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Introdução
Uma lei é algo de racional, como ensinou Santo Tomás; sua criação e obediência
consciente aplicam-se apenas a entes capazes de refletir e criar símbolos que
signifiquem algo do pensamento. Embora seja o homem feito da mesma
substância das pedras, das montanhas, das estrelas, das plantas e de todos os
animais — tudo o que compartilha o ser transcendental —, ele detém potências
várias que pode escolher atualizar para tornar visível o rastro da sua liberdade:
é capaz de conhecer as causas e o fim de todas as coisas, de ter ciência do
próprio caráter de causa eficiente; é um intermediário entre o anjo e a fera, na
expressão de Santo Agostinho.
Por isso a Lei Natural compõe os preceitos que a razão prática formula para a
conduta mais correta na diversidade de situações contidas no drama humano. É
natural porque funda-se na natureza humana, e não porque o fundamento está
unicamente na universalidade da razão: assenta-se sobre a essência do homem,
dono de um ser específico e um dever-ser que lhe é próprio. Apoia-se, por isso,
em fundamentos ontológicos, nas razões últimas do entendimento que podemos
exercer.[2]
A ontologia foi por muito tempo identificada com a metafísica, e só nos últimos
séculos teria revelado, para os seus estudiosos, alguma diferença que a
dividiu.[3] Mas essa divisão não será importante para nós. Ambas identificam-se
como a ciência do “ser enquanto ser”: persistem no topo da hierarquia dos
conhecimentos sistematizados — a metafísica é o limite das conjecturas
possíveis, pois ela trata do todo, enquanto as outras ciências, que nela se
enraízam, se ocupam das partes que o compõe.
O tema parece difícil pelo seu grau de abstração, mas é sua evidência notável
que nos faz esquecer da conclusão simplíssima: se algo pode ser pensado, é
alguma coisa que é; se há alguma coisa, o nada (o não-ser absoluto) não existe.
Isto implica que toda referência feita a qualquer coisa, seja possibilidade,
privação ou existência, tem algum ser, alguma sistência que a fundamenta. E
este algo que é, que permanece como substrato de todo pensamento possível,
fundamenta a verdade, noção cuja ausência significaria o desabamento de toda
a filosofia.
Não houve digressão fundamental para esse tema entre os maiores pensadores
da tradição grega. Alguma coisa sempre permaneceu como critério objetivo da
verdade. A posição relativista, da qual Protágoras é o maior símbolo, afirmava
ser o homem a medida de todas as coisas, de modo que dois discursos
contraditórios poderiam ser concomitantemente verdadeiros. A absurdidade
deste pensamento salta aos olhos, e por isso a corrente sofista não se sustentou
por muito tempo. Tomando a opinião de Protágoras, discursos que atribuíssem
qualidades contraditórias a um objeto fariam com que nele subsistissem dois
predicados anuláveis entre si, como algo que existisse e não existisse ao mesmo
tempo, por exemplo.
Não nos esqueçamos, no entanto, que a abstração do ente não diz tudo o que o
ente é. Como ensinou Santo Tomás, o conhecimento pelo intelecto dos objetos
forma um esquema morfológico-noético (do grego νους, nous, referente ao
espírito, intelecto) similar ao esquema morfológico-eidético do próprio objeto.
Assim, nosso conhecimento é do todo (totum), mas não totalmente
(totaliter).[12] O primeiro se refere a uma extensão, um conhecimento extensivo,
o “que é” da coisa. Mas compreender o totum, compreender intensivamente a
totalidade, não cabe senão a Deus, pois isto significa saber exatamente tudo o
que diz respeito a uma substância, todas as suas diferenças, todas as suas
potências. O esquema noético é meramente análogo àquele da coisa, mas está
fundamentado nela, ainda que não se aproprie de tudo o que a coisa é.
2.3 O bem
O bem é descoberto depois do ser, porque, como a verdade, é uma relação que
o supõe. Conforme a descrição de Aristóteles, bem é o que todas as criaturas
apetecem,[14] é tudo aquilo que tem uma razão de fim.
Há uma atração natural de todos os entes para aquilo que lhes é conveniente,
como o intelecto é atraído pela verdade e a potência pelo ato.[15] Não é uma
conveniência criada pela vontade. A atração de que falamos é ontológica; é
necessária e natural, não passa pela perversão da razão mal ordenada.[16] A
apreensão de um bem adequado só pode ser pervertida pela inteligência que
valora mal as coisas, que se esquece da verdade e encontra, por acidente, a
face do ser que não lhe cabe. Bem é o que atrai para si o apetite por ser fim, não
por ser apetecido.
Por esta razão é a verdade o bem do intelecto, o ato o bem da potência etc.
Nesta relação, um ente torna perfeito aquilo que atraiu numa relação ontológica.
O intelecto, se não descobre a verdade, é inútil; mas se a descobre, alcançou o
seu fim, tornou-se perfeito. Do mesmo modo, a potência, que se traduz por mera
possibilidade de vir a ser atualizada, só existe em função do ato. Perfeito significa
isto: o que foi feito, o que está acabado e não vai além, pois encontrou sua
plenitude. Tudo aquilo que foi atualizado é bem, de um certo modo, pois é ato,
e, enquanto ato, foi tornado perfeito na realização do bem pela potência.[17]
Mas esse desejo segue a mesma relação que há entre o intelecto e a verdade,
o ato e a potência. A razão de fim existe por uma conveniência natural que pode
o homem frustrar pela escolha livre — espécie de desobediência privativa do
ente racional. A natureza dessa conveniência para o desejo estudaremos em
capítulo próprio. Precisamos, agora, demonstrar a liberdade do agir humano, o
que nos trará as peculiaridades do seu dever-ser. Este, por sua vez, encontrará
finalmente bases firmes para ser estudado.
Não pode existir moralidade no terreno da necessidade, daquilo que não cede,
que não pode não-ser. A imoralidade predica-se da conduta que,
conscientemente, foi escolhida para um fim que frustra a imposição da norma
moral.
Uma regra só pode ser obedecida se puder ser violada, assim como o bem só
pode ser preferido se também o puder o mal. Obedecer é um ato livre da vontade
e não se confunde com a simples submissão. Um ato necessário, infrustrável,
não é bom ou mal, moral ou imoral: é a- moral — dele não se predica a
moralidade. Toda regra moral impõe uma conduta que pode não ocorrer, ou a
proibição de uma conduta que pode ocorrer. Se não existisse a possibilidade de
não atualização da conduta, se a consecução dos fatos fosse linear e necessária
relativamente à conduta, não haveria que se falar em regra moral, mas em juízo
descritivo. Não falamos em “leis naturais”, como a gravidade, senão como
metáfora. Leis da natureza, no sentido atribuído pela ciência em geral, são juízos
que explicam esta mesma natureza, que apenas age; age sem consciência de
fim ou liberdade intrínseca. A natureza não escolhe não-agir ou agir contra. E a
escolha, para que seja livre, deve ser consciente: o agente deve ter ciência de
pelo menos duas possibilidades de ação, entre as quais decidirá a melhor
possível.
Por isso a moral e a ética são ciências cabíveis apenas ao homem. Todos os
outros seres materiais submetem-se às suas inclinações ou necessidades sem
escolha e sem consciência. Suas tendências sempre resultarão no cumprimento
da regra que indica seu caminho se não forem frustradas por um defeito
intrínseco da própria natureza ou por algum fator externo que os impeça de
perfectibilizarem-se no ser ideal que lhes é próprio.
Chamamos um ser animado aquele que detém alma.[19] É este princípio que os
diferencia do ser inanimado, o mero corpo, como as pedras e as nuvens. O ser
vivo, para que o predicado seja adequado, precisa, pelo menos, mover-se a si
mesmo,[20] embora possa, nas manifestações superiores da vida, experimentar
um estado, desejar ou conhecer um objeto. A última é operação exclusiva do
homem: a concentração que toma posse consciente do objeto para refletir
vivamente, ponderar, escolher agir. Mas o homem exerce todas as outras
funções, pois se move e foge da dor. No entanto, tem ciência do seu movimento;
não foge da dor e busca a nutrição como um cão, pois é capaz de escolher não
comer e decidir por enfrentar o mal físico. Faz tudo isto pela potência da alma
que lhe é própria e que chamamos racional.
Neste mesmo ato em que conhece as causas é que podemos sopesar e atribuir
valores a um fim ou a um meio: se são bons ou ruins, se são melhores ou piores
para a consecução de uma finalidade próxima. Estas valorações são feitas
mediante reflexão racional. Santo Tomás explicou:
[…] Outros, porém, agem com discernimento, mas não livre, como os brutos.
Assim a ovelha que, vendo o lobo, discerne que deve fugir, por discernimento
natural, mas não livre, porque esse discernimento não provém da reflexão, mas
do instinto natural. E o mesmo se dá com qualquer discernimento dos brutos. ―
O homem, porém, age com discernimento; pois, pela virtude cognoscitiva,
discerne que deve evitar ou buscar alguma coisa. Mas esse discernimento,
capaz de visar diversas possibilidades, não provém do instinto natural, relativo a
um ato particular, mas da reflexão racional. Pois a razão, relativamente às coisas
contingentes, pode decidir entre dois termos opostos, como se vê nos silogismos
dialéticos e nas persuasões retóricas. Ora, os atos particulares são contingentes
e, portanto, em relação a eles, o juízo da razão tem de se avir com termos
opostos e não fica determinado a um só. E, portanto, é forçoso que o homem
tenha livre arbítrio, pelo fato mesmo de ser racional.[24]
É preciso notar que não há uma liberdade humana absoluta, mas que há, de
fato, uma liberdade de “dirigir o seu querer para o objeto que prefere”.[25] Dizer
que o homem não é livre porque não pode voar, por exemplo, é tão apropriado
quanto dizer que uma tartaruga não é livre porque seu estômago é muito
pequeno para comportar uma baleia. Seria mais correto dizer que a tartaruga
não é livre porque não pensa, ou que o homem pode não ser livre porque não
pensa direito (quando supõe que as tartarugas deveriam engolir as baleias).
homem não goza dessa autossuficiência, não é um ser que existe por si mesmo,
mas que constantemente atualiza suas potências em busca de outros bens. Há
sempre um porquê para ação e uma razão que atrai a vontade.
Um desregrado sexual pode preferir sempre os fins que o satisfazem, mas isto
não faz dele menos livre para perceber a maldade da sua tendência, preferindo
a sensibilidade à racionalidade e seguindo o lado baixo da natureza humana em
detrimento do mais nobre. Preferindo a racionalidade, o pensamento toma um
aspecto mais cristalino, e os fins mais adequados, a valorização de todas as
coisas — incluindo a hierarquia dos seres e, neles, a supremacia de certos
valores, como no homem o é a razão —, os descobre e alcança com mais
destreza.
4. O dever-ser
Este capítulo não foge da objetividade que nos orientou até agora, pois estamos
verdadeiramente descobrindo o ente naquilo que ele é inteligível. Entretanto,
passaremos a considerá-lo não mais em si mesmo, mas em relação ao seu fim
conveniente. Aqui notamos a importância do significado de bem, pois ele encerra
a ideia de fim. Embora toda a realidade constitua bem meramente por ser (como
foi demonstrado), conhecer o bem relativo de alguma coisa é descobrir aquilo
que acrescerá a sua perfeição.
4.1 O dever-ser e o conceito de natureza
Imagine que andamos por um bosque e, numa clareira logo à direita, vemos
surgir destoante uma macieira admirável. Ao aproximarmo-nos daquela árvore
suntuosa, não percebemos nenhum fruto pendente em seus galhos! Quão
natural seria exclamar que “essa árvore deveria ter maçãs!”.
A macieira, como ente natural, tem uma tendência intrínseca conferida pela sua
essência. Achamos estranha a falta das maçãs porque esta tendência foi por
algum motivo frustrada.
Dizer que o dever-ser é imperativo não passa de uma tautologia. Ele é o fim do
ser como causa final, e àquilo que existe segundo um fim cabe necessariamente
a sua realização. Santo Tomás escreveu:
Daí dizemos que a consecução do dever-ser é natural e, por essa mesma razão,
boa. Compreendemos anteriormente que bem é aquilo que tem relação de fim
com o que o apetece, como ocorre com a verdade, que é apetecida pelo
intelecto. Esta bondade relativa não é invenção do capricho humano, mas está
fundada no ser, é ontológica. Se há, como descobrimos, uma natureza própria
de cada ente que determina as suas inclinações naturais, há, na mesma medida,
um bem que lhe é conveniente numa relação ontológica.[35]
Notemos ainda que a causa final não poderia transcender a imposição da forma.
Se descobrimos a essência, temos um piso seguro sobre o qual assentamos
nossas conclusões. Uma causa final incompatível com a essência significaria um
falseamento da realidade por ela mesma, pois estaria agindo ou sofrendo além
das suas potências. Potência significa a possibilidade de vir-a-ser: só pode ser
aquilo que tem potência para tal. Retomamos o exemplo: não cabe à casa de
concreto abrigar cupins. Todo ente contém possibilidades internas de sofrer
certas transformações e de agir segundo aquilo que é. A macieira deve produzir
maçãs e não pode produzir laranjas; a pedra tende a permanecer pedra
enquanto esta é sua perfeição devida, mas não poderia ler um livro ou alimentar-
se e reproduzir-se.
Uma pedra é o que deveria ser sempre, até que qualquer força extrínseca a faça
deixar de ser absolutamente pedra, para tornar-se areia, por exemplo. Mas
quando no ser há vida — quando nele há alma, conforme explicamos —, abre-
se margem para a gradação. A macieira deve dar maçãs, e a não consecução
desse fim a torna uma péssima macieira. Do mesmo modo, a macieira que
produz frutos grandes e suculentos é melhor do que a macieira que fornece
maçãs tímidas, miúdas, frágeis. Aqui há uma escalaridade, pois existem graus
de aproximação da árvore entre aquilo que ela é e aquilo que deveria ser, graus
internos do seu dever-ser específico; são aproximações e afastamentos naturais
da causa final de uma macieira.
Toda entidade possui um dever-ser. A diferença que há entre este dever-ser para
a criatura racional e a bruta é quanto à frustrabilidade. Os meros corpos, ou os
corpos dotados da inteligência própria dos animais, podem ser impedidos de
alcançar seu dever-ser por fatores que prescindem da vontade, mas a
inteligência humana frustra a imperatividade da natureza se assim quiser pelo
fator intrínseco da escolha.[37]
Por isso é que a ele podemos atribuir culpa na ofensa do seu dever-ser,
enquanto não o podemos fazer para os animais e as plantas. Nestes, a
frustração do dever-ser só pode dar-se por causas independentes, extrínsecas
ou intrínsecas; mas no homem há o princípio intrínseco da escolha. Ele pode ser
mais ou menos homem conforme a decisão que toma, tanto pela escolha dos
fins corretos quanto pelo exercício atual dela: sendo mais ou menos bruto, dando
mais ou menos força à parte animal que o constitui.
Admitir uma causa final frustrável é, portanto, admitir que há desvios, que há
erros, que há um modo errado no próprio ato da vida. Mas a vida desviante só
existe com culpa para o homem, que conhece e escolhe ante a presença da
consciência.
Além disso, a causa final pode ser vista de vários modos. Deus evidentemente
existe como causa eficiente de todas as coisas, e a Ele coube a determinação
de todas as causas finais, naturalmente incluindo a si próprio como causa final
suprema: Deus é a causa final externa de tudo, aquela a que tudo busca para o
repouso eterno. Mas esta causalidade suprema que Deus é por força da Lei
Eterna[40] não exclui a causalidade final de cada ente, aquilo que eles devem
realizar em si mesmos — na conservação da sua essência e atuação do que
lhes cabe como parte do ser. O Pe. Anderson Machado explicou as formas com
que o bem pode ser considerado:
Está-se a ver que a moral de Santo Tomás, pelo que respeita à obrigação, não
é um legalismo, ao modo de Kant e de mais que um filósofo católico. Para Kant,
o bem é obrigatório porque assim o concebemos e assim no-lo impomos, com
vontade autónoma, isto é, sem alguma obrigação superior a ela nem muito
menos inferior, sem justificação natural ou transcendente. Para certos filósofos,
como Duns Scoto, o bem obriga porque Deus assim o quis. Para Santo Tomás,
porém, o bem obriga porque a razão vê nele um meio para o homem ser
verdadeiramente homem e para atingir o seu fim, e porque o fim buscado
livremente impõe-se ao ser racional tanto como aos outros a fatalidade
Quando o homem dá azo à sua parte animal, por exemplo, quando prefere agir
de forma a satisfazer seu impulso sexual arbitrariamente ao invés de regrá-lo
segundo uma moderação imposta pela razão, se afasta da perfeição que lhe é
própria. Eis a importância da descoberta da causa formal de cada ser. Ela nos
dá um princípio que guia à perfeição última. Se no homem a racionalidade é sua
forma, partimos desta constatação ontológica para avançar no modo como
evoluímos.[43]
No entanto, não é apenas ente racional. A razão fez do homem o que ele é, mas
não o destituiu da sua presença material no mundo. Ainda é animal e ainda
precisa agir para alcançar os seus fins,[44] tanto para o bem último quanto para
as necessidades da sua parte material: precisa satisfazer os desejos e as
necessidades físicas.[45]
Na sua existência concreta, disse Mario Ferreira dos Santos[46] em acordo com
Santo Tomás, o homem existe em corpo e em espírito, e, se não fosse o
bastante, é na sociedade em que exerce todas as suas funções. Deste modo, a
cada parte da sua constituição corresponde um dever-ser próprio: a manutenção
da inteligência, a conservação da saúde corporal, a responsabilidade com o
outro. Considerar o homem in abstrato, afastando dele toda a ordem que o
harmoniza num ser acabado, é vê-lo por um ângulo particular e, portanto,
falseado pela observação limitada. Pois ele não é puro espírito, então não cabe
ao homem apenas pensar; não é pura besta, às quais cabem apenas agir como
lhes manda o instinto.
A razão que apetece a verdade é, como dissemos, a coroação do homem, a
perfeição própria do seu ser, mas não é seu todo. Se alguma coisa significa que
ele tem a razão como essência, é que tudo por ela deve ser direcionado. Deixo
esta explicação (uma glosa da moral tomista), novamente, a Sertillanges:[47]
5. A Lei Natural
Tudo o que fizemos até aqui foi demonstrar a base ontológica que a Lei Natural
ilumina em seus preceitos. Como explica Leo Elders,[48] Tomás não identifica
as inclinações naturais com a lei da natureza; esta lei é o conjunto dos preceitos
que a razão prática conhece por participar da inteligência divina. A razão recebe
da Lei Eterna[49] seus princípios práticos por participação, mas a substância que
eles ordenam é fundada na natureza humana.
São Paulo escreveu na sua carta aos Romanos sobre uma Lei gravada no
coração dos homens, uma Lei decorrente da natureza humana.[50] Santo
Tomás cita o apóstolo como fonte do questionamento quanto à existência dessa
Lei.[51] Ele diz que, como tudo participa da Lei Eterna, a ordenação suprema de
todas as coisas criadas por Deus, o movimento das criaturas racionais, seus fins
e atos devidos, não fugiria à sua influência. A Lei Natural é a participação da Lei
Eterna: Deus inscreveu em nossos corações certos princípios racionais segundo
a nossa natureza. Mas podemos tranquilamente deixar esta explicação aos
teólogos. A vontade de fazer o bem e fugir do mal existe e é observável: mesmo
filósofos pagãos como Platão[52] e Cícero[53] perceberam este comportamento
no movimento da ação humana.
Assim como o ser é a primeira noção apreendida pelo intelecto, explica Santo
Tomás, o bem é a primeira noção que aparece à razão prática, pois todo agente
se move em vista de um fim que é bem por essência.[54] A Lei Natural é a
iluminação das inclinações inscritas em nossos corações, por onde Tomás
conclui o primeiro preceito que regula todos os demais: “deve-se fazer e buscar
o bem e evitar o mal.”[55] A razão prática nos fornece intuitivamente este
guiamento para a vida moral. Mas ele não é apriorístico. Suas bases puderam
ser provadas ao longo do trabalho: há bondade contida no ser; há uma natureza
humana à qual corresponde um dever-ser.
O que a Lei Natural faz é servir de preceito para a consecução do que a natureza
nos diz que deve ser feito. Já foi suficientemente provado que há uma inclinação
natural em todo ser para o seu próprio bem, observada no princípio de
conservação (a lei da inércia) e no desejo irracional pelas coisas
adequadas.[56] A razão prática, que ordena os atos conscientes à atualização
desse bem que procuramos por inclinação natural, torna evidente a proposição
fundamental — e ontológica — de que o bem deve ser buscado e o mal evitado.
Santo Tomás, ao responder essa questão, diz que, como a lei da natureza é
fundada na essência humana, não poderia mudar-se.[57] Mas a vida humana é
feita de situações particulares cuja adequação aos princípios universais da Lei
torna-se, às vezes, muito complicada. Por essa razão, a imutabilidade atinge os
primeiros princípios fundamentais, como a submissão das paixões à razão, ou à
busca do bem e fuga do mal. À medida da complexidade dos casos, a Lei
Natural, nas suas derivações, toma direções diferentes.
A razão nos impõe, por diversos motivos, a restituição dos depósitos. Mas neste
caso em particular a devolução poderia ser danosa. Note-se que a mutabilidade
ensejada pelas circunstâncias não mitigou os primeiros princípios, mas alterou a
aplicação de um princípio segundo, isto é, a obrigação da devolução das coisas
emprestadas. Os primeiros princípios permanecem sempre os mesmos, mas
suas derivações, os princípios segundos, descobertos pela reflexão racional,
ajustam-se às circunstâncias.
Ademais, outras dificuldades se impõem quanto à universalidade da Lei Natural.
Observamos que muitos indivíduos, que muitas culturas, não agem segundo
seus preceitos fundamentais — atingem o mal quando ele é, para nós evidente
— e derivados — retidão no comércio ou na vida pública, a conservação da
família etc. A despeito do que Platão já explicou em Górgias sobre o desejo do
bem ser universal, embora acidentalmente contrariado, a objeção não invalida a
existência de uma Lei Natural nem de inclinações inerentes ao coração humano.
Já demonstramos como as paixões afetam a capacidade de conhecer aquilo que
é mais adequado, isto é, como a ignorância nubla a apreensão da bondade
ontológica.
Santo Tomás dá um lugar especial ao estudo do Direito. Ele o trata como objeto
da justiça, uma virtude que diz respeito, primariamente, à relação de igualdade
que o agente tem com outrem.[59] Já à Lei Natural cabe formular princípios de
ação segundo a natureza humana. O primeiro, objeto da justiça, só poderia se
preocupar com as relações justas de fatos objetivos; a segunda é mais geral,
pois adentra o campo da justiça, mas também das intenções com que é
praticada. Deste modo, a Lei Natural precede o Direito: só é Direito o que está
conforme a natureza.
O que hoje entendemos por Direito é o mesmo que Tomás entendia por Lei
Humana.[60] A ordenação da vida social trouxe a necessidade da criação de
uma lei positiva para coibir os homens do mal pela força e pelo medo, e regrar
certas situações particulares, dando segurança à aplicação dos princípios
naturais e mitigando as dificuldades da realização da justiça em casos
específicos.[61]
Mas a razão é o que descobre a justiça existente nas coisas, fazendo com que
a Lei Natural compreenda toda regra de Direito. Uma lei não é lei se não é justa,
pois toda lei sobrevém da lei primeira, que é a Lei Natural.[62] Se a lei humana
contrariasse os primeiros princípios, não realizaria o que lhe é devido, mas a
estaria pervertendo.
Essa distinção não é inválida — e mesmo Santo Tomás a utilizou, de certa forma.
Mas lembrou que a Lei Natural é suprema na ordenação de todos os atos
humanos e jamais poderia ser contrariada. A Lei Humana, ou o Direito Positivo,
é uma ferramenta que adiciona à lei da natureza certas utilidades na sua
aplicação. Seu valor nunca foi negado, mas foi reforçado pela vantagem.
7. Conclusões
Vimos que o homem pode chegar à imoralidade frustrando seu dever-ser com
mau uso do livre-arbítrio. Isto não apenas o torna imoral aos olhos de um
observador externo, mas fere a própria natureza e atrai para si as sanções
proporcionadas ao desvio cometido. A liberdade o torna capaz de tornar-se
aquilo que ele quer ser, mas agora compreendemos que, se há um ideal para o
homem, é aproximar-se o quanto pode daquilo que ele é.
Enfim, entendemos que este “ser” do homem fundamenta a Lei Natural, e que
ela, por isso mesmo, é eterna e imutável nos seus primeiros princípios, a partir
dos quais devemos basear toda a vida moral, tanto a particular como a pública.
O Direito não pode ser isento desta conclusão, ou arriscaríamos deixar ao
arbítrio humano a formulação das normas cujo destino é a regência da ordem
social.