda muí tua, despolitizando-se os conflitos sociais em nome
de um suposto bem-comum.

Diante do esvaziamento do espaço puí blico contemporaâ neo e do crescimento


de demandas sociais naã o atendidas, o risco eí o de fragmentaçaã o da sociedade civil
em muí ltiplas açoã es e movimentos que naã o conseguem articular-se em torno de
projetos coletivos a serem confrontados e explicitados.

Esta dinaâ mica societaí ria vem implicando a desmontagem das instituiçoã es de
representaçaã o coletiva em todos os nííveis, a progressiva diminuiçaã o do alcance e da
qualidade das polííticas sociais, a reduçaã o dos espaços de negociaçaã o com diferentes
atores da sociedade civil, com amplo rebatimento na conformaçaã o da esfera puí blica
e na defesa de direitos. Para Oliveira (2007, p. 42), “o deslocamento do trabalho e
das relaçoã es de classe esvazia essa “sociedade civil” do conflito que estrutura
alianças, opçoã es e estrateí gias”, aleí m

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de se transformar em uma noçaã o enganosa e anacroâ nica por evocar e buscar


restaurar a “comunidade de iguais”, que naã o tem correspondeâ ncia com as relaçoã es
sociais conflitivas que caracterizam a sociedade capitalista.

Portanto, a partir dos anos 1990, o campo das polííticas sociais e da luta por
direitos ficou muito mais complexo, especialmente se considerarmos que, apesar de
todos os desmontes e desmanches que teâ m atingido a esfera estatal, o Estado
permanece sendo a forma mais efetiva de operar a universalizaçaã o dos direitos.

Para ampliar a reflexaã o sobre o trabalho do assistente social na esfera estatal, eí


preciso considerar, aleí m do aâ mbito executivo, os poderes judiciaí rio e legislativo nos
quais o assistente social tambeí m se insere, diversificando-se as temaí ticas com as
quais trabalha e as atribuiçoã es e atividades que desenvolve.

No caso da esfera judiciaí ria, os assistentes sociais atuam no vasto campo do


acesso aos direitos e aà justiça, na perspectiva de buscar superar a aplicaçaã o
discriminatoí ria das leis que se verifica no cotidiano das classes subalternas.
O assistente social eí um dos mediadores do Estado na intervençaã o dos
conflitos que ocorrem no espaço privado, particularmente nos aâ mbitos domeí stico e
familiar, atuando prioritariamente nas Varas da Infaâ ncia, Juventude e Famíília, nas
dramaí ticas manifestaçoã es da questão social, expressas pela violeâ ncia contra a
mulher, a infaâ ncia e a juventude, as situaçoã es de abandono e negligeâ ncia familiar, o
abuso sexual, a prostituiçaã o, a criminalidade infanto-juvenil.

Mediante o estudo social e a elaboraçaã o conclusiva de laudos periciais, a


articulaçaã o de recursos sociais e encaminhamentos sociais – entre outras
atividades e instrumentos teí cnicos – interfere na viabilizaçaã o dos direitos,
oferecendo ao juiz alternativas de aplicabilidade da sentença, aleí m de
informaçoã es sobre denuí ncias de violaçaã o de direitos humanos aà s
autoridades judiciais e aos Conselhos Municipais

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de Direitos da Criança e do Adolescente [e tambeí m aos Conselhos


Tutelares].
(IAMAMOTO, 2002, p. 38-39)

A participaçaã o dos assistentes sociais no poder legislativo, embora ainda


restrita, tem se colocado como possibilidade para um nuí mero crescente de
profissionais que veem no parlamento, nas diferentes esferas de poder, uma
possibilidade, embora limitada, de avançar nas lutas sociais e inscrever na legislaçaã o
os direitos sociais das classes subalternas. Nesse sentido, inuí meros projetos e leis
teâ m sido formulados por assistentes sociais atuantes nos parlamentos municipais,
estaduais e federal, revelando que o compromisso eí tico-políítico da profissaã o pode e
deve manifestar-se em todos os espaços em que for possíível tensionar e politizar a
luta pela universalizaçaã o dos direitos.

Diante desse quadro complexo, quais são os desafios que se apresentam


no cotidiano do trabalho dos assistentes sociais na esfera estatal?
Sem pretender esgotar a anaí lise, destacam-se alguns elementos:

a) Desafios da interlocução pública do Serviço Social

Um primeiro aspecto de ordem geral eí a constataçaã o de certa perplexidade dos


assistentes sociais diante das mudanças societaí rias em curso, quando presenciam
que temas tradicionais ao Serviço Social, que sempre foram tratados no aâ mbito
interno da profissaã o, agora se tornam puí blicos, ganham visibilidade e novos
interlocutores na cena puí blica.

·3 cada vez maior a multiplicidade de novos atores sociais – governantes,


empresaí rios, ONGs, entidades sociais – que falam de temaí ticas como pobreza,
exclusaã o social, cidadania, e que hoje ganham enorme visibilidade na míídia e
na grande imprensa, passando a disputar poder de vocalizaçaã o nos foí runs e
espaços puí blicos de debate e deliberaçaã o de polííticas e programas sociais.

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Isso poã e em xeque a capacidade analíítica e propositiva dos assistentes sociais


nas diferentes esferas em que se desenvolve o exercíício profissional, e tambeí m nos
espaços puí blicos onde se inserem, como os conselhos de direitos e de gestaã o das
polííticas sociais, confereâ ncias, plenaí rias, audieâ ncias puí blicas, foí runs, entre outros.

A predominaâ ncia dos assistentes sociais nos conselhos de polííticas sociais e de


defesa de direitos nas treâ s esferas de governo exige nova capacitaçaã o teoí rica e
teí cnica, mas tambeí m eí tico-políítica, principalmente no aâ mbito municipal, em que a
velocidade de criaçaã o dos conselhos nem sempre eí sinal de democratizaçaã o, sendo
com frequeâ ncia mero cumprimento formal para acessar recursos federais.
Ao mesmo tempo, o debate e a difusaã o de um conhecimento críítico sobre as
polííticas sociais, especialmente na conjuntura atual, precisam ser ampliados no
interior da proí pria categoria dos AS e nos espaços de formaçaã o profissional.

Estamos, assim, diante de um duplo desafio: de um lado, avançar a articulaçaã o


entre as açoã es desenvolvidas e a reflexaã o teoí rica críítica, que seja capaz de se
antecipar aos desafios e colaborar nas definiçoã es mais substantivas do conteuí do das
polííticas sociais e dos direitos que devem garantir. E, de outro lado, participar
ativamente do movimento de defesa do caraí ter universalizante da Seguridade Social
brasileira e da primazia do Estado na sua conduçaã o, reafirmando a consolidaçaã o do
SUS, do SUAS, da Prevideâ ncia Social, da Educaçaã o Puí blica, combatendo o
reducionismo do modelo de políítica social voltada aos mais pobres entre os pobres,
a despolitizaçaã o da políítica, a refilantropizaçaã o da questão social, trazendo de volta
ao debate o ideaí rio e o imaginaí rio da subjetividade puí blica e da universalizaçaã o dos
direitos.

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b) Exigências de profundas mudanças no perfil do assistente social

O processo de descentralizaçaã o das polííticas sociais puí blicas, especialmente


sua municipalizaçaã o, exige dos assistentes sociais e dos demais profissionais o
desempenho de novas atribuiçoã es e competeâ ncias.

Embora historicamente os assistentes sociais tenham se voltado aà


implementaçaã o de polííticas puí blicas, como “executores terminais das polííticas
sociais”, como definiu Joseí Paulo Netto, esse perfil vem mudando nos uí ltimos anos e,
apesar de ainda predominante, abrem-se novas alternativas e aí reas de trabalho
profissional.

Os assistentes sociais passam a ser requisitados para atuar tambeí m na


formulaçaã o e avaliaçaã o de polííticas, bem como no planejamento e na gestaã o de
programas e projetos sociais, desafiados a exercitarem uma intervençaã o cada vez
mais críítica e criativa.

Os espaços ocupacionais se ampliam tambeí m para atividades relacionadas ao


funcionamento e implantaçaã o de conselhos de polííticas puí blicas nas aí reas da sauí de,
assisteâ ncia social, criança e adolescente, habitaçaã o, entre outros, em programas de
capacitaçaã o de conselheiros, na elaboraçaã o de planos municipais, no monitoramento
e avaliaçaã o de programas e projetos, na coordenaçaã o de programas e projetos, no
planejamento estrateí gico do trabalho, etc.

O atendimento adequado a essas demandas exige novas qualificaçoã es e


capacitaçaã o teoí rica e teí cnica para a leitura critica do tecido social, elaboraçaã o de
diagnoí sticos integrados das realidades municipais e locais, formulaçaã o de
indicadores sociais, apropriaçaã o críítica do orçamento puí blico, capacidade de
negociaçaã o, de interlocuçaã o puí blica, etc., o que interpela as instaâ ncias formadoras e
demanda a adoçaã o abrangente de mecanismos de educaçaã o continuada para
teí cnicos e gestores puí blicos.

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c) O caráter interdisciplinar e intersetorial do trabalho profissional no


campo das políticas sociais públicas

·4 cada vez mais frequente e necessaí rio o trabalho compartilhado com outros
profissionais na coordenaçaã o e implementaçaã o de projetos em diferentes
campos das polííticas sociais e nas atividades sociojuríídicas, que impoã em
novas exigeâ ncias para os assistentes sociais.

Ao contraí rio do que muitas vezes se considera, o trabalho interdisciplinar


demanda a capacidade de expor com clareza os aâ ngulos particulares de anaí lise e
propostas de açoã es diante dos objetos comuns a diferentes profissoã es, cada uma
delas buscando colaborar a partir dos conhecimentos e saberes desenvolvidos e
acumulados pelas suas aí reas.

Como afirma Iamamoto (2002, p. 41), tal perspectiva de atuaçaã o naã o leva aà
diluiçaã o das identidades e competeâ ncias de cada profissaã o; ao contraí rio, exige maior
explicitaçaã o das aí reas disciplinares no sentido de convergirem para a consecuçaã o de
projetos a serem assumidos coletivamente.

Para tanto, o trabalho interdisciplinar e intersetorial se torna fundamental e


estrateí gico, bem como a ampliaçaã o do arco de alianças em torno de pautas e
projetos comuns, tanto no aâ mbito governamental como na relaçaã o com os diferentes
sujeitos e organizaçoã es da sociedade civil, em especial com os usuaí rios dos serviços
puí blicos e suas organizaçoã es coletivas.

d) O desafio de recuperar o trabalho de base junto à população

O Serviço Social tem uma rica trajetoí ria de trabalho direto com a populaçaã o e
proximidade com o seu modo de vida no cotidiano. Nesses uí ltimos anos, poreí m, com
o refluxo dos movimentos populares e o enfraquecimento das instaâ ncias coletivas de

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representaçaã o políítica, o trabalho de mobilizaçaã o e organizaçaã o popular cedeu lugar


a formas institucionalizadas de participaçaã o.
Sem abandonar os espaços institucionais como Conselhos e Confereâ ncias, eí
preciso extrapolaí -los e combinaí -los com outros mecanismos de açaã o coletiva,
capazes de impulsionar a participaçaã o popular em muí ltiplos espaços onde possam
manifestar suas visoã es, expectativas, necessidades e reivindicaçoã es.

Impactos e avanços na esfera puí blica somente seraã o possííveis pela articulaçaã o
dos variados sujeitos e organizaçoã es governamentais e naã o-governamentais, como
os conselhos de direitos, tutelares e de gestaã o, os foí runs e oí rgaã os de defesa dos
direitos, o poder judiciaí rio, o Ministeí rio Puí blico, as defensorias e ouvidorias
puí blicas, em uma efetiva cruzada pela ampliaçaã o de direitos e da cultura puí blica
democraí tica em nossa sociedade.

Para concluir, eí necessaí rio ressaltar que, apesar de todos os obstaí culos
encontrados no exercíício profissional, a categoria dos assistentes sociais vem
construindo uma histoí ria de lutas e de resisteâ ncia, apostando no futuro, mas
entendendo que ele se constroi agora, no tempo presente.

Para isso, eí fundamental continuar investindo na consolidaçaã o do projeto


eí tico-políítico do Serviço Social, no cotidiano de trabalho profissional, que caminhe
na direçaã o do desenvolvimento da sociabilidade puí blica capaz de refundar a políítica
como espaço de criaçaã o e generalizaçaã o de direitos.

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Referências

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