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Entã o vieram os três reis magos.

O primeiro foi Joã o Mau-Tempo, veio por seu pé,


havia ainda luz de dia, para ele nenhuma estrela seria precisa, e se mais cedo nã o chegou
foi apenas por questõ es de pudor masculino, que bem poderia ter assistido ao parto se tais
coisas se usassem naquele tempo e neste lugar, que mal faria ver parir a pró pria filha, mas
nã o pode ser, nã o faltariam murmuraçõ es, ficam essas ideias para o futuro. Chegou cedo
porque está desempregado, andou a sachar um bocado de terra que lhe deram para
amanhar, e quando entrou em casa nã o viu a mulher, mas a vizinha disse-lhe que era avô
de uma menina, e ele ficou satisfeito, mas nã o tanto quanto seria de esperar, preferia um
rapaz, em geral preferem rapazes, e entã o tornou a sair de casa, vai no seu passo
balouçado entre duas dores, uma para cá , outra para lá, a antiga pontada dos grandes
carregos nas carvoarias e o quebranto surdo da está tua, parece um marinheiro de longo
curso que acabou de desembarcar e se espanta com a imobilidade do chã o que pisa, ou
entã o é como se viajasse na corcova dum camelo, navio do deserto, e esta comparaçã o vem
mesmo ao pintar do quadro porque sendo Joã o Mau-Tempo o primeiro rei mago, justo é
que viaje conforme condiçã o e tradiçã o, os outros que venham como puderem, e de
oferendas nã o falemos, a nã o ser que seja recebida como oferenda esta arca de sofrimento
que Joã o Mau-Tempo transporta dentro do seu coraçã o, cinquenta anos de padecer, ouro
nenhum, incenso é fumo de igreja, padre Agamedes, e se de mirra houvermos de falar, nã o
faltam mortos pelo caminho. É pouco, e mau, para levar a quem ainda agora nasceu, mas
estes homens do latifú ndio só podem escolher entre o que lhes foi consentido, suor quanto
baste, alegria nã o mais do que este sorriso de poucos dentes, e terra só a necessá ria para
lhes comer os ossos, que a outra faz falta a outras agriculturas.

Vai pois Joã o Mau-Tempo de mã os vazias, mas em caminho lembra-se de


que nasceu o seu primeiro neto, e de um quintal florido arranca uma flor de gerâ nio, um
talo cheio de nó s, este cheiro de casa pobre, e é bonita coisa ver o rei mago no alto do seu
camelo com gualdrapa de ouro e carmezim, debruçar-se Joã o Mau-Tempo para a
humildade de colher uma flor de sardinheira, nem sequer mandou um escravo, dos muitos
que o acompanham e servem, vejam-se estes grandes exemplos. E quando à porta da casa
da filha Joã o Mau-Tempo chega, parece o camelo que conhece as suas obrigaçõ es,
dobrados os joelhos o animal facilita a descida deste senhor dos latifú ndios, enquanto toda
a guarniçã o do posto da guarda republicana apresenta armas, embora o cabo Tacabo tenha
suas dú vidas sobre o direito de andarem animais de tal porte e compleiçã o pela via
pú blica. Sã o fantasias nascidas do sol violento, já quebrado no céu, mas que está ainda
recozendo em todas as pedras do caminho, quentes como se tivessem sido elas acabadas
de parir pela terra, Minha querida filha, e é entã o que Joã o Mau-Tempo vê que os seus
olhos sã o imortais, entã o ali depois de uma longa peregrinaçã o, nem ele conhece o mais

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distante dela, donde vem, como foi, basta-lhe que em Monte Lavre outros assim nã o
houvesse, tanto na sua família como fora dela, os filhos da minha filha meus netos sã o, os
do meu filho serã o ou nã o, ninguém se livra de malícias populares, mas destes ninguém
pode duvidar, olhem bem para mim, para estes meus olhos azuis, e agora vejam os desta
minha neta, que vai chamar-se Maria Adelaide e é retrato daquela sua avó com mais de
quinhentos anos, mais os olhos que sã o do seu avô salteador estrangeiro de donzelas.
Todas as famílias têm as suas fá bulas, algumas nem isso sabem, como esta dos Mau-
Tempos, que bem a podem agradecer ao narrador.

O segundo rei mago chegou já se fechara a noite. Veio do trabalho, nenhuma luz em
casa, o lume apagado, de panela cheia nem promessa, entã o deu-lhe o coraçã o um baque, e
logo a seguir outro lho deu a mesma vizinha, A tua irmã teve uma menina, o teu pai e a tua
mã e estã o lá em casa, nesta altura já se sabe que o menino nascido é menina e tem os olhos
azuis, sabê-lo é uma distracçã o para Monte Lavre, mas a vizinha nada lhe diz sobre o
ú ltimo ponto, é uma boa mulher que acha que as surpresas têm o seu lugar e o seu
momento, que graça tinha dizer a Antó nio Mau-Tempo, A tua sobrinha tem os olhos azuis,
assim ele por seus pró prios olhos castanhos verá e fará a festa de ter visto. Já a guarda
recolheu ao posto, ninguém está ali para apresentar armas a Antó nio Mau-Tempo, era o
que faltava, tolo é quem acreditou, mas é em carne e osso um rei mago que desce a rua,
sujo como deve estar quem vem de trabalhar, nã o se lavou, nã o teve tempo, porém nã o
esquece as suas obrigaçõ es e de uma lata caiada que ao lado duma porta está, colhe um
malmequer, e para que nã o murche nos dedos mete-o entre os lá bios, alimenta-o de saliva,
e quando enfim entra diz, Minha irmã , e dá-lhe o bem-te-quero, é o que há de mais natural,
mudarem as flores de nome, como se viu com gerâ nio e sardinheira, e um dia se verá com
o cravo.

Ainda bem que Antó nio Mau-Tempo nã o ia na mira de olhos azuis. A menina
dorme em boa paz, tem os olhos fechados, foi uma decisã o dela, só os abrirá para o
terceiro rei mago, mas esse chegará muito mais tarde, noitíssima, porque vem de longe e
tudo caminho da banda dos pés, faz esta viagem há três dias, ou três noites, para quem
gostar de informaçõ es rigorosas, entã o saiba-se que Manuel Espada vai na sua terceira
noite de pouco dormir, já está habituado, é o que vale a esta gente, e para melhor se
entender, melhor convém explicar, ora ouçam, Como Manuel Espada trabalha muito longe
de casa, tem dormido por lá, em barraca de pastores ou malhada de monte, nã o importa
para o caso, mas como se estava aproximando a hora do parto, que faz Manuel Espada,
larga o trabalho ao sol posto, chega a casa passada a meia-noite, do filho só vê o volume da
barriga, descansa durante uma hora ao lado de Gracinda Mau-Tempo e depois levanta-se e

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torna ao trabalho, pelo meio da noite e madrugada, e esta é a terceira, mas como à s três é
de vez, quando chegar verá sua mulher parida e sua filha nascida, veja-se como sã o as
coisas.

Cearam Faustina, Joã o e Antó nio Mau-Tempo da galinha morta para o nascimento,
Gracinda Espada bebeu dela a sua parte de caldo, como é salutar para mulher que teve
filho, e entretanto vieram outros tios e mais parentes, entraram e tornaram a sair,
Gracinda precisa de descansar, ao menos hoje, adeus, até amanhã , é uma linda menina e o
retrato do avô . O reló gio da torre já deu a meia-noite, e se a má sorte se nã o intrometeu na
vida do viajante, se nã o houve resvalo de cabeço ou valado, se nenhum maltês insofrido
quebrou a regra de nã o assaltar outro tã o pobre, nã o tarda que chegue o terceiro rei mago,
que presentes trará consigo, que comitiva, talvez venha num cavalo á rabe com ferraduras
de ouro e freio de prata coralina, bem podia acontecer, em vez de maltês barbudo e
meliante descer ao caminho uma fada minha madrinha e dizer, Tua filha nasceu, e porque
tem olhos azuis te dou este cavalo para que mais depressa os possas ver, antes que com a
vida descorem, mas mesmo que tal acontecesse, é um supor de imaginaçã o, estes
caminhos sã o custosos, e à noite pior ainda, já o cavalo se cansou ou partiu uma perna, de
maneira que Manuel Espada fará a sua viagem a pé, ó grande noite estrelada e imensa,
noite noitinha de sustos e de indecifrá veis murmú rios, porém, ainda assim, têm os reis
magos seus poderes de Ur e Babiló nia, nem doutra arte se explicaria que voem adiante de
Manuel Espada dois vagalumes, nã o tem nada que errar, é ir atrá s deles como se fossem os
dois lados de um caminho, quem havia de dizer que sã o possíveis tais sortilégios, ser bicho
natural mã o de encaminhar, e assim se sobem colinas e descem vales, se ladeiam campos
de arroz e atravessam chapadas, eis as primeiras casas de Monte Lavre, e agora os
vagalumes pousaram nas ombreiras da porta, à altura da cabeça, a luzir, gló ria ao homem
na terra, e Manuel Espada passa entre eles, que ao menos nã o faltem estas honras a quem
de pesado trabalho vem e a ele terá de regressar antes de nascer o sol.

Manuel Espada nã o traz presentes, nem de aqui, nem de além. Estende as mã os e


cada uma delas é uma grande flor, diz, Gracinda, nã o sabe outra palavra, e dá-lhe um beijo
na face, um só , mas este ú nico beijo nã o sabemos que tem para assim nos apertar a
garganta, ainda se fô ssemos da mesma família, mesmo que tivéssemos alguma coisa que
dizer neste passo, nã o poderíamos, e no momento de tais gestos e murmú rios particulares
é que Maria Adelaide abre os olhos, parecia mesmo que estava à espera, é a sua primeira
habilidade de criança, e vê um grande vulto e as grandes mã os abertas, é seu pai, ainda lhe
falta saber o que isso significa, sabe-o Manuel Espada, a tal ponto que o coraçã o é como se
lhe despegasse do peito, tremem-lhe as mã os desarmadas, como há -de ele pegar na

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criança que é sua filha, os homens sã o uns desajeitados, e entã o Gracinda Espada diz, É
parecida contigo, pois será , que nestas idades, tã o poucas horas, nunca se sabe, mas quem
está em boa razã o é Joã o Mau-Tempo ao proclamar, Mas os olhos sã o os meus, enquanto
Antó nio Mau-Tempo ouve calado porque é apenas tio, e Faustina, tã o surda, adivinha tudo
e diz, Meu amor, nem sabe por que o disse, sã o palavras que nã o se usam no latifú ndio em
casos tais, questã o de recato ou parcimó nia.

Duas horas depois, mais tempo fosse e todo haveria de parecer curto, Manuel
Espada saiu de casa, vai ter de esforçar o passo para chegar ao trabalho antes do sol fora.
Os dois vagalumes que tinham estado à espera puseram-se outra vez a voar, rentinho ao
chã o, com tal claridade que as sentinelas dos formigueiros gritaram para dentro que
estava o sol nascendo.

José Saramago, Levantado do Chão, Lisboa, Caminho, ediçã o, pp. 296-301

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