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PUC-SP
SÃO PAULO
2008
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2008
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
INTRODUÇÃO ........................................................................................................10
INTRODUÇÃO
os textos publicitários que a mídia brasileira veicula. Tal olhar sobre esse mundo segue
perfume contêm uma possível representação do cheiro. O cheiro propriamente dito, isto é, a
imagem olfativa que convida a conhecer a fragrância e a essência do perfume, não aparece. A
busca de compreender esses cenários. Esta pesquisa também se preocupa em discutir se essas
representações são dotadas de algum traço mimético (verbo-visual) que as remetam ao cheiro,
ou se esses cenários surgem simplesmente como suscitadores para o consumo. Nesse sentido,
o projeto de pesquisa visa lançar luz sobre essa zona de opacidade, representação do cheiro
olfativa. Uma vez que não há, até o presente momento, nenhuma pesquisa que trate
integradamente desses três temas, partimos dos estudos isolados sobre cada um dos assuntos.)
Quanto ao estado da arte da presente pesquisa, muito pouco ou nada se tem escrito
mencionado por outras áreas do saber, como a Etologia, com destaque para Borys Cyrulnik,
de quem cito a obra Os alimentos do afeto. No entanto, não é somente nessa obra, que se
destaque Do sexto sentido, Sob o signo do Afeto e Memória do macaco, palavra de homem.
Cabe ressaltar que nesta pesquisa não haverá referência à obra literária de Patrick
restos de peixe e dejetos diversos, Jean-Baptiste Grenouille não tem cheiro. Pelas inúmeras
pesquisas que se basearam nesse livro, entendemos desnecessário tratar dessa mesma obra.
Acreditamos que a opção por novos caminhos literários possibilitaram enxergar a matéria de
outro prisma. Esperamos, assim, contribuir mais para essa área multi-interdisciplinar de
feminino veiculadas de janeiro a dezembro, ao longo dos anos de 1993 a 2004, em revistas
de perfume feminino deve-se à sua representatividade, uma vez que os anúncios escolhidos
são aqueles que apresentam expressivo conteúdo de elementos icônicos e verbais que
possibilitam verificar um dos objetivos desta pesquisa, que é saber se há ou não uma justa
amarração entre o cheiro do perfume garantido pelos elementos químicos que o compõem, e a
representação do cheiro.
sobretudo de perfume feminino. Optou-se por estudar a mídia impressa pelo seu caráter mais
intimista e pela permanência propiciada pelos tais veículos em comparação aos audiovisuais.
de vários princípios tidos como verdadeiros para chegar àquilo que se quer provar. A partir do
Fez-se um mapeamento empírico dos textos publicitários a fim de revelar traços miméticos
das imagens do cheiro com o cheiro do perfume propriamente dito. Para tanto, utilizarmos
ferramentas conceituais apresentadas nos fundamentos teóricos para cortar, analisar, decifrar,
analisadas como textos culturais, tais como os define Ivan Bystrina em Tópicos de Semiótica
da Cultura. O autor considera que “textos são complexos de signos com sentido”. Os textos
amplo da palavra. Mas eles preenchem também outras funções, como por exemplo a função
estética ou emotiva, a expressiva, ou ainda outras funções sociais” (BYSTRINA, 1995, p.4).
Será por meio dessa ciência que buscaremos concatenar as três esferas (publicidade, perfume
e comunicação olfativa).
os sentidos, em especial o olfato, têm servido como meio de comunicação para o homem).
transformações e adaptações pelas quais esse sentido passou com a evolução da espécie
Juntamente com essa evolução, procuramos demonstrar como a cultura humana vem
construindo sua relação com o mundo dos odores. Para tanto, revelamos como os
os sentidos na comunicação. É nesse modelo que todo o texto se baseia, buscando demonstrar,
de acordo com o pensamento do semioticista Harry Pross, que o corpo é a primeira mídia,
decodificação do cheiro pelo nariz até as transformações culturais pelas quais esse sentido
corporal passou com o processo de evolução da espécie humana para a vida em sociedade.
perfume”, observamos como o texto publicitário lida com esse sentido corporal, que não
aparece de maneira explícita no anúncio, e como recorre de maneira indireta aos recursos
CAPÍTULO I
UMA PEQUENA HISTÓRIA DO PERFUME
pretendemos ser totalmente fiéis à linha cronológica. Tomamo-la somente como base para a
perfumar-se tornaram-se um ritual nas diversas sociedades. Para isso, elaboramos um recorte
limpeza do corpo confunde-se com a utilização dos cosméticos, dos perfumes e das roupas,
pois consagra o olhar e o olfato. Seja em que período for a limpeza, a higiene tem como
parte da Europa era assombrada pela peste, a higiene do corpo era tida como meio facilitador
do contágio, pois acreditava-se que o corpo era um organismo poroso e que, à medida em que
Tinha-se a crença de que a água, principalmente a morna, abria os poros aos ares nocivos. E
mais: a água era acusada de tornar os órgãos frágeis. Durante muito tempo, a higiene esteve
intimamente associada a uma idéia negativa, muito diferente da que temos atualmente. Assim
nos apresenta Georges Vigarello, em sua obra O limpo e o sujo, a questão da limpeza: “(...) O
medo restringe a prática da água. A imagem do corpo permeável, com o seu contexto de
umidecidas que eram friccionadas pelo corpo. O que era permitido e higiênico um século atrás
era a utilização da água para lavar o rosto e as mãos. No século XVII, o líquido passou a ser
certa maneira, ainda persiste a idéia de que a pele porosa é suscetível a males.
É preciso ressaltar que, durante a Idade Média, o banho nas denominadas estufas
de banho não tinha a finalidade de limpeza; estava muito mais associado à transgressão, ao
jogo, à água como um elemento festivo. A água é explorada como um prazer, ligada à
sensualidade.
associado à idéia da aparência: o que importa é o que se vê. Nesse tempo, valorizam-se os
as de saúde, e é inegável que a aparência prevaleça nesse jogo. As roupas deveriam ser
brancas, porque o branco se impregna da sujidade do corpo, servindo como uma esponja que
entanto, isso não quer dizer que a higiene tenha se tornado seu objetivo primeiro, pois nem
mesmo ocorrera a familiarização com esse ato. Esse súbito interesse pelo banho, utilizando-se
da água, deve-se principalmente às inúmeras monografias médicas a seu respeito. O banho era
tido como um meio de aliviar os humores. Passa-se a exigir uma higiene setorial, segundo as
partes do corpo, em que o suor permanece e produz um odor desagradável. Neste período já
existe uma relação mais íntima entre o indivíduo e suas parte do corpo; isso se deve ao
aparecimento de objetos próprios à limpeza, tais como o bidê, a bacia e o jarro de porcelana
Neste século, ainda ocorre uma delimitação entre a natureza e o artifício, que
demarcou uma crítica aos códigos aristocráticos de higiene que impunham os artifícios, os
trajes demasiadamente ostensivos, para uma condição mais espontânea, simples, contra aquele
excesso de simulação. “Só há fraqueza e vaidade nestes pós e pomadas odoríferas que a
presunção teve a infelicidade de inventar e que a sensualidade dos ricos emprega nos seus
preparos com a profusão tão perigosa quanto condenável. É também objeto de crítica social
Essa alteração da visão de higiene, mais voltada para o “interior” do corpo, fez
com que o conceito de higiene se modificasse, colocando em xeque a idéia de que a esta
científico: não se refere somente à qualidade de ser saudável (hygeinos significa, em grego, o
que é sadio), mas “(...) Trata-se de realçar as suas ligações com a fisiologia, a química, a
há a utilização do sabão como instrumento de limpeza. É por meio dele que se remove a
sujeira do corpo. O cosmético por excelência passa a ser o sabão. A higienização ganha
importância à medida que, cada vez mais, sabe-se a sujeira que obstrui os poros impede as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [18]
trocas gasosas tão importantes para a pele. Vigarello aponta que “a pele mais limpa é mais
leve, funciona e respira melhor (...) e o sono, nessas condições, produz um repouso mais
reparador, que proporciona a todo o organismo um novo vigor, uma nova energia.” (1985,
p.135).
microorganismos que não podem ser vistos a olho nu, o comportamento higiênico altera-se
muito. Os indivíduos passam a realizar não só a limpeza das partes externas, mas também das
as regiões mais secretas, tudo para se livrar do inimigo invisível. No fim do século XX, o
desenvolvimento científico que abarcou todo esse século configurou um novo panorama da
higiene corporal, que muito se aproxima da realidade atual. Nesse tempo, a limpeza atinge
toda pele, nas zonas mais invisíveis e ocultas, aprimorando aquela higiene da Idade Média,
que se concentrava somente nas partes visíveis (mão e rosto); é necessário limpar o oculto e o
visível também.
Por fim, é necessário dar voz mais uma vez ao autor que, de maneira clara e
nosso tempo:
na qualidade de vida dos indivíduos, ditando e determinando produtos e usos que não se sabe
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [19]
Harry Pross (1987), tem-se que os meios de comunicação acabam por conferir uma violência
simbólica e criar um ritual que sincroniza o tempo de vida com o tempo da mídia.
saber que possibilita a conservação da saúde. Na atualidade, parece que isso se mesclou de tal
forma que é necessário estar limpo, estar cheiroso, estar em ordem. Porém o que prevalece e
qualifica o outro é aquilo que se vê nele e se reconhece como bom, bonito e belo. Nesse
contexto, é pertinente pensar no perfume, no quanto ele tem servido ao corpo, à luxuria, e
agregado ao produto por meio da publicidade. O cheiro propriamente dito muito pouco
importa. Afirma Renata Ashcar: “Nos dias de hoje, saturados de sexo com tanto consumo
profundamente o rastro perfumado do amante, deixando que seu perfume excite o desejo e
1.2.1 A Antigüidade
perfume, que vem das palavras latinas per (através) e fumum (fumaça), e quer dizer: “através
através das quais orações e pedidos viajariam mais rápido até os deuses, bem como evocariam
as almas dos mortos. Os incensos atraíam bons fluídos, da mesma maneira que conectavam os
informações a respeito dos costumes da época em que já existiam dados sobre a arte da
serviam como aromatizadores que, misturados com óleos, leite ou mel, produziam pomadas e
loções que prometiam, já naquela época, eterna juventude ou simplesmente uma pele macia,
fundamental importância para o campo da higiene pessoal. O cuidado com a higiene do corpo
era muito valorizado. Usava-se maquiagem colorida, por meio da qual se realizavam
Na Ilha de Creta, onde se desenvolveu por volta de 3000 a 1100 a.C. a cultura
cretense, foram encontradas pinturas que revelam uma sociedade bastante elegante. As
1
As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
ARCKERMAN, D.. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996.
BARRILLÉ, E.; LAROZE, C.. The book of perfume. Paris: Flammorion, 1995.
2
Cabe aqui citar George Duby (2001) em sua obra Eva e os Padres, que lembra a aversão da Igreja do século XII
aos cosméticos, e o perfume não é senão um tipo de cosmético. Maquiagens, pastas depiladoras e tinturas
falsificam o corpo, enganam os sentidos e fazem com que Deus não mais reconheça as criaturas que criou. As
prostitutas romanas eram apelidadas de rufias por causa da cor exuberante dos cabelos tingidos. O latim rufus
significa ruivo. O uso de cosméticos (do francês cosmetique, deriva do grego Kosmetikós) e tinturas valorizava a
mercadoria dos prostíbulos romanos. Na Idade Média, rufia cai em desuso ante o avanço predatório de seu
equivalente masculino, rufião. É quando chega ao auge o ato de associar artifícios de embelezamento à vida
promíscua.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [21]
comungavam dessa mesma apreciação, exibindo seus corpos com porte atlético. Essa
sociedade era conhecida por suas elaboradas toaletes, composta por banhos, depilação e unção
com perfumes e óleos. Esta cultura teve contato com os egípcios e gregos. No fim de seu
período, Creta recebia barcos com produtos de luxo do Egito. Esses barcos traziam perfumes,
A cultura grega também era apreciadora dos incensos e aromas, acreditando atrair
por meio desses artifícios a atenção dos deuses. Há várias passagens na “Ilíada”, de Homero,
em que há referência a perfumes e a deuses que recorriam a eles para fascinar outros deuses
ou outros homens. Um exemplo disso é a descrição que Homero faz do banho de Hera, esposa
de Zeus. Ela untava todo seu corpo com óleos aromatizados, na presença de Zeus, e o olor
expandia-se por “toda a terra e todo o céu”. A história da deusa Afrodite também está
intimamente interligada com o perfume, uma vez que, segundo a crença, ela emergiu nua das
espumas perfumadas do mar, dentro de uma concha, levitando sobre ervas fragrantes.
importância do perfume para essa cultura. Por volta de 800 a.C., as cidades de Atenas e
Corinto exportavam óleos de flores e plantas maceradas. Desde então, os aromas tornaram-se
populares entre os gregos, que eram verdadeiros cultores da arte de misturar essências
adoravam impregnar seus corpos, bem como os poetas, que os amavam, e, por fim, as
Por volta de 700 a.C., Sólon, legislador ateniense, tentou de maneira vã banir o
uso de perfumes, tido como sinal do luxurioso estilo de vida da Pérsia. Mais tarde, com a
conquista de Alexandre, o Grande, muito dessa cultura influenciaria a Grécia e seus costumes.
seu professor Teofrasto, a quem foi atribuído a criação do jardim botânico. Ele foi também
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [22]
autor dos primeiros tratados sobre cheiros, escrito por volta de 330 a.C. Nesse livro ele
validade e a finalidade terapêutica à qual cada formulação se destinava, seja para fins
sótãos, que são lugares escuros e frescos, pois o calor e a luz solar despojavam os perfumes de
seu olor. Essa é uma lição válida até hoje. Na vida daquela época, os temperos e os
aromatizado com mirra, essências de flores e mel perfumado. As pessoas ungiam seus corpos
com perfumes antes e depois das refeições. Segundo a lenda, Dionísio, o deus do vinho,
entraram em contato com as culturas: etrusca, fenícia e grega, passaram a apreciar seu uso. Na
era do Império Romano, o uso de perfumes excedeu todos os limites: o consumo de mirra e
incenso durante este período causou desequilíbrio na natureza. No século I a.C., importaram-
perfumes. Estabelecem os registros que, no século IV d.C., Roma contava com onze banhos
vários ungüentos para diferentes partes do corpo. Havia até para as solas dos pés.
Império, tiveram contato com produtos provenientes de outras regiões. A flor preferida dos
romanos era a rosa. Essa planta exerceu um enorme fascínio nesse povo. Com ela, Roma
enfeitava as ruas e casas. Os corpos também eram adornados e perfumados com rosas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [23]
Roma, tal com a Grécia, preparava verdadeiros banquetes que deveriam, sem
dúvida, saciar todos os sentidos, privilegiando o do olfato. Nos banquetes, além de receberem
folhas para colocar na cabeça, como uma coroa, ou no pescoço, como um colar. Antes e
tigelas de água-de-cheiro intercaladas entre os pratos para que os convidados pudessem lavar
os dedos entre uma iguaria e outra. Vale ressaltar que Roma contribuiu para a indústria do
perfume, estimulando a criação de rotas de tráfego comercial com a Arábia, a Índia e a China,
cultura. O país era o jardim do mundo, com vasta lista de aromas utilizados com fins
religiosos e medicinais. Os jardins, foram introduzidos no século XVI por Babur, primeiro
soberano mongol, cuja dinastia reinou na Índia de 1526 a 1858. O imperador Jahangir,
descendente de Babur, restaurou um antigo jardim indiano na Caxemira para sua esposa Nur
Jahan. O jardim foi nomeado Shalimar, que significa “residência do amor”. O ensinamento de
identificar odores faz parte até do Kama Sutra, célebre livro indiano a respeito da arte de viver
e amar que data do século IV, abordando a utilização de fragrantes bálsamos nos rituais de
geoclimáticas extremamente favoráveis das selvas úmidas que ocupam grande parte das
pradarias do Himalaia. Há vários cheiros associados à Índia: o sândalo, com seu óleo
fragrante e suave, que faz lembrar o delicado toque de uma rosa; o patchuli, considerado
ingrediente chave para a perfumaria moderna; o vetiver, muito presente nas fragrâncias
II a.C., eventos coletivos, tais como jogos atléticos promovidos pelo rei sírio Antíocos
Epifanes, eram abertos com um desfile em que duzentas mulheres traziam ânforas com
perfume para ser borrifado na platéia e nos participantes. Foram eles os inventores do
alambique (árabe al-lanbīq), que fazia uso da serpentina de resfriamento. Esta foi criada pelo
alquimista Ibn-Sina, conhecido como Avicena (980-1073), que preparou a primeira água de
rosas do mundo, isolando o perfume das pétalas em óleo. Essa invenção representou um
à destilação, foram registrados no Livro das Ervas assírio. Dele constam as matérias-primas
mais utilizadas na época: madeiras odoríferas que compunham a estrutura dos templos onde
eram realizadas as oferendas aromáticas aos mortos e aos deuses, com incenso e fumigação.
que tinha uma notável higiene e cultivava o prazer pelos sentidos, principalmente pelo olfato.
Eram queimados incensos nas casas, nos palácios e nas tendas, e não podiam faltar em
comemorações.
Na busca comercial das especiarias revelou-se a rota da seda, que inclui a China
nas transações transcontinentais (século I a.C.), ligando-a ao Mar Negro. Essa cultura também
valoriza os aromas e seus efeitos terapêuticos e prazerosos. Como exemplo, tem-se a cânfora,
que era apreciada como estimulante gástrico, chá calmante, tempero culinário ou sachês para
perfumar as roupas. Os perfumes estavam presentes nos rituais religiosos e nos espetáculos de
dança. Os chineses também aromatizavam a comida das cortesãs com almíscar, para que,
quando sua pele fosse tocada e aquecida durante o ato de amor, exalasse seu perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [25]
categoria da arte no qual era associada uma seqüência de incensos a poemas. Ou seja, cada
um dos participantes criava versos perfumados a partir das memórias olfativas a que cada um
deles era remetido ao cheirar o incenso. Os japoneses acabaram por elaborar 54 ideogramas
especial. As mulheres dormiam com uma touca cheirosa para os cabelos. Os incensos eram
utilizados como relógio, pois, pela sua qualidade, era possível calcular o tempo que levava
para queimar. As gueixas cobravam seus clientes pelo número de incensos queimados.
perfumaria foi abandonada no Ocidente, depois do fim do Império romano. As ervas e aromas
eram utilizados nos mosteiros para fins medicinais e farmacêuticos. A Igreja Cristã condenou
frívolos da luxúria. Nesse período, portanto, as ervas eram utilizadas com fins medicinais. A
francesa, cujo solo e situação climática eram perfeitos para o cultivo de ervas aromáticas.
logo surge a primeira destilaria de Módena. A partir disso foi possível a criação das spirituous
O que restou da arte com a queda do Império romano no século V não foi a
nos jardins dos mosteiros até o século XI. As ervas eram tinham uso na medicina, mas não na
perfumaria. Em 1220 em Montpellier, na Provence francesa, cujo solo e clima eram perfeitos
para o cultivo de ervas aromáticas, foi fundada a primeira faculdade de medicina da Europa.
a 95%. Deram a esse líquido o nome de aqua mirabilis. Os primeiros perfumes verdadeiros,
essências diluídas em álcool e não mais em leite, mel ou óleo, surgiram nesta época.
nome do primeiro perfume, o Hungary Water, feito com extrato de rosa e lavanda diluído em
álcool. Segundo a lenda, o eremita que fez o perfume garantiu que ele preservaria beleza da
rainha até a morte. Parece que funcionou, pois, aos setenta e dois anos, ela casou-se com o rei
extração das mais variadas essências. Por um longo período os perfumes à base de álcool
pela higiene. Membros de classes mais abastadas da Itália adquiriram o hábito de tomar banho
e lavar seus cabelos uma vez por semana. Veneza tornou-se o berço dessas renovações graças
a seu privilegiado lugar geográfico, que centralizava as rotas comerciais. Nessa região,
entre os mais ricos. As mulheres carregavam consigo bolas de prata, conhecidas como
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [27]
tornar-se popular. Nos jantares italianos, usava-se água de rosas com lavanda para as mãos até
que o garfo e a faca viessem a ser utilizados, no final do século XVII. As águas de rosas e
Médici, que trouxe à França a arte e a sofisticação da Renascença italiana. Seu perfumista
particular Renato Bianco veio com ela para Paris, onde estabeleceu uma loja e ensinou à
Provence, especializou-se na arte dos perfumes mais do que qualquer outro lugar do mundo.
O interesse pela higiene e pelos cuidados com o corpo cresceram entre os franceses, que até
então os negligenciavam.
talco e luvas aromatizadas. A peste só seria vencida no final do século, o que manteve em
voga os hábitos de higiene, além de profiláticas simpatias populares como usar laranja
recheada de alho para evitar doenças ou sair às ruas com um buquê de flores aromáticas ou
sórdidos odores pestilentos. Luís XIV (1638-1715) era muito sensível a odores e seu
perfumista particular foi incumbido de criar um perfume para cada dia da semana. Assim, a
Veneza. No século XVI, sob o reinado da rainha Elizabeth I, renasceu o interesse pelos odores
e outras artes renascentistas. As damas utilizavam sachês e pomanders de rosas secas nos
muitas pessoas eram incumbidas dessa tarefa. A soberana banhava-se uma vez por mês. Num
livro de 1625, Francis Bacon descreve como o banho era praticado. Antes de se banhar, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [28]
pessoa devia esfregar-se com óleo e pomadas. Em seguida, devia ficar duas horas no banho, e
depois enxugar-se com uma toalha impregnada de aroeira, mirra e açafrão para provocar a
respiração dos poros. Após passar 24 horas enrolada nessa toalha, a pessoa aplicava pelo
corpo ungüento de óleo, sal e açafrão. Textos de Shakespeare focalizam com freqüência as
A água de colônia foi o mais celebrado aroma do século. Sua origem está na
Itália e na Alemanha, mas sua reputação foi criada na França. Um barbeiro italiano nascido
perto de Milão mudou-se para Colônia, na Alemanha, para melhorar de vida. Em 1709,
começou a produzir a Aqua Admirabilis a partir de flores e ervas típicas da Itália. O produto
foi bem aceito pelos moradores de Colônia e o negócios começaram a prosperar, incentivando
que outros negociantes abrissem lojas de perfumes na cidade. As tropas francesas que
paravam na Colônia durante a Guerra dos Sete Anos levaram a água de colônia à França.
O século XVIII ainda foi marcado pelo estilo rococó que viu durante o reinado de
Luís XV e sua amante Madame de Pompadour a moda das saias armadas e dos cabelos
empoados. Pela influência que tinha, Madame Pompadour inspirou toda a corte de Versailles,
popularizando o banho com sabonetes de lavanda e outras flores com um toque herbáceo.
desenvolveu-se uma técnica conhecida como enfleurge, por meio da qual era possível extrair
vidreiros e artesãos, que fabricavam as mais finas iguarias, vendiam seus produtos tanto para
a aristocracia quanto para a classe média. Nesse momento, o país passa a ser o maior produtor
de artigos de luxo. O governo ainda deu incentivo para pesquisas científicas, incluindo estudo
de óleos essenciais. Josefina ditou tendências de moda feminina que remetiam à Grécia, com
seus modelos decotados, fluidos e de cintura alta. Ela gostava do aroma do patchouli, adorava
o perfume das rosas e apreciava o almíscar mais que qualquer outro. Napoleão ditava moda
também para os homens, com suas calças justas e seus casacos alongados. O imperador era
neurótico com relação à higiene. Colocou o banho na moda, bem como os cuidados com o
corpo.
Luís XVIII retoma ao poder, e a França entra em inúmeras crises internas. Mesmo
eram produzidos artesanalmente, desempenhavam sua fórmula social como parte do luxo
diário e necessário de toda mulher, encantando a nobreza e a alta burguesia européias com
guerra franco-prussiana, em 1877, Paris se abala, mas recupera e inaugura a fascinante Belle
Époque. De 1870 até a Primeira Guerra Mundial, a arte de viver podia ser desfrutada por mais
invenção dos automóveis, do telefone, da energia elétrica e do cinema. Paris foi inundada com
visitantes, que vinham em luxuosos navios visitar a capital artística do mundo, que exibia
descobertos os solventes químicos, que possibilitaram aos perfumistas compor aromas a partir
de essências florais nunca antes utilizadas, dando um toque especial à Belle Époque, com uma
precursor de muitos outros que o seguiram mais tarde, como a baunilha, o almíscar, a cânfora,
a violeta e os demais aromas que podiam ser extraídos de flores naturais a partir de um
O século XX foi marcado por dois grandes estilistas: François Coty, conhecido
e Paul Poiret, que foi um dos maiores estilistas de Paris, realizando a associação entre moda e
perfumaria. Essa união propagou-se durante os anos 1920. Os grandes estilistas incluíam em
suas coleções uma fragrância exclusiva como o Channel nº. 5. Tendência que se mantém até
os dias de hoje.
responsáveis pelo aroma das plantas, o que permite ao perfumista recriar aromas cada vez
analisaremos o que mudou no imaginário do homem com a entrada em cena das mais
diferentes fragrâncias.
perfume, este tem a função de jogar com a aparência e encobrir a natureza, como que para
nesta arte da aparência: é tanto mais enganador quanto escapa às referências visíveis. (...) Este
Bomare em sua obra Dictionaire d’histoire naturelle (1964): o olfato limitado dos homens,
em comparação com os animais, deve-se aos “excessos de odores fortes de que os homens
Resta pensar que talvez seja pelo excesso de olores que tenhamos perdido, ou
outros condimentos para espantar a fadiga e combater certas doenças. Esta crença está
encerrada. Cria-se nesse momento a distância entre os odores requintados e os outros tidos
que em certa medida nos escapa, porque nem tudo que temos para sentir é culturalmente
aceito. “(...) todo sentido tem um sentido. O olfato é profundamente cultural e, no entanto,
esse sentido que nos escapa é o mais incontrolável dos sentidos.” (CYRULNIK, 1995, p.43).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [32]
imagem da roupa e das partes visíveis da pele. Andar perfumado pelas ruas é questão estética.
Porém, revestir o corpo com um perfume, por exemplo, Yves Saint Laurent, cumpre um papel
de seguir a moda.
higiene não é feita só para o olhar”, diz Vigarello. “Foi a atenção explícita ao interior da
aparência que veio pôr em causa a ligação durante muito tempo aceita entre higiene e os
Portanto, nesse século o jogo da aparência perde força à medida que a crença de
que “os odores pertencem menos à higiene do que certos gostos depravados ou a um certo ar
da moda (...)” (VIGARELLO, 1985, p.111). Todo o poder mágico de dissimulação agregado
ao perfume é questionado. Até então, acreditava-se que os perfumes eram capazes de corrigir
os odores do corpo, mudando sua matéria íntima e, num certo sentido, até eliminando-os. Essa
crença chega ao fim. As práticas higiênicas requerem outros métodos. O perfume desempenha
máscara do corpo, dos seus odores naturais, suprimindo nossa assinatura natural em
medida que o outro o reconhece como bom e bonito. É a cultura narcisista que perdura em
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [33]
nosso tempo e que a mídia, sobretudo a publicidade, tem sustentado e reforçado no imaginário
maneira: “Vivemos hoje (...) em um mundo em que o perfume não desempenha um papel de
Essa passagem nos faz pensar como fica a questão dos cheiros nas grandes
metrópoles, como São Paulo, onde temos a incessante exalação de odores que advêm da
queima de combustível, das chaminés das indústrias, das próprias ruas, dos lixos e dos corpos
metrópoles, da capacidade comunicativa profunda dos cheiros, uma vez que sua “linguagem”
é muito sutil e a exalação de diferentes odores acaba por confundir a recepção desse código
olfativo. Assim, é possível imaginar que nosso processo de civilização recalcou o sentido do
olfato, como veremos mais adiante com o auxílio de Freud (1997). cujo pensamento talvez
permita lançar a hipótese de que nos tornamos, num certo sentido, um ser anósmico.
divino. Por isso, torna-se importante analisar os rituais humanos que buscam ligar o homem
ao divino por meio dos cheiros, para então analisar o papel do perfume na comunicação
humana.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [34]
que tem servido o perfume. Nas mais diversas civilizações, tribos e povos, existem indícios
que atestam o uso do perfume, ou melhor, do olor exalado pela queima de ervas, plantas e
comunicação com os céus, um verdadeiro aliado do homem na busca pelo divino. Mais do
que isso, é o próprio sinal da presença divina no mundo: “inalar um perfume corresponde a
povos de diversas épocas. Dessa forma, não é por acaso que as palavras “espírito” e
entendemos o papel divino desempenhado pelo perfume nas mais variadas épocas e
civilizações.
domínio desse elemento se registram os mais antigos cheiros advindos da fumaça produzida
que os mortos eram enterrados com todo um ritual com flores e outros ornamentos. É possível
pensar que, nesses rituais fúnebres, as flores tivessem a função de afugentar os odores do
corpo morto e conduzir a “alma” mais rapidamente aos céus, à esfera do divino.
ricos rituais. Nesses rituais, o perfume desempenhava uma função importante. Queimavam-se
3
As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
MULLER, J.. GERMANY, H.. The book of perfume: understanding fragrance, origin, history, development,
guide to fragrance and ingrediente. Alemanha: H& R, 1992.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [35]
incensos, resinas e madeiras preciosas como meio de purificação dos altares. Também se
consideravam que “o perfume era o néctar dos deuses, e com ele a alma dos mortos podia ser
envoltos por perfumes. Portanto, os olores eram reservados não só para os deuses, mas
podia-se atrair a atenção dos deuses. Na Ilíada, de Homero, faz-se referência a essa alusão de
que o perfume atraía a atenção dos deuses e também dos outros homens. Há uma passagem
belíssima em que Homero descreve o banho de Hera, esposa de Zeus: “ela untava seu
‘desejável corpo’ com óleos aromatizados; na presença de Zeus, o perfume expandia ‘por toda
a terra e todo o céu’” (2005, p.33). É ainda na mitologia grega que encontramos a deusa
Afrodite, cujo nome em grego significa “nascida da espuma”. Segundo o mito, essa deusa
surge da espuma do mar, considerada o sêmen do céu; sai de concha em forma de vulva,
levitando sobre ervas de intensa fragrância, que exalam intenso erotismo. É considerada a
deusa que desperta não o amor sublimado, mas o carnal, e que freqüentemente rouba os
sentidos dos homens mais sensatos. Por isso, denominam-se afrodisíacas as poções capazes de
A correspondente romana é a deusa Vênus, mãe de Cupido, que por sua vez
corresponde ao deus Eros, o deus do amor sublime. Conta a lenda que as fragrâncias mais
doces servem para atrair o amado e o próprio amor, representado por Eros.
Para os gregos, os aromas exerciam forte atração, pois eram entendidos como
ampliadores do canal de comunicação com o divino. Tanto que eles ungiam os mortos para
sândalo correspondem à sua identidade aromática. Usava-se para a construção dos templos o
gandhakuti (casa de fragrância). Essa madeira era muito usada na cultura hindu. As estátuas
No ano de 1500 a.C., a religião védica foi introduzida na Índia. Seu nome deriva
de veda, palavra sânscrita que significa “saber sagrado”. Essa religião pregava a utilização do
perfume durante as orações para que as palavras alcançassem os deuses, envoltas por uma
freqüentemente, bem como os rituais de limpeza e de purificação por meio de pomadas e pós
aromáticos que eram aplicados ao corpo. Segundo o Budismo, a passagem para (a) outra vida
maior exemplo pode ser encontrado no Cântico dos Cânticos, destinado ao rei Salomão. Esse
texto relata o encontro amoroso, repleto de referências aos cheiros mais íntimos:
Ela: Enquanto o rei repousa em seu leito, meu perfume exala sua fragrância.
Meu amor se assemelha a um sachê de mirra entre os meus seios. Meu
amado é como um ramo de henna colhido na vinhas de En-Gadi.
Ele: Os teus seios são como duas crias gêmeas de uma gazela, que se
apascentam entre os lírios. Antes que refresque o dia e fujam as sombras, irei
ao monte da mirra e ao outeiro do incenso.
Ele: Qual lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas.
Ela: Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os
jovens; desejo me sentar à sua sombra e saborear o seu fruto, tão doce ao
meu paladar.
Ela: Levanta-te, vento morto! Desperta, vento sul! Sopra no meu jardim,
para que se derramem os seus aromas. Vem, oh meu amado, para o teu
jardim, e deleita-te com seus doces frutos!
Ele: Já entrei no meu jardim, minha irmã, noiva minha. Colhi minha mirra
com especiarias. Sorvi meu favo com mel. Bebi meu vinho com leite. Comei
e bebei, amigos! E ficai embriagados de amor!
Ela: Suave é o aroma dos teus ungüentos. Teu nome é bálsamo derramado;
por isso as donzelas te amam.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [37]
Judite utilizou-se dos aromas com o intuito de matar Holofermes: “Lavou-se toda, ungiu-se de
preciosos cheiros (...), trançou os cabelos e enrolou um turbante na cabeça; então vestiu-se de
gala.” (Judite 10:3). Ainda nas Escrituras Sagradas, há outra passagem que faz referência ao
cheiro, quando Samuel aludia aos direitos dos hebreus: “Tomarás as vossas filhas para
preparo das virgens para o harém de um rei: “Seis meses com óleo de mirra e seis meses com
século VI.
Tempos mais tarde, na Europa atingida pelo flagelo da peste, os templos da Igreja
ervas. O poema Apius e Virgínia descreve um banco de igreja reservado aos fidalgos: “O
banco de milady estava alegremente juncado de prímulas e doces violetas, cujos aromas se
fiéis. Alguns aromas foram popularizados durante a vida de Jesus Cristo. A propósito, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [38]
relação entre o perfume e a vida de Cristo pode ser observada já no episódio bíblico que narra
mais valorizados. Assim está descrito em Mateus (2:11): “Entrando na casa, acharam o
menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, o adoraram. Depois, abrindo seus
preciosidade do ouro, metal almejado e de valor para todas as culturas, é inegável. Mas
quanto ao incenso e à mirra é preciso fazer algumas considerações, sem que nos esqueçamos
una substancia aromática que se obtém de certas árvores resinosas que ao serem queimadas,
afugentar os espíritos malignos e as enfermidades, e, por fim, para servir como meio de
agradavam às divindades, e por isso, serviam como meio de elas atenderem mais rapidamente
Jesus, como menciona Mateus. Grau-Dieckman (2006) atesta que o nome mirra vem do árabe
murr e significa “amargo”. Antes de ordenar a Moisés quais seriam os ingredientes para o
incenso, Deus especifica a receita para a fabricação do óleo santo que os sacerdotes deveriam
É com esse óleo, preparado com a doce mirra, que se deveria ungir o Messias, o
Cristo Jesus. Messias significa em hebraico (maschiah) “o ungido”, e foi traduzido para o
grego como khristós, “o ungido do Senhor”. A palavra grega khrisma expressa a ação de ungir
oferendas. Embora atualmente o ouro tenha um preço altíssimo e o incenso e a mirra tenham
perdido seu valor, no tempo de Jesus, o ouro e o incenso tinham quase que o mesmo valor.
Porém, alguns teólogos sustentam outros significados, não-econômicos, aos presentes que os
reis magos deram ao menino Jesus. Segundo alguns teólogos, o ouro representa o metal
precioso próprio dos reis; simboliza a sua realeza. Já o incenso, que desempenha um
importante papel nos rituais religiosos, era um símbolo da divindade de Jesus, enquanto a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [40]
mirra, pelo seu uso na unção dos mortos nos rituais fúnebres, simboliza a paixão e morte de
sagrado à medida que foi sendo incorporado, pelas diversas civilizações, como meio de
comunicação com o divino – ofertas de bons aromas (perfumes) para que as orações e os
pedidos fossem mais rapidamente atendidos, já que esses perfumes agradavam às divindades:
2006, p.12). Deus permitiu aos eleitos Maria, Paulo, Madalena e Marcos compartilhar dos
buscar consolo em suas divindades. Os aromas remetem ao mundo das emoções, talvez pela
sua raiz arcaica no cérebro humano, como observamos, não só referentes à religiosidade.
Esse percurso histórico nos leva a conceber os perfumes como odores que sempre
ambiente nos quer sempre comunicar algo. Ao mesmo tempo em que serve como um canal de
comunicação com o divino, também aproxima ou distancia as pessoas. Essa duplicidade nos
estimula a considerar um texto cultural. Uma vez que a cultura se constrói por meio do
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [41]
processo de mediação, é válido pensar segundo essa corrente semiótica e questionar como o
perfume se torna mídia no seio de uma cultura. É essa idéia que servirá de base para o
CAPÍTULO II
OS SENTIDOS NA COMUNICAÇÃO
meios de comunicação de massa tais como jornal, revista, televisão, rádio, cinema, Internet.
político alemão que afirma ser o corpo a primeira mídia do homem. Em outras palavras, o
corpo constitui o grau zero da comunicação. Toda comunicação parte de um corpo e termina
num corpo. A partir desse entendimento, para Pross (1987), é possível haver mediação. Esse
autor elabora uma classificação da mídia em primária, secundária e terciária. Como mídia
primária, entende-se a comunicação entres dois corpos, sem que para isso seja necessária a
presença de um elemento que faça a mediação entre eles. E, se não há nada entre esses dois
corpos, a mídia, nesse caso, são os próprios corpos, que produzem e recebem linguagem, seja
ela em forma de gestos, cheiro, sons articulados ou inarticulados e movimentos. Desse jogo
de linguagem é que nasce o que Pross (1987) denominou de mídia primária, que constitui um
grande terreno de investigação para a ciência da comunicação, uma vez que essa não pode
mais ser entendida e restringida somente àquilo que é veiculado e transmitido pelos meios de
comunicação de massa tradicionais. A mídia primária tem uma limitação espaço-temporal: ela
precisa do aqui e do agora para ter efeito. A mídia secundária surge à medida que o processo
de mediação se torna mais complexo, ou seja, quando um dos corpos utiliza um objeto
(pintura, máscara, roupa, megafone) para transmitir informação ao outro. Denomina-se mídia
terciária aquela em que é necessário que os corpos utilizem um aparato decodificador para a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [43]
mensagem. A mídia terciária surge a partir da necessidade de expansão e de alcance cada vez
comunicação não mais como um simples processo de troca de informação que, de certa forma
queremos afirmar que esse entendimento de comunicação não seja correto, mas é importante
aprofundar essa questão. A comunicação humana não pode ser reduzida a esse simples
comunicação surge de um período tumultuado de guerra. Esse período abrange todo o século
que há, também, maiores estudos quanto ao conceito de ruído, a fim de diminuir as distorções,
da mensagem sobre o indivíduo. Seu suporte teórico está no behaviorismo, teoria psicológica
forma, entendemos cada ser humano como ser único, singular, portador de cultura, fruto de
maneira, o sujeito é histórica e culturalmente constituído e traz para a comunicação todo esse
repertório adquirido. Então, a comunicação não pode ser entendida, simplesmente, como um
entender essa comunicação como probabilística, ou seja, como um verdadeiro jogo de acerto e
erro.
meios de comunicação insistem teimosamente em adotar, temos que aceitar então que a
outro, mas esse outro não se deixa expropriar à toa. Assim, o comunicador cria estratégias
maneira mais questionável, sem que ao menos nos demos conta disso. Entregamos nosso
mídia. Prevalece aquilo que Harry Pross (1987) denominou “Economia do Sinal”
Espera-se do receptor um maior esforço para captar esses sinais. Ele entrega grande parte do
seu “tempo de vida” possível ao emissor. Nesse contexto, a informação assume a função de
uma comunicação estruturada com função bélica é renegar o passado, a história e o futuro (os
sonhos), enfim, toda a cultura. Cabe, nesse momento, retomar a expansão do conceito de
cultura que foi proposta no início deste capítulo: seguindo esse pensamento, é inegável que a
comunicação humana é cultura, uma vez que é sobre ela que o ser humano encena seus mais
diversos papéis, criando e recriando infinitas personagens, obras que se decodificam com
vem do latim colere, que significa plantar ou cultivar a terra, conceito que remete ao homem
neolítico, já que, anteriormente, esse hominídeo era nômade. Portanto, o conceito de cultura
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [45]
está intimamente conectado à idéia de cultivar a terra e domesticar os animais. Depois, esse
conceito é transposto para a esfera do pessoal, do próprio homem, quando, então, este passa a
cuidar do seu próprio corpo e da sua própria imagem. Toda essa idéia pertence a um primeiro
conceito de cultura, que a etnografia entende como cultura material, isto é, tudo aquilo que o
homem faz que não esteja dado na natureza. Mais tardiamente, o conceito expande-se e, no
século XX, consolida-se como tudo aquilo que pertence à atividade do espírito do homem.
Atualmente, é entendido como produção artística; no entanto, devemos incluir, também, toda
a produção midiática, pois ela também faz parte daquilo que podemos entender como
novamente, em torno desse conceito. Frente a isso, propõem-se dois conceitos: o de cultura
material, objetiva, que visa à sobrevivência material humana; e o outro que tem a ver com a
cultura do “espírito” humano, com a sobrevivência psíquica, e que é entendida como inútil,
em oposição à primeira. Têm-se dois conceitos de cultura: um dito útil, ligado à terra, e outro,
batizado “cultura inútil” por Morin, ligado ao ar. Os termos útil e inútil, na realidade, apenas
separam) a cultura material da imaginária, porque queremos compreender qual o papel que o
imaginário desempenha sobre as pessoas. Assim, Edgar Morin apresenta o seu conceito de
cultura:
É preciso ter bem consciência de que a cultura não se assenta no vazio, mas
sim sobre a primeira complexidade pré-cultural que é a da sociedade dos
primatas e que foi desenvolvida pela sociedade dos primeiros hominídeos.
Desde então, a técnica e a primeira linguagem aparecem como produto de
uma alta complexidade. (...) a cultura torna-se não só produto altamente
complexo, mas também produtora de alta complexidade. A cultura não
começa por ser a infra-estrutura da sociedade, ela passa a ser a infra-
estrutura da alta complexidade social, o núcleo gerador da alta complexidade
hominídea e humana. (1999, p. 76).
Em sua obra O método 4, esse autor esclarece o sentido de cultura, norteador desta
pesquisa: “(...) A cultura está nos espíritos, vive nos espíritos, os quais estão na cultura e
vivem na cultura. O meu espírito conhece através da minha cultura, mas em certo sentido, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [46]
minha cultura conhece através do meu espírito. Assim, portanto, as instâncias produtoras do
Tomando como base o conceito de cultura ora apresentado por Morin em sua obra
O paradigma perdido, é-se levado a crer que, a partir da constituição daquilo que entendemos
como cultura, o homem abriu-se a uma outra realidade, em que se torna possível concretizar
os mais diferentes anseios humanos. Essa abertura para o campo da cultura humana, em que
há, claramente, a separação entre a cultura útil, ligada à satisfação material, e a inútil, mais
(1995). Para esse autor, existe uma primeira realidade que se compõe da natureza biológica e
social do ser humano. A natureza biológica é regida pelos códigos hipolinguais, que não
chegaram a se constituir como linguagem, mas que regulam as trocas biológicas. Quanto à
natureza social, perduram os códigos linguais, códigos entre dois corpos, entre dois órgãos
gustativos) que envolvem toda a comunicação pragmática. No entanto, para Bystrina (1995) a
vida não se esgota nessas duas existências: para ele, há uma segunda realidade que leva em
hiperlinguais, os códigos da cultura, que não são estritamente nem biológicos nem sociais.
Essa segunda realidade é constituída da imaginação, que leva em consideração as duas outras
naturezas, pois não há cultura sem corpo e sem sociedade. Para esse autor, a cultura tem suas
Do mesmo modo que essas raízes da cultura possibilitam a formação de uma segunda
realidade, elas também nos preparam para pensar a formação dos vínculos. Na primeira
segunda realidade, o homem se vincula com as imagens que ele mesmo cria e com aquelas
que os outros criam também. Elaboramos toda uma instância imaginária à qual nós mesmos
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [47]
nos subordinamos. Na segunda realidade, vinculamo-nos com tudo àquilo que seria, na
dos vínculos como base nos códigos hipolinguais, linguais e hiperlinguais, observaremos que
o que ocorre na instância dos códigos hipolinguais é uma simples troca de informação. Por
Não existem comunidades sem vínculo, do mesmo modo como não existe comunicação sem a
transmissão de mensagens entre humanos. Já nos códigos hiperlinguais, o que ocorre de fato
na segunda realidade é que tudo se torna vínculo, no sentido de participação, fusão. Ocorre
um fluxo complexo de imagens (textos da cultura) por meio dos quais nos vinculamos, na
medida em que, sem essa realidade cultural, seria impossível existirmos. Portanto, nesse
momento já não existe mais uma vinculação. O que há realmente é mais do que isso: nós nos
mesclamos com esses textos da cultura e, assim, esses vínculos tornam-se comunhão. A partir
de então, tem-se claramente que a comunicação é mais que vínculo, é comunhão. Comunhão
com a própria segunda realidade, com deuses e demônios, sonhos, enfim, com tudo aquilo que
Mais uma vez fica demonstrado que comunicação é mais do que a simples troca
de informação, tal como (utilizando uma metáfora simples) uma bola num jogo de pingue-
pongue. Por meio dela, nós nos apropriamos do outro e sem dúvida, também, o outro se
apropria de nós. É fato que toda comunicação é invasiva do eu e, dessa maneira, nenhum dos
momentos que comunicação é vínculo. Então, afinal, o que é vinculo? Antes de responder a
essa questão, retornemos à origem da palavra vínculo, que é um diminutivo do termo latino
para “amarra”, “laço” e “elo”. Esse conceito foi retirado da biologia. Quando aplicado à
comunicação, muda um pouco o foco da informação para outro fluxo em que é mais do que
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [48]
funcionalizável. É algo que amarra, constitui elos entre os indivíduos, pois é formado de
histórias. É algo vivo, que precisa ser alimentado, cultivado. Tem um caráter arcaico, à
medida que é formado por camadas mais remotas e profundas que não estão mortas, que a
todo instante se projetam sobre as camadas mais recentes, transformando-as, de certa forma,
como entende Boris Cyrulnik (1995): vínculo é captura. Vale ressaltar que não é possível
entender tudo o que acontece num vínculo e, portanto, não se pode entender a comunicação
indivíduo terá frente a um estímulo, mas não é possível saber se aquela será realmente sua
forma de reação.
Desde muito cedo nos vinculamos ao outro. Segundo Eibl-Eibesfelt (1983) em El hombre
preprogramado, os seres humanos se vinculam por três motivos: por proteção, por medo e por
vinculação ao longo da vida, tem-se que o primeiro vínculo que estabelecemos é o maternal4.
Durante toda a vida acabamos sempre nos vinculando, seja positiva ou negativamente.
(1987) acrescenta que passamos a nos comunicar, a nos vincular, porque somos seres
necessidade do ser humano de ser aceito, de receber carinho, aconchego e proteção; por isso,
essa incessante vontade ou necessidade de vincular-se para suprir aquele vazio primevo (oco
vital) existente no interior de cada um. Para Diter Wyss (1976), comunicação é falta e
necessidade: o ser humano nasce já dependendo da mãe, e depois, ao longo da vida, essa
dependência vai se tornando mais complexa e se alastrando a outras pessoas e coisas. Essa
4
O biólogo Harry Harlow (1970), em um famoso experimento a respeito do conceito de amor materno entre os
chimpanzés, elabora os cinco sistemas afetivos de base: sistema maternal (mãe-filho); sistema filial (filho-mãe);
sistema fraternal (da mesma faixa etária); sistema sexual (heterossexual) e sistema paternal (mais complexo e de
maior distância).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [49]
carência surge da própria cultura, que, à medida que fica mais complexa, cria novas
necessidades. Portanto, novas faltas e “déficit” são programados, como num ciclo infinito.
Esse ciclo não é estático, mas dinâmico. Como todo fruto de uma cultura, o que está cheio e
preenchido depois de um tempo se esvazia e quer mais e mais coisas novas. O organismo quer
mesmo é perdurar, quer existir, e, para isso, ele sempre vai se vincular. E o alimento desse
pois essa informação não é suficiente para criar ambiência comunicacional, que é próprio da
tensão entre os indivíduos, o que possibilita a “fagia”, que podemos traduzir como
apropriação para o nosso repertório, aquilo que nos interessa do outro e vice- versa.
dar respostas. E ela própria com fim da comunicação – morte – é uma espécie de resposta a
compartir com outro, que gera um novo compartir em reposta ao primeiro. A palavra
compartir, no sentido em que esse autor a utiliza, é entendida como desempenho que implica
ou ambiente comunicacional que, por fim, nos faz pensar, baseado no pensamento de Vicente
Romano (2004), numa “ecologia da comunicação”, que nada mais é do que a criação de um
5
Conceito traduzido pelo Professor Dr. Norval Baitello Júnior, por ocasião do curso de Fundamentos da
Comunicação, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Aula do dia 30 de
agosto de 2006.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [50]
ambiente que propicie o desenvolvimento dos vínculos de sentido, que leve em conta todo seu
contexto histórico, cultural, antropológico e psicológico, bem como toda sua complexidade,
comunicação, e que vislumbre futuros cenários para a comunicação, sem que se esqueça das
bases históricas dos vínculos aos quais estão amarrados todos os lastros culturais, seiva bruta
que jorra força para o mundo da vida. Esquecer isso é negar o próprio passado, a história, o
corpo e os sentidos. Por isso, é necessário um resgate dos sentidos, pois é por meio deles que
máquinas, que nos roubaram o tempo de vida, distanciaram-nos uns dos outros,
aproxima do outro e algema a ele. É um fluxo constante, de mão dupla. O que se tem feito
estreitar o sentido da própria comunicação? “A comunicação não é mais uma relação capaz de
aumentar as trocas entre os membros de uma coletividade, mas uma categoria em si, quase um
denomina de mídia terciária, em que tudo passa a ser mediado pelos aparatos tecnológicos
eletrônicos. Esperávamos, com isso, aumentar nosso tempo e espaço para a comunicação de
mídia, podemos, sem erros epistemológicos, estabelecer uma relação entre corpo e perfume.
ambientes comunicacionais a que aspiramos. Sabemos que, para tanto, precisaríamos abordar
exclusivamente esse tema. Nesta pesquisa, contudo, ao mesmo tempo em que relacionamos
para pensar num sentido mais aprofundo a relação que o perfume guarda na e para a
perspectiva do seu suporte midiático, o corpo e seus sentidos, que para toda essa pesquisa
Mídia, pois talvez nesse contexto possamos encontrar a lente de aumento que nos possibilitará
melhor observar esse objeto de estudo. Nesse momento, portanto, retomamos mais
profunda acerca do conceito de Pross de mídia primária e sua importância para a comunicação
humana de caráter interpessoal. Como mídia primária entendemos as relações face a face,
pontuadas pelas trocas gestuais, olhares, sons e cheiros; e por mídia secundária, o emprego de
meios, de um dos lados do processo de mediação, que reforcem a expressão, que deve estar
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [52]
(2005) no texto O tempo lento e o espaço nulo. Mídia primária, secundária e terciária. Desse
expressividade dos olhos, da testa, da boca, do nariz, da postura corporal, dos ombros, do
tórax, do abdômen, dos pés e das mãos, dos odores, dos sons articulados ou não, das
cerimônias, dos rituais e, por fim, das línguas naturais (naturalmente inclusa a linguagem
verbal falada).
vincular de maneira mais expressiva. O homem utiliza máscaras, pinturas, adereços corporais
e, por que não pensar aqui também, o perfume (olores químicos, propagadores de essências
multiplicadas que nada ou pouco lembram nossos odores naturais). Então, encontramo-nos no
para amplificar a força da mensagem no tempo e espaço. Já para que ocorra a mídia terciária
ferramentas, equipamentos para emissão e recepção da mensagem. Cabe aqui apontar que,
nessa classificação ora apresentada, uma mídia não suprime a outra. Essas mídias sofrem ação
de uma lei cumulativa, o que torna impossível, num processo comunicativo, haver a supressão
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [53]
dos corpos. “Um sistema comunicativo conterá necessariamente em seu âmago a interação
Nesse campo teórico podemos, sem dúvida, classificar o perfume como uma
mídia secundária para o homem. Porém, esta ainda depende diretamente do corpo como
suporte para significação e decodificação do cheiro. O perfume, tal como a escrita, inaugurou
mensagens no momento em que o olor é sentido por alguém. A partir do momento em que se
que a escrita perdura vários anos, o cheiro não consegue se manter por muito tempo. O cheiro
se mistura e há a miscigenação dos cheiros, o que faz com que o perfume enfraqueça sua
Bystrina, um importante aliado para a leitura do perfume na cultura humana. Esse semioticista
hiperlingüísticos. Os códigos lingüísticos são os códigos sociais, aqueles que envolvem toda a
culturais. Levaremos em consideração, para a análise e interação prática com esses códigos
culturais, o odor. Esse código pode ser lido como um fator biológico inerente aos seres vivos
fabricados não é outra coisa senão um código hiperlinguístico, na medida em que essa atitude
segunda realidade, isto é, de tudo aquilo que é criado pelo homem, e que tem relação estrita
com o universo da cultura, não sendo, por conseguinte, estritamente biológicos e sociais.
medida que sabemos que todo código pode ter, certamente, elementos lingüísticos,
aspectos hiperlingüísticos. Esse recorte teórico faz-se necessário para melhor observar a
Vale ressaltar que tal atitude não anula de maneira alguma o constante diálogo que há entre o
buscamos mapear o perfume, na segunda realidade de que falava Bystrina e com ele os textos
corpo, seja a partir de roupas ou perfumes (os mais comuns nas culturas atuais), seja em
forma de adornos ou proteções com resinas, peles de animais, penas de aves e resinas
coloridas de plantas, encontramos aí uma segunda pele, uma camada que reveste o corpo, uma
pele da cultura. E que uma dada cultura, num dado tempo e espaço, avaliam como bom e
bonito.
Pross, em mídia secundária para o homem. No entanto, é notável a importância que o corpo
exerce sobre os voyeurs culturais, atribuindo e garantindo a eles uma significação. Todos
esses aparatos voyeuristas são um texto da cultura, texto aqui entendido não só como escrita
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [55]
verbal, mas num sentido ampliado, para todo e qualquer código da comunicação humana.
ainda aqueles que combinam muitas linguagens e códigos. Contudo, como afirma Baitello, o
texto pode ser não só o escrito. Como texto, ele guarda em si um importante traço essencial da
escrita: a vitória sobre a morte. “Num certo sentido, o corpo, ao tornar-se texto, torna-se
também escrita e inscreve-se com isso em uma escala da imortalidade.” (BAITELLO, 2005,
p.5).
precisamente ao campo teórico dos códigos hiperlingüísticos. É nesse ponto que estão as
nossas reflexões: o perfume, tal como a roupa, recobre o corpo. A palavra “vestir”, provém do
latim vestire, que significa “vestir, recobrir com roupa”. (FARIA, 1962). Está, portanto,
ter o perfume uma significação maior. Mais do que vestir o corpo, ele o investe, termo
oriundo do latim investire, “revestir, cobrir”. Na Idade Média, o sentido da palavra ampliou-se
para “pôr na posse de alguma dignidade”. Mais do que cobrir tal como a roupa o faz, o
perfume parece transformar o outro por dentro, como se se tratasse de um jogo de aparência e
essência. Enquanto a roupa transforma na aparência para o olhar do outro, o perfume parece
transformar a essência do ser. Na medida em que cada um tem um cheiro particular, inato, o
perfume é um artefato que entra pelo poro e introjeta no corpo e o modifica em sua essência.
Segundo a autora, desde sua fecundação, o corpo guarda em si marcas, informações do código
hipolingüístico e signos do código lingüístico que se tornam determinantes da história que vai
textos que serão inscritos nesse corpo. E o perfume, como demonstramos acima, constitui
uma máscara, um texto cultural que se inscreve sobre o corpo. O perfume não é senão a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [56]
máscara que confirma ao olfato do outro, o que uma dada cultura permite que o outro cheire.
Essa máscara esconde a verdadeira face do corpo; veda seus poros, suas saídas, transforma o
que vai muito além da binariedade natural versus cultural, ou ocultar versus revelar. Do
corpo-máscara emerge o suporte antropológico para aquilo que Morin denominou de duplo. O
duplo retoma da consciência primeira da morte. Todas essas manifestações do duplo nada
mais são do que suportes através dos quais se manifesta o imaginário do homem. Suportes
simbólicos e materiais que aderem e contaminam com a idéia da morte e sua outra face
o eco (reflexo auditivo) e, por fim, o movimento do ar respiratório e intestinal como possíveis
podemos pensar mais propriamente no perfume como uma forma singular da presença do
duplo. A invisibilidade própria do duplo encontra-se muito perto dessa natureza aérea.
Tomando como base sustentadora todo o pensamento de Morin acerca do duplo, podemos
afirmar que sua teoria possibilita entender que, o perfume/cheiro, nada mais são do que
simplificada, são decodificadas pelo cérebro dão origem a uma “imagem olfativa”, imagem
endógena (Belting, 2005) capaz de evocar algo ausente. Fica claro, portanto, que o
imagens: ele é capaz de ser ao mesmo tempo a presença de ausência, e a ausência de uma
latino olere, “exalar, rescender, perfumar, cheirar bem ou mal, cheirar a algo”. Em sentido
6
A palavra “indicar” remete a “índice”, que por sua vez transporta nosso olhar para o universo da semiótica
pierceana. Para essa semiótica, o signo tem uma classificação tríade (significante, significado e objeto). Nessa
classificação Pierce propõe ainda três variedades fundamentais de signo: o ícone, o índice e o símbolo. É no
caráter indiciário do signo que encontraremos mais claramente identificada a idéia paradoxal do cheiro/perfume
tal como na imagem, pois “o índice é um signo que está em contigüidade com o próprio objeto denotado. Existe
entre os dois termos uma relação de contigüidade vivida, de natureza essencial. (...) [É] impossível, citar um
exemplo de índice absolutamente puro, bem como encontrar um signo totalmente desprovido de qualidade
indicativa.” (1979, p.21).
De maneira mais direta, podemos afirmar, como fazem Peraya e Carotina, “um signo que se refere ao objeto que
denota em virtude do fato de ser realmente afetado (affected) por esse objeto.” (1979, p.21).
Nesse sentido, o perfume guarda em si um valor indiciário ao corpo e/ou indivíduo que se torna suporte desse
cheiro.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [58]
emerge da força mágica dos adornos, adereços, pinturas e esculturas que podem ter valor de
proteção e de sorte. Portanto, no Homo sapiens demens de que fala Morin, nasce uma
capacidade que nos possibilita interpretar e entender como uma atividade artística e uma via
estética. Nas próprias palavras do autor, temos “(...) que os fenômenos mágicos são
mágicas, devemos retornar à linguagem que abriu a porta à magia para o sapiens. O nome que
identifica a coisa tem, de certa forma, uma justa amarração, na medida em que a palavra
chama no mesmo instante a imagem mental da coisa que a evoca, conferindo a presença
Segundo Edgar Morin, que o Homo sapiens conhece e procura o prazer do gozo
estético.
A partir do momento em que toda a coisa tem uma dupla existência, uma
objectiva ligada às operações práticas, a outra subjectiva e mental, o homem
passa a poder tanto dissociar como associar o aspecto utilitário e prático das
coisas, por um lado, e, por outro lado, o sentimento agradável que as formas
delas podem suscitar, Mas isso só é possível porque a juvenilização humana
se traduziu, no adulto, pela manutenção de uma sensibilidade infantil e
lúdica, pelo alargamento e enriquecimento da sua afectividade. (1987,
p.102).
Isso tudo nos revela que a sensibilidade estética que nasce juntamente com a
consciência do duplo garantiu aos objetos, por um lado, a função clara da condição artística e,
por outro, uma função estética e mágica. Essa sensibilidade estética é o caminho para entrar
em “(...) harmonia, em sincronismo com os sons, odores, formas, imagens, cores que são
profundamente produzidos pelo universo, mas também, daqui por diante, pelo Homo
Com essa sensibilidade estética, a cultura vai oscilar, ou seja, em certos momentos
atrofiar e em outros refinar, expandir entre todos ou limitar-se aos privilegiados. Fica claro,
portanto, que a condição estética acaba indo muito além de sua raiz biológica e passa a ser
lugar- comum, a partir dos seus suportes, que é algo material que as acaba contaminando, mas
a partir de um olhar antropológico que se desloca para universo cultural e histórico que
sentido de pensar as imagens, retornamos ao corpo como suporte para o imaginário. É uma
importante ferramenta da cultura, pois não se ritualiza sem corpo. Nem mesmo há
hipolinguais e linguais estejam em pleno funcionamento. No entanto, parece que nosso tempo
tem ignorado a importância do corpo como mídia, no sentido de mediação entre o homem e
pensar que essa estratégia de aspergir fortes perfumes sobre o corpo não é também uma
maneira arcaica de transformar esse corpo em cheiro, buscando uma permanência simbólica,
mesmo que sob a forma de espectro odorífero, pois essas substâncias quimicamente
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [60]
formuladas não são senão estratégias para se conquistar e para se obter mais visibilidade,
alimento para o olhar do outro. Ensaiamos por meio das roupas, dos gestos, dos perfumes,
armaduras que visam a esconder a verdadeira face de corpo pulsante em sentidos. Isso não
elimina a outra face dos odores, que é o estímulo para sentido do olfato. O corpo precisa de
estímulos para ser/ter a sensação de um corpo, mesmo que esse retorno ao corpo, essa
palavras de Hans Belting, “Os corpos performatizam imagens (deles mesmos ou até contra
eles mesmos) tanto quanto eles percebem imagens externas. Neste sentido duplo, eles são uma
mídia viva que transcende a capacidade de suas próteses midáticas.” (2006, p.7).
cultura, podemos compreender que, tal como entende Belting, “A medialidade das imagens
transcende a esfera visual propriamente dita.” (2006, p.3). O perfume permite uma imagem de
estimulam a imaginação, a qual transforma os cheiros nas imagens que significam. Dessa
maneira, são os odores/olores que servem como meio para transmitir imagens. Mas ainda é
necessário que o corpo as preencha e lhes dê vida com as experiências pessoais e significados.
Essa tem sido a razão pela qual a imaginação tem geralmente resistido a qualquer tipo de
controle público.
pensamento de Belting, que sinaliza com propriedade a questão da imagem e do corpo. Como
insistimos em relacionar a presença somente àquilo que é visível, o cheiro também levanta
essa dualidade ausência versus presença, tão peculiar ao mundo das imagens. Assim,
apresenta-nos o autor:
mídia terciária, questionamo-nos: que força cinestésica existe nessas imagens que são capazes
não há como simbolizar, representar uma sensação olfativa. E, portanto, os odores não podem
ser transmitidos por meio das representações icônicas/imagéticas. Com isso, sustentamos
nossas hipóteses iniciais de que as imagens de odores apresentadas pela mídia são apenas uma
mito de Roland Barthes: “(...) um sistema de comunicação, uma mensagem (...) ele é um
modo de significação, uma forma. (...) O mito não pode se definir pelo seu objeto nem pela
sua matéria, pois qualquer matéria pode ser arbitrariamente dotada de signifição.” (2006, p.
199-200).
que o simula. Esse simulacro de imagem, para Jean Baudrillard, é “uma operação de
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [62]
substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o real
pelo duplo operatório, máquina sinalética metaestável. Programática, impecável. Que oferece
todos os signos do real lhes curto-circuita todas as peripércias (...) Dissimular é fingir não ter
o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem”. (1991, p. 9).
O pensamento de Belting lança luz sobre essa zona de opacidade que se forma
importante retornar ao corpo como mídia viva que percebe, lembra e projeta imagens. O que
temos feito, então, com essa importante mídia do homem quando transformamos grande parte
do que é comunicação em ruído babélico, que parece existir somente para trazer maior
visibilidade e para que o ser humano seja cada vez mais notado? As transformações corporais,
os adornos, os adereços são ao mesmo tempo uma tentativa de resgatar esse corpo perdido,
sua tridimensionalidade, sua corporeidade, seus sentidos, mas na mesma medida revela a
pelos meios de comunicação contaminam o nosso olhar e nos fazem aspirar continuamente
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [63]
àqueles modelos. Isso revela a insistente e constante transformação por parte do sistema
diversas mídias.
Esse quadro sóciocultural nos faz perguntar se terá sempre sido assim na história
do ser humano. Sabemos que espelhar-se em algo ou alguém faz parte da natureza humana.
Mas por que tal fenômeno tomou dimensões desmedidas? Seria tudo isso fruto do tempo dos
excessos, ou melhor, dos excessos do tempo que prefere a imagem à coisa e a elevou à sua
máxima exponencial? Vêm à baila ainda mais alguns questionamentos: o que tem acontecido
reviver e ler as marcas que se imprimem sobre os suportes, as superfícies, sobre os corpos,
enfim, tudo aquilo que comunga e sofre a ação do tempo e, portanto, é fruto da história. Por
meio de uma perspectiva temporal e histórica, analisamos o corpo e seu desempenho como
suporte midiático do homem com o mundo. Observando esse fenômeno, esperamos encontrar
a verdadeira face do corpo e seus sentidos frente às mudanças históricas e culturais. É fato que
o corpo tem uma memória em si e uma memória de si, e que esse corpo se tece como textos
pessoais dentro de um macrotexto que é o da cultura, que dá origem à escritura da espécie por
O que percebemos é que nem sempre foi assim. Esta era marcada pela visibilidade
Segundo Campelo,
(...) em épocas anteriores viemos para nos reproduzir (...) em outras viemos
para tentar permanecer para experimentar a resistência o mais que
pudéssemos às intempéries, às doenças, à toda sorte de impedimento. Houve
épocas em que viemos para ousar: atravessamos continentes, cruzamos
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [64]
Para compreender essa época que Cleide Riva Campelo denominou “tempo de
exceder nossos limites”, que não é senão aquilo que também Baitello chama de “tempo dos
excessos”, que por sua vez é resultado de um projeto da modernidade que visa à emancipação
do homem, é necessário retornar aos objetivos de tal projeto de emancipação, que também
remetem ao corpo como projeto de civilização. Segundo Kamper (2006), a disciplina do corpo
começa a aparecer no final da Idade Média. O homem passa a ser medido por regras e modos
conjunto de regras aprisiona a “natureza interna”, que é submetida a uma abstração social,
produz uma boa imagem aos outros: a de sermos polidos, a de sermos intocáveis e a de
medida que abdicamos do corpo, deixamos de nos relacionar (interpessoal), perdemos nossos
sentidos e, assim, paramos de comunicar. Tudo isso passa a ser feito por meio das imagens. E
A partir de então, passamos a nos confundir com as imagens e a agir como elas;
O que sobrevive, então, em nosso tempo, são formas natimortas de corpo que não
trazem em si nem de si sua história, mas são, acima de tudo, um amontoado de matéria-prima
por isso, tornaram-se eternamente saudáveis, jovens e belos, porém incapazes de comunicar-
se com o mundo, por serem formas preestabelecidas que não representam a singularidade de
cada corpo.
Cultura nos habilita fazer, buscamos situar o perfume como mídia para o homem. Essa
abordagem nos impele a pensar mais especificamente o sentido do olfato para o homem
CAPÍTULO III
CORPO, PERFUME E OLFATO: TRÍADE PARA UMA COMUNICAÇÃO
INTERPESSOAL DE PROXIMIDADE
o mundo, retomamos a etimologia da palavra sentir, que provém do latim sentire, por sua vez
oriunda da raiz indo-européia sent, que significa “dirigir-se, ir, seguir mentalmente”
mundo e do mundo ao homem. Possuímos uma percepção sensível que nos possibilita crescer.
Ao mesmo tempo, essa percepção nos ata ao aqui e o agora, como se observa nos sentidos de
proximidade.
Dada a importância dos sentidos para o homem e sendo eles uma importante via
de acesso do homem ao mundo, não podemos negar que os sentidos corporais desempenham
um importante papel de meio de comunicação do ser humano com o mundo, retomando, ainda
é um organismo poroso e, portanto, somos seres que dialogam constantemente com o mundo
por meio dos sentidos de nossa pele. Quanto a esse conceito, assim o apresenta o autor: “O
indivíduo é um objecto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser
o mesmo quando o biótipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar, a ponto de
organismo que elabora vínculos com o ambiente e com o mundo, porque o ser humanoprecisa
do “estar-em, estar-com e fazer como se”. Fica evidente toda a teoria de Dieter Wyss (1976)
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [67]
sobre a comunicação com déficit e também da comunicação com vínculo. Como aponta
Cyrulnik (1996), quando o indivíduo está-em, deixa-se envolver pelo meio ambiente; quando
está-com, age sobre o corpo do outro e sobre suas emoções; e quando faz como se, passa a
agir sobre a psique do outro, por meio dos gestos, posturas e palavras que interferem sobre as
dotado para a comunicação porosa (física, sensorial e verbal), que estrutura o vazio entre dois
Ao entender o ser humano como organismo poroso, é preciso voltar o olhar para o
elemento ligante dos corpos. Segundo Cyrulnik (1996), existe um fluido, uma força animal
invisível, que comunica e atua entre os corpos. A substância ligante entre os organismos é o
inconscientemente, pelo olfato na comunicação humana. Além disso, esse mesmo autor
afirma ainda que essa porosidade somente se fecha com o esgotamento da vida do corpo.
comunicação intra-uterina, embora a criança não utilize a linguagem verbal. Com os sentidos
pois não é só uma troca de informação mãe-bebê que ocorre nesse jogo de linguagem, mas
humana. É ainda em Cyrulnik que encontramos a sustentação para isso, quando ele revela que
toda mãe sabe que o bebê recém-nascido se acalma na presença do seu cheiro, mesmo que
este esteja impregnado num pano. É por meio do cheiro que o bebê torna presente a mãe
nascido tem em si e para si uma memória olfativa que vai carregar, mesmo que
O que ocorre nessa relação mãe-bebê desde a fase intra-uterina não é um simples
jogo de informação, mas um jogo mais complexo de linguagem, que aqui denominamos
por meio desse vínculo que o recém-nascido estrutura o mundo ao seu redor. O bebê já nasce
como um ser deficitário, segundo os conceitos de Wyss e Pross. Por isso, precisa vincular-se
de alguma forma. Para sentir-se inserido no mundo, precisa do aconchego da mãe no início de
sua vida. Depois, ao longo do desenvolvimento, seus vínculos vão se tornando mais
estruturado pelos valores culturais impregnados por essas estruturas. Pouco a pouco, seus
sentidos vão sendo corrompidos e, com isso, acabam reduzidos àquilo que é culturalmente
aceito. No entanto, nos primeiros momentos de vida, ainda não absorvidos pelas estruturas
essa memória Cyrulnik (1995) atribui o nome “memória de curto prazo”. É ela a responsável
pela adaptação ao novo meio ambiente, desde o nascimento do bebê. Essa memória é
evocadamais por meio da olfação do que por qualquer outro sentido, pois a criança, por meio
dela, torna-se capaz de reconhecer e acalmar-se frente ao cheiro da mulher em que foi gerada,
uterina, quando ele é bombardeado pelo líquido amniótico que o envolve e pelo perfume que
dele emana. Esse perfume, afirma Cyrulnik, provém dos alimentos ingeridos e também do
É a mãe, portanto, que perfuma o líquido amniótico com seu próprio corpo:
ela adiciona-lhe açúcar (glicose e frutose), uma pitada de sal, um tiquinho de
ácido cítrico, algumas proteínas (creatinina, uréia) e muito ácido láctico, o
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [70]
É sobre esse amontoado de sabores e odores oriundos dos alimentos e do meio ambiente que
se assentará toda a memória a curto prazo. Trata-se de um verdadeiro centro culinário no qual
o pequeno indivíduo terá suas primeiras experiências sensoriais. Para Cyrulnik, os diferentes
aromas que compõem este líquido podem ser responsáveis pela comunicação bebê-mãe. Uma
vez que grande parte da memória de curto prazo se constitui de uma memória química que
impregna os sentidos do bebê durante boa parte do período de gestação e que serve de baliza
aquoso (placentário) para o meio aéreo. No primeiro contato entre a mãe e o bebê, eles se
cheiram e se tocam. Pela alteração hormonal da mãe, o bebê passa a reconhecer esse ser em
"estado químico alterado" como mãe, já que os odores químicos percebidos já se encontravam
no útero materno.
de Daphne e Charles Maurer na obra The world of newborn, que vem ao encontro do
pensamento desse autor: realmente, enquanto recém-nascidos, nossos sentidos estão todos
Seu universo [do bebê] tem cheiro muito semelhante ao do nosso mundo,
mas o bebê não percebe o olfato somente pelo nariz. Ele ouve os odores, vê
os odores e sente-os também. Seu mundo é uma mistura de aromas
pungentes – e sons pungentes, e sons amargos, e visões doces, e pressões,
contra sua pele de cheiro acre. Se nos fosse dado visitar o mundo de um
recém-nascido, acreditaríamos estar no interior de alucinógena perfumaria.
(1996, p.339).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [71]
existência de um padrão comunicativo que nos une. Ele descreve a experiência da filmagem
das mímicas faciais dos recém-nascidos, quando se coloca em sua língua uma gota de água
açucarada e, depois, uma gota de água amarga. O resultado foi que todos os recém-nascidos
aversão. “Os bebês confirmam a idéia etológica de que existe nos seres vivos um programa
biológico comum, cuja aculturação tem início no instante em que começa a funcionar.”
semana, quando se dá o reconhecimento visual da mãe; até então, somente reconhecia sua
mãe por meio do cheiro (entendido aqui como o reconhecimento químico semelhante ao qual
esse bebê se encontrava no útero materno), segundo o que evoca sua própria memória de
curto prazo. O vínculo mãe-bebê está todo norteado pelos sentidos de proximidade:
7
Cabem aqui ainda algumas considerações quanto a essa idéia apresentada por Cyrulnik (1995) de que, no feto e no recém-
nascido, os sentidos estão misturados e, de certa forma, essa característica caótica permanece no ser humano no que tange à
relação da gustação e da olfação, mesmo ainda na fase adulta, haja vista que muitos dos gostos que sentimos, da maior parte
das coisas que colocamos na boca, depende na verdade do seu cheiro (LENT, 2001).
Essa estreita relação que existe na primeira infância entre o sentido da gustação e da olfação está também sinalizada nas
línguas portuguesa, francesa e espanhola pelo verbo sentir que pode expressar tanto a idéia do sentido da olfação quanto da
gustação. O verbo ‘sentir’ indica mais de um sentido: sentir um cheiro (olfato), sentir um gosto (paladar), sentir um
toque/uma dor/calor/frio (tato). Esse verbo tem esse sentido “plurissensual”.
Para maiores esclarecimento, indicamos a leitura da obra:
LENT, R..Cem milhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências, São Paulo: Atheneus, 2001.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [72]
(...) Em primeiro lugar recebida como objeto parcial [a mãe], sob a forma de
percepções sensoriais elementares (contacto, calor, odor, sonoridades),
tornar-se-á, mais tarde, na imagem visual materna, percebida de longe, e
diferente das outras. (CYRULNIK, 1989, p.104).
Será que, na fase adulta, o olfato ainda desempenha esse mesmo papel? O faro do
recém-nascido não se manifesta no adulto, uma vez que já estará revestido completamente
pelo ditames culturais. O corpo e seus sentidos tornam-se de certa forma adestrados. Ainda
assim, o olfato é capaz de fazer a ponte comunicativa do homem com o mundo. Quanto a essa
É-nos impossível conseguir ter uma idéia clara daquilo que possa ser uma
imagem olfativa do mundo, dado que o equipamento olfactivo dos Primatas
e dos Artrópídes desempenham, a nível das suas imagens espaciais, uma
mera função de complemento. No caso do homem, dentre os sentidos de
relação, o olfacto ocupa uma situação particular. Com efeito, a visão e a
audição, comprometidas com a linguagem à semelhança da mão, são os
únicos elementos do sistema de emissão e de recepção que torna possível a
troca de símbolos figurativos. O olfacto, sendo meramente receptor, não
dispõe de qualquer órgão complementar de emissão de cheiros. Permanece,
pois estranho ao dispositivo mais caracteristicamente humano; a reflexão
pode vir a codificar as suas percepções, não obstante, estas manter-se-ão
intransmissíveis. É esse facto que situa a gastronomia, bem como toda a
estética olfactiva, à margem das belas-artes. (1983, p.98).
para o ser humano transmitir aquilo que foi percebido. O autor levanta a questão de que o
olfato e a gastronomia guardam uma relação com as belas-artes, pois, por meio delas, é
símbolos, transmitindo ao outro essa sensação. Já a gustação e a olfação não nos permitem
teoricamente a base real dessa estética sem linguagem.” (LEROI-GOURHAN, 1983, p. 99).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [73]
Pode-se afirmar que a culinária, assim como a alta gastronomia, tornou-se uma
grande arte capaz de elaborar não só deliciosos pratos, mas também maravilhosas e
verdadeiras obras de arte, que servem de convite à gustação. Entretanto, essa arte não
figuratiza o gosto:
tato, a visão passou a modificar muito a percepção que um indivíduo tem do mundo. Leroi-
Gourhan sugere que a percepção olfativa é alterada pelo sentido predominante, a visão.
é própria para cada ser humano. No entanto, é fato que, como afirma Leroi-Gourhan, certos
odores estão de certa forma amarrados a uma determinada “ambiência olfativa” irreconhecível
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [74]
em torno de outra esfera de ambiência, o que acaba por isolar esses cheiros da existência
normal.
Cyrulnik (1995) menciona uma paciente sua que, sob grave crise emocional após
a perda do marido, decidiu limpar o armário. Da data da morte até a decisão da limpeza do
armário passaram-se três anos. Ela já se encontrava calma. Os primeiros dias de limpeza
marido retornou à sua mente. Sentindo as lágrimas brotar, ela se espanta. Descobriu que, no
fundo desse armário, havia uma sacola de esportes fechada que conservava o cheiro do
marido. Observa-se nessa queixa clínica da paciente que o cheiro foi um importante vínculo
corporais e as percepções que o ser humano tem do mundo. Demonstra, ainda, que existe no
ser humano um elo operatório resistente entre o campo operatório facial e manual e entre a
apreensão e a visão.
Isso remete ao profundo pensamento de Proust citado por Cyrulnik., Mesmo sob
estruturas culturais que nos submetem, os odores e o sentido do olfato continuam sendo um
importante meio de comunicação do homem com sua história, com seu mundo, constituindo,
ainda que de maneira recalcada culturalmente, o cheirar, a memória olfativa, a qual irrompe
Mas quando de um passado remoto nada subsiste após a morte dos seres,
após a destruição das coisas, apenas eles – mais tênues, porém mais vivazes,
mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis –, o cheiro e o sabor, perduram
ainda muito tempo, como almas a se lembrar, a esperar, a ansiar por sobre a
ruína de todo o resto, a carregar sem vergar, em sua gotícula quase
impalpável, o edifício imenso da lembrança. (CYRULNIK,1995, p.21).
O corpo é uma inteligência viva, capaz de perceber o mundo por meio dos
principalmente por meio dos sentidos de proximidade. Porém, nosso tempo tem
não pode tocar, é o corpo que não pode cheirar. Sentir o mundo pelo faro pertence à esfera
Seguindo essa máxima esquecemos que o corpo sempre precisou do cheirar, do sentir e do
colocar tudo na boca. Esses canais serviram ao bebê como importante meio de comunicação e
compreensão do mundo. A visão foi um dos últimos sentidos a dar noção do mundo para o
que as imagens ganham cada vez mais espaço. Nossa cultura impõe que é proibido tocar e
proibido farejar. O corpo adulto pune-se, pois precisa sentir por meio do toque e do farejar.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [76]
uma estreita relação com a emoção. Investigamos, então, que tipo de relação há entre o
cérebro emocional e o olfato, o que o possibilita evocar uma emoção passada associada a um
cheiro.
Daniel Golleman (1995) afirma que o cérebro, complexo tal como o entendemos
atualmente, surgiu com pouco mais de um quilo de células que evoluíram ao longo de milhões
percurso evolutivo.
Esse cérebro mais primitivo, presente em todas as espécies que têm um sistema
medula espinhal. “Esse cérebro-raiz regula funções vitais básicas, como a respiração e o
Constata o auto, ainda, que o cérebro primitivo não pensa e aprende de maneira
sobrevivência da espécie. Essa morfologia cerebral predominou durante toda a era dos répteis.
Desse tronco cerebral, que é a raiz mais primitiva do cérebro, surgiram os centros
tecidos ondulados que forma as camadas superiores. Então, constata-se que o cérebro é o
pensamento das emoções. Esse fato revela muito da relação entre pensamento e sentimento.
Sem dúvida, havia um cérebro emocional muito antes do racional. O mais instigante que se
Portanto, o que mostra esse autor é que, a partir do lobo olfativo, deu-se a
evolução dos mais antigos centros da emoção. Nesse estágio da evolução, o centro olfativo
contava com apenas algumas camadas de neurônios para analisar o cheiro. Havia, portanto,
uma camada de células que recebia o que era cheirado e classificava-o nas categorias
segunda camada de células, enviava mensagens reflexivas a todo o sistema nervoso, passando
um comando ao corpo do que devia fazer: morder, cuspir, abordar, fugir, caçar.
constituíram, no lugar onde se encaixa o tronco cerebral, uma nova estrutura que tem o
formato de um pastel mordido embaixo, que se denominou de sistema límbico, nome oriundo
A partir dessa conquista evolutiva, essa estrutura cerebral foi responsável pelo
estrutura, o animal tornou-se um pouco mais especializado, capaz de adquirir maior repertório
Mais ainda: nesse contexto, o olfato tinha em si um importante papel nas decisões
quanto ao que comer ou o que rejeitar. A ligação entre o bulbo olfativo e o sistema límbico
com outros passados, discriminando assim o bom do ruim. Isso era feito pelo ‘rinencéfalo’,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [78]
complexo. Isso ocorreu há cerca de cem milhões de anos. Essas duas camadas de células que
sentido e pela coordenação dos movimentos. Delas emergem novas camadas de células
percebem. Acrescenta a um sentimento o que pensamos dele – e nos permite ter sentimento
de planejar a longo prazo, além de outras complexidades mentais. No que tange à questão da
Todo esse caráter de demência do Homo sapiens, que parece puramente negativo,
incerteza, enfim, à desordem. No entanto, esse quadro de desordem e delírios, próprio desse
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [79]
Homo sapiens demens, ao mesmo tempo em que contribuiu para sua complexidade cultural,
revelou também a face obscura do Homo sapiens, que são as tendências mais regressivas e
neocórtex, o que nos faz pensar que talvez seja por essa “organização cerebral”, e não só por
aquilo que Freud denominou de “recalque do orgânico”, que, para o Homo sapiens, os
estímulos olfativos não têm o mesmo poder de comunicação do organismo, por meio desse
sentido com o nosso corpo. Observa-se que as imagens assumem para o neocórtex a mesma
importância que os estímulos olfativos tinham para o cérebro mais arcaico, pois agora são as
as imagens têm maior poder de cativar e hipnotizar, o que se deve ao momento em que o
cérebro adquiriu tal morfologia, enquanto as moléculas odoríferas, no instante em que são
decodificadas, põem-nos em ação, resultando numa classificação instantânea que nos faz
cão mais emocional, comprovando a raiz do afeto com a olfação, apontada por Goulleman:
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [80]
É fato que o lobo olfativo nos animais macrossomáticos ainda funciona da mesma
maneira observada na morfologia mais arcaica do cérebro humano. Para esses animais, o faro
serve nitidamente como meio de buscar a assinatura olfativa do indivíduo. Por isso, por
exemplo, o cão fareja a púbis de um indivíduo, para decodificar a assinatura do mesmo, saber
seu sexo, sua condição de receptividade e sua influência social. No entanto, o cheiro ou o
sinal olfativo cria um tempo de encontro diferente nesses animais em relação ao homem. Um
exemplo clássico: após a visita de um amigo à sua casa, este deixará para trás, no tapete ou na
poltrona, traços olfativos que perpetuarão no mundo do animal a sua presença, ainda que, para
o mundo humano, esse amigo já tenha partido. Portanto, “(...) Nesse cheiro remanescente, seu
cão perceberá um pouco de seu amigo no plano real, ao passo que você só conseguirá lembrá-
animal em comparação com o do homem mediante o estímulo olfativo, vê-se que, para o
animal, o estímulo morre em seu sentido de informação para o organismo, tal como um aviso
ou chamariz, enquanto que para o homem esse estímulo não se esgota na provisão de uma
informação, pois o indivíduo tem a capacidade de interpretar, refletir sobre si e seus membros
(...) Nosso ver e tocar, ouvir e cheirar se tornam “conscientes” para nós, são
“vividos” por nós. Isso fica evidenciado pelo significado lábil de sentir que
ainda guarda uma relação estreita com o sentido do tato quando utilizado
com significado de sentimento para ritmo, sentimento para boas maneiras,
sentimentos para boa forma. (1977, p.4).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [81]
armazenada pelo cérebro humano na sua fase mais complexa. A cada estímulo, essa carga é
sentido filosófico do termo: “(...) o dado puramente hilético, que não pode ser descrito,
somente dado aos homens, e ganha com isso uma dupla possibilidade: apresentar-se como tal
Observa-se que o ser humano vive a pluralidade dos seus sentidos. Somos seres
significados a elas, transformando-as em algo diferente. Por fim, é inegável que os sentidos
mídia do homem, para utilizar uma expressão cunhada por Harry Pross (1987), nascemos
ensaiando intensas relações dos nossos sentidos com o mundo, retirando deles o máximo de
das células, encontradas na parte interna do nariz, a cavidade nasal, por substâncias
odoríferas. Estas substâncias têm caráter volátil e, por isso, penetram pelas cavidades nasais,
juntamente com o ar inspirado. Aderem às membranas ciliares das células, alterando sua
8
Todas informações referentes à olfação e todo processo de decodificação foram retirados das seguintes obras: DOUGLAS,
C. R.. Fisiologia oral . Vol. I São Paulo: Pancast 1998. LENT, R.. Cem milhões de neurônios: conceitos fundamentais de
neurociências. São Paulo: Atheneu, 2001.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [82]
formação. Na superfície das membranas ciliares há regiões rebaixadas, cuja estrutura química,
as moléculas odoríferas, encaixam-se em seu lugar determinado, tal como num processo de
chave-fechadura. Vale ressaltar que cada receptor pode responder a mais de um estímulo
odorífero, ou seja, a diversos tipos de odores. Portanto, não existem receptores moleculares
específicos para um determinado odor. Sabe-se que substâncias químicas semelhantes podem
causar sensações de odores diferentes. Esse fato mostra que a capacidade de uma molécula
odorífera9. E mais: sabe-se ainda que as moléculas que produzem odores semelhantes aderem
a receptores comuns.
Dessa forma, a maioria dos odores resulta da interação dos estímulos químicos,
em diferentes graus, com diversos receptores. Essa informação (substância odorífera) é então
transmitida a centros superiores pela extremidade axonial das células presentes na cavidade
nasal. É verdade que são pequenas quantidades de substâncias odoríferas que determinam a
existência de um estímulo odorífero, passando por algumas porções mais internas da mucosa
estrutura fundamental para os efeitos de excitação das substâncias odoríferas, que podem
9
Segundo a pesquisa Odorant receptors and the organization of the olfactory system, efetuada por Richard Axel e Linda
Buck, que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 2004, descobriu-se que os receptores olfativos localizados na mucosa
olfativa permitem reconhecer e armazenar cerca de dez mil odores. Cada célula receptora do olfato possui somente um tipo
de receptor de odor e cada receptor pode detectar um limitado número de substâncias odoríferas. Por isso, as células
receptoras do olfato são altamente especializadas em alguns poucos odores. Eles descobriram uma grande família de gene,
compreendendo cerca de um milhão de diferentes genes (três por cento de nossos genes) que provocam um número
equivalente de tipos de receptores olfativos. Esses receptores estão localizados nas células receptoras, que ocupam uma
pequena área na parte superior da cavidade nasal e detectam as moléculas de odores. .(BUCK, L.; AXEL, R., 2006).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [83]
bulbo olfativo. Sabe-se que, atualmente, a função dessa região não se limita a sentir cheiros,
mas também é responsável por nossos sentimentos. O sistema olfativo está conectado ao
a terminação nervosa que permite decodificar o cheiro. A primeira região é o bulbo olfativo.
Da região da amígdala partem estímulos que atingem o tálamo e outras partes do sistema
constituindo uma memória olfativa. Por isso, podemos experimentar conscientemente o cheiro
de uma flor na primavera e relembrá-lo em outras estações do ano. O olfato tem uma memória
em si: “não existe falta de memória em relação aos odores”.(MORRIS, APUD ACKERMAN,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [84]
p.32), enquanto que aquilo que ouvimos ou vemos pode desaparecer rapidamente do caminho
de nossa memória.
sentidos:
Seria o acaso que nos faz encontrar e seduzir a pessoa do sexo oposto? Talvez
não. Seríamos injustos com a capacidade simbólica que nos permite que nos aproximemos ou
outro que podem ser “lidos”, tornando possível a identificação e a sincronia, e criando um
verdadeiro campo de subjetividade em que se dão os encontros, como aponta Cyrulnik: “Todo
ser vivo utiliza o espaço para torná-lo significativo, enviando-lhe sinais: o próprio espaço
torna-se então um objeto sensorial, estruturado como uma linguagem.” (1995, p.39).
10
Cabem, aqui, maiores esclarecimentos quanto à importância do olfato no organismo humano. Ele não tem só
um importante papel na comunicação inter-humana, mas também na comunicação interna do próprio organismo,
na medida em que a medicina nos revela que o desenvolvimento dos sistemas olfativo e vomeronasal são
importantes para a maturação sexual normal.
Como referência a esse assunto, aponta-se a seguinte obra: LALWANI, A. K.; SNOW Jr., J. B. Distúrbios do
olfato, da gustação e da audição. In: KASPER, D. L. et al. Harrison: medicina interna. v. 2. Rio de Janeiro:
Mc.Graw-Hill, 2006.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [85]
elaborando aquilo que Boris Cyrulnik (1989) denominou de “Cartaz etológico”. Quanto a esse
O “grupo dos elegíveis” a que se refere Cyrulnik são aqueles que, mesmo
inconscientemente, seduzem pela presença de sinais não verbais que fazem outra pessoa se
aproximar, reduzindo o espaço, a distância entre os parceiros, de tal forma a permitir que
e o toque principalmente.
Concordamos com Córdon (1995) quando ele afirma que, quando o homem passa
a viver em sociedade, os critérios de seleção já não são mais naturais, mas culturais. Dessa
maneira, o homem pauta as suas escolhas segundo os valores da moda, a qual passa a
moda.
Dialogando com a idéia de cartaz etológico de que fala Cyrulnik, Michel Serres
Na concepção desse autor, o corpo se torna uma verdadeira tela de obra de arte,
sobre a qual se inscreve toda a nossa identidade, e, por meio dos adornos e dos cosméticos,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [86]
torna “visível essa invisível carteira de identidade”. Quanto ao cosmético, aponta o mesmo
autor:
por Serres, abre-se também a possibilidade de refletir para que ele tem servido. Isso ocorre
porque, realmente, os cosméticos são utilizados para reforçar ou disfarçar. Cria-se uma
11
Os conceitos de “Cartaz etólogico” e de “Mapa da Ternura” alinhavados ao conceito de cosmético abre-nos a possibilidade de pensar a
questão propriamente dita do perfume no imaginário humano. Para isso, resgatamos o sentido da palavra cosmético, que também pode ser
usada para designar o mundo do perfume. Aprofundando-se mais um pouco, notar-se-á que o perfume também está intimamente relacionado
ao kosmo (cosméticos) que, segundo Hillman:
“(....) na palavra grega kosmos, de onde vem ‘cosmologia’, ‘cosmonauta’. Komos, ao ser traduzida do
grego para o latim, tornou-se universum, revelando a atração dos romanos por leis universais, o mundo
todo girando em nossa volta (unus-verto). Cosmo, no entanto, não significa um sistema que abrange;
trata-se de um termo estético, que melhor se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’, ‘bem arranjado’, de
forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal. Kosmo é também um termo
moral: kota kosmon (desordem) (...). Kosmo também abrange significados tais como ‘convenientemente’,
‘decentemente’, ‘honorável’. Juntam-se o estético e o moral, como em nossa linguagem diária
profissional, em que ‘direito’, ‘verdadeiro’, ‘certo’, ‘correto’ implicam em ‘bom’ e ‘bonito’. Um outro
grupo de conotações inclui ‘disciplina’, ‘forma’, ‘moda’. Kosmos era usado especialmente a respeito das
mulheres, referindo-se a seu embelezamento, decoração, ornamentos, roupas, e a palavra também pode
descrever canções, falas doces. ‘Cosmético’ está, na verdade, mais próximo do original que ‘cósmico’,
que tende ao significado de ‘vazio’, ‘gasoso’, ‘vasto’.” (HILLMAN, 1993, p. 135).
No trecho acima, constata-se claramente a relação entre o significado de kosmo e de cosmético; esse autor dá claras pistas para que se possam
retornar os olhares sobre os textos publicitários da mídia impressa e a suas imagens. Nessas imagens, depara-se, sem maiores
questionamentos, com a clara aplicação do conceito original da palavra cosmético, que está intimamente relacionado ao belo, ao bonito, à
disciplina, à forma, à moda, e ainda ao vazio e ao gasoso. Por isso, a presença marcante de modelos e cenários belos e perfeitos. Nas palavras
de Hillman: “Se o próprio cosmo implica em beleza, se vivemos num mundo estético, então o modo primeiro de nos ajustarmos ao cosmo
seria através de um sentido de beleza.” (1993, p.135). Depara-se aqui com a razão primeira pela qual a busca frenética pelo belo, pela beleza,
tenha ganhado proporções cósmicas, bem como o aumento exacerbado sobre aquilo que é visível, pela aparência, como se tivesse recaído
sobre nós toda a força da noção afrodítica de beleza. Somente cremos naquilo que vemos, a aparência do mundo revela a sua verdade.
Dessa forma, partindo de todos esses conceitos apresentados sobre o kosmo e sobre o cosmético, que já estão interligados
pela noção de beleza implícita da deusa Afrodite, somos levados a uma hipótese no mínimo instigante a respeito da ausência do cheiro e de
uma predominância das imagens de cheiro, pois já não importa mais o que cheira; importa a aparência, o que você é. Por isso, o perfume em
nosso tempo tem sido confundido muito mais com a roupa, com a moda do que com a questão do cheiro propriamente dito. Tem-se chegado,
então, ao cúmulo de perguntar ao outro “o que você está vestindo?” para se referir a que perfume ou a que marca de perfume a pessoa está
utilizando.
Nesse sentido, essas questões levam-nos a pensar que o mundo do perfume é a porta de entrada do corpo para o mundo das
imagens; é propriamente a transformação, ainda que de forma ilusória, do corpo em imagem de corpo. O perfume tem em si a característica
da imagem visual, a de ser um paradoxo, ou seja, a presença de uma ausência bem como a ausência de uma presença. Além dessa figura de
linguagem, tudo isso convida a pensar ainda em outra figura de linguagem: a metonímia, que consiste no emprego de uma palavra por outra,
permitido pela proximidade da idéia que expressam.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [87]
Esse autor aponta a beleza e a estética como elementos que despertam prazer.
Esse conceito de beleza tem a ver com o grupo de pertença, ou seja, à medida que passamos a
pertencer a uma cultura, tornamo-nos seres únicos, pautamos nossos gostos, nossas atitudes e
comportamentos segundo as regras do grupo para que, assim, possamos ser compreendidos e
aceitos por este grupo. Mas é inegável que aquilo que atribui a qualidade de assinatura natural
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [88]
do grupo não nasce no vazio, está sedimentado sobre a pilastra da moda12., pois, Como nos
afirma Cyrulnik: “[A moda é] espelho social, índice de reconhecimento, produção e sentido,
ela funciona como um sinal que permite aos indivíduos de uma mesma cultura seduzirem-se
Norteada pela moda, a mulher sempre soube melhor lidar com seu cartaz
etológico do que o homem. Ela soube produzir-se e transformar-se em engodo. Talvez essa
estratégia seja uma questão de gênero cultural e seja socialmente construída, como dá a
entender Cyrulnik:
As mulheres são atraídas pelo modo de vida, ao passo que os homens são
atraídos pelo físico de uma mulher. E ninguém se engana, porque uma
mulher que deseja torna-se atraente cuida do corpo e tem prazer em torná-lo
desejável, enquanto um homem que deseje implantar-se no mercado da
afectividade exibe o seu belo carro e expõe as marcas do seu sucesso social.
(1989, p.210).
afetividade, numa civilização, tenha-se reduzido à esfera da aparência. Aquilo que se simula
ou se aparenta ser é o que realmente importa. Nesse jogo de aparências sociais, fica sempre
uma pergunta: como se comportam a parte biológica e os outros sentidos corporais, quando
12
Essa questão conduz a pensar que parte desse impulso de autoplasmar-se tenha sua origem na própria biologia, devido à necessidade que a
pele frágil tem de proteção artificial da natureza física, mas, mais ainda, da simbólica. A possibilidade de se pensar nessa proteção mais
simbólica de que física abre a chance de pensar no perfume como objeto de significação, um signo da cultura, que apaga as marcas das
características animais do ser humano, para assumir um cheiro culturalmente aceito (reconhecido). Segundo Harry Pross (1983), o ser
humano confia nos signos. Da mesma maneira, os símbolos primitivos, que foram impressos sobre o corpo (textos), o perfume aspergido
sobre esse corpo também se faz linguagem, tornou-se parâmetro para reconhecimento interindividual, embora ainda pouco se conheça pelo
cheiro. Essa identidade surge do uso do objeto que nos leva a pensar na moda, ou melhor, no sistema da moda, que é um sistema de regras e
que surgiu em um contexto social, acabando por funcionalizar o cotidiano, à medida que tenha havido a racionalização dos instintos e, por
fim, a submissão da natureza à complexidade da vida social. A moda celebra o fetiche da mercadoria. O indivíduo, além de se vincular ao
mundo pelo signo (roupa, perfume, gestos, palavras, textos), tende a se apropriar do objeto como um outro eu ou como um prolongamento de
sua personalidade. Isso nos revela que, desde o homem primitivo, o símbolo, a imagem, mostrava-se como meio de superação da
transitoriedade e da temporalidade do homem. Então fica sempre entre esse sujeito consumidor e o objeto de desejo um déficit emocional,
pois esse sujeito nunca está saciado; precisa ser e ter mais, consumir, comprar, em busca daquele estereotipo midiático. E essa vontade
insaciável de ser ou de parecer aquilo que está exposto no texto publicitário, enquanto espelho midiático da cultura, segundo Lacan, acabou
“levando-o a retocar seu corpo de múltiplas maneiras: por deformações, por mutilações, por tatuagens, por escarificações, por maquiagem,
por vestimentas, por cirurgias estéticas, etc.” .(LACAN Apud VILLAÇA ET AL., 1999, p.9).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [89]
permissão de acesso ao outro, as emoções são sincronizadas, seja por meio dos gestos, da
ainda, comunicar uma emoção ao outro. Então, acessam-se todos os sentidos; a biologia toma
vestígio de desejo, permitindo a aproximação. Fica evidente, portanto, que é pelo sentido do
olhar que os corpos se permitem ir ao encontro. É o momento em que o corpo se abre para o
mundo do outro. Cria-se um campo de subjetividade em que todos os sentidos são convidados
Observa-se, dessa forma, que nesse “cartaz etológico” existem dois momentos
cruciais. Para que o encontro ocorra, primeiramente, é necessário que o outro crie
sedução. O que realmente ocorre nesse campo de subjetividade é algo próximo de uma
química. É ela quem nos faz eleger o outro como nosso parceiro. Não descrendo que todos os
adornos e adereços sejam importantes, por ora nos ateremos ao estudo do odor para essa
sincronização.
etologia elegem com o nome de feromônio, considerado a porção animal do desejo. A palavra
(ACKERMAN, 1990,p.48).
Os feromônios são substâncias diferentes dos hormônios, uma vez que não se
expelem internamente no corpo, mas são expelidas fora do organismo. Por isso, são
fisiologia sem que se saiba por quê. Servem para delimitar territórios, estabelecer hierarquia
excitamos o parceiro por meio do cheiro, “estabelecendo-se assim, uma relação química entre
genitais, ao reto ou à pele, que expelem essas substâncias de caráter químico, as quais
desempenham uma função social, pois atingem um outro organismo e suas condutas sociais e
odores corporais. Para ela, essa glândula também se localiza no rosto e no peito. Desenvolve-
que sentimos ao beijar alguém está no ato de cheirar e acariciar o rosto do outro, sentindo o
seu odor.
Sibéria e na Índia, a palavra beijo designa cheiro. Para eles, o beijo é “uma aspiração
1990, p.45).
Butenandt. Ao estudar substâncias nos insetos, percebeu-se que as fêmeas tinham uma
glândula perigenital cuja secreção, quando exposta ao ar, atraía os machos. Para o sistema
atividade sexual dos machos aumenta durante o período de ovulação da fêmea. Esse
fenômeno só se altera quando o ovário é retirado da fêmea, quando o macho perde a olfação,
No ser humano talvez ainda funcione da mesma forma. Porém, é difícil afirmar
que o comportamento sexual na espécie humana seja condicionado pelo cheiro. No entanto, a
história do perfume e do próprio comportamento da espécie humana faz supor que haja sim
uma relação. Os perfumes têm importância na atração sexual dos indivíduos. Afinal, as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [92]
mulheres aspergem fortes perfumes sobre seu corpo principalmente para se tornarem mais
atraentes. Geralmente, os ingredientes desses perfumes são almíscar e algaria, que derivam de
Porém, não são somente os olores oriundos de glândulas animais que têm o poder
A fragrância de flor anuncia para o mundo que ela está fértil, disponível e
desejável, que seus órgãos sexuais estão cheios de néctar. Seu odor nos faz
lembrar, de maneira sutil, fertilidade, vigor, força vital, todo otimismo, a
esperança e a paixão da juventude. Inalamos seu aroma ardente e, seja qual
for a nossa idade, sentimo-nos jovens e prontos para o amor, em um mundo
incendiado de desejo. (1990, p.34).
meio do cheiro, não podemos ignorar que esse indivíduo é um ser cultural por excelência.
se pode transgredir nada, sob pena de retaliação segundo as sanções socialmente estipuladas.
assim, acredita-se que, pelas convenções e, principalmente, pelos valores morais e pela idéia
de tabu estabelecido pelo sexo e para a sexualidade, o sentido do olfato e, por conseqüência,
Embora ainda não se tenham identificado os feromônios humanos, eles existem e são capazes
receptores específicos para os feromônios da mesma espécie (raça) e para o sexo oposto, em
particular. Estes receptores se localizam na mucosa olfativa (...), donde partem aferências para
consciência sensorial quando comparada aos estímulos auditivos e visuais. Sem dúvida,
acabamos sendo muito mais aferidos por aquilo que está registrado numa dada cultura, numa
determinada época. No balé amoroso da vida, o “visualmônio” é que nos faz escolher entre os
eleitos. Somente nos entregamos aos estímulos que cremos poderem ser controlados pelo
nosso próprio desejo. Perder o controle sobre si mesmo só é permitido no ato sexual, em
festas de misticismo religioso ou quando se faz uso de drogas. Ainda acreditamos manter o
controle ou, pelo menos, poder resgatá-lo rapidamente. Dessa maneira, os feromônios
estiver reduzido e o encontro estiver acontecendo no mais secreto e sagrado templo, onde
todos os pudores e tabus não fizerem mais sentido. As convenções sociais terão ficado
trancafiadas do lado de fora, nas ruas, nos cafés, em qualquer outro lugar onde as normas
ser os olhos, os ouvidos ou o nariz. É preciso encontrar no outro algo que nos dê a impressão
de encanto ou prazer, que nos faça olhar, ouvir e cheirar. “Estes canais de sedução sensorial
entre os sexos:
concluímos que todos estes esforços devem ter um sentido, assumir uma
função!
Os ornamentos fugazes, tais como a maquilhagem, o pó-de-arroz ou a
pintura dos lábios permitem modificar rapidamente a nossa aparência
emocional. A mudança de vestuário, o uso de jóias, o perfume antes de sair,
revelam a nossa intenção de desencadear no outro uma emoção diferente.
(...) [Porém] Estes aparatos são fugazes. Algumas horas mais tarde, o
encanto do perfume evaporado, o vestido enrugado e a maquilhagem
desleixada não terão concedido a este contrato social senão um aparato de
algumas horas. (1989, p.204).
importante constatação:
Dando voz ao pensamento do etológo Boris Cyrulnik, fica sempre uma questão
em aberto: o que resta, no jogo da sedução, quando todo o aparato efêmero constituído pelo
O indivíduo não é limitado pelas paredes do seu próprio corpo. Qualquer ser
vivo possui em seu redor uma bolha espacial que intervém nos seus
funcionamentos fisiológicos e nas suas maneiras de estabelecer um
relacionamento.
Hall diz que em redor de cada corpo existe uma zona de 0,40 m de distância
íntima: zona dos odores inconscientes e dos odores indiscretos. É a zona das
proximidades sexuais, das violências intrusivas, das ternuras familiares.
(CYRULNIK, 1993, p.180-181).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [95]
universo ao redor do corpo que ele denomina de “bolha espacial”. Essa bolha interfere
estabelecer comunicação com o outro. As relações interpessoais dão sinal de ternura e afeto
ou agressão e desafeto a partir da reação que o corpo dispara. Podem servir para afetividade
ou para violência. Naturalmente, num primeiro momento em que temos a percepção do outro,
O que determinará uma ou outra reação serão os rituais simbólicos deflagrados pelos corpos
medo de efração ou de penetração. Desse modo, “o outro, assim que aparece no meu campo
“espaço pericorporal” de que fala Cyrulnik. Seguindo a concepção desse autor, o eu corporal
não se limita às paredes do corpo, ou seja, não podemos apagar e ignorar o espaço físico ao
redor desse corpo que constitui um campo de imenso significado. O etólogo afirma, ainda,
que não há uma precisa cisão ou divisão entre o espaço exterior e o espaço interior. Para ele,
“Em nosso redor, no exterior, existe uma bolha que prolonga o nosso espaço do interior. E
dentro de nós existe uma zona do corpo que prolonga o espaço do exterior. O espaço boca, o
espaço ânus compõem estes espaços onde a junção se efectua.” (CYRULNIK, 1993, p.183).
mundo, com os espaços ao redor. Em torno desse eixo é que se torna possível constituir
vínculos comunicacionais que permitam sua sobrevivência. O ser humano é uno com o
mundo; não é dissociável. Ele é marcado por momentos de intensa necessidade afetiva, de
agressividade. Portanto, o ser humano oscila entre esses dois tempos, da proximidade e da
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [96]
distância. Ele é um indivíduo marcado não pelo seu caráter extremista, mas pela sua
O que sustenta esse vínculo é o feromônio sexual, presente no outro, que ainda
atrai. Sabe-se que o feromônio tem grande força de atração entre os indivíduos, visto que
sexuais das pessoas. A primeira pesquisadora a fazer um experimento dessa natureza foi a
mulheres ao suor de outras mulheres em intervalos regulares, enquanto que outras dez
mulheres tiveram seus narizes expostos ao álcool. Observou-se que, “nas mulheres que
tiveram seus narizes expostos ao suor de outras mulheres, depois de um período, os ciclos
menstruais eram idênticos, enquanto que nas outras, expostas ao álcool, nada se alterou.”
amorosamente, a barba cresce muito mais rapidamente do que antes. Além disso, mulheres
que vivem afastas dos homens, em colégios internos ou conventos, entram na puberdade
muito mais tarde do que as mulheres que convivem com os homens (ACKERMAN, 1996,
p.52).
Ackerman (1996), a importância do olfato para a relação sexual humana, sobretudo para as
mulheres. A sensibilidade para os cheiros é mais efetiva nas mulheres, talvez pelo elo com o
estiveram mais envolvidas com a comida e as crianças, tendo que “farejar” qualquer coisa que
estivesse fora de ordem, algo que muito pouco tinha a ver com o homem. Durante todas as
fases da vida, a mulher tem um olfato mais desenvolvido do que os homens. E, portanto, com
base na pesquisa feita por Robert Henkin, afirmamos que “um quarto das pessoas que
1996, p.68).
Essa constatação leva crer que o olfato guarda uma certa relação com o impulso
sexual. Segundo Douglas (1998), quando perdemos nossa capacidade olfativa, também
Em sua obra Fisiopatologia oral, Douglas (1998) registra que não há somente os
feromônios ligados à conduta sexual. Existem também aqueles que se comportam como
veículos informativos. Esse autor classifica esses feromônios em três categorias: feromônios
de agregação, que servem para unir indivíduos de uma colônia quando estes reconhecem o
do grupo; e feromônio de alarme, que indica e sinaliza perigo para outros indivíduos
transposição para a esfera da comunicação humana, pois, antes mesmo de sermos seres
culturais, somos seres biológicos e, por isso, acreditamos que talvez os feromônios de caráter
dúvida, pode ser aplicado ao ser humano. Fica aqui um registro para aprofundamento dos
conjunto de realizações e regulamentações que distinguem nossa vida da vida dos animais, e
que está a serviço de dois intuitos: o de proteger os indivíduos e o de regular as suas relações
civilização, Freud elege como principal a beleza: “(...) constatamos que essa coisa não
lucrativa que esperamos que a civilização valorize é a beleza. Exigimos que o homem
civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos
objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso.” (1997, p. 45).
Porém, para esse autor, a questão da beleza não anula as outras exigências que
foram apontadas anteriormente. Seguindo esse pensamento, vê-se claramente que não é
somente pelo o que é útil que está pautado todo o desenvolvimento de uma sociedade. Freud
(1997) aponta algumas das exigências essenciais para a constituição da civilização. Dentre
elas, a limpeza e a renúncia aos instintos constituem as bases para a formação da civilização.
É provável que a civilização tenha, de certa forma, expelido dos corpos os odores
naturais que se tornaram repugnantes. A utilização de elementos que apagam nossa assinatura
cristã impõe que nos distanciemos, cada vez mais, dos sentidos de proximidade (paladar, tato
odores se tornaram algo indesejável como fonte primeva do prazer libidinal no homem
civilizado, por conta da aparente necessidade de intensa limpeza. Dessa maneira, o processo
civilizatório acabou por alterar todo o desenvolvimento libidinal do indivíduo, fazendo com
que as condições para a satisfação dos desejos fossem deslocados, como aponta Freud. Em
alguns casos, “esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos), com que
nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele.” (1997, p. 52).
civilização. Esta, de certo modo, assenta-se na renúncia aos instintos, seja através da opressão,
desenvolvimento cultural. Por meio dele é que se constituiu a força emancipatória do ser
ideológicas. Recaímos sobre aquilo que Freud (1997) denominou “frustração cultural”, que
domina grande parte dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Essa parece ser uma
luta enfrentada por todas as civilizações. Porém, é do mesmo autor que advêm algumas
Ocorre que, para ele, isso não se elabora impunemente. Se esse fato não for compensado,
muito se trabalha no campo das hipóteses. A formação dos pequenos núcleos denominados
“famílias” deu-se, segundo Freud, a partir do momento em que a satisfação genital não estava
mais sincronizada com os odores expelidos durante o período menstrual da mulher. Todo o
faro sincronizador do encontro foi guardado, anestesiado, processo que ele denominou
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [100]
“recalque do orgânico”. Por causa desse processo, perdemos grande parte da noção da
Lacan vai mais a fundo na questão do “recalque do orgânico” de que falava Freud:
do encontro: “A regressão orgânica de seu olfato, no homem, está, para muitos, em acesso à
homem com o mundo, auxiliando com toda a percepção do entorno, seja para detectar
que, para Freud está muito mais próximo da nossa condição animal. Mas que pela ocasião da
obtenção da posição ereta do ser humano, quando este passou a mostrar sua genitália e
distanciou seu nariz do chão, o olhar, devido a essa postura adquirida, predomina como
perceber seu inimigo a uma grande distância, por meio da visão, enquanto que, ainda na
posição de quadrúpede, seu instinto de preservação maior era o olfato. Essa diminuição dos
13
Ao afirmar que a aquisição da posição ereta entre os nossos antepassados privilegiou a visão em detrimento do olfato, Freud talvez tenha
ido longe demais em seu determinismo. Acreditamos que nada na cultura morre, tem um fim, mas, em certos momentos, atrofia, retroage, e
em outros desenvolve-se e evolui. Na mesma esteira de pensamento, apoiamo-nos em Boris Cyrulnik, que afirma que é “a consciência do
nosso olfato que está atrofiado.” (1993, p.179).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [101]
por uma imensa necessidade de limpeza, de se livrar das excreções desagradáveis ao sentido.
“(...) a beleza, a limpeza e a ordem ocuparam uma posição especial entre as exigências da
civilização.” (FREUD, 1997, p.47). Os excrementos são valiosos para as crianças, pois, para
elas, são parte do próprio corpo que se separou. À medida que ela vai se revestindo do seu
meio cultural, seus cheiros naturais passam a repugná-la. Por isso, existe a necessidade
extrema de limpar-se. Porém, a repúdia pelo cheirar está estritamente relacionada ao cheiro do
outro. Não se aceita o cheiro do outro, mas dificilmente se tem essa atitude em relação aos
Segundo esse mesmo autor, um terço do nosso cérebro está consagrado ao circuitos olfativos. Todos esses circuitos funcionam e mantêm
relações com outras zonas do cérebro. Vale ressaltar que essa “zona cerebral” é responsável por toda a regulação das emoções, das cargas
afetivas, circuitos de memória, estimulação endócrina que comanda as glândulas sexuais de tal maneira que os neurologistas a denominam de
cérebro afetivo.
Partindo dos pressupostos culturais, talvez, essa atrofia olfativa se deva, sobretudo, a esse aculturamento que nos tornou mais polidos,
recobrindo-nos com um segunda pele (pele da cultura), as roupas que geraram um ruído na força comunicativa dos odores. “O nossos odores
actuais são fermentados, degradados pelo vestuário, não possuindo qualquer valor estimulante, ao passo que os odores naturais possuem um
grande valor erótico.” .(CYRULNIK, 1993, p.179).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [102]
apareceu nos primatas pré-humanos, que, com a retração das florestas dos seus territórios e
com o desenvolvimento das savanas, com grandes regiões de clareiras, foram forçados a uma
adaptação do campo visual e, com isso, também foram levados a uma posição ereta.
Com a posição ereta, torna-se cada vez mais necessária a utilização das mãos e
dos olhos. O mesmo autor demonstra que, com essa postura, o Homo eretus desenvolveu
Na família dos sentidos, o olfato (ele exclui o tato) perdeu seus direitos de
primogenitura. A visão e a audição assumiram o comando. Visão e audição
se tornaram agora verdadeiramente sentidos de distância. A visão, enquanto
percepção que antecede o contato prático com as coisas, se sobrepõe
principalmente ao tato. A visão como apresentação da distância e o tato
como apresentação da proximidade, fenomenologicamente segundo suas
qualidades experienciais e em sua distribuição de papéis para a compreensão
e o conhecimento, são pólos opostos. A necessidade de empregar metáforas
provenientes do visual para tudo que se refere ao conhecimento e a outros
aspectos nessa linha é conhecida. A terminologia filosófica estabelecida
pelos gregos demonstra isso claramente, e com certeza não é uma
decorrência do fato de serem os gregos um povo visual por excelência. As
expressões de conhecimento na língua grega (...) mostram claramente uma
preponderância da esfera visual, que tem suas raízes na coisa. (PLESSNER,
1997, p.9).
Segundo esse psicanalista, o olfato tem sido recalcado pela própria condição do
ser civilizado, como se fosse o mais baixo e repugnante dos sentidos, supérfluo, assim como
desagradáveis. Como afirma Restrepo, “O odor não permite exterioridade nem distância.
Estamos imbuídos nele como estamos na existência diária acossados por forças que nos
olfato, não foi só o erotismo anal que sucumbiu, mas também, como afirma Freud, toda a
sensualidade e à sexualidade. São claros vetores da sexualidade que podem ser investidos de
afeto, prazer, ira, cólera. Com isso, toda a função sexual fora acompanhada de uma
repugnância que acabara por impedir a satisfação completa, forçando a desviar o objeto
libidinal. E, sem dúvida, o afeto e o prazer podem utilizar o odor como modo de se manifestar
à consciência: “(...) a raiz mais profunda da repressão sexual, que avança juntamente com a
civilização, é a defesa orgânica da nova forma de vida alcançada com o porte ereto do homem
Contudo, existem na Europa povos cujos fortes odores genitais que consideramos
repulsivos são recebidos como estimulantes sexuais. É realmente um foco libidinal que esses
povos recusam a abandonar. Quanto a isso, Boris Cyrulnik registra que “Em certas regiões
melanésias deve-se passar a mão sob a axila do amigo que está de partida e depois levar os
dedos ao nariz, significando assim que conservamos ainda seu traço olfativo.” (1995, p.20).
olfativos foram submetidos aos visuais, pois estes conseguiram manter um efeito permanente,
ao passo que aqueles tinham respostas estimulantes durante o período animal. Portanto,
civilização, desenvolverá aquilo que Boris Cyrulnik, na obra Sob o signo do afeto, denominou
de “cartaz etológico”:
O pensamento desse autor leva a refletir um pouco mais sobre a questão das
audição). Como estes últimos requerem mais abstração, o evento pode ter colaborado para a
que o indivíduo passa a viver no mundo da linguagem, os sentidos parecem ser anestesiados.
Essa anestesia é poéticamente trabalhada por Michel Serres em seu livro Os cincos sentidos.:
“O verbo ocupa e anestesia a carne, até escreveram que ele se fazia carne. Nada insensibiliza
linguagem, sua linhagem direta, apaga sua história oblíqua e a mensagem na anestesia do
esquecimento. Com isso perdemos os cinco sentidos.” (2001, p.200). Por fim, ele revela
ainda: “O sentido começa e pára na linguagem. Anestesia, boca paralisada. Poção.” (2001,
p.224).
Talvez tenhamos exigido do Homo sapiens muito mais do que ele pode dar. O
organismo quer viver e perdurar, e isso leva-o “a filtrar, selecionar e organizar o percebido em
mencionados durante essa discussão. É evidente que a partir do momento em que o homem
primitivo adquire a postura ereta, os sentidos predominantes e essenciais para a sua defesa
foram assumidos pela audição e pela visão. Em conseqüência dessas transformações, esse
ocorre primeiramente em outra esfera que não a dos sentidos de proximidade, pois para o
indivíduo que cercado por um caos psíquico de informações visuais e auditivas, são essas
imagens e sons que mais chamam a atenção. Desse caos psíquico, retiram-se as informações
que, para ele, sejam importantes. Com essas informações, ele elabora seu meio externo e seu
antes de trocarmos nossos mundos internos e contarmos nossas histórias, precisamos ver,
saber a quem nos dirigimos, para escolher a parte de nosso mundo interno comunicável ao
aponta Serres:
Nesse sentido, não se pode olvidar que “(...) nosso mundo humano é tanto um
mundo de sentidos quanto um mundo dos sentidos, um mundo onde nossos sentidos ganham
sentido, um mundo onde nossa sensorialidade se impregna de história, ela que governa tanto
Mas desde que o homem se tornou capaz de história, ele se tornou culpado
de histórias. O passado não morre jamais para um homem que dele faz
relatos (...). À força de narrá-lo, acaba-se dando consistência ao mito que nos
proporciona um sentimento de verdade tão autêntico quanto a percepção de
um objeto. Nossas culturas alucinadas confundem o real com a idéia do real.
Habitamos um mundo inventado por nossas palavras sem suspeitarmos do
poder delas. (1995, p.223).
Sendo assim, é inegável que nossos sentidos estão anestesiados, nas palavras de
Michel Serres (2001). Para Boris Cyrulnik, os sentidos corporais tornaram-se seletivos para
Talvez, tenhamos nos tornado seletivos demais, adentrando o mundo das palavras,
mundo ausente, que torna presente o objeto por meio da palavra evocada, e, por isso,
tenhamos nos esquecido de que nossos sentidos comungam desse mundo e buscam sobrevida
nele. E é por meio desses sentidos que captamos o mundo, e por meio deles que o mundo se
revela verdadeiramente.
e seda os sentidos. Impregnados da razão, que faz prevalecer a falsa idéia de que a linguagem
O verbo triunfante encobre com sua aquisição o que poderia dar perfume ou
sabor e o transubstancia em visto e lido e ouvido, seus canais próprios.
Isto que comes e bebes é o corpo e o sangue do verbo.
Aqui, onde compras, jaz o túmulo do pão, do vinho, do corpo e do sangue,
mortos e ressuscitados em forma de mensagem.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [107]
O verbo proíbe o sentido, sobretudo aqueles em que ele não tem o que fazer.
Triunfante, impõem a proibição, essa organização social da anorexia e do
dessabor.
A língua que mata na boca a língua que saboreia. Mata-a no coletivo, na que
diz entre nós. Isto, que se diz, reduz-se a um preço. Comerás palavras, mas,
com mais freqüência, de agora em diante, o código e a cifra. Portanto, ficarás
muito, e mais ainda, e sempre mais, enfunado deles. Nada é tão aceito como
um código, nada cresce tanto como um número. Engolirás contas. Teu corpo
invadirá o espaço, como o próprio verbo levado pelo vento, como a
sociedade fundada sobre o verbo. (SERRES, 2001, p.189).
segurança no mundo por meio dos seus sentidos, o que demonstra a pouca importância
atribuída pelo ser humano aos sentidos, quando a ele foi dado o dom do verbo.
sentido que nos escapa é o mais incontrolável dos sentidos.” (CYRULNIK, 1995, p.43).
Cyrulnik insiste em mostrar o mundo por meio dos cheiros. Porém, continua-se a
renegá-lo como se ele fosse o mais baixo dos sentidos que o homem civilizado pudesse obter.
Por isso, insiste-se em não lhe dar atenção. “Dos cincos sentidos, este ou estes é que nos
dele, tal como ocorre com os animais inferiores, porém não temos a resposta imediata, como
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [108]
nós e, como numa fatídica maneira de nos esquecermos de nossa condição próxima de animal,
com estonteantes aromas que, no mínimo, fazem-nos esquecer de nosso passado não muito
distante, apagando nossas imagens endógenas de origem olfativa que nos remetem à nossa
condição primeva, animal, que nada ou muito pouco tem a ver com esse homem racional e
Toda essa explanação sobre o olfato, desde suas raízes mais arcaicas no cérebro
humano até o seu papel naquilo que se denominou de civilização, leva-nos, neste momento,
para uma análise das mídias, mais especificamente, do texto publicitário de perfume.
CAPÍTULO IV
A IMAGEM DO CHEIRO: UMA ANÁLISE DA PUBLICIDADE
DE PERFUME
campanhas que se estendem por meses e têm o estatuto de texto publicitário, as imagens que
maneira como é apresentado ao público. Em função desse critério seleção, todas imagens
exploram um único tema: a beleza feminina. Num primeiro olhar sobre elas, vemos como
cenário, ou mesmo como ponto fulgurante do anúncio, um corpo, um rosto, uma silhueta.
Muitas vezes, um fragmento de mulher: uma mão, lábios, um torso, uma cabeleira, mas
Sem dúvida, a maneira como esses elementos são figurados, o modo como são
utilizados e dispostos na superfície desses anúncios de perfume, não é neutro. Essas imagens,
discurso em imagens que, em conjunto, não traz surpresas, mas convida a uma análise, a uma
crítica, a uma denúncia. No entanto, neste momento, não nos interessa tal abordagem de certo
modo até um pouco convencional sobre as mídias. Nossa abordagem partirá de outro
princípio. O que realmente merece ser analisado, neste momento, é como o texto publicitário
de perfume transcodifica a linguagem dos cheiros/odores para o mundo das imagens visuais, e
título de amostragem, deixaremos de fora o que a publicidade afirma a respeito das mulheres,
de perfume. Nesse sentido, procuraremos então, a partir desse momento, num olhar
panorâmico sobre a amostra selecionada desses anúncios, que elementos evocativos da teoria
O que salta aos olhos nas imagens publicitárias de perfume é que todas elas nos
remetem a idéia de higienização perfeita, sempre com o conceito de que o perfume limpa e
serve de meio para jogar com a aparência do indivíduo, tendo ainda a capacidade de construir
vínculos com as outras pessoas, de aproximar e de atrair esse outro pelo cheiro que exala
desse corpo ungido. Esse cheiro permite o acesso a outro sem que isso seja um tabu
civilizatório. Em sua grande maioria, os cenários desses anúncios contêm corpos nus
entrelaçados que remetem à idéia de relação mais íntima, de proximidade e contato físico de
um corpo com o outro, seja do mesmo sexo, o que não é uma figura muito recorrente nesse
universo dos cheiros, ou do sexo oposto. Esta é a proposta primeira dessas peças: a relação
sexual, a sensualidade por si só. Observando a presença ou não da aliança, símbolo de amor
mais estável, vê-se que essa relação pode ser fugaz ou duradoura. Ainda perseguindo essa
semântica básica: a relação caos/cosmos, reforçando a idéia de que o perfume retira o corpo
do caos da vida mundana impura e suja para transportá-lo diretamente para o mundo do
cosmos, relação que estabelecemos no capítulo III dessa dissertação no item “olfato e sexo”,
em que explicamos que esse termo do mundo estético se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’,
‘bem arranjado’, de forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal.
BLV-Bvlagari que nos remete à metáfora de que o perfume BLV é uma jóia italiana
Portanto, quem utiliza o perfume/a marca torna-se essa jóia, simbolizada também pelo colar
encontra num lugar bucólico, incomum, mas que remete aos templos e castelos dos contos
infantis. Isso é destacado pelo slogan do anúncio: “O perfume que veste seus sonhos”. Joga-se
com o campo do onírico, fazendo crer que o perfume transporta quem o usa para o mundo dos
sonhos, tornando-o real. A temática caos/kosmos se coloca nesse anúncio pela composição do
Fórum 40 que o produto que exala do frasco do perfume não é senão algo que envolve os
corpos, por um instante contagiados pela sensualidade que o cheiro do perfume evoca. De
outro lado, ainda na mesma temática de amores, sensualidade e erotismo, a peça publicitária
da Eternity – Calvin Klein retira o perfume da esfera dos amores passageiros, jogando com a
própria palavra que dá nome ao perfume: eternity. O cenário é um casal contagiado pelo
amor, mas que não é aquele de uma noite só e nada mais, mas aquele que se une para
constituir uma família, algo que sugere, de uma certa forma, também uma durabilidade maior
ou uma eternidade.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [114]
Esse ideal de corpo limpo e purificado pelo odores é bem explorado por esses
textos publicitários, que ostentam corpos sem manchas, marcas ou cicatrizes. Pode-se dizer
sem história, já que tudo que se põe sobre o corpo e no corpo compõe uma história. A idéia de
pureza é obtida não apenas pela ausência de marcas nos corpos, mas também pelo excesso de
luz e claridade nos cenários, algo que tem o poder de penetrar nas entranhas e purificá-las,
realizando uma higiene profunda que nada ou muito pouco tem a ver com o corpo biocultural.
É inegável que o corpo utilizado pela publicidade serve de suporte semântico para
idealizado sempre portadora de uma excelência vital, por uma certa cultura. A publicidade,
portanto, trabalha com um corpo específico, que difere totalmente do corpo humano vivo, que
não tem como escapar da ação do tempo-espaço, e, por conseguinte, vive de seu próprio
desgaste.
biocultural deve desejar para receber o reconhecimento social. Esse corpo que deflagramos no
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [115]
texto publicitário brasileiro, com o qual esta pesquisa trabalha, parece estar congelado no
Um corpo verdadeiramente mítico que nada lembra as ameaças que a sombra da morte
imprimem sobre as células vivas. É um corpo que parece negar a segunda lei da
termodinâmica: não transpira, não tem uma mecha de cabelo fora do lugar. Isso é, sem
dúvida, algo que está muito mais conectado ao mundo do cosmos, como afirma Hillman, do
que do caos.
alguns momentos, resgata o pensamento de Harry Pross sobre a mídia primária, quando se
hipótese de que o perfume realmente assume no imaginário das pessoas a idéia de uma
segunda pele ou roupa, algo que reveste esse corpo. Muito mais do que revestir, parece
investir, impregnar e amalgamar essa pele através dos poros, querendo alterar até o corpo
transcodificação do mundo dos aromas/perfumes para o mundo das imagens. Essas imagens
asseguram a idéia tão recorrente de caos/cosmos, os atores, modelos que se apresentam nesses
espaços como deuses, quase sempre captados em repouso. Empregam-se como imagem de
fundo: prédios, casas e outros elementos que remetem ao mundo urbano das cidades.
Naturalmente, trata-se de uma cidade ideal, onde há apenas festa e amores. É preciso esquecer
que tudo que lembre trabalho. Os corpos que estão ali são imagens, cuja função é representar
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [116]
o ideal do divino, daí emergindo um rosto, um corpo ideal liberto das impropriedades da
esfera do mundano.
Tudo nesse espaço parece calado, silencioso, ou seja, misterioso, cheio do segredo
profundo que se atribui a toda a beleza que não fala. Raras vezes isso acontece, mas nada mais
esses pedaços uma casa genérica segura. Esses cenários publicitários fazem crer que aquilo
a cidade é na verdade mito, sonho e maravilha. É uma audácia não colocar esses corpos no
publicidade não representa, mas teatraliza em tal grau que se torna uma farsa publicamente
aceita.
Opium-Yves Saint Laurent. Sabemos que existem inúmeras peças publicitárias que remetem a
essa temática, mas esta apresenta um corpo perfeito que pouco ou nada lembra esse corpo
biocultural que insiste em suar, cheirar, sujar. Ao colocar um corpo em repouso, como se se
exemplo fulgurante.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [117]
item do “Século XIX até os dias atuais”, apontamos o cruzamento da história da moda com a
história do perfume, mais precisamente o século XX, quando grandes estilistas começaram a
realizar a associação entre a moda e a perfumaria. Ou seja, as marcas consagradas das altas
costuras transferiram para o mundo dos perfumes todo o requinte e a elegância que suas
perfume está associada também a um grande nome do mundo da moda e da alta costura, as
modelos são colocadas nos cenários publicitários vestindo roupas que são verdadeiras obras
de arte. A composição desses cenários cria uma relação entre aspergir um “bom” perfume e
vestir uma roupa de alta costura. Veja-se, como exemplo, os seguintes anúncios da Opium-
Yves Saint Laurent. Observa-se que o vestido da modelo compõe numa semelhança de cores
com o frasco do perfume Opium. A mesma metáfora ocorre nos anúncios da Organza
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [118]
querer afirmar que o olhar se sobrepõe aos outros sentidos corporais. Contudo, no caminho
oposto dessa escalada dos sentidos, o anúncio da Moschino-Couture aponta que o mais
importante nesse mundo dos perfumes não é a aparência ou o que se vê. Tanto é assim que os
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [119]
olhos estão cobertos pelos cabelos, deixando o nariz e a boca em destaque, mostrando ao
leitor que o mais importante do mundo do perfume advém das experiências do olfato e do
paladar, o que, por sua vez, abre uma brecha para pensar que esses dois sentidos, olfação e
explorando olfato e gustação como os sentidos mais importantes para compreender o mundo
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [120]
dos perfumes/cheiros. E a cobra que tem grande semelhança ao vidro do perfume Inspiration-
Charles Jourdan, toma a face da modelo, encobrindo todo nariz como se somente a ela
algo da esfera da gustação, a modelo aparece com a boca entreaberta, como se, num golpe de
inspiração, pudesse sentir o gosto daquele perfume e contagiar-se com os odores através dos
sentidos de proximidade.
estado lânguido, como se estivessem tomadas de uma forte emoção. Já a terceira, do anúncio
da Moschino, apresenta-se frontalmente, com total despudor por parecer nua e cobrir somente
olhos, como se tudo ali naquele mundo fosse prazer. O que chama atenção são os lábios
vermelhos das modelos, que são verdadeiros pontos de fulga do olhar do leitor, como se o
resto dos elementos dos cenários fossem secundários. O que se almeja com esse anúncio é
transportar o leitor direto para o mundo dos prazeres do contato e das emoções, pura evocação
da proximidade. Não se trata de um prazer como outro qualquer, mas de um prazer sublimado
anúncios da Eternity Moment-Calvin Klein, em que a mulher quase nua se deixa envolver
pelos braços do homem completamente vestido no modelo ternário. O perfume serve aqui de
metáfora para algo que veste e aproxima os indivíduos. O slogan do anúncio diz: “Just one
moment can change everything” (Um só momento pode mudar tudo). No layout da peça, lê-se
a palavra “Introducing”, que conecta a frase para a marca do perfume. Portanto, um momento
pode mudar tudo, introduzindo o perfume Eternity, como se este tivesse o poder de mudar os
As imagens fixas são por natureza a construção por meio da redução do mundo do
sensível a apenas duas de suas dimensões. A fotografia se constitui pelo simples arranjo de
instantâneo. A imagem ganha tanta expressão que imediatamente faz “viver” e “falar”; o
corpo e o olhar fixados no papel dão a impressão de se animar e se tornar diante de nós algo
além de morfologias.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [122]
vivo. Muitas vezes é o olhar (aquele que a imagem cria) que é conjugado a outros elementos
encarando o leitor, observa-se que a capacidade simuladora das imagens faz crer, pela “força
emotiva” desses olhares, que ali há um corpo e que em sua face simulacra parece querer
pulsar uma vida real. A imagem de um olhar intimidativo encara o observador, convidando-o
a entrar no mundo mágico da publicidade, no qual tudo parece amor, perfeição e pulsação em
formas simuladas.
proximidade. A proposta fica mais evidente no anúncio da Hugo Boss, em que a modelo se
frasco do perfume, parece envolver os dois modelos. O fato nos leva a pensar que o perfume
apresentada no anúncio do Dolce & Gabbana light blue, porém em menor intensidade de
possamos deduzir que esse outro ausente seja o próprio leitor do anúncio.
Vale ressaltar que o que nos credencia a ler tais imagens assim é a presença da luz
de mesma cor do frasco dos perfume vermelho e azul, respectivamente, referindo-se ao Hugo
Boss e ao Dolce & Gabbana light blue. No anúncio da Calvin Klein, a cor sobre o corpo da
modelo é pálida, uma metáfora para o perfume que reveste. Mas, pela ausência de qualquer
elemento concreto que remeta ao perfume propriamente dito, permanecemos no campo das
de utilizar uma parte do corpo para representá-lo como um todo, atentamo-nos para essas
oferece ao leitor para ser possuído e devorado por esse outro que, atraído pelo “cartaz
etológico” de que fala Cyrulnik, ou o “mapa da ternura” de Michel Serres, no capítulo III, no
item olfato e sexo. Não se pode esquecer de que o perfume compõe um dos elementos
atrativos para o outro. Assim como a região do pescoço se oferece ao outro como zona de
desse outro. Nesse sentido, pode-se dizer que o pescoço é uma zona erógena do corpo. As
imagens oferecem uma pontuação interessante: especialistas em perfume afirmam que se deve
aplicar o produto no pescoço, pois seu aroma tem maior tempo de permanência quando
aplicado em pontos onde a circulação sangüínea é mais intensa, como umbigo, nuca ou atrás
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [125]
dos joelhos. Se voltarmos uma atenção especial ao universo da cultura, mais especificamente
ao mundo tropical, essas imagens que exploram o pescoço também reforçam um fetiche, pois,
nesses países não se costuma recobrir essa região. É realmente uma zona do corpo que se
expõe. Quando se transporta a análise novamente para o mundo das imagens publicitárias que
nos oferecem corpos cortados, nota-se que, de fato, geralmente se vê um busto em que o
pescoço está acessível. Quando as vemos, logo nos vem à mente um corpo totalmente nu e
pronto para vincular-se ao outro. Tal constatação pode ser observada no anúncio da Carolina
região do pescoço para o leitor do anúncio. Essa idéia é reforçada pela posição das mãos, que
Ainda devemos ater ao cabelo amarrado em forma de coque. O que mais salta ao
olhar do leitor é a de alguém que está se oferecendo completamente. Parece dizer a esse leitor:
“Venha e fareje-me. Sinta meu aroma.” Essa mesma idéia se repete nos anúncios da Dolce &
Gabbana. Porém, nessas duas peças publicitárias, o corpo aparece quase que em plano
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [126]
completo na imagem e um pouco mais recoberto por roupas, que de certa forma também são
peça, a modelo oferece o pescoço para o leitor cheirar. No entanto, ela não parece
dissimulada. Seu olhar, voltado para a frente, parece encarar o leitor e perguntar se ele é
capaz de tomá-la nos braços. É diferente do anúncio da Dolce & Gabbana, em que a modelo,
embora se encontre de frente, tem o olhar perdido no horizonte, remetendo a uma idéia de
sensualidade e prazer imediato. O contraste de luz e sombra também revela muito, na medida
em que a parte iluminada é a mesma em que se encontra o frasco do perfume, o que faz alusão
Numa proposta um pouco menos ousada, em que a modelo não parece se oferecer
ao leitor, está o anúncio da Flower by Kenzo. O corte que desconfigura a face da modelo e a
torna irreconhecível só permite ao leitor desconfiar que ela seja uma mulher tomada por uma
limpa e fresca. Tal idéia é traduzida pelo movimento dos fios de cabelo e pela blusa branca
que forma um contraste com a pele, igualmente limpa, clara, sem marcas e manchas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [128]
de aconchego e de carinho que ocorpo oferece quando aspergido pelo perfume. O olhar
frontal e entreaberto sugere uma mulher que precisa de carinho e atenção. A peça que envolve
o pescoço da modelo, dourada como o frasco do perfume e todo o cenário desta peça, chama
ainda mais atenção para a idéia do perfume como algo que envolve que estabelece vínculos e,
portanto, aproxima.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [129]
Retomemos a idéia de que o perfume recobre um corpo como se fosse uma roupa
que o outro reconhece como “boa”, “bonita”, “cara”, “barata” etc. Isto pode ser observado no
sexual. Tem-se a impressão de que o que torna esses dois corpos atraentes não é outra coisa
senão o perfume que os envolve. A idéia de reconhecimento não só pelo perfume que utiliza,
mas também por meio do cenário de fundo do anúncio que se compõe de uma cidade,
provavelmente uma grande metrópole, a julgar pelo estilo das construções. Reconhecido
também pelo outro que os observam, tanto os habitantes que os vêem em um plano interno
como o próprio leitor, externo a esse plano. Atendo-se ainda à questão do plano, os corpos
num plano mais elevado da cidade levam-nos a pensar, mais uma vez, que o perfume os retira
do mundo do caos urbano, para transferi-los ao mundo do cosmo, mais próximo do céu.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [130]
Angel, em que a modelo também parece ter sido retirada do plano mundano, da cidade grande,
para adentrar o mundo do cosmo, da perfeição. Seu corpo está revestido de uma roupa com
uma cauda enorme, que a torna uma estrela e reproduz frasco do próprio perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [131]
Como vimos no capítulo III desta dissertação, certos odores são empregados por
alguns animais, entre os quais o Homo sapiens, para atrair o parceiro sexual. Na medida em
que se substituem os odores naturais do corpo por outros artificiais, fica implícita a idéia de
que aqueles são indesejáveis, e exalá-los pode levar um indivíduo a ser repelido. A fragrância
possivelmente artificial do perfume faz seu portador cheirar a frutos cítricos, entre outras
substâncias. É a esse olor que se atribui a eficácia da atração erótica. O que ocorre no discurso
desse anúncio da Dolce & Gabbana é a naturalização do artifício, um dos mecanismos mais
eficientes da publicidade: se você consumir “isso” se tornará “isso” que anunciamos, ou seja,
mais atraente.
especificamente do mal-estar da civilização ante certos odores corporais que devem ser
“civilizados” pela supremacia perfumada da cultura, pois os odores naturais do corpo podem
nos fazer regredir à mesma condição dos homens primitivos, que eram atraídos pelos fortes
odores emanados das partes baixas das mulheres, fazendo com que esse “ser primitivo”
agarrasse sua parceira por trás. Nesse período, a ativação do prazer concentrava-se mais no
nariz do que no olhar. Em outras palavras, a esse homem primitivo era negado “ver” o prazer
baixo e da esquerda para a direita), e interpretamos que esse homem civilizado é atraído
primeiramente pelo cheiro que exala do pescoço, uma das zonas do corpo que geralmente se
encontram recobertas pelo perfume. Segundo a análise de Freud, esse homem tornou-se
atraído não mais pelo cheiro natural, mas pelo cheiro artificial e pela “força” erótica e sensual
do corpo feminino. Tanto isso é verdade que as zonas de tabu para o homem civilizado, que
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [132]
são as partes baixas e também, muitas vezes, os seios, encontram-se devidamente recobertass
e inacessíveis. Esse tabu também pode ser bem observado quando nos atemos a imagem do
anúncio em que os corpos do casal somente se aproximam por completo, havendo realmente o
contato do quadril para cima. As partes baixas não se encontram, sinalizando que o sexo
artificialmente construídos, para depois dirigir-se às partes baixas, que remetem ao seu lado
mais primitivo. Essa idéia de “curvar-se ao mundo dos perfumes civilizados” pode ser
entendida, na cena, pelo contato direto da face do modelo sobre o pescoço da mulher e,
metaforicamente, pelos vidros de perfume à direita na parte de baixo do anúncio, em que eles
4.7 O duplo
perfume: perfume como mídia, também está presente no anúncio da True Love-Elizabeth
Arden. O corpo e cheiro estão metaforicamente sinalizados pelas rosas que circundam o vidro
produto é capaz de unir e atrair as pessoas. Como observamos também no capítulo I, que se
Nesse sentido, pode-se dizer que o perfume exalado pelas rosas nesse cenário
“When we’re apart, I still feel your touch” (Mesmo de longe, sinto seu toque.). Diz-se
textualmente que o perfume/cheiro da amada é de tal forma evocativo de sua presença que,
mesmo na ausência corpórea dela, seu toque ainda pode ser sentido. Esse toque, que vem por
Outra peça publicitária também remete à idéia do duplo. Desta vez, porém, é
evocada por meio de um objeto qualquer: um lenço impregnado do perfume da pessoa amada
que a torna ainda mais saudosa. Tal como verificamos no capítulo III, nos itens Comunicação
olfativa e Por uma arqueologia olfativa, observa-se primeiramente que há uma relação entre o
cheiro e o sentimento. Ou seja, um determinado aroma pode ser associado a uma perda, a um
amor, ou ainda servir de vínculo social. Cada um de nós pode reconhecer o filho, a mãe ou a
pessoa amada pelo cheiro. Nesse sentido, a percepção do cheiro dependerá tanto da sensação
cabisbaixa, como se sentisse a ausência de uma pessoa amada cuja reminiscência olfativa lhe
provoca uma emoção forte. Há ainda a emoção e a explosão tradicionalmente associadas aos
finalidade última é vender o produto, cumpre seu papel na medida em que elabora em seu
mundo do caos, para o mundo do kosmos, da beleza, do sexo sublimado, muito distante da
idéia animal. Outro tema abordado é a emoção, sempre vinculada à idéia de perfume/cheiro
capaz de evocar uma emoção ou despertar uma sensação. Jogando com a efemeridade do
perfume, com o modo como ele se dissipa rapidamente, as relações amorosas encenadas no
plano das imagens são passageiras. No entanto, a publicidade também demonstra que os
perfumes não despertam só os amores fugazes, mas também os amores eternos ou duradouros,
exibindo mãos com alianças ou até mesmo cenas do cotidiano de uma família comum feliz. A
relação do perfume com a roupa, com algo que recobre e que veste, está presente na maioria
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [137]
dos anúncios apresentados, justificando a questão da necessidade do perfume como objeto que
enquadramento um corpo que, embora não tenha nenhuma referência real, essas imagens são
formadas por pequeninos grânulos que devem ser desejados, tocados e observados pelos
cheiros/perfume para o plano das imagens dá-se por meio da exposição de corpos-imagens
que evocam o desejo do leitor de tocá-la. À medida que esse desejo simbólico se constrói,
surge a falsa idéia de poder sentir o cheiro do perfume, tal como numa fantosmia, que é um
distúrbio do olfato em que o indivíduo tem a percepção de um odor que não existe.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [138]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da visão saturada ao olfato esquecido
nítido predomínio da visão. A visão é um sentido de distância que, ao contrário dos sentidos
de proximidade (olfato, tato e paladar), não requer a presença, possibilitando sem grandes
déficits a substituição pelas imagens, enquanto os demais sentidos exigem sempre a presença
e a corporeidade. À medida que das imagens visuais são mais valorizadas, somente assume
status de valor aquilo que se pode ver. Esse fenômeno gera um desequilíbrio comunicacional
dos sentidos, próprio do tempo da tecnologização dos discursos e, nesse sentido, percebe-se,
uma certa presença distribuída de distância e proximidade, uma vez que a visão prepara os
afetividade.
com a sua própria criação, as imagens visuais. A partir dessa inversão, em que distância se
crise. São esses os dispositivos responsáveis pelo equilíbrio das tensões e conflitos pessoais
visibilidade. Não temos nos dado conta do ambiente comunicativo ao qual estamos sendo
conduzidos: uma era de violência não somente física, mas também simbólica. É a violência
excesso de luzes de holofotes que nos conduzem a um falso presente, sem corporeidade, sem
Vivemos a era dos superlativos e das megalomanias, daquilo que Harry Pross
inabitável, um local inatingível, geralmente reservado aos deuses, seres celestiais, imateriais.
Portanto, sem corpo e sem vida (imortais). A transformação da vida em uma linha vertical tem
provocado enormes efeitos. Segundo Baitello (2005), o primeiro efeito refere-se à demolição
tridimensional por meio da transformação dos corpos em traços verticais abstratos. O segundo
é a perda dos vínculos com o indivíduo ao lado, pois os vínculos que constroem a natureza
humana estabelecem-se na horizontal. Isso mostra que o ser humano abdicou da sua
A verticalização da vida leva o ser humano à perda das três dimensões do seu
espaço de comunicação. Assim, entende Vilém Flusser que essa escalada da abstração, que
nas mais remotas origens da espécie humana, bem como de outras espécies animais, havia
uma comunicação com o corpo, seus gestos, seus sons, seus odores, seus movimentos:
sobre os quais deixava seus sinais, o homem abriu-se para um mundo das imagens, em que
que essas imagens técnicas, produzidas por aparelhos eletrônicos, são fórmulas abstratas e
dimensões, atamos o pensamento desse pesquisador ao de Kamper (2003), que aponta como
grande sacrificado nessa escalada o espaço tridimensional do corpo, pois “em seu lugar
exposição agrega às imagens um desvalor, já que, como entende Baitello (2004), não se trata
de uma crise das imagens, mas de uma rarefação de sua capacidade de apelo.
primeiramente precisamos entender que, para a nossa sociedade, já não há uma diferença
pensamento de Kamper, ao indagar a respeito desse fenômeno. Dessa forma, ao abrir mão
cadeia de imagem e simulação que nada tem a ver com a capacidade simbólica do homem,
nossa sociedade pelo o corpo, o que nos faz pensar que faltam situações que solicitem ou
espaço-temporal.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [141]
Apóia-nos o psicólogo J. Hillmam (1993, p.40), que afirma: “Tudo nos olhos e na
cabeça. O sentido corporal de orientação está perdido.” Receamos, então, que esse processo
Portanto, “quanto mais imagem, menos visibilidade, e quanto mais visão, menos
Baitello nos convida a pensar que, em nosso tempo, no qual perdura a cultura do
olhar, das imagens visuais, não perdemos lentamentema sensação do próprio corpo, do tempo
diálogo com autores de diversas áreas que parecem apontar para uma importante deflagração
nosso corpo. O corpo precisa do tempo e do espaço, pois é por meio dessas noções que ele
dialoga com o mundo. O corpo sente e tem prazeres e, muitas vezes, muito mais desprazeres,
principalmente com os sentidos de proximidade. A era das imagens, ao contrário, não nos
proporciona essas sensações, uma vez que uma imagem não tem cheiro, nem sabor, nem pode
ser sentida pelo tato. Então, questionamos: se a visão predomina sobre os outros sentidos, não
estaríamos deflagrando um corpo que agoniza por não ter mais o prazer e, por fim, também
14
Apropriamo-nos do termo “esmaecimento do afeto” empregado por Fredric Jameson (2004), como a terceira característica que diferencia
a passagem da alta modernidade para a pós-modernidade. Emprega-se esse conceito não no sentido que todos os afetos, todo sentimento ou
emoção, toda a subjetividade tenha desaparecido na pós-modernidade. Ocorre a transformação dos objetos em mercadorias, bem como a
transformação das figuras humanas, que se transformam em mercadoria e se transformam na própria imagem. O esmaecimento do afeto é “o
fim do ego burguês, ou da mônada, sem dúvida, traz consigo o fim das psicopatologias desse ego. (....) No que diz respeito à expressão de
sentimentos e emoções, a libertação de qualquer sociedade contemporânea, da antiga anomie do sujeito centrado (...) libertação de qualquer
sentimento porque não há mais a presença de um ego.” (2004, p.43).
Para maiores esclarecimentos sobre a temática, indicamos a leitura da obra: JAMESON, F.. Pós-modernidade: a lógica cultural do
capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2004.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [142]
A primeira e incisiva resposta que vem à tona é positiva. A prova cabal que
ataques ao reduto do Hezbollah, no sul de Beirute, que adverte: “Para quem entra, um aviso:
distância e como eles são sempre evocados e explorados pelos meios de comunicação de
massa: as imagens, sejam elas visuais ou sonoras, já não chocam mais, não só pela exacerbada
utilização desses sentidos, mas também pela rarefação da capacidade de apelo. Concordamos
com Roland Barthes (1978) em sua obra La chambre claire, que afirma que as imagens de
grande apelo, com explícita força emocional, já não mais chocam nem comovem, porque já
sofreram por nós. O olfato, por mais que queiramos, é o sentido que nos escapa pelo fato de
não ser convidado ao banquete dos sabores e dessabores do mundo. Se as imagens já não nos
pensamento de Cyrulnik, “(...) entre os seres vivos, ao erguer-se, teria podido submeter-se
hipnose desse indivíduo. Como afirma Cyrulnik (1996), os odores colocam em movimento,
Com o olfato podemos comover e fazer agir sobre o outro. Ao passo que
com os outros órgãos dos sentidos o podemos cativar, tomar a sua
consciência e pô-lo na expectativa. Se cativar, por uma sonoridade, uma
imagem, uma encenação ou uma palavra, concentro as suas actividades
físicas e mentais na sensoridade que organizei, em sua intenção, na sua
direção....para tomar! E o outro está de acordo com essa intrusão sensorial,
porque é delicioso ser cativado. É um acontecimento sensorial e afectivo
intenso que nos torna cúmplices daquele que nos cativa. É muito diferente de
uma captura, em que o outro se apodera de nós quando nos opomos. (1996,
p.95).
já que:
(...) a molécula move e comove, a pressão física capta tocando, ao passo que
a gustação e o olfacto afloram a boca e o cérebro do nariz. Estas
estimulações sensoriais imobilizam por um breve instante, exactamente o
tempo de provocarem um movimento de atracção ou de fuga, de cheiro ou
de mastigação. O que não acontece com as imagens visuais e auditivas que
captam e põem na expectativa. (1996, p.98).
nos da impureza e do pecado que o corpo representa. Cada vez mais, acatamos os valores
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [144]
apregoados pelo sistema, negando o corpo e suas formas, em favor de um corpo-imagem, que
já não quer e não precisa mais sentir. Como demonstra Restrepo, “o interdito que separa a
intelecção da afectividade parece ter origem em que, frente a uma percepção mediada pelo
distância, como são a vista e o ouvido. Nossa cultura é uma cultura audiovisual.”(1998, p.32).
nosso tempo tem feito com o corpo e seus sentidos. Em nenhum momento pretendemos
pregar um regresso, um retorno à condição humana mais arcaica, mas compreender um tempo
em que a visão foi extremamente explorada. Há uma exacerbação da visão e, assim, uma
fadiga do olhar, que já não vê mais, uma vez que essas imagens perderam muito da sua
capacidade de apelo.
Nesse jogo de linguagem, fica sempre o gosto amargo de um corpo que não é
suscitado por inteiro, um corpo em que a razão se torna pilastra de sustentação. Não se requer
os sentidos de proximidade para si, na angústia primeva de não ter que sentir em si aquilo que
está impregnado no outro. É um corpo que padece de uma patologia e ainda não há um nome
que se possa atribuir às deficiências contemporâneas: padecemos de uma cegueira, apesar dos
olhos; de uma falta de tato, apesar dos dedos, mão e pele; uma inexpressiva olfação, apesar do
O que realmente salta aos olhos é que a mídia primária, o corpo, está em plena
agonia. Somos seres que não conseguimos lidar com a mídia primária, embora nos
vangloriemos de ser uma das mais competentes e complexas máquinas que medeiam a
comunicação humana.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [145]
Pode-se dizer que essa deficiência recai sobre a mídia primária, e, neste trabalho,
educação, oferece uma brecha para pensar e aplicá-los aos fenômenos midiáticos
vetorial da comunicação, crê-se que a ausência e a não-solicitação do olfato fazem pensar que
já nenhuma ou muito poucas escolhas são realmente feitas pelos sentidos; escolhe-se por meio
fomentar uma intimidade, uma proximidade afetiva com o aluno, perpetuando-se uma
distância corporal que reforça a posição de poder do mestre, que agora se torna verdade
15
Aplicando uma outra denominação médica ao fenômeno midiático, no que se refere principalmente aos anúncios
publicitários de perfume, não nos tornamos anósmicos, mas sofremos de fantosmia, que é a percepção de um odor que não
existe. O que fazem os meios de comunicação, como aponta Susan Sontag (2004), quando se refere a compulsão de
fotografar, ou seja, “a necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo
estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de
imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. (...) Que nos impeliu em “transformar a experiência em si em um
modo de ver.” (SONTAG, 2004, p.35).
Para maiores elucidações sobre o assunto, recomendamos a leitura das seguintes obras: LALWANI, A. K.; SNOW Jr., J. B.
Distúrbios do olfato, da gustação e da audição. In: KASPER, D. L.. et al... Harrison: medicina interna. v. 2. Rio de
Janeiro: Mc.Graw-Hill 2006.
SONTAG, S. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [146]
Por isso, é fundamental pensar numa semiótica do corpo. Para isso, é necessário
pensar primeiramente numa pedagogia dos sentidos. É o corpo saindo de seu labirinto
sensorial, desnudando-se para o mundo e fazendo-se vivo por meio dos seus próprios
sentidos.
Pensar numa semiótica do corpo, numa estética, é pensar antes naquilo que James
Hillman denominou aisthesis. A idéia já está bem definida no próprio sentido da palavra: a
faculdade de sentir por meio dos sentidos, “um faro para a inteligibilidade aparente das coisas,
seu som, cheiro, forma de falar para e através das reações do nosso coração, respondendo a
olhares e linguagem, tons e gestos das coisas entre as quais nos movemos.” (1993, p.21).
para que tenhamos realmente a percepção do mundo e do outro, de nottia, ou seja, “formar
noções verdadeiras das coisas a partir da observação atenta – notar” (1993, p.21), “notar” aqui
encontram nos arquétipos ou modelos que o representam e nem nos objetos, mas nas
percepções de nossa mente sobre esse objeto. É realmente necessário insistir no titanismo
midiático e resistir a ele, para não permitir que a razão titânica do “não sentir” prevaleça, mas
os sentidos corporais. Cada vez mais, não queremos mais sentir o mundo no sentido de nottia,
Cyrulnik, crê-se que os poros estão fechados, anestesiados. Sentimos, cheiramos, ou melhor,
percebemos aquilo que o Grande Titã quer que percebamos. Utilizando uma expressão
habermasiana (1990), o sistema tem colonizado o mundo da vida. E o mundo da vida tem-se
deixado apropriar pelo sistema, que suga energia desse mundo e devolve excrementos.
Estabelece-se uma verdadeira relação paranóica entre eles, criam-se “relações enganosas entre
o produto e o que se fala sobre o produto.” (Hilman, 1993, p.16). Sem dúvida, esse
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [147]
bombeamento de energia do fluxo contínuo, num único sentido (mundo da vida para o
interrupção (consumismo), a euforia de comprar sem pagar (cartão de crédito) e o vôo das
idéias que se tornam visíveis e concretas nas revistas e anúncios de televisão.”(Hilman, 1993,
p.16).
É preciso haver consciência de que não podemos jogar para debaixo do tapete
excesso de razão, mas antes: “(...) compreender que há sempre na emoção algo de razão e na
razão um tanto de emoção, embora se tente, a partir de diferentes óticas, afirmar o contrário.
Além disso, já não é possível separar a razão da emoção: não podemos deixar que
abrindo nossos sentidos para o mundo,ou seja, “Pensar de acordo com uma lógica do sensível,
aberta à captação de diferença, é prestar atenção a esses vaivéns afetivos que dão conta de nossos
toques e nossos encontros.” (RESTREPO, 1998, p.38). Por fim, damos voz ao pensamento de
Hillman, que nos revela uma nítida brecha para rompermos com o titanismo midiático e que
nos convida a sentir o mundo sem os excessos desenvolvidos pelos meios de comunicação de
massa.
psíquico, porque não estivemos no Mundo das Trevas, a terra dos mortos.
Estamos simplesmente na caverna de Platão, drogados pelo que está em
nossas próprias cuias, paralisados, entorpecidos.
Meu alerta não é bem aquele clássico: acorde e veja; mas, em vez disso, o
dos sentidos, o senso comum. O inimigo não é invisível, intangível.
Podemos cheirar o titanismo, tem gosto, fere os ouvidos, as membranas e o
globo ocular, os dedos. Nossos sentidos tocam e recuam e se fecham para o
mundo, o mundo comum está insensível aos sentidos e, também, à
linguagem do sentido, à linguagem comum e descritiva de adjetivos e
advérbios. .(HILLMAN, 1993, p.151).”
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