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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

JOSÉ RODRIGO PAULINO FONTANARI

A IMAGEM DO CHEIRO: O PARADOXO NA


PUBLICIDADE DE PERFUME

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO
2008
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

JOSÉ RODRIGO PAULINO FONTANARI

A IMAGEM DO CHEIRO: O PARADOXO NA


PUBLICIDADE DE PERFUME

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e
Semiótica sob a orientação do(a) Prof.(a), Doutor(a) Norval
Baitello Júnior.

SÃO PAULO
2008
Banca Examinadora

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---------------------------------------------------

---------------------------------------------------
DEDICATÓRIA

Aos meus pais


AGRADECIMENTO

Ao CNPq – Conselho de Desenvolvimento Científico


e Tecnológico.

Ao Prof. Dr. Norval Baitello Jr., orientador sempre


presente e entusiasta com esse orientando.

Á grande amiga, Marcela Benvegnu que se tornou


figura mestre nesse percurso acadêmico com sua
leitura atenta e carinhosa com os meus delírios e
seu entusiasmo mesmo nos momentos mais
complicados desse percurso acadêmico.

Ás amigas inesquecíveis que fiz durante este


mestrado, Cymara Apostólico, Cynthia e Priscila
Magossi. A elas meu muito obrigado.

A Tânia Cosci Nascimento e Maria Elisa Granschi,


se cheguei aonde cheguei é porque me apóie sobre
ombros de gigantes.

Á profa. Dra. Leda Tenório da Motta, pelo


acolhimento e por proporcionar meu crescimento
acadêmico.
EPÍGRAFE

“Muitas filosofias referem-se à vista: poucas ao


ouvido; menos crédito ainda dão ao tato e ao odor.
A abstração recorta o corpo que sente, suprime o
gosto, o olfato e o tato, conserva apenas a vista e o
ouvido, intuição e entendimento. Abstrair significa
menos sair do corpo do que o partir em pedaços:
análise.” MICHEL SERRES.
RESUMO

FONTANARI, José Rodrigo Paulino. A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade


de perfume. Dissertação (Mestrado): Departamento de Comunicação e Semiótica,
Pontifícia Universidade Católica, 2008.

A presente pesquisa aborda a modalidade comunicativa que denominamos “comunicação


olfativa”. Compreendemos o perfume como forma de mídia. Investigamos a história do
perfume em diversas civilizações e seu uso nos rituais. Inserimos algumas descobertas a
respeito do olfato na comunicação do ser humano desde seus primeiros anos de vida. Uma vez
que a civilização contemporânea tem privilegiado os sentidos de distância (a visão e a
audição) em detrimento dos sentidos de proximidade (o olfato e o paladar), procuramos
verificar como se dá a tradução do perfume para o código visual. Para tanto, são analisadas
peças publicitárias veiculadas nas revistas femininas Claudia, Elle, Marie Claire e Nova no
período de 1993 a 2004. O trabalho apóia-se nos conceitos de “ecologia da comunicação”
proposto por Vicente Romano, de etologia da comunicação de Boris Cyrulnik e também de
mídia primária, secundária e terciária de Harry Pross. Na mesma proporção do padecimento
dos sentidos de proximidade, observa-se o esmaecimento dos vínculos do afeto. Para a
elaboração desta pesquisa, elegeu-se a Semiótica da Cultura, que entende o corpo, o perfume
e o olfato como textos da cultura possuidores de grande capacidade informativa em sentido
amplo. Por meio dessa semiótica, serão constituídos os paradigmas para focar o objeto de
estudo e alinhavar as três esferas de pesquisa (corpo, perfume e olfato). Essa tríade revela-se
como uma das possíveis maneiras de manter os vínculos comunicativos interpessoais de
proximidade.

Palavras-chave: Comunicação olfativa; Comunicação interpessoal de proximidade; Ecologia


da comunicação; Publicidade; Perfume; Corpo.
ABSTRACT

The current research approaches the comunicative modality we name: “olfactory


communication”. We understand the perfume as a media form. We have investigated the
history of the perfume in several civilizations and its use in the rituals. We have inserted some
discoveries regarding the smell in the communication of the human being since their early
age. As the contemporary civilization has privileged the senses of distance (the sight and the
hearing) to detriment of the proximity senses (the smell and the taste), we have attempted to
verify the translation of the perfume for the visual code. In such a way, therefore executives
advertising propagated in the feminine magazines Claude, Elle, Marie Claire and Nova in the
period of 1993 the 2004 are analaysed. The work is supported in the concepts of “ecology of
the communication” proposed by Vicente Romano, of the ethology of the communication by
Boris Cyrulnik, as well the concepts of primary, secondary and tertiary media of Harry Pross.
In the same proportion of the suffering of the proximity senses, we observe of the bonds of
the affection. To carry out of this research, Semiotics of the Culture was chosen, wich
understands the body, the perfume and the smell as cultural possessing texts of great
informative capacity in ample direction. Through this semiotics, the paradigms will be
constituted as object of study object and to tack the three spheres of the research (body,
perfume and smell). This triad shows as one of the possible ways to keep the interpersonal
communicative bonds of proximity.

Key-words: Olfactory communication; Interpersonal communication of proximity; Ecology


of the communication; Advertising; Perfume; Body.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................10

CAPÍTULO I UMA PEQUENAHISTÓRIA


DO PERFUME

1.1 Um pouco de história: do faro ao olor.................................................................. 14


1.2 A história do perfume ...........................................................................................20
1.2.1 A Antiguidade .............................................................................................20
1.2.2 A Idade Média e o Renascimento................................................................26
1.2.3 Século XVIII ..............................................................................................28
1.2.4 Do Século XIX até os dias de hoje ..............................................................29
1.3 Perfume e Religião ...............................................................................................34

CAPÍTULO II OS SENTIDOS NA COMUNICAÇÃO

2.1 Comunicação e seus sentidos ...............................................................................42


2.2 A ambiência comunicacional................................................................................49
2.3 Corpo e perfume: o perfume como mídia.............................................................51
2.4 Perfume e a imagem do cheiro ............................................................................. 58

CAPÍTULO III CORPO, PERFUME E OLFATO:


TRÊS FOCOS PARA UMA COMUNICAÇAO
INTERPESSOAL DE PROXIMIDADE

3.1 Comunicação olfativa ...........................................................................................66


3.2 Por uma arqueologia olfativa................................................................................76
3.3 Fisiologia olfativa: o processo
de decodificação da mensagem olfativa ............................................................... 81
3.4 Olfato e sexo.........................................................................................................84
3.5 Olfato e civilização...............................................................................................98

CAPÍTULO IV A IMAGEM DO CHEIRO:


UMA ANÁLISE DA PUBLICIDADE
DE PERFUME

4.1 Das escolhas .......................................................................................................109


4.2 O que dizem as imagens? ...................................................................................111
4.3 Imagem: superfície refinada ...............................................................................121
4.4 Metonímia: uma parte que fala pelo todo........................................................... 124
4.5 O corpo reconhecido...........................................................................................129
4.6 A civilização do olfato........................................................................................131
4.7 O duplo ...............................................................................................................133
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................149


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [10]

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa nasce de uma incessante observação deste pesquisador sobre

os textos publicitários que a mídia brasileira veicula. Tal olhar sobre esse mundo segue

motivado pela grande importância e desempenho da publicidade na sociedade contemporânea.

Atualmente, os meios de comunicação, juntamente com a publicidade, tornaram-se

verdadeiros balizadores do gosto e do desejo de uma sociedade e de uma cultura. Numa

investigação preliminar, constata-se que, na maioria das vezes, os anúncios impressos de

perfume contêm uma possível representação do cheiro. O cheiro propriamente dito, isto é, a

imagem olfativa que convida a conhecer a fragrância e a essência do perfume, não aparece. A

partir dessa observação, investigaram-se essas representações elaboradas pelos anúncios, na

busca de compreender esses cenários. Esta pesquisa também se preocupa em discutir se essas

representações são dotadas de algum traço mimético (verbo-visual) que as remetam ao cheiro,

ou se esses cenários surgem simplesmente como suscitadores para o consumo. Nesse sentido,

o projeto de pesquisa visa lançar luz sobre essa zona de opacidade, representação do cheiro

presente na comunicação contemporânea. Discute-se, sobretudo, a questão da comunicação

por meio de um sentido corporal de proximidade: o olfato. Direcionamos nossos estudos

sobre a olfação e sua capacidade comunicativa para o mundo humano e para o

estabelecimento de uma comunicação interpessoal de proximidade.

A dissertação órbita em torno de três esferas: publicidade, perfume e comunicação

olfativa. Uma vez que não há, até o presente momento, nenhuma pesquisa que trate

integradamente desses três temas, partimos dos estudos isolados sobre cada um dos assuntos.)

Quanto ao estado da arte da presente pesquisa, muito pouco ou nada se tem escrito

em relação à comunicação de proximidade, sobretudo no que se refere ao olfato e à

importância do papel que eledesempenha na comunicação humana. Sabemos que o tema só é


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [11]

mencionado por outras áreas do saber, como a Etologia, com destaque para Borys Cyrulnik,

de quem cito a obra Os alimentos do afeto. No entanto, não é somente nessa obra, que se

encontrarão vestígios capazes de sustentar a pesquisa. Entre outras, merecem também

destaque Do sexto sentido, Sob o signo do Afeto e Memória do macaco, palavra de homem.

Cabe ressaltar que nesta pesquisa não haverá referência à obra literária de Patrick

Süskind, Perfume – A História de um assassino. O livro é a odisséia de um anti-herói

convertida em uma questão de sentido: nascido em um mercado na Paris de 1738, em meio a

restos de peixe e dejetos diversos, Jean-Baptiste Grenouille não tem cheiro. Pelas inúmeras

pesquisas que se basearam nesse livro, entendemos desnecessário tratar dessa mesma obra.

Acreditamos que a opção por novos caminhos literários possibilitaram enxergar a matéria de

outro prisma. Esperamos, assim, contribuir mais para essa área multi-interdisciplinar de

pesquisa denominada Semiótica da Cultura.

Pretendemos lançar luz sobre a comunicação humana enfatizando um dos sentidos

de proximidade, o olfato. Portanto, este trabalho dedica-se a estudar o sentido do olfato e do

perfume para a comunicação interpessoal de proximidade e o sentido da comunicação no

texto publicitário de perfume. Para tanto, selecionamos 29 peças publicitárias de perfume

feminino veiculadas de janeiro a dezembro, ao longo dos anos de 1993 a 2004, em revistas

femininas brasileiras. A seleção de 29 peças dentro de um universo de mais de 1000 anúncios

de perfume feminino deve-se à sua representatividade, uma vez que os anúncios escolhidos

são aqueles que apresentam expressivo conteúdo de elementos icônicos e verbais que

possibilitam verificar um dos objetivos desta pesquisa, que é saber se há ou não uma justa

amarração entre o cheiro do perfume garantido pelos elementos químicos que o compõem, e a

representação imagética que a publicidade faz do perfume, ou seja, uma possível

representação do cheiro.

Levou-se em consideração também o fato de que elas dedicam a maior parte do

seu espaço interno à publicidade e, portanto, apresentam maior número de anúncios,


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [12]

sobretudo de perfume feminino. Optou-se por estudar a mídia impressa pelo seu caráter mais

intimista e pela permanência propiciada pelos tais veículos em comparação aos audiovisuais.

O método predominante na fase de observação empírica será o dedutivo, partindo

de vários princípios tidos como verdadeiros para chegar àquilo que se quer provar. A partir do

conhecimento de outros, buscaremos o conhecimento particular. Segundo esse método, as

explicações científicas devem ter uma forma de dedução lógica.

Entre os procedimentos metodológicos utilizaremos a documentação indireta

obtida através de pesquisa bibliográfica, a partir de referências publicadas em livros, revistas

especializadas e sites na Internet, analisando dados científicos existentes sobre a publicidade,

o perfume e o olfato como importante meio de comunicação de proximidade no ser humano.

Fez-se um mapeamento empírico dos textos publicitários a fim de revelar traços miméticos

das imagens do cheiro com o cheiro do perfume propriamente dito. Para tanto, utilizarmos

ferramentas conceituais apresentadas nos fundamentos teóricos para cortar, analisar, decifrar,

inquirir e, se possível, até interpretar os dados empíricos encontrados.

As representações dos cheiros veiculadas nos anúncios publicitários serão

analisadas como textos culturais, tais como os define Ivan Bystrina em Tópicos de Semiótica

da Cultura. O autor considera que “textos são complexos de signos com sentido”. Os textos

em si preenchem uma função comunicativa, uma função de participar, de informar, no sentido

amplo da palavra. Mas eles preenchem também outras funções, como por exemplo a função

estética ou emotiva, a expressiva, ou ainda outras funções sociais” (BYSTRINA, 1995, p.4).

Portanto os paradigmas norteadores deste trabalho virão da Semiótica da Cultura.

Será por meio dessa ciência que buscaremos concatenar as três esferas (publicidade, perfume

e comunicação olfativa).

Procuramos abordar, primeiramente, um pouco da história do perfume, e de como

os sentidos, em especial o olfato, têm servido como meio de comunicação para o homem).

Depois, buscamos demonstrar como o olfato se apresenta na cultura humana, mostrando as


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [13]

transformações e adaptações pelas quais esse sentido passou com a evolução da espécie

humana e a passagem para uma vida social.

No capítulo I, “Uma pequena história do perfume”, abordamos os principais

momentos históricos que marcaram a evolução e a transformação da elaboração dos odores

desde os sistemas mais rudimentares até os processos mais sofisticados e industriais.

Juntamente com essa evolução, procuramos demonstrar como a cultura humana vem

construindo sua relação com o mundo dos odores. Para tanto, revelamos como os

perfumes/odores servem de elo entre os mundos pagão e religioso

Em “Os sentidos na comunicação”, segundo capítulo da pesquisa, procuramos

expor os paradigmas da Semiótica da Cultura, que busca estudar o sentidos da comunicação e

os sentidos na comunicação. É nesse modelo que todo o texto se baseia, buscando demonstrar,

de acordo com o pensamento do semioticista Harry Pross, que o corpo é a primeira mídia,

servindo muitas vezes de suporte de significação para o perfume.

O capítulo III, “Corpo, perfume e olfato: a tríade para uma comunicação

interpessoal de proximidade”, traz um estudo do sentido do olfato desde o processo de

decodificação do cheiro pelo nariz até as transformações culturais pelas quais esse sentido

corporal passou com o processo de evolução da espécie humana para a vida em sociedade.

Por fim, no capítulo IV, “A imagem do cheiro: uma análise da publicidade de

perfume”, observamos como o texto publicitário lida com esse sentido corporal, que não

aparece de maneira explícita no anúncio, e como recorre de maneira indireta aos recursos

retóricos para tentar simular a presença de um cheiro por meio da imagem.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [14]

CAPÍTULO I
UMA PEQUENA HISTÓRIA DO PERFUME

1.1 Um pouco de história: do faro ao olor

Ao propormos fazer uma viagem à história do perfume e da higiene não

pretendemos ser totalmente fiéis à linha cronológica. Tomamo-la somente como base para a

elaboração de um panorama histórico sobre o assunto e como os costumes de banhar-se e

perfumar-se tornaram-se um ritual nas diversas sociedades. Para isso, elaboramos um recorte

em períodos, considerando os principais momentos que possibilitam pensar o perfume como

mídia do homem desde seus primórdios.

Nesse sentido, a questão do cheiro passa pela história da higiene do corpo. A

limpeza do corpo confunde-se com a utilização dos cosméticos, dos perfumes e das roupas,

pois consagra o olhar e o olfato. Seja em que período for a limpeza, a higiene tem como

objetivo privilegiar a aparência.

Durante vários séculos, especialmente entre os séculos XV e XVII, quando grande

parte da Europa era assombrada pela peste, a higiene do corpo era tida como meio facilitador

do contágio, pois acreditava-se que o corpo era um organismo poroso e que, à medida em que

fosse feita a higienização, os poros se abririam e facilitariam a contaminação do organismo.

Tinha-se a crença de que a água, principalmente a morna, abria os poros aos ares nocivos. E

mais: a água era acusada de tornar os órgãos frágeis. Durante muito tempo, a higiene esteve

intimamente associada a uma idéia negativa, muito diferente da que temos atualmente. Assim

nos apresenta Georges Vigarello, em sua obra O limpo e o sujo, a questão da limpeza: “(...) O

medo restringe a prática da água. A imagem do corpo permeável, com o seu contexto de

riscos mal dominados, torna o banho difícil de imaginar.” (1985, p. 28).


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [15]

As práticas de higienização do corpo, durante grande parte do século XVII,

restringiram-se a uma limpeza a seco. Em vez da lavagem, utilizavam-se toalhas brancas

umidecidas que eram friccionadas pelo corpo. O que era permitido e higiênico um século atrás

era a utilização da água para lavar o rosto e as mãos. No século XVII, o líquido passou a ser

algo não-utilizado: a água prejudicava a visão, provocava dores de dentes, de garganta. De

certa maneira, ainda persiste a idéia de que a pele porosa é suscetível a males.

(...) O uso da água restringe-se. Mas em benefício de uma vigilância e de um


sentido do pormenor que preservam a norma e até a reforçam. A higiene
assim comentada pode, rigorosamente, constituir uma nova exigência. O
gesto de limpeza não foi abolido. Apenas se inflectiu e é diferente. A
representação do corpo influiu. Mas, para o ter em conta, é com certeza
necessário esquecer qualquer relação com critérios de hoje, admitir, em
particular, a existência de uma higiene que percorre vias diferentes da
ablução. (VIGARELLO,1985, p. 23).

É preciso ressaltar que, durante a Idade Média, o banho nas denominadas estufas

de banho não tinha a finalidade de limpeza; estava muito mais associado à transgressão, ao

jogo, à água como um elemento festivo. A água é explorada como um prazer, ligada à

sensualidade.

O banho é, sem dúvida, uma cena de divertimento social: ágapes em que os


convivas comem e se divertem. (...) A água permite fruir melhor dos
sentidos. (...) esta prática aproxima-se da arte da hospitalidade, da diversão e,
afinal, da sensualidade. Estas festas públicas ou secretas confirmam que a
água é explorada, em primeiro lugar, como um prazer. É calor e
comunicação mais ou menos sensual. (VIGARELLO, 1985, p. 36).

No século XVIII, o conceito de limpeza altera-se totalmente. Está intimamente

associado à idéia da aparência: o que importa é o que se vê. Nesse tempo, valorizam-se os

critérios aristocráticos da aparência e do espetáculo. Prevalecem as idéias de civilidade e não

as de saúde, e é inegável que a aparência prevaleça nesse jogo. As roupas deveriam ser

brancas, porque o branco se impregna da sujidade do corpo, servindo como uma esponja que

expurga toda a sujeira.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [16]

Quanto ao vestuário, a moda e a limpeza acabam por se confundir no século


XVII. A higiene é, em primeiro lugar, o respeito pelos cânones. Esta
sobreposição de sentidos entre linha e limpeza só se produziu porque a
aparência desempenhou um papel fundamental. Foi preciso atribuir um
privilégio sistemático ao exterior para alterar a própria definição. A limpeza
tinha de ser essencialmente a dos tecidos para que a palavra pudesse incidir
no vestuário até o próprio se modificar. O sucesso dessa nova definição não
vem senão confirmar a visão da higiene no século XVIII: esta participa de
uma arte da representação. Mais geralmente, integra-se num modelo social
circunstanciado: a corte como exemplo e espetáculo. Não se trata apenas de
oferecer sinais vestimentares ostensivos. Trata-se de cultivar, quase
conscientemente, uma prática de ilusão. A arte da corte é claramente uma
arte de representação. (VIGARELLO, 1985, p.69).

Já no segundo terço do século XVIII, os cenários, no que se refere à higienização

do corpo, mudam consideravelmente: os banhos ocorrem com a imersão total do corpo. No

entanto, isso não quer dizer que a higiene tenha se tornado seu objetivo primeiro, pois nem

mesmo ocorrera a familiarização com esse ato. Esse súbito interesse pelo banho, utilizando-se

da água, deve-se principalmente às inúmeras monografias médicas a seu respeito. O banho era

tido como um meio de aliviar os humores. Passa-se a exigir uma higiene setorial, segundo as

partes do corpo, em que o suor permanece e produz um odor desagradável. Neste período já

existe uma relação mais íntima entre o indivíduo e suas parte do corpo; isso se deve ao

aparecimento de espaços privados para efetuar a higiene pessoal e, principalmente, ao

aparecimento de objetos próprios à limpeza, tais como o bidê, a bacia e o jarro de porcelana

que ornamentavam os quartos de banho da época.

Dessa forma afirma Vigarello:

(...) Uma higiene íntima, discreta e pouco comentada conduz certamente a


outras vias. Mas a higiene continua a ser prisioneira do trabalho clássico
sobre a aparência. A sua razão de ser essencial ainda continua a ser a
ostentação. Ora, a renovação vai precisamente num sentido diferente. É o de
tornar-se mais funcional, ao encontrar, por exemplo, outras legitimidades,
como a da saúde e do vigor, em particular, e sobretudo as imagens
mecânicas de que a água é portadora, que a higiene vai mudar de sentido.
Um paradoxo reside no facto de uma parte das transformações futuras passar
pela ostentação do luxo, ainda dominante: uma higiene que se afirma contra
valores da aparência e que não carecerá da aparência, é preciso que se diga,
de conotações sociais. (1985, p.91).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [17]

Neste século, ainda ocorre uma delimitação entre a natureza e o artifício, que

demarcou uma crítica aos códigos aristocráticos de higiene que impunham os artifícios, os

trajes demasiadamente ostensivos, para uma condição mais espontânea, simples, contra aquele

excesso de simulação. “Só há fraqueza e vaidade nestes pós e pomadas odoríferas que a

presunção teve a infelicidade de inventar e que a sensualidade dos ricos emprega nos seus

preparos com a profusão tão perigosa quanto condenável. É também objeto de crítica social

que a cosmética significa moleza e debilidade.” (VIGARELLO, p.108).

Essa alteração da visão de higiene, mais voltada para o “interior” do corpo, fez

com que o conceito de higiene se modificasse, colocando em xeque a idéia de que a esta

correspondia somente a esfera do visível, da aparência e dos adornos.

(...) foi precisamente a transformação dos critérios que deslocou a visão de


higiene. Foi a atenção explícita ao interior da aparência que veio pôr em
causa a ligação durante muito tempo aceita entre a higiene e os adornos,
impondo ao vestuário outras referências que não as do espetáculo. A
superfície e o perfume não podem ser exclusivos. O cenário se altera. A
distinção clássica, a do século XVII e do início do século XVII, já não é
atingida unicamente nos seus perfis é-o também estruturas. (...) Altera-se o
próprio sentido do termo higiene. (...) A higiene não está ligada unicamente
aos sinais do ajustamento do vestuário. Diz respeito a um objecto mais
directamente corporal. (...) A higiene depende tanto menos da aparência
imediata quanto é capaz, precisamente, de alterar a sua composição.
(VIGARELLO, 1985, p.110).

No início do século XIX o termo higiene já adquire um significado mais

científico: não se refere somente à qualidade de ser saudável (hygeinos significa, em grego, o

que é sadio), mas “(...) Trata-se de realçar as suas ligações com a fisiologia, a química, a

história natural, insistindo nas raízes eruditas.” (VIGARELLO, 1985, p.134).

A partir de então, inicia-se a prática de uma higienização mais completa, em que

há a utilização do sabão como instrumento de limpeza. É por meio dele que se remove a

sujeira do corpo. O cosmético por excelência passa a ser o sabão. A higienização ganha

importância à medida que, cada vez mais, sabe-se a sujeira que obstrui os poros impede as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [18]

trocas gasosas tão importantes para a pele. Vigarello aponta que “a pele mais limpa é mais

leve, funciona e respira melhor (...) e o sono, nessas condições, produz um repouso mais

reparador, que proporciona a todo o organismo um novo vigor, uma nova energia.” (1985,

p.135).

No início do século XX, quando das descobertas de Pasteur sobre os

microorganismos que não podem ser vistos a olho nu, o comportamento higiênico altera-se

muito. Os indivíduos passam a realizar não só a limpeza das partes externas, mas também das

as regiões mais secretas, tudo para se livrar do inimigo invisível. No fim do século XX, o

desenvolvimento científico que abarcou todo esse século configurou um novo panorama da

higiene corporal, que muito se aproxima da realidade atual. Nesse tempo, a limpeza atinge

toda pele, nas zonas mais invisíveis e ocultas, aprimorando aquela higiene da Idade Média,

que se concentrava somente nas partes visíveis (mão e rosto); é necessário limpar o oculto e o

visível também.

Por fim, é necessário dar voz mais uma vez ao autor que, de maneira clara e

concisa, define bem o comportamento higiênico que indiscutivelmente ainda se aplica ao

nosso tempo:

O espaço íntimo escavou-se até à vertigem, apoiado em publicidade de boa


forma, em fantasias consumistas, em desejos de mais bem-estar. Cuidados
pessoais cada vez mais interiorizados, e simultaneamente cada vez mais
explicitados, muito distantes, em todo o caso, do utilitarismo higiênico.
Promoção de práticas narcísicas em que a casa de banho permite secretos
relaxamentos. E também prazer que se anuncia. Por fim, multiplicação de
produtos e objectos, codificando esse mais bem viver para alimentar subtis
misturas entre ilusão e realidade. O banho é atravessado pela alquimia
complexa dos publicitários. É o seu objecto, sofrendo as suas modas e as
suas imagens. A insistência em valores personalizados, a afirmação de um
hedonismo, muitas vezes de encomenda, vieram substituir laboriosas
explicações higiênicas. Esta higiene actual necessária para ser bem
entendida, de um olhar atento sobre o individualismo contemporâneo e os
fenômenos de consumo. (VIGARELLO, 1985, p. 175-176).

Nesse trecho fica evidente como a publicidade contemporânea focou-se na vida e

na qualidade de vida dos indivíduos, ditando e determinando produtos e usos que não se sabe
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [19]

ao certo se se referem a um sonho, uma fantasia, ou se tratam da realidade e aplicabilidade à

realidade. Os meios de comunicação, sobretudo a publicidade, tornaram-se um grande

sincronizador da vida social, estabelecendo os parâmetros do bom, do bonito e do belo, como

se fossem mercadorias prontas na prateleira dos boticários e perfumarias. No pensamento de

Harry Pross (1987), tem-se que os meios de comunicação acabam por conferir uma violência

simbólica e criar um ritual que sincroniza o tempo de vida com o tempo da mídia.

Observando a história da higiene, percebem-se dois momentos distintos:

primeiramente, um todo voltado à luxúria e à aparência (o que importa é o que é visto); em

seguida, uma segunda fase em que o importante é a higienização, como um dispositivo do

saber que possibilita a conservação da saúde. Na atualidade, parece que isso se mesclou de tal

forma que é necessário estar limpo, estar cheiroso, estar em ordem. Porém o que prevalece e

qualifica o outro é aquilo que se vê nele e se reconhece como bom, bonito e belo. Nesse

contexto, é pertinente pensar no perfume, no quanto ele tem servido ao corpo, à luxuria, e

muito pouco à comunicação. O importante na era midiática é a marca, o valor de status

agregado ao produto por meio da publicidade. O cheiro propriamente dito muito pouco

importa. Afirma Renata Ashcar: “Nos dias de hoje, saturados de sexo com tanto consumo

erótico, talvez seja o tempo de voltarmos ao excitante universo do olfato: inalar

profundamente o rastro perfumado do amante, deixando que seu perfume excite o desejo e

crie imagens voluptuosas.” (2005, p.53).

Talvez seja conveniente retomarmos à história do perfume e resgatar os

significados associados à sua utilização.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [20]

1.2 A história do perfume1

1.2.1 A Antigüidade

Na busca pelo resgate histórico do perfume, remontamos ao significado da palavra

perfume, que vem das palavras latinas per (através) e fumum (fumaça), e quer dizer: “através

da fumaça”. Segundo a crença, os incensos aromáticos produziam densas nuvens de fumaça

através das quais orações e pedidos viajariam mais rápido até os deuses, bem como evocariam

as almas dos mortos. Os incensos atraíam bons fluídos, da mesma maneira que conectavam os

humanos às divindades, encaminhando suas preces e agradecimentos aos deuses2.

É no Egito que se encontram registros escritos e pictóricos que relatam

informações a respeito dos costumes da época em que já existiam dados sobre a arte da

perfumaria. Os egípcios produziam aromas extraídos da maceração de pétalas e folhas que

serviam como aromatizadores que, misturados com óleos, leite ou mel, produziam pomadas e

loções que prometiam, já naquela época, eterna juventude ou simplesmente uma pele macia,

hidratada e protegida do sol escaldante do Egito. Para os egípcios, o perfume tinha

fundamental importância para o campo da higiene pessoal. O cuidado com a higiene do corpo

era muito valorizado. Usava-se maquiagem colorida, por meio da qual se realizavam

verdadeiras obras-primas de pintura cosmética.

Na Ilha de Creta, onde se desenvolveu por volta de 3000 a 1100 a.C. a cultura

cretense, foram encontradas pinturas que revelam uma sociedade bastante elegante. As

1
As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
ARCKERMAN, D.. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996.
BARRILLÉ, E.; LAROZE, C.. The book of perfume. Paris: Flammorion, 1995.
2
Cabe aqui citar George Duby (2001) em sua obra Eva e os Padres, que lembra a aversão da Igreja do século XII
aos cosméticos, e o perfume não é senão um tipo de cosmético. Maquiagens, pastas depiladoras e tinturas
falsificam o corpo, enganam os sentidos e fazem com que Deus não mais reconheça as criaturas que criou. As
prostitutas romanas eram apelidadas de rufias por causa da cor exuberante dos cabelos tingidos. O latim rufus
significa ruivo. O uso de cosméticos (do francês cosmetique, deriva do grego Kosmetikós) e tinturas valorizava a
mercadoria dos prostíbulos romanos. Na Idade Média, rufia cai em desuso ante o avanço predatório de seu
equivalente masculino, rufião. É quando chega ao auge o ato de associar artifícios de embelezamento à vida
promíscua.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [21]

mulheres usavam jóias e vestidos finos e penteados bem elaborados, e os homens

comungavam dessa mesma apreciação, exibindo seus corpos com porte atlético. Essa

sociedade era conhecida por suas elaboradas toaletes, composta por banhos, depilação e unção

com perfumes e óleos. Esta cultura teve contato com os egípcios e gregos. No fim de seu

período, Creta recebia barcos com produtos de luxo do Egito. Esses barcos traziam perfumes,

dentre os quais os de lírios e rosas eram os favoritos dos habitantes da ilha.

A cultura grega também era apreciadora dos incensos e aromas, acreditando atrair

por meio desses artifícios a atenção dos deuses. Há várias passagens na “Ilíada”, de Homero,

em que há referência a perfumes e a deuses que recorriam a eles para fascinar outros deuses

ou outros homens. Um exemplo disso é a descrição que Homero faz do banho de Hera, esposa

de Zeus. Ela untava todo seu corpo com óleos aromatizados, na presença de Zeus, e o olor

expandia-se por “toda a terra e todo o céu”. A história da deusa Afrodite também está

intimamente interligada com o perfume, uma vez que, segundo a crença, ela emergiu nua das

espumas perfumadas do mar, dentro de uma concha, levitando sobre ervas fragrantes.

A história grega confirma muito daquilo que a mitologia conta a respeito da

importância do perfume para essa cultura. Por volta de 800 a.C., as cidades de Atenas e

Corinto exportavam óleos de flores e plantas maceradas. Desde então, os aromas tornaram-se

populares entre os gregos, que eram verdadeiros cultores da arte de misturar essências

perfumadas a resinas, gomas e bálsamos. Os aromas também influenciaram os atletas, que

adoravam impregnar seus corpos, bem como os poetas, que os amavam, e, por fim, as

mulheres, que se tornavam ainda mais atraentes e belas.

Por volta de 700 a.C., Sólon, legislador ateniense, tentou de maneira vã banir o

uso de perfumes, tido como sinal do luxurioso estilo de vida da Pérsia. Mais tarde, com a

conquista de Alexandre, o Grande, muito dessa cultura influenciaria a Grécia e seus costumes.

Ao conquistar a Grécia, Alexandre colecionou sementes e plantas, entregando-as a

seu professor Teofrasto, a quem foi atribuído a criação do jardim botânico. Ele foi também
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [22]

autor dos primeiros tratados sobre cheiros, escrito por volta de 330 a.C. Nesse livro ele

apresenta detalhadamente receitas de preparados aromáticos e perfumes, indicando prazos de

validade e a finalidade terapêutica à qual cada formulação se destinava, seja para fins

emocionais ou estados mentais. Relata-se ainda que os perfumistas gregos procuravam os

sótãos, que são lugares escuros e frescos, pois o calor e a luz solar despojavam os perfumes de

seu olor. Essa é uma lição válida até hoje. Na vida daquela época, os temperos e os

condimentos utilizados na culinária continham pétalas de rosas moídas. O vinho era

aromatizado com mirra, essências de flores e mel perfumado. As pessoas ungiam seus corpos

com perfumes antes e depois das refeições. Segundo a lenda, Dionísio, o deus do vinho,

adorava adicionar à bebida um buquê constituído de violetas, rosas e jacintos.

Os romanos não tinham o costume de utilizar cosméticos. Porém, quando

entraram em contato com as culturas: etrusca, fenícia e grega, passaram a apreciar seu uso. Na

era do Império Romano, o uso de perfumes excedeu todos os limites: o consumo de mirra e

incenso durante este período causou desequilíbrio na natureza. No século I a.C., importaram-

se da Arábia em torno de quinhentas toneladas de mirra e incenso, que eram utilizados em

todas as cerimônias importantes. O imperador romano Nero queimou a produção de um ano

de incenso no funeral da imperatriz Poppaea. Os famosos banhos romanos usavam muitos

perfumes. Estabelecem os registros que, no século IV d.C., Roma contava com onze banhos

públicos e oitocentas e cinqüenta casas de banho privadas. Os romanos banhavam-se e

utilizavam em abudância cremes, rouges e cosméticos para os cabelos. Alguns aplicavam

vários ungüentos para diferentes partes do corpo. Havia até para as solas dos pés.

Os perfumistas usavam essências naturais da própria Itália e, com a extensão do

Império, tiveram contato com produtos provenientes de outras regiões. A flor preferida dos

romanos era a rosa. Essa planta exerceu um enorme fascínio nesse povo. Com ela, Roma

enfeitava as ruas e casas. Os corpos também eram adornados e perfumados com rosas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [23]

Roma, tal com a Grécia, preparava verdadeiros banquetes que deveriam, sem

dúvida, saciar todos os sentidos, privilegiando o do olfato. Nos banquetes, além de receberem

a oferta de alimentos, os convidados eram saudados com deliciosas fragrâncias de flores,

ungüentos perfumados e espirais de incenso. Recebiam, ainda, fragrantes grinaldas de flores e

folhas para colocar na cabeça, como uma coroa, ou no pescoço, como um colar. Antes e

depois das refeições,queimavam-se incensos. Durante o banquete, eram postas pequenas

tigelas de água-de-cheiro intercaladas entre os pratos para que os convidados pudessem lavar

os dedos entre uma iguaria e outra. Vale ressaltar que Roma contribuiu para a indústria do

perfume, estimulando a criação de rotas de tráfego comercial com a Arábia, a Índia e a China,

além de contribuir para o incremento da indústria de fabricação de vidros.

Na cultura indiana, a utilização do perfume permeou cada religião e cada faceta da

cultura. O país era o jardim do mundo, com vasta lista de aromas utilizados com fins

religiosos e medicinais. Os jardins, foram introduzidos no século XVI por Babur, primeiro

soberano mongol, cuja dinastia reinou na Índia de 1526 a 1858. O imperador Jahangir,

descendente de Babur, restaurou um antigo jardim indiano na Caxemira para sua esposa Nur

Jahan. O jardim foi nomeado Shalimar, que significa “residência do amor”. O ensinamento de

identificar odores faz parte até do Kama Sutra, célebre livro indiano a respeito da arte de viver

e amar que data do século IV, abordando a utilização de fragrantes bálsamos nos rituais de

banho e na arte da sedução.

É inegável a variedade de flores e fragrâncias indianas, devido às condições

geoclimáticas extremamente favoráveis das selvas úmidas que ocupam grande parte das

pradarias do Himalaia. Há vários cheiros associados à Índia: o sândalo, com seu óleo

fragrante e suave, que faz lembrar o delicado toque de uma rosa; o patchuli, considerado

ingrediente chave para a perfumaria moderna; o vetiver, muito presente nas fragrâncias

masculinas. O jasmim é uma planta típica do vale da Caxemira. Diversificou-se em mais de

quarenta espécies e ficou conhecido na perfumaria moderna como “a flor”.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [24]

Os árabes favoreceram muito a difusão de fragrâncias, devido ao talento para o

comércio com que os conhecimentos foram espalhados, favorecendo a perfumaria e

oferecendo ao mundo sua imensa variedade de inventos químicos e farmacêuticos. No século

II a.C., eventos coletivos, tais como jogos atléticos promovidos pelo rei sírio Antíocos

Epifanes, eram abertos com um desfile em que duzentas mulheres traziam ânforas com

perfume para ser borrifado na platéia e nos participantes. Foram eles os inventores do

alambique (árabe al-lanbīq), que fazia uso da serpentina de resfriamento. Esta foi criada pelo

alquimista Ibn-Sina, conhecido como Avicena (980-1073), que preparou a primeira água de

rosas do mundo, isolando o perfume das pétalas em óleo. Essa invenção representou um

grande avanço na história da perfumaria e culminou, na Idade Média, com o desenvolvimento

das técnicas de destilação de plantas em larga escala.

No século I a.C., os estudos avançados sobre química, principalmente os relativos

à destilação, foram registrados no Livro das Ervas assírio. Dele constam as matérias-primas

mais utilizadas na época: madeiras odoríferas que compunham a estrutura dos templos onde

eram realizadas as oferendas aromáticas aos mortos e aos deuses, com incenso e fumigação.

As fragrâncias faziam parte do cotidiano da cultura islâmica. Trata-se de um povo

que tinha uma notável higiene e cultivava o prazer pelos sentidos, principalmente pelo olfato.

Eram queimados incensos nas casas, nos palácios e nas tendas, e não podiam faltar em

comemorações.

Na busca comercial das especiarias revelou-se a rota da seda, que inclui a China

nas transações transcontinentais (século I a.C.), ligando-a ao Mar Negro. Essa cultura também

valoriza os aromas e seus efeitos terapêuticos e prazerosos. Como exemplo, tem-se a cânfora,

que era apreciada como estimulante gástrico, chá calmante, tempero culinário ou sachês para

perfumar as roupas. Os perfumes estavam presentes nos rituais religiosos e nos espetáculos de

dança. Os chineses também aromatizavam a comida das cortesãs com almíscar, para que,

quando sua pele fosse tocada e aquecida durante o ato de amor, exalasse seu perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [25]

A sofisticação da cultura chinesa chegou ao Japão entre os anos 600 e 1300. Os

japoneses realizavam o koh-do (“caminho do cheiro”), ritual que elevava os odores à

categoria da arte no qual era associada uma seqüência de incensos a poemas. Ou seja, cada

um dos participantes criava versos perfumados a partir das memórias olfativas a que cada um

deles era remetido ao cheirar o incenso. Os japoneses acabaram por elaborar 54 ideogramas

que representam cheiros, criando uma linguagem escrita para os aromas.

No que se refere ao cotidiano, os quimonos eram aromatizados numa caixa

especial. As mulheres dormiam com uma touca cheirosa para os cabelos. Os incensos eram

utilizados como relógio, pois, pela sua qualidade, era possível calcular o tempo que levava

para queimar. As gueixas cobravam seus clientes pelo número de incensos queimados.

No período que corresponde à Alta Idade Média, entre os séculos V e X, a

perfumaria foi abandonada no Ocidente, depois do fim do Império romano. As ervas e aromas

eram utilizados nos mosteiros para fins medicinais e farmacêuticos. A Igreja Cristã condenou

o uso de incenso, considerado instrumento de idolatria, e os perfumes, como acessórios

frívolos da luxúria. Nesse período, portanto, as ervas eram utilizadas com fins medicinais. A

primeira faculdade de medicina da Europa foi fundada em 1220 em Montpellier, na Provence

francesa, cujo solo e situação climática eram perfeitos para o cultivo de ervas aromáticas.

Em 1320, os italianos aperfeiçoaram o processo de destilação do álcool. Assim,

logo surge a primeira destilaria de Módena. A partir disso foi possível a criação das spirituous

waters, “esplêndidas águas” ou “águas espirituosas”, como eram denominados os primeiros

perfumes e as bebidas alcoólicas. Em 1370, inspirada na beleza da rainha da Hungria, surge

aquela que seria a precursora da água-de-colônia: a chamada “Água da Rainha da Hungria”,

que originou o primeiro perfume batizado e à base de álcool.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [26]

1.1.2 A Idade Média e o Renascimento

O que restou da arte com a queda do Império romano no século V não foi a

perfumaria diretamente, mas vestígios de farmacologia e medicina preservados pelos monges

nos jardins dos mosteiros até o século XI. As ervas eram tinham uso na medicina, mas não na

perfumaria. Em 1220 em Montpellier, na Provence francesa, cujo solo e clima eram perfeitos

para o cultivo de ervas aromáticas, foi fundada a primeira faculdade de medicina da Europa.

O processo de destilação de álcool foi descoberto em Alexandria no século II.

Porém, em 1320, em Modena, os italianos, aprimoraram o processo a ponto de isolar o álcool

a 95%. Deram a esse líquido o nome de aqua mirabilis. Os primeiros perfumes verdadeiros,

essências diluídas em álcool e não mais em leite, mel ou óleo, surgiram nesta época.

Após cinqüenta anos da descoberta do álcool, Elizabeth da Hungria inspirou o

nome do primeiro perfume, o Hungary Water, feito com extrato de rosa e lavanda diluído em

álcool. Segundo a lenda, o eremita que fez o perfume garantiu que ele preservaria beleza da

rainha até a morte. Parece que funcionou, pois, aos setenta e dois anos, ela casou-se com o rei

da Polônia. Os métodos de destilação continuaram se desenvolvendo e possibilitaram a

extração das mais variadas essências. Por um longo período os perfumes à base de álcool

eram bebidos para refrescar o hálito.

A expansão do comércio com o Oriente resultou no aparecimento de muitos

produtos exóticos nos mercados europeus, inspirando artesões, tecelões e ceramistas.

Chegaram do Oriente informações sobre as ciências e sobre a saúde, renovando o interesse

pela higiene. Membros de classes mais abastadas da Itália adquiriram o hábito de tomar banho

e lavar seus cabelos uma vez por semana. Veneza tornou-se o berço dessas renovações graças

a seu privilegiado lugar geográfico, que centralizava as rotas comerciais. Nessa região,

encontravam-se as novidades aromáticas que se espalharam pela Itália e tornaram-se moda

entre os mais ricos. As mulheres carregavam consigo bolas de prata, conhecidas como
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [27]

pomanders, contendo essências. Leonardo da Vinci realizou experimentos como infusões de

flores e de ervas em álcool, botões de flor-de-laranjeira e óleo de amêndoa. A rosa voltou a

tornar-se popular. Nos jantares italianos, usava-se água de rosas com lavanda para as mãos até

que o garfo e a faca viessem a ser utilizados, no final do século XVII. As águas de rosas e

outros perfumes eram feitos nos monastérios.

Em 1533, Francis I, filho de Henrique II, casou-se com a florentina Cartarina de

Médici, que trouxe à França a arte e a sofisticação da Renascença italiana. Seu perfumista

particular Renato Bianco veio com ela para Paris, onde estabeleceu uma loja e ensinou à

França a arte da perfumaria. Nesse século a França, principalmente, a cidade de Grasse, na

Provence, especializou-se na arte dos perfumes mais do que qualquer outro lugar do mundo.

O interesse pela higiene e pelos cuidados com o corpo cresceram entre os franceses, que até

então os negligenciavam.

Luis XVIII (1601-1643) introduziu o hábito de usar perucas perfumadas com

talco e luvas aromatizadas. A peste só seria vencida no final do século, o que manteve em

voga os hábitos de higiene, além de profiláticas simpatias populares como usar laranja

recheada de alho para evitar doenças ou sair às ruas com um buquê de flores aromáticas ou

um lenço embebido de perfumes. Os jardins franceses eram elaborados para repelir os

sórdidos odores pestilentos. Luís XIV (1638-1715) era muito sensível a odores e seu

perfumista particular foi incumbido de criar um perfume para cada dia da semana. Assim, a

indústria de perfumaria crescia na França.

No século XV os ingleses apreciavam os aromas trazidos pelos mercadores de

Veneza. No século XVI, sob o reinado da rainha Elizabeth I, renasceu o interesse pelos odores

e outras artes renascentistas. As damas utilizavam sachês e pomanders de rosas secas nos

decotes. No palácio de Elizabeth, haviam quartos destinados à fabricação de fragrâncias e

muitas pessoas eram incumbidas dessa tarefa. A soberana banhava-se uma vez por mês. Num

livro de 1625, Francis Bacon descreve como o banho era praticado. Antes de se banhar, a
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pessoa devia esfregar-se com óleo e pomadas. Em seguida, devia ficar duas horas no banho, e

depois enxugar-se com uma toalha impregnada de aroeira, mirra e açafrão para provocar a

respiração dos poros. Após passar 24 horas enrolada nessa toalha, a pessoa aplicava pelo

corpo ungüento de óleo, sal e açafrão. Textos de Shakespeare focalizam com freqüência as

lavandas, violetas, mentas e outros aromas, principalmente as rosas. Com a fundação da

Companhia das Índias Orientais, a Inglaterra diversificou seu comércio de fragrâncias.

1.2.3 Século XVIII

Nos séculos XVI a XVIII, quando o Renascimento se expandiu, a perfumaria

pôde se desenvolver. A receptividade de coisas exóticas e dos aromas instigantes, que

simbolizam a luxúria e o prestígio, também propiciou o desenvolvimento do perfume.

A água de colônia foi o mais celebrado aroma do século. Sua origem está na

Itália e na Alemanha, mas sua reputação foi criada na França. Um barbeiro italiano nascido

perto de Milão mudou-se para Colônia, na Alemanha, para melhorar de vida. Em 1709,

começou a produzir a Aqua Admirabilis a partir de flores e ervas típicas da Itália. O produto

foi bem aceito pelos moradores de Colônia e o negócios começaram a prosperar, incentivando

que outros negociantes abrissem lojas de perfumes na cidade. As tropas francesas que

paravam na Colônia durante a Guerra dos Sete Anos levaram a água de colônia à França.

O século XVIII ainda foi marcado pelo estilo rococó que viu durante o reinado de

Luís XV e sua amante Madame de Pompadour a moda das saias armadas e dos cabelos

empoados. Pela influência que tinha, Madame Pompadour inspirou toda a corte de Versailles,

popularizando o banho com sabonetes de lavanda e outras flores com um toque herbáceo.

Com as novas técnicas de extração de essências, muitas fábricas desenvolveram-se na região,

premiada com um período de expansão e desenvolvimento. Também nesse século,


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [29]

desenvolveu-se uma técnica conhecida como enfleurge, por meio da qual era possível extrair

óleo de sementes como amêndoa e damasco. Na França, a literatura também privilegiou o

tema, dando lições de alquimia com receitas práticas e econômicas.

1.2.4 Do século XIX até os dias de hoje

Após a Revolução Francesa, a indústria de perfume e de outros produtos

cosméticos consumidos pela aristocracia sucumbe. Mas, quando Napoleão Bonaparte é

nomeado imperador da França e torna sua mulher Josefina imperatriz, os perfumistas,

vidreiros e artesãos, que fabricavam as mais finas iguarias, vendiam seus produtos tanto para

a aristocracia quanto para a classe média. Nesse momento, o país passa a ser o maior produtor

de artigos de luxo. O governo ainda deu incentivo para pesquisas científicas, incluindo estudo

de óleos essenciais. Josefina ditou tendências de moda feminina que remetiam à Grécia, com

seus modelos decotados, fluidos e de cintura alta. Ela gostava do aroma do patchouli, adorava

o perfume das rosas e apreciava o almíscar mais que qualquer outro. Napoleão ditava moda

também para os homens, com suas calças justas e seus casacos alongados. O imperador era

neurótico com relação à higiene. Colocou o banho na moda, bem como os cuidados com o

corpo.

Luís XVIII retoma ao poder, e a França entra em inúmeras crises internas. Mesmo

assim, as cidades francesas de Grasse e Paris, que eram cidades complementares da

perfumaria, foram ganhando reputação na produção de perfumes de alto estilo. Os perfumes

eram produzidos artesanalmente, desempenhavam sua fórmula social como parte do luxo

diário e necessário de toda mulher, encantando a nobreza e a alta burguesia européias com

doces fragrâncias e seus charmosos frascos.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [30]

Com a desastrosa queda do império de Napoleão III e com o fim da desastrosa

guerra franco-prussiana, em 1877, Paris se abala, mas recupera e inaugura a fascinante Belle

Époque. De 1870 até a Primeira Guerra Mundial, a arte de viver podia ser desfrutada por mais

pessoas do que em épocas anteriores. Essa era testemunhou o nascimento da aviação, a

invenção dos automóveis, do telefone, da energia elétrica e do cinema. Paris foi inundada com

visitantes, que vinham em luxuosos navios visitar a capital artística do mundo, que exibia

esculturas de Rodin, quadros de Monet e músicas de Debussy. Em 1830 haviam sido

descobertos os solventes químicos, que possibilitaram aos perfumistas compor aromas a partir

de essências florais nunca antes utilizadas, dando um toque especial à Belle Époque, com uma

variedade maior de aromas. Com o desenvolvimento da química orgânica, os perfumistas

puderam criar essências sintéticas.

No ano de 1868, o inglês William Perkin criou o coumarin, um aroma sintético

precursor de muitos outros que o seguiram mais tarde, como a baunilha, o almíscar, a cânfora,

a violeta e os demais aromas que podiam ser extraídos de flores naturais a partir de um

método conhecido de extração dos lírios do vale, da gardênia e da lilás.

O século XX foi marcado por dois grandes estilistas: François Coty, conhecido

pela sua impressionante capacidade de distinguir os elementos que compunham um perfume,

e Paul Poiret, que foi um dos maiores estilistas de Paris, realizando a associação entre moda e

perfumaria. Essa união propagou-se durante os anos 1920. Os grandes estilistas incluíam em

suas coleções uma fragrância exclusiva como o Channel nº. 5. Tendência que se mantém até

os dias de hoje.

Atualmente, a tecnologia tem auxiliado muito na sofisticação e no

desenvolvimento da perfumaria. Os computadores ajudam a analisar as moléculas

responsáveis pelo aroma das plantas, o que permite ao perfumista recriar aromas cada vez

mais parecidos com os da própria natureza.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [31]

Os parágrafos acima sintetizaram a história do perfume. Daqui em diante,

analisaremos o que mudou no imaginário do homem com a entrada em cena das mais

diferentes fragrâncias.

Observamos que no decorrer de toda a história da higiene do corpo e a do próprio

perfume, este tem a função de jogar com a aparência e encobrir a natureza, como que para

manipular melhor um resguardo entre o olhar e o corpo. “O perfume é um utensílio modelo

nesta arte da aparência: é tanto mais enganador quanto escapa às referências visíveis. (...) Este

uso permitia mesmo, em certas condições, adiar a mudança quotidiana da

camisa.”(VIGARELLO, 1985, p. 72).

Vigarello também aponta um pensamento de certo modo instigante, citando

Bomare em sua obra Dictionaire d’histoire naturelle (1964): o olfato limitado dos homens,

em comparação com os animais, deve-se aos “excessos de odores fortes de que os homens

estão constantemente rodeados.” (BOMARE, apud VIGARELLO, 1985, p.111).

Resta pensar que talvez seja pelo excesso de olores que tenhamos perdido, ou

melhor, amortecido, o nosso canal de comunicação olfativa com o mundo e, portanto,

tornamo-nos incapacitados de caminhar, semioticamente, pelo mundo do cheiro.

No século XVII, com as mudanças na higiene, as roupas brancas assumem

importância. O requinte e o bom gosto tornam-se os pilares de um paradigma social. Entram

em debate, portanto, os odores fortes, advindos de um costume da época de comer alho e

outros condimentos para espantar a fadiga e combater certas doenças. Esta crença está

encerrada. Cria-se nesse momento a distância entre os odores requintados e os outros tidos

como mais baixos. (VIGARELLO, 1985, p.73).

Essa passagem demonstra que o cheiro/olfato é um universo puramente cultural,

que em certa medida nos escapa, porque nem tudo que temos para sentir é culturalmente

aceito. “(...) todo sentido tem um sentido. O olfato é profundamente cultural e, no entanto,

esse sentido que nos escapa é o mais incontrolável dos sentidos.” (CYRULNIK, 1995, p.43).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [32]

É inegável o papel de simulador, de disfarce e de aparência, que o perfume

desempenha. Porém, também, é tido como purificação. Assim, afirma Vigarello:

O perfume desempenha (...) todas as funções. Está directamente associado a


um objecto de higiene. Seduz o olfato. Mas é ao mesmo tempo, purificador.
O inverso imediato de sujo e também correção. Todos os valores da
aparência passaram para os do operacional. O perfume limpa. Elimina e
apaga. A ilusão tornou-se realidade. (1985, p.74).

Os olores completam os jogos de aparência, tornam-se espetáculo, prolongam a

imagem da roupa e das partes visíveis da pele. Andar perfumado pelas ruas é questão estética.

Porém, revestir o corpo com um perfume, por exemplo, Yves Saint Laurent, cumpre um papel

de seguir a moda.

Na segunda metade do século XVIII, os critérios de distinção mudaram: “a

higiene não é feita só para o olhar”, diz Vigarello. “Foi a atenção explícita ao interior da

aparência que veio pôr em causa a ligação durante muito tempo aceita entre higiene e os

adornos, impondo ao vestuário outras referências que não a do espetáculo. A superfície e o

perfume não podem ser exclusivos.” (1985, p.110).

Portanto, nesse século o jogo da aparência perde força à medida que a crença de

que “os odores pertencem menos à higiene do que certos gostos depravados ou a um certo ar

da moda (...)” (VIGARELLO, 1985, p.111). Todo o poder mágico de dissimulação agregado

ao perfume é questionado. Até então, acreditava-se que os perfumes eram capazes de corrigir

os odores do corpo, mudando sua matéria íntima e, num certo sentido, até eliminando-os. Essa

crença chega ao fim. As práticas higiênicas requerem outros métodos. O perfume desempenha

a função de máscara. Além disso, ganha o significado de gosto para o prazer.

Acreditamos que, atualmente, o perfume assume a função de simulador, de

máscara do corpo, dos seus odores naturais, suprimindo nossa assinatura natural em

detrimento de uma assinatura cultural em que o odor exalado só é o do socialmente aceito, à

medida que o outro o reconhece como bom e bonito. É a cultura narcisista que perdura em
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nosso tempo e que a mídia, sobretudo a publicidade, tem sustentado e reforçado no imaginário

coletivo. O papel do perfume na sociedade contemporânea pode ser apresentado desta

maneira: “Vivemos hoje (...) em um mundo em que o perfume não desempenha um papel de

destaque, como ocorreu na história mais remota da humanidade. Emanações indefinidas de

odores se confundem, dificultando a interpretação da sutil linguagem dos cheiros – dotada do

poder de capturar a essência exata do momento (...)” (ASCHAR, 2005, p.15).

Essa passagem nos faz pensar como fica a questão dos cheiros nas grandes

metrópoles, como São Paulo, onde temos a incessante exalação de odores que advêm da

queima de combustível, das chaminés das indústrias, das próprias ruas, dos lixos e dos corpos

das pessoas aglomeradas. Pensamos na possibilidade da perda lastimável, nessas grandes

metrópoles, da capacidade comunicativa profunda dos cheiros, uma vez que sua “linguagem”

é muito sutil e a exalação de diferentes odores acaba por confundir a recepção desse código

olfativo. Assim, é possível imaginar que nosso processo de civilização recalcou o sentido do

olfato, como veremos mais adiante com o auxílio de Freud (1997). cujo pensamento talvez

permita lançar a hipótese de que nos tornamos, num certo sentido, um ser anósmico.

O perfume não está associado somente ao paganismo, mas também ao mundo do

divino. Por isso, torna-se importante analisar os rituais humanos que buscam ligar o homem

ao divino por meio dos cheiros, para então analisar o papel do perfume na comunicação

humana.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [34]

1.3 Perfume e rituais3

Não é só ao significado pagão e referente ao mundo baixo dos homens mortais

que tem servido o perfume. Nas mais diversas civilizações, tribos e povos, existem indícios

que atestam o uso do perfume, ou melhor, do olor exalado pela queima de ervas, plantas e

incensos em rituais religiosos. O perfume é o meio de religar o homem ao sagrado.

É fato que o perfume assume, em vários povos, a função de um canal de

comunicação com os céus, um verdadeiro aliado do homem na busca pelo divino. Mais do

que isso, é o próprio sinal da presença divina no mundo: “inalar um perfume corresponde a

nutrir-se espiritualmente com a força do cosmo.” (ASCHAR, 2005, p.15).

Essa presença do sinal do divino no perfume perpassa o imaginário de vários

povos de diversas épocas. Dessa forma, não é por acaso que as palavras “espírito” e

“essência” fazem parte da nomenclatura do perfume. Consultando os registros históricos,

entendemos o papel divino desempenhado pelo perfume nas mais variadas épocas e

civilizações.

Assim, retornamos ao período paleolítico e à descoberta do fogo, pois, é com o

domínio desse elemento se registram os mais antigos cheiros advindos da fumaça produzida

pela queima de madeira, especiarias, ervas e incensos. As sepulturas neanderthalesas indicam

que os mortos eram enterrados com todo um ritual com flores e outros ornamentos. É possível

pensar que, nesses rituais fúnebres, as flores tivessem a função de afugentar os odores do

corpo morto e conduzir a “alma” mais rapidamente aos céus, à esfera do divino.

Na civilização egípcia, que era politeísta, homenageavam-se as divindades em

ricos rituais. Nesses rituais, o perfume desempenhava uma função importante. Queimavam-se

3
As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
MULLER, J.. GERMANY, H.. The book of perfume: understanding fragrance, origin, history, development,
guide to fragrance and ingrediente. Alemanha: H& R, 1992.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [35]

incensos, resinas e madeiras preciosas como meio de purificação dos altares. Também se

utilizavam óleos perfumados, que glorificavam as estátuas sagradas. Os egípcios

consideravam que “o perfume era o néctar dos deuses, e com ele a alma dos mortos podia ser

tocada.” (2005, p.21).

Seguindo a crença na eternidade, os corpos dos mortos eram mumificados e

envoltos por perfumes. Portanto, os olores eram reservados não só para os deuses, mas

também para os mortos.

Na história da cultura grega também encontramos intensa relação entre o perfume

e a religião. Acreditava-se que, por meio da utilização de incensos e fórmulas aromáticas,

podia-se atrair a atenção dos deuses. Na Ilíada, de Homero, faz-se referência a essa alusão de

que o perfume atraía a atenção dos deuses e também dos outros homens. Há uma passagem

belíssima em que Homero descreve o banho de Hera, esposa de Zeus: “ela untava seu

‘desejável corpo’ com óleos aromatizados; na presença de Zeus, o perfume expandia ‘por toda

a terra e todo o céu’” (2005, p.33). É ainda na mitologia grega que encontramos a deusa

Afrodite, cujo nome em grego significa “nascida da espuma”. Segundo o mito, essa deusa

surge da espuma do mar, considerada o sêmen do céu; sai de concha em forma de vulva,

levitando sobre ervas de intensa fragrância, que exalam intenso erotismo. É considerada a

deusa que desperta não o amor sublimado, mas o carnal, e que freqüentemente rouba os

sentidos dos homens mais sensatos. Por isso, denominam-se afrodisíacas as poções capazes de

despertar os desejos mais intensos.

A correspondente romana é a deusa Vênus, mãe de Cupido, que por sua vez

corresponde ao deus Eros, o deus do amor sublime. Conta a lenda que as fragrâncias mais

doces servem para atrair o amado e o próprio amor, representado por Eros.

Para os gregos, os aromas exerciam forte atração, pois eram entendidos como

ampliadores do canal de comunicação com o divino. Tanto que eles ungiam os mortos para

atrair bons presságios.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [36]

Na Índia, também nos deparamos com pontos em que há o cruzamento entre

perfume e religião. No Hinduísmo, a deusa Shiva ocupa o centro do panteão. Jasmim e

sândalo correspondem à sua identidade aromática. Usava-se para a construção dos templos o

gandhakuti (casa de fragrância). Essa madeira era muito usada na cultura hindu. As estátuas

dos deuses eram lavadas com sândalo e almíscar.

No ano de 1500 a.C., a religião védica foi introduzida na Índia. Seu nome deriva

de veda, palavra sânscrita que significa “saber sagrado”. Essa religião pregava a utilização do

perfume durante as orações para que as palavras alcançassem os deuses, envoltas por uma

atmosfera de intensos aromas.

Em 1560 a.C., o Budismo surge na região, impulsionando os banhos mais

freqüentemente, bem como os rituais de limpeza e de purificação por meio de pomadas e pós

aromáticos que eram aplicados ao corpo. Segundo o Budismo, a passagem para (a) outra vida

é como uma “montanha fragrante”.

Na Bíblia hebraica também se nota a relevância do perfume para a religião. O

maior exemplo pode ser encontrado no Cântico dos Cânticos, destinado ao rei Salomão. Esse

texto relata o encontro amoroso, repleto de referências aos cheiros mais íntimos:

Ela: Enquanto o rei repousa em seu leito, meu perfume exala sua fragrância.
Meu amor se assemelha a um sachê de mirra entre os meus seios. Meu
amado é como um ramo de henna colhido na vinhas de En-Gadi.
Ele: Os teus seios são como duas crias gêmeas de uma gazela, que se
apascentam entre os lírios. Antes que refresque o dia e fujam as sombras, irei
ao monte da mirra e ao outeiro do incenso.
Ele: Qual lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas.
Ela: Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os
jovens; desejo me sentar à sua sombra e saborear o seu fruto, tão doce ao
meu paladar.
Ela: Levanta-te, vento morto! Desperta, vento sul! Sopra no meu jardim,
para que se derramem os seus aromas. Vem, oh meu amado, para o teu
jardim, e deleita-te com seus doces frutos!
Ele: Já entrei no meu jardim, minha irmã, noiva minha. Colhi minha mirra
com especiarias. Sorvi meu favo com mel. Bebi meu vinho com leite. Comei
e bebei, amigos! E ficai embriagados de amor!
Ela: Suave é o aroma dos teus ungüentos. Teu nome é bálsamo derramado;
por isso as donzelas te amam.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [37]

Ele: Melhor é o teu amor do que o vinho, e o aroma de teus ungüentos do


que toda sorte de especiarias!
Ele: Teus brotos são pomar de romãs, com frutos suaves, de flores de alfena
e nardo; nardo e açafrão, bambus aromáticos e canela, com todas as árvores
de incensos; mirra e aloés, com todas as principais especiarias aromáticas.
Ela: Tuas faces são como eira de espécies aromáticas, como fragrantes
flores; teus lábios, como lírios que destilam mirra fragrante.
Ele: Os teus lábios destilam mel, mel e leite escondidos sob tua língua. A
fragrância de teu vestido é como a do Líbano. Jardim fechado és tu, minha
irmã, noiva minha, manancial recluso, fonte selada. Teu jardim é fonte de
águas vivas, torrentes que correm do Líbano. (apud ASHCAR, 2005, p.23).

Na Bíblia também se encontram episódios profanos com a utilização do perfume.

Judite utilizou-se dos aromas com o intuito de matar Holofermes: “Lavou-se toda, ungiu-se de

preciosos cheiros (...), trançou os cabelos e enrolou um turbante na cabeça; então vestiu-se de

gala.” (Judite 10:3). Ainda nas Escrituras Sagradas, há outra passagem que faz referência ao

cheiro, quando Samuel aludia aos direitos dos hebreus: “Tomarás as vossas filhas para

perfumistas.” (Samuel, 8:13). Outro trecho elucidativo é encontrado em Ester, ao narrar o

preparo das virgens para o harém de um rei: “Seis meses com óleo de mirra e seis meses com

doces odores, para a purificação da mulher.” (Ester, 2:12-13).

A Igreja Cristã condenou o uso de incensos e de perfumes, considerados

instrumentos de idolatria e artigos de luxo, respectivamente. Porém, lentamente, os incensos

foram reincorporados aos rituais, passando a desempenhar um papel importante a partir do

século VI.

Tempos mais tarde, na Europa atingida pelo flagelo da peste, os templos da Igreja

impregnavam-se de um ar carregado de diferentes aromas de perfumes, bálsamos, sais e

ervas. O poema Apius e Virgínia descreve um banco de igreja reservado aos fidalgos: “O

banco de milady estava alegremente juncado de prímulas e doces violetas, cujos aromas se

uniam aos da alfazema, do cravo-da-índia e da manjerona.” (2005, p. 40).

O Cristianismo utilizou os perfumes como meio de comunicação entre Deus e os

fiéis. Alguns aromas foram popularizados durante a vida de Jesus Cristo. A propósito, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [38]

relação entre o perfume e a vida de Cristo pode ser observada já no episódio bíblico que narra

o nascimento do menino Jesus. (GRAU-DIECKMAN, 2006, p.2).

Segundo consta, os reis magos ofereceram como presente a Jesus os perfumes

mais valorizados. Assim está descrito em Mateus (2:11): “Entrando na casa, acharam o

menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, o adoraram. Depois, abrindo seus

tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e mirra.”

Ao menino Jesus foram ofertados os mais valiosos objetos da época. A

preciosidade do ouro, metal almejado e de valor para todas as culturas, é inegável. Mas

quanto ao incenso e à mirra é preciso fazer algumas considerações, sem que nos esqueçamos

dos valores existentes na sociedade antiga.

A palavra incenso advém do latim incendere, que significa “queimar” e designa

una substancia aromática que se obtém de certas árvores resinosas que ao serem queimadas,

exalam bom olor. (GRAU-DIECKMAN, 2006).

O próprio Deus prescreve a Moisés a fórmula do incenso, que foi considerado

algo consagrado ao Senhor. Assim, é narrado no “Livro dos Êxodos”:

O Senhor disse a Moisés: ‘Toma aromas: resina, cascas odoríferas, galbano,


aromas e o incenso puro em partes iguais. Farás com tudo isso um perfume
para a incensão, composto segundo a arte do perfumista, temperado com sal,
puro e santo. Depois de ter reduzido a pó, pô-lo-ás diante da arca da aliança
na tenda de reunião, lá onde virei ter contigo. Isto será para vós uma coisa
santíssima.’ (Êxodo 30: 34-37).

O incenso, desde a Antigüidade, era utilizado nas oferendas religiosas para

afugentar os espíritos malignos e as enfermidades, e, por fim, para servir como meio de

comunicação do homem com o divino (Deus), já que, segundo a crença, os perfumes

agradavam às divindades, e por isso, serviam como meio de elas atenderem mais rapidamente

às preces solicitadas durante as orações.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [39]

Quanto à mirra, trata-se da segunda substância aromática ofertada ao menino

Jesus, como menciona Mateus. Grau-Dieckman (2006) atesta que o nome mirra vem do árabe

murr e significa “amargo”. Antes de ordenar a Moisés quais seriam os ingredientes para o

incenso, Deus especifica a receita para a fabricação do óleo santo que os sacerdotes deveriam

usar para ungir e que, segundo o Êxodo, compunha-se de mirra:

O Senhor disse a Moisés: ‘Escolha os mais preciosos aromas: quinhentos


siclos de mirra virgem, a metade, ou seja, duzentos e cinqüenta siclos de
cinamono, duzentos e cinqüenta siclos de cana odorífera, quinhentos siclos
de cássia (segundo o siclo santuário), e um hin de óleo de oliva. Farás com
tudo isso um óleo para a sagrada unção, uma mistura odorífera composta
segundo a arte do perfumista. Tal será o óleo para a sagrada unção. Ungirás
com ele a tenda de reunião e a arca da aliança, a mesa e seus acessórios, o
altar dos perfumes, o altar dos holocaustos e todos os seus utensílios, e a
bacia com seu pedestal. Depois que os tiveres consagrado, eles tornar-se-ão
objetos santíssimos, e tudo o que os tocar será consagrado (...) Este óleo
servirá para unção santa, de geração em geração. Não derramará dele sobre o
corpo de homem algum; e não fareis outro com a mesma composição: é uma
coisa sagrada e deveis considerá-la com tal. (Êxodo 30:22-32).

É com esse óleo, preparado com a doce mirra, que se deveria ungir o Messias, o

Cristo Jesus. Messias significa em hebraico (maschiah) “o ungido”, e foi traduzido para o

grego como khristós, “o ungido do Senhor”. A palavra grega khrisma expressa a ação de ungir

(GRAU-DIECKMAN, 2006, p.5).

Segundo os teólogos há vários significados estabelecidos para os presentes que

foram dados a Jesus. O primeiro motivo é econômico e se refere ao valor estabelecido às

oferendas. Embora atualmente o ouro tenha um preço altíssimo e o incenso e a mirra tenham

perdido seu valor, no tempo de Jesus, o ouro e o incenso tinham quase que o mesmo valor.

Porém, alguns teólogos sustentam outros significados, não-econômicos, aos presentes que os

reis magos deram ao menino Jesus. Segundo alguns teólogos, o ouro representa o metal

precioso próprio dos reis; simboliza a sua realeza. Já o incenso, que desempenha um

importante papel nos rituais religiosos, era um símbolo da divindade de Jesus, enquanto a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [40]

mirra, pelo seu uso na unção dos mortos nos rituais fúnebres, simboliza a paixão e morte de

Cristo; ela representava um tributo ao seu componente humano.

Nesse sentido, o perfume, no decorrer da História, adquiriu uma conotação de

sagrado à medida que foi sendo incorporado, pelas diversas civilizações, como meio de

comunicação com o divino – ofertas de bons aromas (perfumes) para que as orações e os

pedidos fossem mais rapidamente atendidos, já que esses perfumes agradavam às divindades:

“los perfumes pertenecen al Dios y no al hombre.” (ALBERT, apud GRAU-DIECKMAN,

2006, p.12). Deus permitiu aos eleitos Maria, Paulo, Madalena e Marcos compartilhar dos

olores deliciosos, obtendo o direito de “morrer em odores de santidade”, tornando-os objetos

mediadores, revestidos de sacralidade.

Os perfumes acabam por se revestir de algumas conotações místicas,

transcendentais de certo modo, verdadeiras, outras tantas, mero desejo da humanidade em

buscar consolo em suas divindades. Os aromas remetem ao mundo das emoções, talvez pela

sua raiz arcaica no cérebro humano, como observamos, não só referentes à religiosidade.

Helen Keller afirma que:

O olfato é um mágico poderoso que nos transporta, percorrendo a distância


de milhares de milhas e de todos os anos que vivemos. Os odores das frutas
fazem com que eu flutue para minha casa no sul, para minhas brincadeiras
infantis no campo cheio de pessegueiros. Outros aromas, repentinos e
fugazes, fazem meu coração dilatar de felicidade ou contrair-se a alguma
tristeza recordada. Mesmo quando apenas penso nos cheiros, as minhas
narinas ficam plenas de aromas, que despertam doces memórias de verões
passados e campos distantes. (apud ACKERMAN, 1996, p.23).

Esse percurso histórico nos leva a conceber os perfumes como odores que sempre

estiveram entrelaçados com a idéia de comunicação. O odor que exala de um corpo ou de um

ambiente nos quer sempre comunicar algo. Ao mesmo tempo em que serve como um canal de

comunicação com o divino, também aproxima ou distancia as pessoas. Essa duplicidade nos

estimula a considerar um texto cultural. Uma vez que a cultura se constrói por meio do
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [41]

processo de mediação, é válido pensar segundo essa corrente semiótica e questionar como o

perfume se torna mídia no seio de uma cultura. É essa idéia que servirá de base para o

desenvolvimento de todo próximo capítulo.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [42]

CAPÍTULO II
OS SENTIDOS NA COMUNICAÇÃO

2.1 Comunicação e seus sentidos

Para maior elucidação da relação entre comunicação e sentidos corporais, é

necessário que se faça um reposicionamento dos conceitos de comunicação, cultura e mídia.

Deve-se, primeiramente, expandir o conceito de mídia, não compreendê-la somente como os

meios de comunicação de massa tais como jornal, revista, televisão, rádio, cinema, Internet.

De maneira mais evidente, apoiamo-nos no pensamento de Harry Pross (1987), cientista

político alemão que afirma ser o corpo a primeira mídia do homem. Em outras palavras, o

corpo constitui o grau zero da comunicação. Toda comunicação parte de um corpo e termina

num corpo. A partir desse entendimento, para Pross (1987), é possível haver mediação. Esse

autor elabora uma classificação da mídia em primária, secundária e terciária. Como mídia

primária, entende-se a comunicação entres dois corpos, sem que para isso seja necessária a

presença de um elemento que faça a mediação entre eles. E, se não há nada entre esses dois

corpos, a mídia, nesse caso, são os próprios corpos, que produzem e recebem linguagem, seja

ela em forma de gestos, cheiro, sons articulados ou inarticulados e movimentos. Desse jogo

de linguagem é que nasce o que Pross (1987) denominou de mídia primária, que constitui um

grande terreno de investigação para a ciência da comunicação, uma vez que essa não pode

mais ser entendida e restringida somente àquilo que é veiculado e transmitido pelos meios de

comunicação de massa tradicionais. A mídia primária tem uma limitação espaço-temporal: ela

precisa do aqui e do agora para ter efeito. A mídia secundária surge à medida que o processo

de mediação se torna mais complexo, ou seja, quando um dos corpos utiliza um objeto

(pintura, máscara, roupa, megafone) para transmitir informação ao outro. Denomina-se mídia

terciária aquela em que é necessário que os corpos utilizem um aparato decodificador para a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [43]

mensagem. A mídia terciária surge a partir da necessidade de expansão e de alcance cada vez

maior da mensagem, com o mínimo de esforço para isso.

Ao entender a mídia dessa maneira, abre-se a possibilidade de entender também a

comunicação não mais como um simples processo de troca de informação que, de certa forma

a funcionalizou, pois a reduziu a um esquema (canal-código-mensagem-receptor). Não

queremos afirmar que esse entendimento de comunicação não seja correto, mas é importante

aprofundar essa questão. A comunicação humana não pode ser reduzida a esse simples

sistema; ela é, sem dúvida, muito mais complexa do que isso.

É fato que todo o desenvolvimento e apogeu dos estudos de uma teoria da

comunicação surge de um período tumultuado de guerra. Esse período abrange todo o século

XX, quando há um claro desenvolvimento de aparatos bélicos para melhorar a comunicação.

Desenvolvem-se os telégrafos ópticos, que transmitem as mensagens a longa distância.

Também se desenvolve todo um modelo matemático da engenharia das telecomunicações,

com o objetivo de melhorar a velocidade e a transmissão da mensagem e da comunicação, em

que há, também, maiores estudos quanto ao conceito de ruído, a fim de diminuir as distorções,

visando a aperfeiçoar todo o processo de comunicação. Toda a teoria da comunicação

fundamentou-se no esquema bélico, reducionista, que acabou por funcionalizar as pessoas

(tornando-as simples números de audiência) e a voltar o olhar, principalmente para os efeitos

da mensagem sobre o indivíduo. Seu suporte teórico está no behaviorismo, teoria psicológica

do estímulo-resposta. Segundo esse ponto de vista, o sujeito é um quadro em branco, amorfo,

vazio, pronto para obedecer e responder cegamente a um esquema linear, esquecendo-se da

ontogênese e filogênese do ser humano, ou seja, de que o ser é constituído e construtor de

cultura. É, portanto, um sujeito esculpido pelo processo histórico humano, um elemento

impregnado e transformador de seu próprio tempo de vida. Ao pautar o pensamento nessa

forma, entendemos cada ser humano como ser único, singular, portador de cultura, fruto de

uma época, de um determinado espaço, e também de um conjunto de relações sociais. Dessa


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [44]

maneira, o sujeito é histórica e culturalmente constituído e traz para a comunicação todo esse

repertório adquirido. Então, a comunicação não pode ser entendida, simplesmente, como um

sistema determinista, tal como estipula a teoria behaviorista do estímulo-resposta. É preciso

entender essa comunicação como probabilística, ou seja, como um verdadeiro jogo de acerto e

erro.

Caso ainda se mantenha a idéia funcionalista de estrutura de comunicação, que os

meios de comunicação insistem teimosamente em adotar, temos que aceitar então que a

máxima universalizante da comunicação é expropriar o outro. A informação expropria o

outro, mas esse outro não se deixa expropriar à toa. Assim, o comunicador cria estratégias

para expropriar. Os meios de comunicação têm se apropriado do nosso “tempo de vida” da

maneira mais questionável, sem que ao menos nos demos conta disso. Entregamos nosso

“tempo de vida”, um recurso não-renovável, ao que quer sincronizá-lo ao seu tempo: o da

mídia. Prevalece aquilo que Harry Pross (1987) denominou “Economia do Sinal”

(Signalökonomie), em que, utilizando o emissor o menor esforço possível, busca atingir o

maior número de indivíduos em um maior espaço territorial e em um menor espaço de tempo.

Espera-se do receptor um maior esforço para captar esses sinais. Ele entrega grande parte do

seu “tempo de vida” possível ao emissor. Nesse contexto, a informação assume a função de

elemento e unidade expropriadora. Aceitar todo esse esquema funcionalista e reducionista de

uma comunicação estruturada com função bélica é renegar o passado, a história e o futuro (os

sonhos), enfim, toda a cultura. Cabe, nesse momento, retomar a expansão do conceito de

cultura que foi proposta no início deste capítulo: seguindo esse pensamento, é inegável que a

comunicação humana é cultura, uma vez que é sobre ela que o ser humano encena seus mais

diversos papéis, criando e recriando infinitas personagens, obras que se decodificam com

linguagem e, então, tornam-se partes indissociáveis da comunicação. A palavra “cultura” que

vem do latim colere, que significa plantar ou cultivar a terra, conceito que remete ao homem

neolítico, já que, anteriormente, esse hominídeo era nômade. Portanto, o conceito de cultura
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [45]

está intimamente conectado à idéia de cultivar a terra e domesticar os animais. Depois, esse

conceito é transposto para a esfera do pessoal, do próprio homem, quando, então, este passa a

cuidar do seu próprio corpo e da sua própria imagem. Toda essa idéia pertence a um primeiro

conceito de cultura, que a etnografia entende como cultura material, isto é, tudo aquilo que o

homem faz que não esteja dado na natureza. Mais tardiamente, o conceito expande-se e, no

século XX, consolida-se como tudo aquilo que pertence à atividade do espírito do homem.

Atualmente, é entendido como produção artística; no entanto, devemos incluir, também, toda

a produção midiática, pois ela também faz parte daquilo que podemos entender como

produtos da criatividade humana. A partir do século XX, há uma enorme polêmica,

novamente, em torno desse conceito. Frente a isso, propõem-se dois conceitos: o de cultura

material, objetiva, que visa à sobrevivência material humana; e o outro que tem a ver com a

cultura do “espírito” humano, com a sobrevivência psíquica, e que é entendida como inútil,

em oposição à primeira. Têm-se dois conceitos de cultura: um dito útil, ligado à terra, e outro,

batizado “cultura inútil” por Morin, ligado ao ar. Os termos útil e inútil, na realidade, apenas

separam) a cultura material da imaginária, porque queremos compreender qual o papel que o

imaginário desempenha sobre as pessoas. Assim, Edgar Morin apresenta o seu conceito de

cultura:

É preciso ter bem consciência de que a cultura não se assenta no vazio, mas
sim sobre a primeira complexidade pré-cultural que é a da sociedade dos
primatas e que foi desenvolvida pela sociedade dos primeiros hominídeos.
Desde então, a técnica e a primeira linguagem aparecem como produto de
uma alta complexidade. (...) a cultura torna-se não só produto altamente
complexo, mas também produtora de alta complexidade. A cultura não
começa por ser a infra-estrutura da sociedade, ela passa a ser a infra-
estrutura da alta complexidade social, o núcleo gerador da alta complexidade
hominídea e humana. (1999, p. 76).

Em sua obra O método 4, esse autor esclarece o sentido de cultura, norteador desta

pesquisa: “(...) A cultura está nos espíritos, vive nos espíritos, os quais estão na cultura e

vivem na cultura. O meu espírito conhece através da minha cultura, mas em certo sentido, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [46]

minha cultura conhece através do meu espírito. Assim, portanto, as instâncias produtoras do

conhecimento se co-produzem umas às outras (...).” (1998, p.19).

Tomando como base o conceito de cultura ora apresentado por Morin em sua obra

O paradigma perdido, é-se levado a crer que, a partir da constituição daquilo que entendemos

como cultura, o homem abriu-se a uma outra realidade, em que se torna possível concretizar

os mais diferentes anseios humanos. Essa abertura para o campo da cultura humana, em que

há, claramente, a separação entre a cultura útil, ligada à satisfação material, e a inútil, mais

desenvolvida no sentido da satisfação do prazer “espiritual”, estético, convida-nos a pensar

também no conceito de segunda realidade, estabelecido pelo semioticista Ivan Bystrina

(1995). Para esse autor, existe uma primeira realidade que se compõe da natureza biológica e

social do ser humano. A natureza biológica é regida pelos códigos hipolinguais, que não

chegaram a se constituir como linguagem, mas que regulam as trocas biológicas. Quanto à

natureza social, perduram os códigos linguais, códigos entre dois corpos, entre dois órgãos

diferentes. São verdadeiros códigos performáticos (visuais, sonoros, gestuais, olfativos,

gustativos) que envolvem toda a comunicação pragmática. No entanto, para Bystrina (1995) a

vida não se esgota nessas duas existências: para ele, há uma segunda realidade que leva em

consideração as duas outras naturezas (a social e a biológica) em que perduram os códigos

hiperlinguais, os códigos da cultura, que não são estritamente nem biológicos nem sociais.

Essa segunda realidade é constituída da imaginação, que leva em consideração as duas outras

naturezas, pois não há cultura sem corpo e sem sociedade. Para esse autor, a cultura tem suas

raízes no sonho, no jogo, no estado alterado de consciência e nas variantes psicopatológicas.

Do mesmo modo que essas raízes da cultura possibilitam a formação de uma segunda

realidade, elas também nos preparam para pensar a formação dos vínculos. Na primeira

realidade, o homem vincula-se com outros homens, animais, espaços e comunidade. Já na

segunda realidade, o homem se vincula com as imagens que ele mesmo cria e com aquelas

que os outros criam também. Elaboramos toda uma instância imaginária à qual nós mesmos
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [47]

nos subordinamos. Na segunda realidade, vinculamo-nos com tudo àquilo que seria, na

primeira realidade, entendido como impossível de ocorrer. Se considerarmos ainda a questão

dos vínculos como base nos códigos hipolinguais, linguais e hiperlinguais, observaremos que

o que ocorre na instância dos códigos hipolinguais é uma simples troca de informação. Por

exemplo, o fígado emite ao estômago um estímulo, um sinal ou simplesmente uma

informação, enquanto que os códigos linguais possibilitam a vinculação interindividual para a

formação de comunidades que garantem, em certa medida, a sobrevivência delas mesmas.

Não existem comunidades sem vínculo, do mesmo modo como não existe comunicação sem a

transmissão de mensagens entre humanos. Já nos códigos hiperlinguais, o que ocorre de fato

na segunda realidade é que tudo se torna vínculo, no sentido de participação, fusão. Ocorre

um fluxo complexo de imagens (textos da cultura) por meio dos quais nos vinculamos, na

medida em que, sem essa realidade cultural, seria impossível existirmos. Portanto, nesse

momento já não existe mais uma vinculação. O que há realmente é mais do que isso: nós nos

mesclamos com esses textos da cultura e, assim, esses vínculos tornam-se comunhão. A partir

de então, tem-se claramente que a comunicação é mais que vínculo, é comunhão. Comunhão

com a própria segunda realidade, com deuses e demônios, sonhos, enfim, com tudo aquilo que

a mente humana possa criar.

Mais uma vez fica demonstrado que comunicação é mais do que a simples troca

de informação, tal como (utilizando uma metáfora simples) uma bola num jogo de pingue-

pongue. Por meio dela, nós nos apropriamos do outro e sem dúvida, também, o outro se

apropria de nós. É fato que toda comunicação é invasiva do eu e, dessa maneira, nenhum dos

indivíduos saem iguais de um processo de comunicação. Porém, insistimos em vários

momentos que comunicação é vínculo. Então, afinal, o que é vinculo? Antes de responder a

essa questão, retornemos à origem da palavra vínculo, que é um diminutivo do termo latino

para “amarra”, “laço” e “elo”. Esse conceito foi retirado da biologia. Quando aplicado à

comunicação, muda um pouco o foco da informação para outro fluxo em que é mais do que
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [48]

simples informação, é troca de matéria não-passível de quantificações. Portanto, não é

funcionalizável. É algo que amarra, constitui elos entre os indivíduos, pois é formado de

histórias. É algo vivo, que precisa ser alimentado, cultivado. Tem um caráter arcaico, à

medida que é formado por camadas mais remotas e profundas que não estão mortas, que a

todo instante se projetam sobre as camadas mais recentes, transformando-as, de certa forma,

como entende Boris Cyrulnik (1995): vínculo é captura. Vale ressaltar que não é possível

entender tudo o que acontece num vínculo e, portanto, não se pode entender a comunicação

como determinista: ela é probabilística. É possível imaginar a forma de resposta que um

indivíduo terá frente a um estímulo, mas não é possível saber se aquela será realmente sua

forma de reação.

A formação do vínculo está na filogênese e na ontogênese da espécie humana.

Desde muito cedo nos vinculamos ao outro. Segundo Eibl-Eibesfelt (1983) em El hombre

preprogramado, os seres humanos se vinculam por três motivos: por proteção, por medo e por

motivações sexuais. Voltando à ontogênese do vínculo, que estuda a capacidade de

vinculação ao longo da vida, tem-se que o primeiro vínculo que estabelecemos é o maternal4.

Durante toda a vida acabamos sempre nos vinculando, seja positiva ou negativamente.

Corroborando o pensamento de Eibl-Eibesfelt apresentado acima, Harry Pross

(1987) acrescenta que passamos a nos comunicar, a nos vincular, porque somos seres

deficitários. Temos a necessidade de comunicar para preencher um “déficit”. É evidente a

necessidade do ser humano de ser aceito, de receber carinho, aconchego e proteção; por isso,

essa incessante vontade ou necessidade de vincular-se para suprir aquele vazio primevo (oco

vital) existente no interior de cada um. Para Diter Wyss (1976), comunicação é falta e

necessidade: o ser humano nasce já dependendo da mãe, e depois, ao longo da vida, essa

dependência vai se tornando mais complexa e se alastrando a outras pessoas e coisas. Essa

4
O biólogo Harry Harlow (1970), em um famoso experimento a respeito do conceito de amor materno entre os
chimpanzés, elabora os cinco sistemas afetivos de base: sistema maternal (mãe-filho); sistema filial (filho-mãe);
sistema fraternal (da mesma faixa etária); sistema sexual (heterossexual) e sistema paternal (mais complexo e de
maior distância).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [49]

carência surge da própria cultura, que, à medida que fica mais complexa, cria novas

necessidades. Portanto, novas faltas e “déficit” são programados, como num ciclo infinito.

Esse ciclo não é estático, mas dinâmico. Como todo fruto de uma cultura, o que está cheio e

preenchido depois de um tempo se esvazia e quer mais e mais coisas novas. O organismo quer

mesmo é perdurar, quer existir, e, para isso, ele sempre vai se vincular. E o alimento desse

vínculo não é a informação, não é a granularidade da informação que sustenta os vínculos,

pois essa informação não é suficiente para criar ambiência comunicacional, que é próprio da

cultura. O que alimenta o vínculo é a necessidade de troca/apropriação que cria um campo de

tensão entre os indivíduos, o que possibilita a “fagia”, que podemos traduzir como

apropriação para o nosso repertório, aquilo que nos interessa do outro e vice- versa.

Wyss define desta forma a comunicação: “não é troca de informação no sentido da

cibernética e todos os seus apóstolos (...) continuidade temporal de compartir (Mitteilung) e

dar respostas. E ela própria com fim da comunicação – morte – é uma espécie de resposta a

compartir anterior (...).” (1976, p.113)5.

Segundo esse conceito de comunicação comunicar é um processo contínuo de

compartir com outro, que gera um novo compartir em reposta ao primeiro. A palavra

compartir, no sentido em que esse autor a utiliza, é entendida como desempenho que implica

espaço, tempo e corpo, ou seja, um verdadeiro sistema complexo.

2.2 A ambiência comunicacional

Ao descrever a comunicação como vínculo, é inevitável pensar em uma ambiência

ou ambiente comunicacional que, por fim, nos faz pensar, baseado no pensamento de Vicente

Romano (2004), numa “ecologia da comunicação”, que nada mais é do que a criação de um

5
Conceito traduzido pelo Professor Dr. Norval Baitello Júnior, por ocasião do curso de Fundamentos da
Comunicação, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Aula do dia 30 de
agosto de 2006.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [50]

ambiente que propicie o desenvolvimento dos vínculos de sentido, que leve em conta todo seu

contexto histórico, cultural, antropológico e psicológico, bem como toda sua complexidade,

sua potencialidade e suas necessidades. Realmente, é necessária uma “ecologia da

comunicação” que se questione sobre as raízes históricas, políticas e culturais da

comunicação, e que vislumbre futuros cenários para a comunicação, sem que se esqueça das

bases históricas dos vínculos aos quais estão amarrados todos os lastros culturais, seiva bruta

que jorra força para o mundo da vida. Esquecer isso é negar o próprio passado, a história, o

corpo e os sentidos. Por isso, é necessário um resgate dos sentidos, pois é por meio deles que

se confeccionam laços, amarras e vínculos com os outros. Renegar os sentidos corporais de

proximidade em detrimentos dos sentidos de distância acaba por gerar um desequilíbrio no

ambiente comunicacional e, dessa forma, um problema ecológico.

O universo da comunicação ficou reduzido a uma troca simbólica medida por

máquinas, que nos roubaram o tempo de vida, distanciaram-nos uns dos outros,

transformando a comunicação na “sociedade da informação”, afinal, em uma mera troca de

informação. É preciso estar bem consciente de que comunicação é vínculo, é partilhamento,

aproxima do outro e algema a ele. É um fluxo constante, de mão dupla. O que se tem feito

com a comunicação, na “sociedade da informação”, a não ser sedar os sentidos corpóreos e

estreitar o sentido da própria comunicação? “A comunicação não é mais uma relação capaz de

aumentar as trocas entre os membros de uma coletividade, mas uma categoria em si, quase um

ser dotado de razão, do qual se glorifica o desempenho e se escondem as falhas.”

(CHESNEAUX, 1996, p. 95).

É inegável a predominância, em nosso tempo, daquilo que Harry Pross (1987)

denomina de mídia terciária, em que tudo passa a ser mediado pelos aparatos tecnológicos

eletrônicos. Esperávamos, com isso, aumentar nosso tempo e espaço para a comunicação de

proximidade. Porém, esse quadro comunicacional contemporâneo acabou gerando um nítido


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [51]

privilégio dos sentidos de distância. Pergunta-se, então, a que ambientes comunicacionais

futuros aspiramos, quando permitimos a permanência desse desequilíbrio?

A partir dessa apresentação dos conceitos expandidos de comunicação, cultura e

mídia, podemos, sem erros epistemológicos, estabelecer uma relação entre corpo e perfume.

Demonstraremos que o perfume é uma mídia secundária do corpo e discutiremos sobre os

ambientes comunicacionais a que aspiramos. Sabemos que, para tanto, precisaríamos abordar

exclusivamente esse tema. Nesta pesquisa, contudo, ao mesmo tempo em que relacionamos

corpo e perfume, permitimos que os cenários comunicacionais da cultura se revelem.

2.3 Corpo e perfume: o perfume como mídia

Nossas reflexões teóricas conduziram-nos a acrescentar esse item, especialmente

para pensar num sentido mais aprofundo a relação que o perfume guarda na e para a

intercomunicação humana, sem que nesse momento da reflexão percamos de vista a

perspectiva do seu suporte midiático, o corpo e seus sentidos, que para toda essa pesquisa

desempenha um papel importante.

Para tanto, evocamos o pensamento do semioticista Harry Pross e a sua Teoria da

Mídia, pois talvez nesse contexto possamos encontrar a lente de aumento que nos possibilitará

melhor observar esse objeto de estudo. Nesse momento, portanto, retomamos mais

profundamente o que já fora exposto em “Comunicação e seus sentidos” sobre as

nomenclaturas de mídia primária, secundária e terciária. Desenvolvemos a uma reflexão mais

profunda acerca do conceito de Pross de mídia primária e sua importância para a comunicação

humana de caráter interpessoal. Como mídia primária entendemos as relações face a face,

pontuadas pelas trocas gestuais, olhares, sons e cheiros; e por mídia secundária, o emprego de

meios, de um dos lados do processo de mediação, que reforcem a expressão, que deve estar
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [52]

em consonância com a intenção e o objetivo pretendido. Harry Pross apresentou na obra

Medienforschung (“Investigações da Mídia”), publicada em 1971, uma classificação simples

do sistema de mediação da chamada mídia. A proposta de Pross é mencionada por Baitello

(2005) no texto O tempo lento e o espaço nulo. Mídia primária, secundária e terciária. Desse

último texto, retiramos uma importante afirmação elaboradas por Pross:

Toda comunicação humana começa na mídia primária, na qual os


participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes
com seu corpo; toda comunicação humana retornará a esse ponto.
Nas mídias primárias juntam-se conhecimentos especiais em uma pessoa. O
orador deve dominar a gestualidade e mímica (...) o mensageiro deve saber
correr, cavalgar, dirigir e garantir, assim, a transmissão de sua mensagem.”
(2005, p.10).

Nesse mesmo sentido, citando Baitello, observamos o que Pross segue

descrevendo como as ricas possibilidades comunicativas da mídia primária, apontado a

expressividade dos olhos, da testa, da boca, do nariz, da postura corporal, dos ombros, do

tórax, do abdômen, dos pés e das mãos, dos odores, dos sons articulados ou não, das

cerimônias, dos rituais e, por fim, das línguas naturais (naturalmente inclusa a linguagem

verbal falada).

Na concepção de Pross, a mídia secundária ocorre quando há o desejo de se

vincular de maneira mais expressiva. O homem utiliza máscaras, pinturas, adereços corporais

e, por que não pensar aqui também, o perfume (olores químicos, propagadores de essências

multiplicadas que nada ou pouco lembram nossos odores naturais). Então, encontramo-nos no

campo da mídia secundária quando o corpo se utiliza de ferramentas, de aparatos ou suportes

para amplificar a força da mensagem no tempo e espaço. Já para que ocorra a mídia terciária

ocorrer é necessário que todos os corpos envolvidos no processo comunicativo tenham

ferramentas, equipamentos para emissão e recepção da mensagem. Cabe aqui apontar que,

nessa classificação ora apresentada, uma mídia não suprime a outra. Essas mídias sofrem ação

de uma lei cumulativa, o que torna impossível, num processo comunicativo, haver a supressão
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [53]

dos corpos. “Um sistema comunicativo conterá necessariamente em seu âmago a interação

entre dois corpos.” (BAITELLO, 2005, p.4).

Nesse campo teórico podemos, sem dúvida, classificar o perfume como uma

mídia secundária para o homem. Porém, esta ainda depende diretamente do corpo como

suporte para significação e decodificação do cheiro. O perfume, tal como a escrita, inaugurou

o tempo da virtualidade do corpo. Um corpo está virtualmente presente ou mesmo emitindo

mensagens no momento em que o olor é sentido por alguém. A partir do momento em que se

percebe o cheiro, estabelece-se um forte vínculo com o emissor, sem a necessidade de

nenhuma ferramenta ou aparato para a decodificação. Um dos traços que destoam e

distanciam-se do poder de permanência simbólica em relação à escrita é o tempo. Enquanto

que a escrita perdura vários anos, o cheiro não consegue se manter por muito tempo. O cheiro

se mistura e há a miscigenação dos cheiros, o que faz com que o perfume enfraqueça sua

capacidade de veiculação como mídia do e para corpo.

Possivelmente encontraremos na teoria semiótica da cultura, proposta por Ivan

Bystrina, um importante aliado para a leitura do perfume na cultura humana. Esse semioticista

classificou os códigos gerais da comunicação humana em lingüísticos, hipolingüísticos e

hiperlingüísticos. Os códigos lingüísticos são os códigos sociais, aqueles que envolvem toda a

comunicação em seu nível pragmático. Os códigos hipolingüísticos são os códigos

propriamente biológicos, anteriores à cultura. E os códigos hiperlingüísticos são os códigos

culturais. Levaremos em consideração, para a análise e interação prática com esses códigos

culturais, o odor. Esse código pode ser lido como um fator biológico inerente aos seres vivos

da ordem animal, e aí nos deparamos com um código hipolingüístico. Ao sentir um odor, o

indivíduo se põe em sinal de alerta e toma a decisão de fugir ou de se aproximar, por

exemplo. Isso constitui um código lingüístico. A aspersão de perfumes quimicamente

fabricados não é outra coisa senão um código hiperlinguístico, na medida em que essa atitude

constitui uma marca cultural.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [54]

Os códigos lingüísticos e hipolingüísticos constituem aquilo que Bystrina (1995)

denominou de primeira realidade, enquanto os códigos hiperlingüísticos fazem parte de uma

segunda realidade, isto é, de tudo aquilo que é criado pelo homem, e que tem relação estrita

com o universo da cultura, não sendo, por conseguinte, estritamente biológicos e sociais.

Essa classificação ora proposta constitui uma importante ferramenta de estudo à

medida que sabemos que todo código pode ter, certamente, elementos lingüísticos,

hipolingüísticos e hiperlingüísticos. É o olhar do semioticista que possibilitará observar mais

de pertodeterminados aspectos de um objeto. Portanto, quando nos referirmos ao cheiro,

ignoraremos alguns aspectos lingüísticos e hipolingüísticos, e nos ateremos, sobretudo, aos

aspectos hiperlingüísticos. Esse recorte teórico faz-se necessário para melhor observar a

relação perfume versus comunicação interpessoal de proximidade na comunicação humana.

Vale ressaltar que tal atitude não anula de maneira alguma o constante diálogo que há entre o

código hiperlingüístico e os códigos hipolingüístico e lingüístico. Nessa presente pesquisa

buscamos mapear o perfume, na segunda realidade de que falava Bystrina e com ele os textos

que se criam sobre o corpo que estão atrelados ao código hiperlingüístico.

Os perfumes, as roupas, os ornamentos corporais em geral são compreendidos

como códigos hiperlingüísticos no homem enquanto ser portador de cultura. Ao recompor o

corpo, seja a partir de roupas ou perfumes (os mais comuns nas culturas atuais), seja em

forma de adornos ou proteções com resinas, peles de animais, penas de aves e resinas

coloridas de plantas, encontramos aí uma segunda pele, uma camada que reveste o corpo, uma

pele da cultura. E que uma dada cultura, num dado tempo e espaço, avaliam como bom e

bonito.

O corpo e seus adornos, adereços, maquilagens, tudo isso se transforma segundo

Pross, em mídia secundária para o homem. No entanto, é notável a importância que o corpo

exerce sobre os voyeurs culturais, atribuindo e garantindo a eles uma significação. Todos

esses aparatos voyeuristas são um texto da cultura, texto aqui entendido não só como escrita
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [55]

verbal, mas num sentido ampliado, para todo e qualquer código da comunicação humana.

Podemos considerar que há textos olfativos, gustativos, auditivos, visuais, performáticos, e

ainda aqueles que combinam muitas linguagens e códigos. Contudo, como afirma Baitello, o

texto pode ser não só o escrito. Como texto, ele guarda em si um importante traço essencial da

escrita: a vitória sobre a morte. “Num certo sentido, o corpo, ao tornar-se texto, torna-se

também escrita e inscreve-se com isso em uma escala da imortalidade.” (BAITELLO, 2005,

p.5).

Do pensamento de Norval Baitello, retornamos a Ivan Bystrina, mais

precisamente ao campo teórico dos códigos hiperlingüísticos. É nesse ponto que estão as

nossas reflexões: o perfume, tal como a roupa, recobre o corpo. A palavra “vestir”, provém do

latim vestire, que significa “vestir, recobrir com roupa”. (FARIA, 1962). Está, portanto,

fortemente relacionada ao campo das vestimentas e da moda. De um certo modo, acreditamos

ter o perfume uma significação maior. Mais do que vestir o corpo, ele o investe, termo

oriundo do latim investire, “revestir, cobrir”. Na Idade Média, o sentido da palavra ampliou-se

para “pôr na posse de alguma dignidade”. Mais do que cobrir tal como a roupa o faz, o

perfume parece transformar o outro por dentro, como se se tratasse de um jogo de aparência e

essência. Enquanto a roupa transforma na aparência para o olhar do outro, o perfume parece

transformar a essência do ser. Na medida em que cada um tem um cheiro particular, inato, o

perfume é um artefato que entra pelo poro e introjeta no corpo e o modifica em sua essência.

Deparamo-nos, nessa inter-relação de campos semânticos da moda e do perfume,

com a aquilo que Campelo (1997) denominou de corpo-máscara, em que o eu se aloja.

Segundo a autora, desde sua fecundação, o corpo guarda em si marcas, informações do código

hipolingüístico e signos do código lingüístico que se tornam determinantes da história que vai

se desenvolver durante todo tempo de vida do corpo, constituindo assim as máscaras, os

textos que serão inscritos nesse corpo. E o perfume, como demonstramos acima, constitui

uma máscara, um texto cultural que se inscreve sobre o corpo. O perfume não é senão a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [56]

máscara que confirma ao olfato do outro, o que uma dada cultura permite que o outro cheire.

Essa máscara esconde a verdadeira face do corpo; veda seus poros, suas saídas, transforma o

cheiro natural em um cheiro culturalmente construído e aceito.

É necessário refletir mais atentamente sobre o significado desse corpo-máscara,

que vai muito além da binariedade natural versus cultural, ou ocultar versus revelar. Do

corpo-máscara emerge o suporte antropológico para aquilo que Morin denominou de duplo. O

duplo retoma da consciência primeira da morte. Todas essas manifestações do duplo nada

mais são do que suportes através dos quais se manifesta o imaginário do homem. Suportes

simbólicos e materiais que aderem e contaminam com a idéia da morte e sua outra face

sombria a sobrevida simbólica.

Assim, mais claramente, Morin apresenta a questão do duplo:

(...) o tema do duplo que já emergiu a propósito da morte. A existência do


duplo é atestada pela sombra móvel que acompanha cada um, pelo
desdobramento da pessoa no sonho e pelo desdobramento do reflexo na
água, que dizer, a imagem. Desde então, a imagem não é só uma simples
imagem, mas contém a presença do duplo do ser representado e permite, por
seu intermédio, agir sobre esse ser; é esta acção que é propriamente mágica:
rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de possessão
sobre a imagem (enfeitiçamento). (1999, p.98-99).

O duplo, na concepção moriniana, é a sombra. Esse autor aponta ainda o reflexo,

o eco (reflexo auditivo) e, por fim, o movimento do ar respiratório e intestinal como possíveis

formas de manifestação do duplo. Interessa-nos especialmente a última forma de

manifestação do duplo – movimento do ar respiratório –, pois, a partir desse conceito,

podemos pensar mais propriamente no perfume como uma forma singular da presença do

duplo. A invisibilidade própria do duplo encontra-se muito perto dessa natureza aérea.

Tomando como base sustentadora todo o pensamento de Morin acerca do duplo, podemos

afirmar que sua teoria possibilita entender que, o perfume/cheiro, nada mais são do que

partículas químicas de fragrância diluídas no ar, invadem o tubo nasal e, de maneira


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [57]

simplificada, são decodificadas pelo cérebro dão origem a uma “imagem olfativa”, imagem

endógena (Belting, 2005) capaz de evocar algo ausente. Fica claro, portanto, que o

perfume/cheiro tem em si e guarda para si o mesmo paradoxo semelhante ao mundo das

imagens: ele é capaz de ser ao mesmo tempo a presença de ausência, e a ausência de uma

presença. O paradoxo já aparece impregnado na própria semântica do termo “olor”, do verbo

latino olere, “exalar, rescender, perfumar, cheirar bem ou mal, cheirar a algo”. Em sentido

figurado, “indicar, deixar perceber”6. (NASCENTES, 1966). Quanto ao poder evocativo e

invocativo do duplo, podemos concluir:

Pela palavra, pelo sinal [o perfume/cheiro], pelo grafito, pelo desenho, o


objecto adquire uma existência mental mesmo fora da sua presença. A
linguagem já abriu a porta à magia: desde o momento em que toda a coisa
chama imediatamente ao espírito a palavra que a designa, a palavra chama
no mesmo instante a imagem da coisa que evoca, conferindo-lhe, mesmo que
esteja ausente, a presença. (MORIN, 1999, p.99).

Segue ainda o mesmo autor, referindo-se à capacidade evocativa do duplo:

Assim, o mundo exterior, os seres e os objetos do ambiente adquirem, com o


Homo sapiens, uma segunda existência, a existência sob a forma de uma
imagem mental, análoga à imagem que forma a percepção, visto que não se
trata senão dessa imagem relembrada. (...) todo o significante, incluindo o
sinal convencional, transportará potencialmente a presença do significado
(imagem mental) e esse último poderá confundir-se com o referente, isto é,
com o objecto designado. (MORIN, 1999, p. 99).

6
A palavra “indicar” remete a “índice”, que por sua vez transporta nosso olhar para o universo da semiótica
pierceana. Para essa semiótica, o signo tem uma classificação tríade (significante, significado e objeto). Nessa
classificação Pierce propõe ainda três variedades fundamentais de signo: o ícone, o índice e o símbolo. É no
caráter indiciário do signo que encontraremos mais claramente identificada a idéia paradoxal do cheiro/perfume
tal como na imagem, pois “o índice é um signo que está em contigüidade com o próprio objeto denotado. Existe
entre os dois termos uma relação de contigüidade vivida, de natureza essencial. (...) [É] impossível, citar um
exemplo de índice absolutamente puro, bem como encontrar um signo totalmente desprovido de qualidade
indicativa.” (1979, p.21).
De maneira mais direta, podemos afirmar, como fazem Peraya e Carotina, “um signo que se refere ao objeto que
denota em virtude do fato de ser realmente afetado (affected) por esse objeto.” (1979, p.21).
Nesse sentido, o perfume guarda em si um valor indiciário ao corpo e/ou indivíduo que se torna suporte desse
cheiro.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [58]

2.4 Perfume e a imagem do cheiro

Nesse momento, cabem algumas considerações acerca do fenômeno do duplo,

emerge da força mágica dos adornos, adereços, pinturas e esculturas que podem ter valor de

proteção e de sorte. Portanto, no Homo sapiens demens de que fala Morin, nasce uma

capacidade que nos possibilita interpretar e entender como uma atividade artística e uma via

estética. Nas próprias palavras do autor, temos “(...) que os fenômenos mágicos são

potencialmente estéticos e que os fenômenos estéticos são potencialmente mágicos.”

(MORIN, 1987, p.98).

Para compreender a existência das coisas na qualidade de duplo, e assim também

mágicas, devemos retornar à linguagem que abriu a porta à magia para o sapiens. O nome que

identifica a coisa tem, de certa forma, uma justa amarração, na medida em que a palavra

chama no mesmo instante a imagem mental da coisa que a evoca, conferindo a presença

mesmo em sua ausência.

Segundo Edgar Morin, que o Homo sapiens conhece e procura o prazer do gozo

estético.

A partir do momento em que toda a coisa tem uma dupla existência, uma
objectiva ligada às operações práticas, a outra subjectiva e mental, o homem
passa a poder tanto dissociar como associar o aspecto utilitário e prático das
coisas, por um lado, e, por outro lado, o sentimento agradável que as formas
delas podem suscitar, Mas isso só é possível porque a juvenilização humana
se traduziu, no adulto, pela manutenção de uma sensibilidade infantil e
lúdica, pelo alargamento e enriquecimento da sua afectividade. (1987,
p.102).

Ainda segue afirmando o mesmo autor:

A sensibilidade às formas visuais ultrapassa largamente o domínio


propriamente artístico da pintura, do desenho, da escultura, e estende-se
igualmente às formas naturais; a própria sensibilidade estética também
ultrapassa largamente o domínio das formas visuais e abre-se aos odores e
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [59]

aos perfumes, às formas sonoras (ritmos, música, canto) e a expressão


corporal (dança). (1987, p.102).

Isso tudo nos revela que a sensibilidade estética que nasce juntamente com a

consciência do duplo garantiu aos objetos, por um lado, a função clara da condição artística e,

por outro, uma função estética e mágica. Essa sensibilidade estética é o caminho para entrar

em “(...) harmonia, em sincronismo com os sons, odores, formas, imagens, cores que são

profundamente produzidos pelo universo, mas também, daqui por diante, pelo Homo

sapiens.” (MORIN, 1987, p.103).

Com essa sensibilidade estética, a cultura vai oscilar, ou seja, em certos momentos

atrofiar e em outros refinar, expandir entre todos ou limitar-se aos privilegiados. Fica claro,

portanto, que a condição estética acaba indo muito além de sua raiz biológica e passa a ser

uma característica fundamental da sensibilidade e da arte para esse indivíduo.

Nesse sentido, Morin abre a possibilidade de pensar as imagens não mais do

lugar- comum, a partir dos seus suportes, que é algo material que as acaba contaminando, mas

a partir de um olhar antropológico que se desloca para universo cultural e histórico que

constitui a matéria-prima fabricadora das imagens. Sobretudo com esse deslocamento do

sentido de pensar as imagens, retornamos ao corpo como suporte para o imaginário. É uma

importante ferramenta da cultura, pois não se ritualiza sem corpo. Nem mesmo há

transcendência. Só é possível imaginar porque estamos vivos e porque habitamos um corpo.

Portanto, é inegável que os códigos hiperlinguais só existam na medida em que os códigos

hipolinguais e linguais estejam em pleno funcionamento. No entanto, parece que nosso tempo

tem ignorado a importância do corpo como mídia, no sentido de mediação entre o homem e

mundo, transformando o corpo em imagem (bidimensional; nulodimensional). Podemos

pensar que essa estratégia de aspergir fortes perfumes sobre o corpo não é também uma

maneira arcaica de transformar esse corpo em cheiro, buscando uma permanência simbólica,

mesmo que sob a forma de espectro odorífero, pois essas substâncias quimicamente
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [60]

formuladas não são senão estratégias para se conquistar e para se obter mais visibilidade,

alimento para o olhar do outro. Ensaiamos por meio das roupas, dos gestos, dos perfumes,

armaduras que visam a esconder a verdadeira face de corpo pulsante em sentidos. Isso não

elimina a outra face dos odores, que é o estímulo para sentido do olfato. O corpo precisa de

estímulos para ser/ter a sensação de um corpo, mesmo que esse retorno ao corpo, essa

sensação corpórea, se dê na forma de simulacro, ou melhor, de um cheiro de corpo. Nas

palavras de Hans Belting, “Os corpos performatizam imagens (deles mesmos ou até contra

eles mesmos) tanto quanto eles percebem imagens externas. Neste sentido duplo, eles são uma

mídia viva que transcende a capacidade de suas próteses midáticas.” (2006, p.7).

Estendendo nossas reflexões a respeito do perfume e das imagens como textos da

cultura, podemos compreender que, tal como entende Belting, “A medialidade das imagens

transcende a esfera visual propriamente dita.” (2006, p.3). O perfume permite uma imagem de

cheiro quando o transformamos em imagens mentais próprias. Os cheiros/perfumes

estimulam a imaginação, a qual transforma os cheiros nas imagens que significam. Dessa

maneira, são os odores/olores que servem como meio para transmitir imagens. Mas ainda é

necessário que o corpo as preencha e lhes dê vida com as experiências pessoais e significados.

Essa tem sido a razão pela qual a imaginação tem geralmente resistido a qualquer tipo de

controle público.

Para que possamos compreender melhor a “imagem de cheiro”, evocamos o

pensamento de Belting, que sinaliza com propriedade a questão da imagem e do corpo. Como

insistimos em relacionar a presença somente àquilo que é visível, o cheiro também levanta

essa dualidade ausência versus presença, tão peculiar ao mundo das imagens. Assim,

apresenta-nos o autor:

As imagens tradicionalmente vivem da ausência do corpo, que é tanto


temporal (isto é espacial) quanto, em razão da morte, finito. Esta ausência
não significa que as imagens evoquem corpos ausentes e os façam retornar.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [61]

Na verdade, elas substituem a ausência do corpo com um tipo diferente de


presença. A presença icônica mantém a ausência do corpo e a transforma no
que deve ser chamado ausência visível. As imagens vivem do paradoxo de
operar a presença de uma ausência ou vice e versa (o que se aplica a
telepresença das pessoas nas mídias de hoje em dia). Este paradoxo por sua
vez, está enraizado na nossa experiência de relacionar a presença à
visibilidade. Os corpos estão presentes porque são visíveis (mesmo ao
telefone o outro corpo está ausente). (BELTING, 2006, p.7).

Porém, seguindo os caminhos da comunicação balizada pela mídia eletrônica, a

mídia terciária, questionamo-nos: que força cinestésica existe nessas imagens que são capazes

de transformar o cheiro em uma imagem?

Em André Leroi-Gourhan encontram-se possíveis vestígios a respeito da

capacidade de transmissão e mediação dessas imagens, transmitindo a idéia do cheiro.

Segundo esse autor:

O olfacto sendo meramente receptor, não dispõe de qualquer órgão


complementar de emissão de símbolos de cheiro. Permanece pois estranho
ao dispositivo mais caracteristicamente humano; a reflexão poderá vir a
codificar as suas percepções, não obstante, estas manter-se-ão
intransmissíveis. É este facto que situa a gastronomia, bem como toda a
estética olfactiva, à margem das belas-artes. (1983, p.98).

Leroi-Gourhan também afirma que a olfação é puramente receptora de odores;

não há como simbolizar, representar uma sensação olfativa. E, portanto, os odores não podem

ser transmitidos por meio das representações icônicas/imagéticas. Com isso, sustentamos

nossas hipóteses iniciais de que as imagens de odores apresentadas pela mídia são apenas uma

imagem conceitual, mítica do cheiro. A palavra mítica é empregada segundo o conceito de

mito de Roland Barthes: “(...) um sistema de comunicação, uma mensagem (...) ele é um

modo de significação, uma forma. (...) O mito não pode se definir pelo seu objeto nem pela

sua matéria, pois qualquer matéria pode ser arbitrariamente dotada de signifição.” (2006, p.

199-200).

O cheiro faz-se presente por meio da fabricação de uma imagem/representação

que o simula. Esse simulacro de imagem, para Jean Baudrillard, é “uma operação de
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [62]

substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o real

pelo duplo operatório, máquina sinalética metaestável. Programática, impecável. Que oferece

todos os signos do real lhes curto-circuita todas as peripércias (...) Dissimular é fingir não ter

o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem”. (1991, p. 9).

O pensamento de Belting lança luz sobre essa zona de opacidade que se forma

sobre a tríade imagem, corpo e mídia:

Os papéis designados à imagem, à mídia e ao corpo variam constantemente,


mas sua íntima interação mantém-se até os dias de hoje. A mídia, apesar do
seu caráter polissêmico e uso polivalente, apresenta a identificação mais fácil
e é, por esta razão, favorecida pelas teorias contemporâneas. O corpo vem
em seguida, mas em geral é cuidadosamente tomado em oposição às
tecnologias atuais e considerado com seu reverso. Por isso, é necessária uma
nova ênfase em corpos enquanto mídias vivas, capazes de perceber, lembrar
e projetar imagens. O corpo, como portador e destinatário das imagens,
operava as mídias como extensões de sua própria capacidade visual. Corpos
recebem imagens ao percebê-las, enquanto as mídias as transmitem aos
corpos. Com a ajuda de máscaras, tatuagens, roupas e performance, os
corpos também produzem imagens deles mesmos, ou no caso de atores,
imagens que representam outros – neste caso eles agem como mídia no
sentido mais pleno e original. Seu monopólio original na mediação de
imagens permite-nos falar de corpos como arquétipos de todas as mídias
visuais. (BELTING, 2006, p.9-10).

Se para Belting o corpo é o arquétipo de todas as mídias visuais, é realmente

importante retornar ao corpo como mídia viva que percebe, lembra e projeta imagens. O que

temos feito, então, com essa importante mídia do homem quando transformamos grande parte

do que é comunicação em ruído babélico, que parece existir somente para trazer maior

visibilidade e para que o ser humano seja cada vez mais notado? As transformações corporais,

os adornos, os adereços são ao mesmo tempo uma tentativa de resgatar esse corpo perdido,

sua tridimensionalidade, sua corporeidade, seus sentidos, mas na mesma medida revela a

saturação do mundo das imagens.

Tal fenômeno evidencia-se quando observamos que os sentidos estão

completamente anestesiados e domesticados, pois as formas de percepção estética exibidas

pelos meios de comunicação contaminam o nosso olhar e nos fazem aspirar continuamente
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [63]

àqueles modelos. Isso revela a insistente e constante transformação por parte do sistema

(meios de comunicação) do mundo da vida em simulacro dos modelos apresentados nessas

diversas mídias.

Esse quadro sóciocultural nos faz perguntar se terá sempre sido assim na história

do ser humano. Sabemos que espelhar-se em algo ou alguém faz parte da natureza humana.

Mas por que tal fenômeno tomou dimensões desmedidas? Seria tudo isso fruto do tempo dos

excessos, ou melhor, dos excessos do tempo que prefere a imagem à coisa e a elevou à sua

máxima exponencial? Vêm à baila ainda mais alguns questionamentos: o que tem acontecido

com os corpos e seus sentidos nesse tempo de exponencial inflacionamento de imagens?

Acreditamos encontrar resposta para essas questões no passado histórico. Pensar a

comunicação e semiótica da cultura requer um trabalho de pesquisa que saiba sobreviver,

reviver e ler as marcas que se imprimem sobre os suportes, as superfícies, sobre os corpos,

enfim, tudo aquilo que comunga e sofre a ação do tempo e, portanto, é fruto da história. Por

meio de uma perspectiva temporal e histórica, analisamos o corpo e seu desempenho como

suporte midiático do homem com o mundo. Observando esse fenômeno, esperamos encontrar

a verdadeira face do corpo e seus sentidos frente às mudanças históricas e culturais. É fato que

o corpo tem uma memória em si e uma memória de si, e que esse corpo se tece como textos

pessoais dentro de um macrotexto que é o da cultura, que dá origem à escritura da espécie por

meio do cruzamento de informações genéticas e somáticas. Trata-se de uma tentativa de se

adaptar aos contextos natural e simbólico-cultural que o indivíduo constrói.

O que percebemos é que nem sempre foi assim. Esta era marcada pela visibilidade

fez surgir a necessidade de transgredir as barreiras do tempo, da vida, e, portanto, do corpo.

Segundo Campelo,

(...) em épocas anteriores viemos para nos reproduzir (...) em outras viemos
para tentar permanecer para experimentar a resistência o mais que
pudéssemos às intempéries, às doenças, à toda sorte de impedimento. Houve
épocas em que viemos para ousar: atravessamos continentes, cruzamos
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [64]

desertos, lutamos com feras, navegamos oceanos desconhecidos, deixamos o


conforto do território. Houve tempo em que marcamos nossa vinda pela
nova invenção contínua, imitando a própria vida em sua experimentação
incessante. Em outros tempos, viemos para conhecer, quando desamassamos
a física, a química, a medicina, a matemática, as letras, as artes, a música, a
astronomia, a biologia. Parece que agora estamos aqui para exceder nossos
limites, o limite da Terra, o limite da vida, o limite do próprio tempo. (2006,
p.4).

Para compreender essa época que Cleide Riva Campelo denominou “tempo de

exceder nossos limites”, que não é senão aquilo que também Baitello chama de “tempo dos

excessos”, que por sua vez é resultado de um projeto da modernidade que visa à emancipação

do homem, é necessário retornar aos objetivos de tal projeto de emancipação, que também

remetem ao corpo como projeto de civilização. Segundo Kamper (2006), a disciplina do corpo

começa a aparecer no final da Idade Média. O homem passa a ser medido por regras e modos

que determinam a maneira de convivência, de relacionamento e de boa educação. Esse

conjunto de regras aprisiona a “natureza interna”, que é submetida a uma abstração social,

produz uma boa imagem aos outros: a de sermos polidos, a de sermos intocáveis e a de

sermos objeto de desejo.

As possibilidades de uma defesa simples mediante o corpo: a mobilização,


portanto, da sensibilidade ou de um “imediatismo natural, feita valer
positivamente, assim como se fez no início sobretudo no âmbito da “teoria
crítica, parecem agora escassas, desde quando isto é uma microfísica do
poder (Foucault), que colocou em evidência que a produtividade histórica
‘da autodisciplina’ e do autocontrole sobre o corpo é bastante penetrante e
tem efeitos em grande irreversíveis. Isso é motivo para se acreditar que justo
os atuais movimentos de emancipação (humanização do mundo do trabalho,
cidadãos em uniformidade, reforma da escola, moderno sistema penal,
liberação sexual, melhoria da assistência médica) faz somente adicionar,
conquanto sob o manto de uma “transformação emancipadora” do corpo em
imagens do corpo, a obtusidade do corpo classe no curso da história, não
sustando de fato os processos de separação em ação. (KAMPER, 2006, p.8-
9).

Esse processo contínuo de imposição de uma disciplina do corpo provocou o que

Kamper nomeou de transformação do corpo em imagem do corpo. Esse fenômeno é fruto do

processo civilizatório em que os indivíduos são ensinados a dominar o corpo, a sedá-lo, a


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [65]

senti-lo de forma não-intencional. Em outras palavras, vivemos a incorporeidade do corpo. À

medida que abdicamos do corpo, deixamos de nos relacionar (interpessoal), perdemos nossos

sentidos e, assim, paramos de comunicar. Tudo isso passa a ser feito por meio das imagens. E

A partir de então, passamos a nos confundir com as imagens e a agir como elas;

transformamo-nos, e de maneira inquestionável, propriamente em imagem. E é nas imagens

que está o desejo de imortalidade que pertence ao homem.

O que sobrevive, então, em nosso tempo, são formas natimortas de corpo que não

trazem em si nem de si sua história, mas são, acima de tudo, um amontoado de matéria-prima

condenado à “incomunicação”. Os corpos perderam sua característica mimética biocultural e,

por isso, tornaram-se eternamente saudáveis, jovens e belos, porém incapazes de comunicar-

se com o mundo, por serem formas preestabelecidas que não representam a singularidade de

cada corpo.

Com a expansão dos conceitos de comunicação, corpo e mídia que a Semiótica da

Cultura nos habilita fazer, buscamos situar o perfume como mídia para o homem. Essa

abordagem nos impele a pensar mais especificamente o sentido do olfato para o homem

contemporâneo e a sua importância para a comunicação interpessoal de proximidade. É,

portanto, essa a proposta do próximo capítulo dessa dissertação.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [66]

CAPÍTULO III
CORPO, PERFUME E OLFATO: TRÍADE PARA UMA COMUNICAÇÃO
INTERPESSOAL DE PROXIMIDADE

3.1 Comunicação olfativa

Para compreender o sentido do olfato como meio de comunicação do homem com

o mundo, retomamos a etimologia da palavra sentir, que provém do latim sentire, por sua vez

oriunda da raiz indo-européia sent, que significa “dirigir-se, ir, seguir mentalmente”

(ACKERMAN, 1996, p.18).

Somos conduzidos e norteados pelos nossos sentidos, vias de acesso do homem ao

mundo e do mundo ao homem. Possuímos uma percepção sensível que nos possibilita crescer.

Ao mesmo tempo, essa percepção nos ata ao aqui e o agora, como se observa nos sentidos de

proximidade.

Dada a importância dos sentidos para o homem e sendo eles uma importante via

de acesso do homem ao mundo, não podemos negar que os sentidos corporais desempenham

um importante papel de meio de comunicação do ser humano com o mundo, retomando, ainda

que indiretamente, o conceito de Harry Pross (1987) de mídia primária, já exposto.

Além dessa premissa, pautamo-nos ainda no conceito de Cyrulnik de que o corpo

é um organismo poroso e, portanto, somos seres que dialogam constantemente com o mundo

por meio dos sentidos de nossa pele. Quanto a esse conceito, assim o apresenta o autor: “O

indivíduo é um objecto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser

o mesmo quando o biótipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar, a ponto de

se tornar ele mesmo um bocado de meio ambiente.” (1996, p.92).

Nessa idéia de organismo poroso está impressa claramente a noção de um

organismo que elabora vínculos com o ambiente e com o mundo, porque o ser humanoprecisa

do “estar-em, estar-com e fazer como se”. Fica evidente toda a teoria de Dieter Wyss (1976)
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [67]

sobre a comunicação com déficit e também da comunicação com vínculo. Como aponta

Cyrulnik (1996), quando o indivíduo está-em, deixa-se envolver pelo meio ambiente; quando

está-com, age sobre o corpo do outro e sobre suas emoções; e quando faz como se, passa a

agir sobre a psique do outro, por meio dos gestos, posturas e palavras que interferem sobre as

representações do outro. “De todos os organismos, o ser humano é provavelmente o mais

dotado para a comunicação porosa (física, sensorial e verbal), que estrutura o vazio entre dois

parceiros e constitui a biologia do ligante.” (CYRULNIK, 1996, p.92).

Ao entender o ser humano como organismo poroso, é preciso voltar o olhar para o

elemento ligante dos corpos. Segundo Cyrulnik (1996), existe um fluido, uma força animal

invisível, que comunica e atua entre os corpos. A substância ligante entre os organismos é o

olfato. Portanto, o pensamento do autor revela o papel desempenhado, ainda que

inconscientemente, pelo olfato na comunicação humana. Além disso, esse mesmo autor

afirma ainda que essa porosidade somente se fecha com o esgotamento da vida do corpo.

Enquanto estiver vivo, o corpo precisa da troca para se manter.

Com base no etólogo Boris Cyrulnik (1995), observa-se a existência de uma

comunicação intra-uterina, embora a criança não utilize a linguagem verbal. Com os sentidos

corporais que irrompem durante a gestação, é possível estabelecer um vínculo comunicativo,

pois não é só uma troca de informação mãe-bebê que ocorre nesse jogo de linguagem, mas

muito mais do que isso; é uma apropriação criança-mãe.

Não obstante, também é possível sustentar essa hipótese durante a gestação

humana. É ainda em Cyrulnik que encontramos a sustentação para isso, quando ele revela que

toda mãe sabe que o bebê recém-nascido se acalma na presença do seu cheiro, mesmo que

este esteja impregnado num pano. É por meio do cheiro que o bebê torna presente a mãe

ausente, ou seja, há um odor característico no líquido aminiótico intra-materno. O recém-

nascido tem em si e para si uma memória olfativa que vai carregar, mesmo que

inconscientemente, por toda a sua vida. Portanto:


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [68]

(...) todos os bebês do mundo adormecem com facilidade quando abraçados


com a mãe ou com um pano que conserve seu cheiro, comprovando assim
que, para além da palavra e da cultura, a sensorialidade funciona como uma
informação fonte de emoção que evoca e prova uma conduta.(CYRULNIK,
1995, p.20).

Dialogando de certa forma com Cyrulnik, a dissertação de Maria do Carmo

Oliveira, intitulada “Comunicação do recém-nascido: respiração”, trata da importância da

olfação para o bebê como fonte de prazer no momento da amamentação:

(...) Em geral, o recém-nascido, quando mama na mãe, fecha os olhos, funga,


e a respiração aumenta seu ritmo. Nesse momento ele denota prazer.
É um mundo fantástico, todo sensório, encantador! E tudo isso é expresso
pelo ritmo respiratório, que se revela ao observador atento, cada significado
com alteração desse discurso rítmico. (OLIVEIRA, 1992, p.13).

Mais adiante, afirma ainda a autora:

O recém-nascido esfrega o nariz na mãe, especialmente no seio quando


busca sugá-lo, e, nesse ato, ele faz uma ou mais respirações curtas e rápidas.
Isso, além de contribuir para tornar o ato de amamentar mais prazeroso,
transmite ao paladar também influências dos receptores olfativos. (1992,
p.35).

O que ocorre nessa relação mãe-bebê desde a fase intra-uterina não é um simples

jogo de informação, mas um jogo mais complexo de linguagem, que aqui denominamos

vínculo, porque é por meio da respiração do recém-nascido que se estabelecem relações. É

por meio desse vínculo que o recém-nascido estrutura o mundo ao seu redor. O bebê já nasce

como um ser deficitário, segundo os conceitos de Wyss e Pross. Por isso, precisa vincular-se

de alguma forma. Para sentir-se inserido no mundo, precisa do aconchego da mãe no início de

sua vida. Depois, ao longo do desenvolvimento, seus vínculos vão se tornando mais

complexos e se expandindo em direção a outros objetos e pessoas.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [69]

Essa constatação dá sustentação para analisar o que ocorre com os sentidos no

meio aéreo quando o bebê vem ao mundo.

Essa passagem do mundo líquido para o aéreo é assim apresentada:

É uma mudança ecológica. Ao mudar de meio, no dia do nascimento,


levamos conosco os nossos primeiros modos de comunicação, os nossos
canais sensoriais que, ainda no útero, nos tinham permitido familiarizar-se
com uma sensorialidade sonora, olfactiva e acariciadora oriunda do mundo
materno.
No exacto instante do nascimento, a vinculação muda de forma. Os nossos
sentidos que funcionavam num mundo líquido, de repente vão ter de
funcionar num mundo aéreo. O recém-nascido, que conserva a memória da
vida intra-uterina, deverá agora adaptá-la a uma vida aérea. (CYRULNIK,
1989, p.45).

Com a chegada ao mundo aéreo, o indivíduo entra em um mundo também

estruturado pelos valores culturais impregnados por essas estruturas. Pouco a pouco, seus

sentidos vão sendo corrompidos e, com isso, acabam reduzidos àquilo que é culturalmente

aceito. No entanto, nos primeiros momentos de vida, ainda não absorvidos pelas estruturas

culturais, os sentidos manifestam-se segundo a memória construída na fase intra-uterina. A

essa memória Cyrulnik (1995) atribui o nome “memória de curto prazo”. É ela a responsável

pela adaptação ao novo meio ambiente, desde o nascimento do bebê. Essa memória é

evocadamais por meio da olfação do que por qualquer outro sentido, pois a criança, por meio

dela, torna-se capaz de reconhecer e acalmar-se frente ao cheiro da mulher em que foi gerada,

tornando-se vigilante quanto a estímulos odoríferos que são diferentes.

O processo de aculturalmento desse pequeno ser vivo inicia-se na fase intra-

uterina, quando ele é bombardeado pelo líquido amniótico que o envolve e pelo perfume que

dele emana. Esse perfume, afirma Cyrulnik, provém dos alimentos ingeridos e também do

próprio meio ambiente:

É a mãe, portanto, que perfuma o líquido amniótico com seu próprio corpo:
ela adiciona-lhe açúcar (glicose e frutose), uma pitada de sal, um tiquinho de
ácido cítrico, algumas proteínas (creatinina, uréia) e muito ácido láctico, o
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [70]

que dá ao líquido amniótico um gosto de iogurte. A atmosfera olfativa da


mãe acrescenta ao leitelho um aroma circunstancial: o cheiro das cidades e
da vegetação rasteira dos bosques, o perfume do homem que ela ama, ou o
cheiro de seu cigarro (...). (1995, p.50).

É sobre esse amontoado de sabores e odores oriundos dos alimentos e do meio ambiente que

se assentará toda a memória a curto prazo. Trata-se de um verdadeiro centro culinário no qual

o pequeno indivíduo terá suas primeiras experiências sensoriais. Para Cyrulnik, os diferentes

aromas que compõem este líquido podem ser responsáveis pela comunicação bebê-mãe. Uma

vez que grande parte da memória de curto prazo se constitui de uma memória química que

impregna os sentidos do bebê durante boa parte do período de gestação e que serve de baliza

para os primeiros vínculos comunicacionais do bebê com o mundo, na transição do meio

aquoso (placentário) para o meio aéreo. No primeiro contato entre a mãe e o bebê, eles se

cheiram e se tocam. Pela alteração hormonal da mãe, o bebê passa a reconhecer esse ser em

"estado químico alterado" como mãe, já que os odores químicos percebidos já se encontravam

no útero materno.

Corroborando o pensamento de Cyrulnik, Ackerman menciona uma constatação

de Daphne e Charles Maurer na obra The world of newborn, que vem ao encontro do

pensamento desse autor: realmente, enquanto recém-nascidos, nossos sentidos estão todos

misturados; porém, o que predomina é o cheiro. Assim:

Seu universo [do bebê] tem cheiro muito semelhante ao do nosso mundo,
mas o bebê não percebe o olfato somente pelo nariz. Ele ouve os odores, vê
os odores e sente-os também. Seu mundo é uma mistura de aromas
pungentes – e sons pungentes, e sons amargos, e visões doces, e pressões,
contra sua pele de cheiro acre. Se nos fosse dado visitar o mundo de um
recém-nascido, acreditaríamos estar no interior de alucinógena perfumaria.
(1996, p.339).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [71]

Muito além dessa memória comparável à de um gourmet7, Cyrulnik crê na

existência de um padrão comunicativo que nos une. Ele descreve a experiência da filmagem

das mímicas faciais dos recém-nascidos, quando se coloca em sua língua uma gota de água

açucarada e, depois, uma gota de água amarga. O resultado foi que todos os recém-nascidos

experimentaram a água açucarada sorrindo, enquanto que a amarga revelou caretas de

aversão. “Os bebês confirmam a idéia etológica de que existe nos seres vivos um programa

biológico comum, cuja aculturação tem início no instante em que começa a funcionar.”

(CYRULNIK, 1989, p.36).

Dando voz ao pensamento do etólogo Boris Cyrulnik, temos:

Esta observação permite-nos concluir que os fetos teriam uma experiência


culinária intra-uterina, visto que nas horas que se seguiram ao nascimento, os
recém-nascidos marselheses reagiram diferentemente dos recém-nascidos
parisienses. A cultura culinária da mãe formou o seu gosto, quando ainda
estavam no interior do útero. (CYRULNIK, 1989, p.35).

Nesse sentido, o mundo do recém-nascido permanece igual até a trigésima

semana, quando se dá o reconhecimento visual da mãe; até então, somente reconhecia sua

mãe por meio do cheiro (entendido aqui como o reconhecimento químico semelhante ao qual

esse bebê se encontrava no útero materno), segundo o que evoca sua própria memória de

curto prazo. O vínculo mãe-bebê está todo norteado pelos sentidos de proximidade:

Agarra-se a um objecto vivo quente, cujo odor reconhece no próprio instante


do nascimento. Mais tarde, as percepções sensoriais vão aperfeiçoar-se: a
cor, a forma, o tamanho e o movimento acrescentarão outros elementos
sensoriais à constituição biológica desta familiaridade.

7
Cabem aqui ainda algumas considerações quanto a essa idéia apresentada por Cyrulnik (1995) de que, no feto e no recém-
nascido, os sentidos estão misturados e, de certa forma, essa característica caótica permanece no ser humano no que tange à
relação da gustação e da olfação, mesmo ainda na fase adulta, haja vista que muitos dos gostos que sentimos, da maior parte
das coisas que colocamos na boca, depende na verdade do seu cheiro (LENT, 2001).
Essa estreita relação que existe na primeira infância entre o sentido da gustação e da olfação está também sinalizada nas
línguas portuguesa, francesa e espanhola pelo verbo sentir que pode expressar tanto a idéia do sentido da olfação quanto da
gustação. O verbo ‘sentir’ indica mais de um sentido: sentir um cheiro (olfato), sentir um gosto (paladar), sentir um
toque/uma dor/calor/frio (tato). Esse verbo tem esse sentido “plurissensual”.
Para maiores esclarecimento, indicamos a leitura da obra:
LENT, R..Cem milhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências, São Paulo: Atheneus, 2001.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [72]

(...) Em primeiro lugar recebida como objeto parcial [a mãe], sob a forma de
percepções sensoriais elementares (contacto, calor, odor, sonoridades),
tornar-se-á, mais tarde, na imagem visual materna, percebida de longe, e
diferente das outras. (CYRULNIK, 1989, p.104).

Será que, na fase adulta, o olfato ainda desempenha esse mesmo papel? O faro do

recém-nascido não se manifesta no adulto, uma vez que já estará revestido completamente

pelo ditames culturais. O corpo e seus sentidos tornam-se de certa forma adestrados. Ainda

assim, o olfato é capaz de fazer a ponte comunicativa do homem com o mundo. Quanto a essa

questão da “mediação olfativa” e a formação da “imagem olfativa” no ser humano, Leroi-

Gourhan apresenta uma importante constatação:

É-nos impossível conseguir ter uma idéia clara daquilo que possa ser uma
imagem olfativa do mundo, dado que o equipamento olfactivo dos Primatas
e dos Artrópídes desempenham, a nível das suas imagens espaciais, uma
mera função de complemento. No caso do homem, dentre os sentidos de
relação, o olfacto ocupa uma situação particular. Com efeito, a visão e a
audição, comprometidas com a linguagem à semelhança da mão, são os
únicos elementos do sistema de emissão e de recepção que torna possível a
troca de símbolos figurativos. O olfacto, sendo meramente receptor, não
dispõe de qualquer órgão complementar de emissão de cheiros. Permanece,
pois estranho ao dispositivo mais caracteristicamente humano; a reflexão
pode vir a codificar as suas percepções, não obstante, estas manter-se-ão
intransmissíveis. É esse facto que situa a gastronomia, bem como toda a
estética olfactiva, à margem das belas-artes. (1983, p.98).

Em outras palavras, a “memória olfativa” é constituída por imagens. Nas palavras

do autor, o cheiro, comparado às imagens espaciais, são “meros complementos”. É impossível

para o ser humano transmitir aquilo que foi percebido. O autor levanta a questão de que o

olfato e a gastronomia guardam uma relação com as belas-artes, pois, por meio delas, é

possível explorar visualmente, transformar experiências estéticas diante do quadro em

símbolos, transmitindo ao outro essa sensação. Já a gustação e a olfação não nos permitem

transformar em símbolos nossas experiências, sobretudo no que se refere às características

estéticas do reconhecimento gastronômico. “O gosto, o cheiro, a consistência, constituem

teoricamente a base real dessa estética sem linguagem.” (LEROI-GOURHAN, 1983, p. 99).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [73]

Pode-se afirmar que a culinária, assim como a alta gastronomia, tornou-se uma

grande arte capaz de elaborar não só deliciosos pratos, mas também maravilhosas e

verdadeiras obras de arte, que servem de convite à gustação. Entretanto, essa arte não

figuratiza o gosto:

A aliança do tomilho com o sal e a noz-moscada é intraduzível em


movimentos ou até mesmo em simples palavras. A arte culinária escapa à
característica específica de todas as outras artes: a possibilidade figurativa,
pois não emerge a nível dos símbolos. Tudo é teoricamente simbolizável,
mas, em gastronomia, tal como é possível através de uma autêntica prótese:
o ordenamento de uma refeição poder ser um símbolo da marcha do mundo,
mas trata-se apenas de um ritmo dos serviços e do sentido das iguarias, à
margem, portanto, das suas características gastronômicas; o cheiro do
tomilho pode ser o símbolo evocador do amanhecer na charneca, mas tal
tem apenas a ver com o que restou no homem no plano olfactivo enquanto
referência espácio-temporal; um prato poder ser um quadro, mas nesse caso
entra no campo das referências visuais, não sendo porém, sua representação,
figurativa do seu gosto. (LEROI-GOURHAN, 1983, p.99).

Devido à nítida prevalência da visão e da audição sobre o olfato, o paladar e o

tato, a visão passou a modificar muito a percepção que um indivíduo tem do mundo. Leroi-

Gourhan sugere que a percepção olfativa é alterada pelo sentido predominante, a visão.

(...) no homem, mamífero de olfacto pobre, o alimento começa por ser


objecto de um reconhecimento visual, de tal modo que, se se serve uma
refeição sob uma luminosidade violácea, parte importante do
reconhecimento olfactivo torna-se bastante duvidosa, além de que a absorção
em tudo aquilo que implica de participação viceral é alterada. Ora, já não se
trata do fenômeno existente quando se serve um frango de biscoito coberto
de caramelo, imitação bastante conseguida do verdadeiro volátil; o efeito
assemelha-se então ao de uma ilusão de óptica, sendo imediatamente,
objecto de uma transposição que não perturba o processo de aceitação, trata-
se dum efeito estético suplementar e não duma ruptura das convenções
normais. (LEROI-GOURHAN, 1983, p.100).

O cheiro é um elemento muito íntimo. Toda a atmosfera (sinônimos!) sob um olor

é própria para cada ser humano. No entanto, é fato que, como afirma Leroi-Gourhan, certos

odores estão de certa forma amarrados a uma determinada “ambiência olfativa” irreconhecível
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [74]

em torno de outra esfera de ambiência, o que acaba por isolar esses cheiros da existência

normal.

(...) os cheiros, através dos impulsos poderosos que provocam [tornam-se] o


elemento determinante do posicionamento do indivíduo. Basta imaginar um
santuário em que pairasse um insinuante cheiro de cozinha ou um campo de
batalha atravessado por suaves eflúvios primaveris para nos darmos conta
das rupturas de condicionamento que daí resultariam. Condicionamento,
porque, em definitivo, os cheiros permanecem profundamente
comprometidos com o fisiológico; assim, a devoção bíblica concentrava-se
num ambiente de carnes grelhadas, tal como a guerra por vezes entre campos
de mimosas, factos que permitem salientar simultaneamente a importância
das tradições adquiridas e o carácter flexível do comportamento olfactivo
enquanto referência situacional, já que um cão deixaria de acreditar na carne
se esta passasse a ter o cheiro do feno acabado de cortar e o homem deixaria
de acreditar no combate se o campo de batalha fosse atravessado por
imagens de festa popular.(LEROI-GOURHAN, 1983, p.102).

Cyrulnik (1995) menciona uma paciente sua que, sob grave crise emocional após

a perda do marido, decidiu limpar o armário. Da data da morte até a decisão da limpeza do

armário passaram-se três anos. Ela já se encontrava calma. Os primeiros dias de limpeza

transcorreram normalmente. Mas, em certo momento, ela abriu o armário e a imagem do

marido retornou à sua mente. Sentindo as lágrimas brotar, ela se espanta. Descobriu que, no

fundo desse armário, havia uma sacola de esportes fechada que conservava o cheiro do

marido. Observa-se nessa queixa clínica da paciente que o cheiro foi um importante vínculo

com o fato ocorrido.

Leroi-Gourhan estrutura de maneira clara como a relação entre os sentidos

corporais e as percepções que o ser humano tem do mundo. Demonstra, ainda, que existe no

ser humano um elo operatório resistente entre o campo operatório facial e manual e entre a

apreensão e a visão.

Dum ponto de vista estético, o olfato está estritamente ligado às cadeias


visual e auditiva; um determinado cheiro, não sentido há longos anos, evoca
bruscamente cenas ou sons esquecidos desde a infância, pois não possuímos
a lembrança do cheiro como podemos possuir de um determinado
acontecimento, mas a percepção olfactiva, precisamente por pôr em
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [75]

movimento zonas fisiológicas estranhas à reflexão, confere as imagens


reflectidas uma profundidade e uma intensidade consideráveis.
É nesse sentido que os cheiros podem ser um elemento determinante de
ruptura com as cadeias ordinárias, provocando estados de apaziguamento ou
contribuindo para uma sobreexcitação. Determinados meios, subtraídos ao
meio espaço-temporal corrente, prendem-se com uma ambiência olfactiva
que os isola da existência normal.(1983, p.101).

Isso remete ao profundo pensamento de Proust citado por Cyrulnik., Mesmo sob

estruturas culturais que nos submetem, os odores e o sentido do olfato continuam sendo um

importante meio de comunicação do homem com sua história, com seu mundo, constituindo,

ainda que de maneira recalcada culturalmente, o cheirar, a memória olfativa, a qual irrompe

com a emoção evocada pelo cheiro sentido.

Mas quando de um passado remoto nada subsiste após a morte dos seres,
após a destruição das coisas, apenas eles – mais tênues, porém mais vivazes,
mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis –, o cheiro e o sabor, perduram
ainda muito tempo, como almas a se lembrar, a esperar, a ansiar por sobre a
ruína de todo o resto, a carregar sem vergar, em sua gotícula quase
impalpável, o edifício imenso da lembrança. (CYRULNIK,1995, p.21).

O corpo é uma inteligência viva, capaz de perceber o mundo por meio dos

sentidos, que se tornaram verdadeiros canais de diálogo. Essa percepção ocorre

principalmente por meio dos sentidos de proximidade. Porém, nosso tempo tem

evidentemente recalcado a mídia primária em detrimento da mídia terciária. É o corpo que

não pode tocar, é o corpo que não pode cheirar. Sentir o mundo pelo faro pertence à esfera

dos animais macrossomáticos. Nós, animais racionais e simbólicos, utilizamos a visão.

Seguindo essa máxima esquecemos que o corpo sempre precisou do cheirar, do sentir e do

colocar tudo na boca. Esses canais serviram ao bebê como importante meio de comunicação e

compreensão do mundo. A visão foi um dos últimos sentidos a dar noção do mundo para o

bebê. No entanto, temos feito desse canal comunicativo o império da pós-modernidade, em

que as imagens ganham cada vez mais espaço. Nossa cultura impõe que é proibido tocar e

proibido farejar. O corpo adulto pune-se, pois precisa sentir por meio do toque e do farejar.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [76]

3.2 Por uma arqueologia olfativa

No mapeamento da olfação como meio de comunicação, constata-se que ela tem

uma estreita relação com a emoção. Investigamos, então, que tipo de relação há entre o

cérebro emocional e o olfato, o que o possibilita evocar uma emoção passada associada a um

cheiro.

Daniel Golleman (1995) afirma que o cérebro, complexo tal como o entendemos

atualmente, surgiu com pouco mais de um quilo de células que evoluíram ao longo de milhões

de anos, e que o desenvolvimento do cérebro no embrião refaz mais ou menos o mesmo

percurso evolutivo.

Esse cérebro mais primitivo, presente em todas as espécies que têm um sistema

nervoso minimamente desenvolvido, constitui-se de um tronco cerebral em torno do topo da

medula espinhal. “Esse cérebro-raiz regula funções vitais básicas, como a respiração e o

metabolismo dos outros órgãos do corpo e, também, controla reações e movimentos

estereotipados.” (GOLLEMAN, 1995, p.24).

Constata o auto, ainda, que o cérebro primitivo não pensa e aprende de maneira

contrária. É, antes, um sistema pré-programado para reagir de maneira a garantir a

sobrevivência da espécie. Essa morfologia cerebral predominou durante toda a era dos répteis.

Desse tronco cerebral, que é a raiz mais primitiva do cérebro, surgiram os centros

emocionais, deram origem ao cérebro pensante, denominado neocórtex, o grande bulbo de

tecidos ondulados que forma as camadas superiores. Então, constata-se que o cérebro é o

pensamento das emoções. Esse fato revela muito da relação entre pensamento e sentimento.

Sem dúvida, havia um cérebro emocional muito antes do racional. O mais instigante que se

pôde observar é que:


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [77]

A mais antiga raiz de nossa vida emocional está no sentido do olfato, ou


mais precisamente, no lobo olfativo, as células que absorvem e analisam o
cheiro. Toda entidade viva, seja nutritiva, venenosa, parceiro sexual,
predador ou presa, tem uma assinatura molecular distintiva que o vento
transporta. Naqueles tempos primitivos, o olfato apresentava-se como um
sentido supremo para a sobrevivência. (GOLLEMAN, 1995, p.24).

Portanto, o que mostra esse autor é que, a partir do lobo olfativo, deu-se a

evolução dos mais antigos centros da emoção. Nesse estágio da evolução, o centro olfativo

contava com apenas algumas camadas de neurônios para analisar o cheiro. Havia, portanto,

uma camada de células que recebia o que era cheirado e classificava-o nas categorias

relevantes: comestível ou tóxico, sexualmente acessível, inimigo ou comida. Já a outra, uma

segunda camada de células, enviava mensagens reflexivas a todo o sistema nervoso, passando

um comando ao corpo do que devia fazer: morder, cuspir, abordar, fugir, caçar.

(GOLLEMAN, 1995, p.24).

Nos mamíferos, surgiram novas camadas de células do cérebro emocional que

constituíram, no lugar onde se encaixa o tronco cerebral, uma nova estrutura que tem o

formato de um pastel mordido embaixo, que se denominou de sistema límbico, nome oriundo

da palavra latina limbus, “orla”. (GOLLEMAN, 1995, p.24).

A partir dessa conquista evolutiva, essa estrutura cerebral foi responsável pelo

aperfeiçoamento de duas importantes ferramentas: a memória e o aprendizado. Por meio dessa

estrutura, o animal tornou-se um pouco mais especializado, capaz de adquirir maior repertório

(memória), o que possibilitou o armazenamento de mais informações e o aprendizado frente a

situações novas, ao contrário da situação arcaica, em que somente havia um conjunto de

reações invariáveis e automáticas já pré-programadas.

Mais ainda: nesse contexto, o olfato tinha em si um importante papel nas decisões

quanto ao que comer ou o que rejeitar. A ligação entre o bulbo olfativo e o sistema límbico

contribuiu para “estabelecer distinções entre cheiros e reconhecê-los, comparando um atual

com outros passados, discriminando assim o bom do ruim. Isso era feito pelo ‘rinencéfalo’,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [78]

literalmente, o ‘cérebro do nariz’, uma parte da fiação límbica e a base rudimentar do

neocórtex, o cérebro pensante.” (GOLLEMAN, 1995, p.25).

Segundo ainda o mesmo autor, o cérebro dos mamíferos tornou-se mais

complexo. Isso ocorreu há cerca de cem milhões de anos. Essas duas camadas de células que

constituíam o córtex eram responsáveis pelo planejamento, pela compreensão do que é

sentido e pela coordenação dos movimentos. Delas emergem novas camadas de células

cerebrais, denominadas neocórtex. O neocórtex ofereceu maior vantagem intelectual: “(...) é a

sede do pensamento; contém os centros que reúnem e compreendem o que os sentidos

percebem. Acrescenta a um sentimento o que pensamos dele – e nos permite ter sentimento

sobre idéias, arte, símbolos e imagens.” (GOLLEMAN, 1995, p.25).

É evidente que o surgimento do neocórtex dotou o Homo sapiens da capacidade

de planejar a longo prazo, além de outras complexidades mentais. No que tange à questão da

complexidade, é em Edgar Morin (1988), em O paradigma perdido, que se encontrarão

vestígios para entendê-la:

[O homem] é um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, ri e


chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento,
furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a
morte, mas que não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a
magia, um ser possuído pelos espíritos e deuses, um ser que se alimenta de
ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo
são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e à vagabundagem, um ser úbrico
que produz desordem. E como chamamos de loucura à conjunção da ilusão,
do excesso, da instabilidade, da incerteza entre o real e o imaginário, da
confusão entre o subjetivo e o objetivo, do erro, da desordem, somos
obrigados a ver o Homo sapiens como Homo demens. (1988, p.109).

Todo esse caráter de demência do Homo sapiens, que parece puramente negativo,

é ele quem o inaugurou para um mundo de imensa criatividade. Os sonhos, delírios e

patologias mais dolorosas contribuíram para o alargamento de seus horizontes perspectivos e

estéticos, propiciando o desenvolvimento de uma inteligência aberta ao imprevisto, à

incerteza, enfim, à desordem. No entanto, esse quadro de desordem e delírios, próprio desse
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [79]

Homo sapiens demens, ao mesmo tempo em que contribuiu para sua complexidade cultural,

revelou também a face obscura do Homo sapiens, que são as tendências mais regressivas e

socialmente pouco constitutivas, caráter próprio de ser demens.

(...) a conexão entre o cérebro límbico (memória e emoção) e o lobo pré-


frontal (antecipação) se fez à revelia da triagem neurônica do tálamo. Essa
conexão aparece em alguns mamíferos, desenvolve-se nos primatas não-
humanos e ocupa uma parte importante dos circuitos cerebrais no homem.
Em outras palavras, o cérebro humano, entre todos, é o mais apto a tratar e
articular informações relacionadas com coisas ausentes, como fenômenos
desaparecidos e com acontecimentos passados ou por vir.
Essa organização cerebral nos permite compreender que nossos sinais
olfativos são recalcados em favor dos sinais visuais, fortemente associados à
memória e à emoção, e nos leva a sustentar que o significado e o sentido
passam primeiro pela imagem, bem antes da fala. Podemos compreender,
imaginar e dar sentido ao mundo com imagens. (CYRULNIK, 1995, p. 24-
25).

Cyrulnik faz uma importante revelação sobre a morfologia e o funcionamento do

neocórtex, o que nos faz pensar que talvez seja por essa “organização cerebral”, e não só por

aquilo que Freud denominou de “recalque do orgânico”, que, para o Homo sapiens, os

estímulos olfativos não têm o mesmo poder de comunicação do organismo, por meio desse

sentido com o nosso corpo. Observa-se que as imagens assumem para o neocórtex a mesma

importância que os estímulos olfativos tinham para o cérebro mais arcaico, pois agora são as

imagens que estão mais associadas à memória e à emoção.

Outra hipótese que se pode associar à constatação de Cyrulnik (1996) é a de que

as imagens têm maior poder de cativar e hipnotizar, o que se deve ao momento em que o

cérebro adquiriu tal morfologia, enquanto as moléculas odoríferas, no instante em que são

decodificadas, põem-nos em ação, resultando numa classificação instantânea que nos faz

gostar ou repudiar um cheiro. Essa sobreposição da visão em detrimento do olfato deve-se

também à racionalização do mundo.

Leroi Gourrhan assinala as diferenças anatômicas do homem mais racional e do

cão mais emocional, comprovando a raiz do afeto com a olfação, apontada por Goulleman:
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [80]

(...) no homem, sendo a vista um órgão de exploração, assegura à mão o


exerecício de funções não apenas de preensão, mas também de construção
complexa. Enquanto que a resultante do processo evolutivo do cão tende
para territórios comuns ao olfacto e à afectividade, sem quaisquer soluções
figurativas, as resultantes humanas, no sentido da visão e da motricidade
manual, abrem o universo duma imaginação racional. (1983, p.101).

É fato que o lobo olfativo nos animais macrossomáticos ainda funciona da mesma

maneira observada na morfologia mais arcaica do cérebro humano. Para esses animais, o faro

serve nitidamente como meio de buscar a assinatura olfativa do indivíduo. Por isso, por

exemplo, o cão fareja a púbis de um indivíduo, para decodificar a assinatura do mesmo, saber

seu sexo, sua condição de receptividade e sua influência social. No entanto, o cheiro ou o

sinal olfativo cria um tempo de encontro diferente nesses animais em relação ao homem. Um

exemplo clássico: após a visita de um amigo à sua casa, este deixará para trás, no tapete ou na

poltrona, traços olfativos que perpetuarão no mundo do animal a sua presença, ainda que, para

o mundo humano, esse amigo já tenha partido. Portanto, “(...) Nesse cheiro remanescente, seu

cão perceberá um pouco de seu amigo no plano real, ao passo que você só conseguirá lembrá-

lo por imagens ou evocá-lo por palavras.” (CYRULNIK, 1995, p.19).

Tomando como base a observação feita por Cyrulnik quanto ao comportamento

animal em comparação com o do homem mediante o estímulo olfativo, vê-se que, para o

animal, o estímulo morre em seu sentido de informação para o organismo, tal como um aviso

ou chamariz, enquanto que para o homem esse estímulo não se esgota na provisão de uma

informação, pois o indivíduo tem a capacidade de interpretar, refletir sobre si e seus membros

(consciência de si e do mundo). Nesse sentido, aponta Plessner:

(...) Nosso ver e tocar, ouvir e cheirar se tornam “conscientes” para nós, são
“vividos” por nós. Isso fica evidenciado pelo significado lábil de sentir que
ainda guarda uma relação estreita com o sentido do tato quando utilizado
com significado de sentimento para ritmo, sentimento para boas maneiras,
sentimentos para boa forma. (1977, p.4).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [81]

No sistema cerebral, os sentidos corporais apresentam toda uma carga semântica,

armazenada pelo cérebro humano na sua fase mais complexa. A cada estímulo, essa carga é

capturada consciente ou inconscientemente e vinculada a ele em estado de “espírito”, no

sentido filosófico do termo: “(...) o dado puramente hilético, que não pode ser descrito,

somente dado aos homens, e ganha com isso uma dupla possibilidade: apresentar-se como tal

e despertar, fazer vibrar sentimentos, gostos e emoções.” (PLESSNER, 1977, p. 5).

Observa-se que o ser humano vive a pluralidade dos seus sentidos. Somos seres

sinestésicos: não somente percebemos, mas também temos sensações e atribuímos

significados a elas, transformando-as em algo diferente. Por fim, é inegável que os sentidos

corporais sejam um importante veículo de comunicação. Dentro do corpo, que é primeira

mídia do homem, para utilizar uma expressão cunhada por Harry Pross (1987), nascemos

ensaiando intensas relações dos nossos sentidos com o mundo, retirando deles o máximo de

força comunicativa que possa haver.

Como pessoa, o homem possui uma distância em relação a si mesmo, às


coisas e também ao campo intermediário das sensações, que medeia a
informação do próprio organismo ante o corpo e as sensações. Nessa
mediação se colocam ao homem que reflete, que conhece sua distância, as
questões da verdade e fidedignidade da representação sensorial e sua
relevância para o conhecimento. (PLESSNER, 1977, p.7).

3.3 Fisiologia olfativa: o processo de decodificação da mensagem olfativa 8

O processo para a percepção e decodificação do cheiro inicia-se com um estímulo

das células, encontradas na parte interna do nariz, a cavidade nasal, por substâncias

odoríferas. Estas substâncias têm caráter volátil e, por isso, penetram pelas cavidades nasais,

juntamente com o ar inspirado. Aderem às membranas ciliares das células, alterando sua
8
Todas informações referentes à olfação e todo processo de decodificação foram retirados das seguintes obras: DOUGLAS,
C. R.. Fisiologia oral . Vol. I São Paulo: Pancast 1998. LENT, R.. Cem milhões de neurônios: conceitos fundamentais de
neurociências. São Paulo: Atheneu, 2001.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [82]

formação. Na superfície das membranas ciliares há regiões rebaixadas, cuja estrutura química,

as moléculas odoríferas, encaixam-se em seu lugar determinado, tal como num processo de

chave-fechadura. Vale ressaltar que cada receptor pode responder a mais de um estímulo

odorífero, ou seja, a diversos tipos de odores. Portanto, não existem receptores moleculares

específicos para um determinado odor. Sabe-se que substâncias químicas semelhantes podem

causar sensações de odores diferentes. Esse fato mostra que a capacidade de uma molécula

estimular um receptor de uma determinada maneira independe do formato da molécula

odorífera9. E mais: sabe-se ainda que as moléculas que produzem odores semelhantes aderem

a receptores comuns.

Dessa forma, a maioria dos odores resulta da interação dos estímulos químicos,

em diferentes graus, com diversos receptores. Essa informação (substância odorífera) é então

transmitida a centros superiores pela extremidade axonial das células presentes na cavidade

nasal. É verdade que são pequenas quantidades de substâncias odoríferas que determinam a

sensação olfativa: bastam oito moléculas para que haja o estímulo.

De maneira um pouco mais simplificada, é possível afirmar que as células

sensoriais olfativas, encontradas na mucosa da cavidade nasal, enviam o sinal sobre a

existência de um estímulo odorífero, passando por algumas porções mais internas da mucosa

e alcançando o bulbo olfativo, onde ocorre a sinapse (transmissão) da informação. O bulbo é a

estrutura fundamental para os efeitos de excitação das substâncias odoríferas, que podem

determinar sensações conscientes ou determinar mudanças de conduta, como ocorre com os

feromônios. A partir do bulbo olfativo, a informação é enviada para o sistema límbico

(rinencéfalo), que é a região mais antiga e primitiva do cérebro, localizada na terminação do

9
Segundo a pesquisa Odorant receptors and the organization of the olfactory system, efetuada por Richard Axel e Linda
Buck, que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 2004, descobriu-se que os receptores olfativos localizados na mucosa
olfativa permitem reconhecer e armazenar cerca de dez mil odores. Cada célula receptora do olfato possui somente um tipo
de receptor de odor e cada receptor pode detectar um limitado número de substâncias odoríferas. Por isso, as células
receptoras do olfato são altamente especializadas em alguns poucos odores. Eles descobriram uma grande família de gene,
compreendendo cerca de um milhão de diferentes genes (três por cento de nossos genes) que provocam um número
equivalente de tipos de receptores olfativos. Esses receptores estão localizados nas células receptoras, que ocupam uma
pequena área na parte superior da cavidade nasal e detectam as moléculas de odores. .(BUCK, L.; AXEL, R., 2006).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [83]

bulbo olfativo. Sabe-se que, atualmente, a função dessa região não se limita a sentir cheiros,

mas também é responsável por nossos sentimentos. O sistema olfativo está conectado ao

sistema límbico e à região do hipotálamo. Nessa região estão localizadas as estruturas

nervosas em que os sentimentos são processados e transmitidos. Muitas das transmissões

nervosas que constituem o trato olfativo estendem-se do bulbo olfativo ao cérebro. No

rinencéfalo, próximo à região do córtex cerebral, no interior do lobo frontal, há terminações

nervosas da massa celular da amígdala do cérebro. A amígdala é a segunda região em que há

a terminação nervosa que permite decodificar o cheiro. A primeira região é o bulbo olfativo.

Da região da amígdala partem estímulos que atingem o tálamo e outras partes do sistema

límbico e, finalmente, atingem a parte central do cérebro, o córtex.

Quando o bulbo olfativo detecta alguma coisa – durante a alimentação, o


sexo, um encontro emocional, um passeio no parque – manda um sinal para
o córtex cerebral, que imediatamente envia mensagem para o sistema
límbico, seção antiga, misteriosa e intensamente emocional de nosso
cérebro, por meio da qual sentimos e desejamos e inventamos. O olfato não
necessita de intérprete, o que não acontece com os outros sentidos. O efeito é
imediato e não diluído pela linguagem, pelo pensamento ou pela tradução.
Um aroma pode ser extremamente nostálgico, porque detecta imagens e
emoções poderosas, antes que tenhamos tempo para editá-las.
(ACKERMAN, 1990, p. 31-32).

Corroborando esse pensamento:

(...) tão logo é percebido, um cheiro se difunde no cérebro olfativo, que,


através de seu circuito límbico, funciona simultaneamente ao cérebro das
emoções e da memória. O que implica em dizer que uma informação
olfativa, ainda que não consciente, torna presente o ausente, (...) para o
homem este tornar presente ocorre na forma de lembrança. (CYRULNIK,
1995, p.20-2).

Por fim, ocorre a combinação da informação dos diversos receptores olfativos,

constituindo uma memória olfativa. Por isso, podemos experimentar conscientemente o cheiro

de uma flor na primavera e relembrá-lo em outras estações do ano. O olfato tem uma memória

em si: “não existe falta de memória em relação aos odores”.(MORRIS, APUD ACKERMAN,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [84]

p.32), enquanto que aquilo que ouvimos ou vemos pode desaparecer rapidamente do caminho

de nossa memória.

A memória olfativa é apresentada por Michel Serres em sua obra Os cinco

sentidos:

O olfato parece o sentido singular. As formas se encontram invariantes ou


restauradas, as harmonias transformam-se, estáveis por variações, o perfume
atesta o específico. O olhos fechados, orelhas tampadas, pés e mãos
amarrados, lábios cerrados, distinguimos, anos depois, entre mil, certo sub-
bosque em tal estação ao pôr-do-sol, antes chuva, certa peça em que
armazenávamos milho forrageiro ou ameixas Agen cozidas, de setembro à
primavera, uma certa mulher. (SERRES, 2001, p.171).

3.4 Olfato e sexo10

Seria o acaso que nos faz encontrar e seduzir a pessoa do sexo oposto? Talvez

não. Seríamos injustos com a capacidade simbólica que nos permite que nos aproximemos ou

nos afastemos do outro se reduzíssemos o campo comunicacional ao simples acaso.

Para que ocorra aproximação, há um conjunto de elementos sobre o corpo do

outro que podem ser “lidos”, tornando possível a identificação e a sincronia, e criando um

verdadeiro campo de subjetividade em que se dão os encontros, como aponta Cyrulnik: “Todo

ser vivo utiliza o espaço para torná-lo significativo, enviando-lhe sinais: o próprio espaço

torna-se então um objeto sensorial, estruturado como uma linguagem.” (1995, p.39).

10
Cabem, aqui, maiores esclarecimentos quanto à importância do olfato no organismo humano. Ele não tem só
um importante papel na comunicação inter-humana, mas também na comunicação interna do próprio organismo,
na medida em que a medicina nos revela que o desenvolvimento dos sistemas olfativo e vomeronasal são
importantes para a maturação sexual normal.
Como referência a esse assunto, aponta-se a seguinte obra: LALWANI, A. K.; SNOW Jr., J. B. Distúrbios do
olfato, da gustação e da audição. In: KASPER, D. L. et al. Harrison: medicina interna. v. 2. Rio de Janeiro:
Mc.Graw-Hill, 2006.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [85]

Esse espaço se preenche de significados emitidos pelos próprios corpos,

elaborando aquilo que Boris Cyrulnik (1989) denominou de “Cartaz etológico”. Quanto a esse

conceito, diz o autor:

O vestuário, os gestos, as mímicas e as decorações do corpo tomam parte da


corte, como um cartaz onde estão inscritas informações respeitantes ao estilo
sexual e à categoria social do cortesão. Esse cartaz etológico do encontro
sexual explica por que razão a escolha do parceiro deve tão pouco ao acaso,
ou melhor, por que razão o acaso do encontro só existe no interior de uma
seleção muito reduzida de parceiros possíveis, o grupo dos elegíveis. (1989,
p.207).

O “grupo dos elegíveis” a que se refere Cyrulnik são aqueles que, mesmo

inconscientemente, seduzem pela presença de sinais não verbais que fazem outra pessoa se

aproximar, reduzindo o espaço, a distância entre os parceiros, de tal forma a permitir que

entrem no jogo da sedução outros sentidos da comunicação, sentidos de proximidade, o olfato

e o toque principalmente.

Concordamos com Córdon (1995) quando ele afirma que, quando o homem passa

a viver em sociedade, os critérios de seleção já não são mais naturais, mas culturais. Dessa

maneira, o homem pauta as suas escolhas segundo os valores da moda, a qual passa a

colonizar o mundo da vida, ditando os gostos, sincronizando a vida segundo a imagem da

moda.

Dialogando com a idéia de cartaz etológico de que fala Cyrulnik, Michel Serres

estabelece, de maneira poética, o conceito de “Mapa da ternura”:

(...) do tato, e seus riachos de ouvidos, rios de paladar e lagos de escuta,


águas misturadas frementes de onde se ergue sua beleza, fiel. Torna visível
sua invisível carteira de identidade ou corpo impressionável. Seu mundo
sensível se recobre de um plano, na escala exata de sua superfície: traço a
traço, olho a olho. (SERRES, 2001, p.29).

Na concepção desse autor, o corpo se torna uma verdadeira tela de obra de arte,

sobre a qual se inscreve toda a nossa identidade, e, por meio dos adornos e dos cosméticos,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [86]

torna “visível essa invisível carteira de identidade”. Quanto ao cosmético, aponta o mesmo

autor:

Dizemos de maneira equivalente cosmética ou arte da maquiagem. Os


gregos tiveram a requintada sabedoria de fundir numa mesma palavra a
ordem e o ornamento, a arte de ornar com a de ordenar. O cosmo designa a
arrumação, a harmonia e a lei, a conveniência: eis o mundo, terra e céu, mas
também a decoração, o embelezamento ou o arranjo. Nada é tão profundo
como o enfeite, nada é tão abrangente como a pele, o ornato e as dimensões
do mundo. Cósmico e cosmético, a aparência e a essência saem de uma
mesma fonte. A maquiagem iguala a ordem, e o embelezamento equivale à
lei, o mundo surge ordenado, em qualquer nível em que se considerem os
fenômenos. (2001, p.27).

Tomando como base os conceitos de cosmético mapa de ternura11, empregados

por Serres, abre-se também a possibilidade de refletir para que ele tem servido. Isso ocorre

porque, realmente, os cosméticos são utilizados para reforçar ou disfarçar. Cria-se uma

máscara impressa sobre a pele, que desperta e sincroniza o olhar do outro:

11
Os conceitos de “Cartaz etólogico” e de “Mapa da Ternura” alinhavados ao conceito de cosmético abre-nos a possibilidade de pensar a
questão propriamente dita do perfume no imaginário humano. Para isso, resgatamos o sentido da palavra cosmético, que também pode ser
usada para designar o mundo do perfume. Aprofundando-se mais um pouco, notar-se-á que o perfume também está intimamente relacionado
ao kosmo (cosméticos) que, segundo Hillman:

“(....) na palavra grega kosmos, de onde vem ‘cosmologia’, ‘cosmonauta’. Komos, ao ser traduzida do
grego para o latim, tornou-se universum, revelando a atração dos romanos por leis universais, o mundo
todo girando em nossa volta (unus-verto). Cosmo, no entanto, não significa um sistema que abrange;
trata-se de um termo estético, que melhor se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’, ‘bem arranjado’, de
forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal. Kosmo é também um termo
moral: kota kosmon (desordem) (...). Kosmo também abrange significados tais como ‘convenientemente’,
‘decentemente’, ‘honorável’. Juntam-se o estético e o moral, como em nossa linguagem diária
profissional, em que ‘direito’, ‘verdadeiro’, ‘certo’, ‘correto’ implicam em ‘bom’ e ‘bonito’. Um outro
grupo de conotações inclui ‘disciplina’, ‘forma’, ‘moda’. Kosmos era usado especialmente a respeito das
mulheres, referindo-se a seu embelezamento, decoração, ornamentos, roupas, e a palavra também pode
descrever canções, falas doces. ‘Cosmético’ está, na verdade, mais próximo do original que ‘cósmico’,
que tende ao significado de ‘vazio’, ‘gasoso’, ‘vasto’.” (HILLMAN, 1993, p. 135).

No trecho acima, constata-se claramente a relação entre o significado de kosmo e de cosmético; esse autor dá claras pistas para que se possam
retornar os olhares sobre os textos publicitários da mídia impressa e a suas imagens. Nessas imagens, depara-se, sem maiores
questionamentos, com a clara aplicação do conceito original da palavra cosmético, que está intimamente relacionado ao belo, ao bonito, à
disciplina, à forma, à moda, e ainda ao vazio e ao gasoso. Por isso, a presença marcante de modelos e cenários belos e perfeitos. Nas palavras
de Hillman: “Se o próprio cosmo implica em beleza, se vivemos num mundo estético, então o modo primeiro de nos ajustarmos ao cosmo
seria através de um sentido de beleza.” (1993, p.135). Depara-se aqui com a razão primeira pela qual a busca frenética pelo belo, pela beleza,
tenha ganhado proporções cósmicas, bem como o aumento exacerbado sobre aquilo que é visível, pela aparência, como se tivesse recaído
sobre nós toda a força da noção afrodítica de beleza. Somente cremos naquilo que vemos, a aparência do mundo revela a sua verdade.
Dessa forma, partindo de todos esses conceitos apresentados sobre o kosmo e sobre o cosmético, que já estão interligados
pela noção de beleza implícita da deusa Afrodite, somos levados a uma hipótese no mínimo instigante a respeito da ausência do cheiro e de
uma predominância das imagens de cheiro, pois já não importa mais o que cheira; importa a aparência, o que você é. Por isso, o perfume em
nosso tempo tem sido confundido muito mais com a roupa, com a moda do que com a questão do cheiro propriamente dito. Tem-se chegado,
então, ao cúmulo de perguntar ao outro “o que você está vestindo?” para se referir a que perfume ou a que marca de perfume a pessoa está
utilizando.
Nesse sentido, essas questões levam-nos a pensar que o mundo do perfume é a porta de entrada do corpo para o mundo das
imagens; é propriamente a transformação, ainda que de forma ilusória, do corpo em imagem de corpo. O perfume tem em si a característica
da imagem visual, a de ser um paradoxo, ou seja, a presença de uma ausência bem como a ausência de uma presença. Além dessa figura de
linguagem, tudo isso convida a pensar ainda em outra figura de linguagem: a metonímia, que consiste no emprego de uma palavra por outra,
permitido pela proximidade da idéia que expressam.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [87]

(...) a maquilagem das mulheres às vezes tão bem harmonizada com a


natureza delas que perdemos o fôlego, como diante do mundo; mas a
cosmética passa à estética, no sentido da sensação, por essa mesma
harmonia: a mulher nua no espelho tatua sua pele, na boa ordem e segundo
as leis, segue caminhos muito precisos: reforça o olho e o olhar, realça, com
a cor, o lugar do beijo, coroa a zona da palavra e do gosto, sublinha a orelha
com pingente, um brinco, traça pontos de ligações entre as cavidades ou as
proeminências dos sentidos, desenha o mapa de sua própria receptividade.
Pela cosmética a verdadeira pele torna-se visível, como que vivida por si;
pelo enfeite a lei singular do corpo aparece, como pelos traçados
convencionais, cores ou curvas no mapa-múndi, o mundo em sua ordem
mostra suas paisagens. O nu tatuado caótico e provocante traz sobre si o
lugar comum e instantâneo de seu sensorium próprio, planícies e relevos
onde se misturam os fluxos vindos dos órgãos da audição, da visão, do
paladar, do olfato ou atraídos por eles, pele chamalotada onde o tato totaliza
o sensível. A cosmética reproduz esta soma ou esta mistura, procura pintá-la,
variando quanto às convenções sociais, segue instintivamente essa tatuagem
temporária. Entendam assim, as máscaras entregues aos museus: a cada uma,
sua cartografia sensitiva, a cada uma sua cosmetografia se ouso escrever
assim, a cada uma sua impressão facial ou mais precisamente suas
impressões pessoais, outra maneira, em nossas línguas latinas, de dizer sua
máscara impressa. Não usamos argolas penduradas no nariz como outras
pessoas, decerto porque esquecemos o olfato. (SERRES, 2001, p.28-29).

O corpo é uma “linguagem silenciosa” na qual “os sinais não-verbais exprimem

uma comunicação sensorial imediata. Veiculam e transmitem a emoção, no contexto em que a

mesma se desenrola.” (CYRULNIK, 1989, p.212).

Essa linguagem não-verbal está interligada ao campo da estética, pois tem a

capacidade de despertar uma emoção agradável. “Este sentimento de beleza caracteriza um

grupo de pertença.” (CYRULNIK, 1989, p.210).

Esse autor aponta a beleza e a estética como elementos que despertam prazer.

Esse conceito de beleza tem a ver com o grupo de pertença, ou seja, à medida que passamos a

pertencer a uma cultura, tornamo-nos seres únicos, pautamos nossos gostos, nossas atitudes e

comportamentos segundo as regras do grupo para que, assim, possamos ser compreendidos e

aceitos por este grupo. Mas é inegável que aquilo que atribui a qualidade de assinatura natural
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [88]

do grupo não nasce no vazio, está sedimentado sobre a pilastra da moda12., pois, Como nos

afirma Cyrulnik: “[A moda é] espelho social, índice de reconhecimento, produção e sentido,

ela funciona como um sinal que permite aos indivíduos de uma mesma cultura seduzirem-se

entre si.” (1989, p.210-211).

Norteada pela moda, a mulher sempre soube melhor lidar com seu cartaz

etológico do que o homem. Ela soube produzir-se e transformar-se em engodo. Talvez essa

estratégia seja uma questão de gênero cultural e seja socialmente construída, como dá a

entender Cyrulnik:

As mulheres são atraídas pelo modo de vida, ao passo que os homens são
atraídos pelo físico de uma mulher. E ninguém se engana, porque uma
mulher que deseja torna-se atraente cuida do corpo e tem prazer em torná-lo
desejável, enquanto um homem que deseje implantar-se no mercado da
afectividade exibe o seu belo carro e expõe as marcas do seu sucesso social.
(1989, p.210).

Esse trecho, apresentado pelo etólogo, convence-nos de que o campo da

afetividade, numa civilização, tenha-se reduzido à esfera da aparência. Aquilo que se simula

ou se aparenta ser é o que realmente importa. Nesse jogo de aparências sociais, fica sempre

uma pergunta: como se comportam a parte biológica e os outros sentidos corporais, quando

foram todos reduzidos àquilo que se vê?

Cremos que ocorre o que ele afirma:

12
Essa questão conduz a pensar que parte desse impulso de autoplasmar-se tenha sua origem na própria biologia, devido à necessidade que a
pele frágil tem de proteção artificial da natureza física, mas, mais ainda, da simbólica. A possibilidade de se pensar nessa proteção mais
simbólica de que física abre a chance de pensar no perfume como objeto de significação, um signo da cultura, que apaga as marcas das
características animais do ser humano, para assumir um cheiro culturalmente aceito (reconhecido). Segundo Harry Pross (1983), o ser
humano confia nos signos. Da mesma maneira, os símbolos primitivos, que foram impressos sobre o corpo (textos), o perfume aspergido
sobre esse corpo também se faz linguagem, tornou-se parâmetro para reconhecimento interindividual, embora ainda pouco se conheça pelo
cheiro. Essa identidade surge do uso do objeto que nos leva a pensar na moda, ou melhor, no sistema da moda, que é um sistema de regras e
que surgiu em um contexto social, acabando por funcionalizar o cotidiano, à medida que tenha havido a racionalização dos instintos e, por
fim, a submissão da natureza à complexidade da vida social. A moda celebra o fetiche da mercadoria. O indivíduo, além de se vincular ao
mundo pelo signo (roupa, perfume, gestos, palavras, textos), tende a se apropriar do objeto como um outro eu ou como um prolongamento de
sua personalidade. Isso nos revela que, desde o homem primitivo, o símbolo, a imagem, mostrava-se como meio de superação da
transitoriedade e da temporalidade do homem. Então fica sempre entre esse sujeito consumidor e o objeto de desejo um déficit emocional,
pois esse sujeito nunca está saciado; precisa ser e ter mais, consumir, comprar, em busca daquele estereotipo midiático. E essa vontade
insaciável de ser ou de parecer aquilo que está exposto no texto publicitário, enquanto espelho midiático da cultura, segundo Lacan, acabou
“levando-o a retocar seu corpo de múltiplas maneiras: por deformações, por mutilações, por tatuagens, por escarificações, por maquiagem,
por vestimentas, por cirurgias estéticas, etc.” .(LACAN Apud VILLAÇA ET AL., 1999, p.9).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [89]

(...) o poder de apelo mudo do olhar continua sendo espantoso. Numa


multidão, freqüentemente basta olhar alguém que esteja a uma distância fora
do alcance da voz para que o observado logo mergulhe seus olhos no olhar
que entre tantos outros fixa. Num mundo olfativo, as moléculas estão
misturadas em um único cheiro; num mundo sonoro, o zunzum afoga as
palavras; num mundo de contato, é-se empurrado de todos os lados. Nesse
contexto de sensolarialidades misturadas, o olhar conserva uma comovente
precisão. (1995, p. 41).

O olhar é penetrante, pois, a partir do momento em que os sinais sociais dão

permissão de acesso ao outro, as emoções são sincronizadas, seja por meio dos gestos, da

pintura do corpo e ou pelo comportamento. Eles despertam uma sensorialidade e permitem,

ainda, comunicar uma emoção ao outro. Então, acessam-se todos os sentidos; a biologia toma

sentido e o encontro acontece. Assim apresenta Cyrulnik a questão do encontro:

Nos encontros amorosos humanos, os protagonistas nunca dizem o que


sentem, ou melhor, nunca dizem com palavras. É ainda muito raro uma
rapariga aproximar-se de um rapaz anônimo e dizer-lhe: ‘você agrada-me,
faça o favor de me penetrar’. A protagonista não pode verbalizar a sua
emoção íntima, porque as palavras possuem um grande poder de
amplificação emotiva. Isto explica o facto de a nossa protagonista poder
comunicar a sua emoção graças a alguns sinais do corpo, ao passo que dizer
esta emoção com palavras provocaria uma emoção tal que deixaria de poder
controlar a comunicação. A palavra sem corpo seria demasiado brutal.
(1989, p.212).

Os adereços criam um verdadeiro cartaz etológico capaz de despertar no outro um

vestígio de desejo, permitindo a aproximação. Fica evidente, portanto, que é pelo sentido do

olhar que os corpos se permitem ir ao encontro. É o momento em que o corpo se abre para o

mundo do outro. Cria-se um campo de subjetividade em que todos os sentidos são convidados

a ser explorados, para que o vínculo amoroso se estabeleça.

A proximidade dos parceiros permite agora a sincronização dos desejos. O


trabalho emocional torna-se possível graças às ofertas alimentares, às cores
estimulantes, às posturas e aos movimentos evocadores.
Finalmente, os parceiros acedem ao espaço íntimo. O odor, o calor, o toque,
a princípio fugaz, cada vez mais confiante, permitem chegar ao lugar dos
lugares, onde a sexualidade adquire o seu aspecto mais intenso, mais
conseguido e preciso. (CYRULNIK, 1989,p.227).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [90]

Mais adiante, o autor prossegue:

Todo o inconsciente etológico desta mulher se exprime pelos canais de


comunicação sensoriais. Quando olha para o vestido, quando respira o seu
perfume, quando se admira perante as jóias, num flash etológico, o
admirador recolhe infinitamente mais informações do que com um longo
discurso. Tanto mais que é difícil dizer por palavras aquilo que se pode
exprimir com os cabelos, as roupas e os gestos. (1989,p.227).

Observa-se, dessa forma, que nesse “cartaz etológico” existem dois momentos

cruciais. Para que o encontro ocorra, primeiramente, é necessário que o outro crie

mecanismos simuladores para chamar a atenção, evocar o olhar do outro. Depois de

sincronizados, a aproximação torna-se permitida e todos os sentidos entram no jogo da

sedução. O que realmente ocorre nesse campo de subjetividade é algo próximo de uma

química. É ela quem nos faz eleger o outro como nosso parceiro. Não descrendo que todos os

adornos e adereços sejam importantes, por ora nos ateremos ao estudo do odor para essa

sincronização.

O que aqui denominamos de química é o que a área da biologia, medicina e

etologia elegem com o nome de feromônio, considerado a porção animal do desejo. A palavra

feromônio vem do grego pherein, que significa “carregar”, e horman, “excitar”

(ACKERMAN, 1990,p.48).

Os feromônios são substâncias diferentes dos hormônios, uma vez que não se

expelem internamente no corpo, mas são expelidas fora do organismo. Por isso, são

denominados ecto-hormônios, pois provocam reações em outros indivíduos, alterando sua

fisiologia sem que se saiba por quê. Servem para delimitar territórios, estabelecer hierarquia

de influência e poder. Enfim, os feromônios aproximam-nos da condição animal em que

excitamos o parceiro por meio do cheiro, “estabelecendo-se assim, uma relação química entre

ambos.” (DOUGLAS, 1998, p.109).


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [91]

Os feromônios são produzidos por glândulas específicas, geralmente anexas aos

genitais, ao reto ou à pele, que expelem essas substâncias de caráter químico, as quais

desempenham uma função social, pois atingem um outro organismo e suas condutas sociais e

sexuais (DOUGLAS, 1998, p.109).

Segundo Ackerman (1990), são as glândulas apócrinas as responsáveis pelos

odores corporais. Para ela, essa glândula também se localiza no rosto e no peito. Desenvolve-

se consideravelmente na fase da puberdade. Alguns pesquisadores concluíram que a alegria

que sentimos ao beijar alguém está no ato de cheirar e acariciar o rosto do outro, sentindo o

seu odor.

Para várias tribos em Bornéu, no rio Gâmbia (África ocidental), em Mianmar, na

Sibéria e na Índia, a palavra beijo designa cheiro. Para eles, o beijo é “uma aspiração

prolongada dos odores da pessoa amada, de um parente ou de um amigo.” (ACKERMAN,

1990, p.45).

Os estudos dos feromônios iniciaram-se por volta da década de 60, com

Butenandt. Ao estudar substâncias nos insetos, percebeu-se que as fêmeas tinham uma

glândula perigenital cuja secreção, quando exposta ao ar, atraía os machos. Para o sistema

receptor do macho, aquele odor percebido correspondia especificamente àquele produzido

pela respectiva fêmea; por isso, sentia-se atraído. (DOUGLAS, 1998).

Nos primatas não-humanos, os feromônios desempenham um papel importante. A

atividade sexual dos machos aumenta durante o período de ovulação da fêmea. Esse

fenômeno só se altera quando o ovário é retirado da fêmea, quando o macho perde a olfação,

ou ainda quando ocorre o ressecamento do bulbo olfativo do macho. (DOUGLAS, 1998).

No ser humano talvez ainda funcione da mesma forma. Porém, é difícil afirmar

que o comportamento sexual na espécie humana seja condicionado pelo cheiro. No entanto, a

história do perfume e do próprio comportamento da espécie humana faz supor que haja sim

uma relação. Os perfumes têm importância na atração sexual dos indivíduos. Afinal, as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [92]

mulheres aspergem fortes perfumes sobre seu corpo principalmente para se tornarem mais

atraentes. Geralmente, os ingredientes desses perfumes são almíscar e algaria, que derivam de

glândulas de animais cuja atração sexual baseia-se no feromônio. (DOUGLAS, 1998).

Porém, não são somente os olores oriundos de glândulas animais que têm o poder

de encanto e de atração sexual, segundo Ackerman:

A fragrância de flor anuncia para o mundo que ela está fértil, disponível e
desejável, que seus órgãos sexuais estão cheios de néctar. Seu odor nos faz
lembrar, de maneira sutil, fertilidade, vigor, força vital, todo otimismo, a
esperança e a paixão da juventude. Inalamos seu aroma ardente e, seja qual
for a nossa idade, sentimo-nos jovens e prontos para o amor, em um mundo
incendiado de desejo. (1990, p.34).

Se a fragrância do perfume for de origem animal ou vegetal, guardará em si o

poder evocador da sensualidade. Ao analisar o comportamento sexual no ser humano por

meio do cheiro, não podemos ignorar que esse indivíduo é um ser cultural por excelência.

Numa sociedade, é necessário que se respeitem as convenções estabelecidas. Não

se pode transgredir nada, sob pena de retaliação segundo as sanções socialmente estipuladas.

A comunicação horizontal ocorrerá somente se houver distância entre os indivíduos. Sendo

assim, acredita-se que, pelas convenções e, principalmente, pelos valores morais e pela idéia

de tabu estabelecido pelo sexo e para a sexualidade, o sentido do olfato e, por conseqüência,

os odores, perderam o poder comunicativo.

No entanto, não se pode negar que os feromônios pertençam à espécie humana.

Embora ainda não se tenham identificado os feromônios humanos, eles existem e são capazes

de despertar desejo ou provocar reações ligadas ao sexo, pois “aparentemente existem

receptores específicos para os feromônios da mesma espécie (raça) e para o sexo oposto, em

particular. Estes receptores se localizam na mucosa olfativa (...), donde partem aferências para

o bulbo olfativo, núcleo da amígdala e núcleos hipotalâmicos.” (DOUGLAS, 1998, p.110).


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [93]

No jogo social, os feromônios não desempenham o mesmo papel em nossa

consciência sensorial quando comparada aos estímulos auditivos e visuais. Sem dúvida,

acabamos sendo muito mais aferidos por aquilo que está registrado numa dada cultura, numa

determinada época. No balé amoroso da vida, o “visualmônio” é que nos faz escolher entre os

eleitos. Somente nos entregamos aos estímulos que cremos poderem ser controlados pelo

nosso próprio desejo. Perder o controle sobre si mesmo só é permitido no ato sexual, em

festas de misticismo religioso ou quando se faz uso de drogas. Ainda acreditamos manter o

controle ou, pelo menos, poder resgatá-lo rapidamente. Dessa maneira, os feromônios

evocarão conscientemente o desejo e a atração pelo outro, quando o campo de subjetividade

estiver reduzido e o encontro estiver acontecendo no mais secreto e sagrado templo, onde

todos os pudores e tabus não fizerem mais sentido. As convenções sociais terão ficado

trancafiadas do lado de fora, nas ruas, nos cafés, em qualquer outro lugar onde as normas

sociais e o olhar do outro nos impelem às pulsões da vida. Para Ackerman:

A evolução é coisa tão complexa e, às vezes, tão surpreendente, tão


semelhante a uma aventura, que muito poucos de seus aspectos ou
obrigações me assustam. Já nossa necessidade aparente de violência o faz, o
que não acontece com as possibilidades de mantermos conversações
elaboradas e sutis, sob o efeito dos feromônios. O livre–arbítrio pode ser
bastante elástico. (1996, p.53).

Todo processo de sedução passa por um canal de comunicação sensorial. Podem

ser os olhos, os ouvidos ou o nariz. É preciso encontrar no outro algo que nos dê a impressão

de encanto ou prazer, que nos faça olhar, ouvir e cheirar. “Estes canais de sedução sensorial

constituem uma semiótica do corpo, utilizada pelo homem.”(1989, p.204).

Vale a pena retomar o pensamento de Cyrulnik quanto a essa idéia da atração

entre os sexos:

Quando se observa nossa história, a quantidade inverossímil de dinheiro,


tempo e técnica consagrada às maquilhagens, ao vestuário e às jóias,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [94]

concluímos que todos estes esforços devem ter um sentido, assumir uma
função!
Os ornamentos fugazes, tais como a maquilhagem, o pó-de-arroz ou a
pintura dos lábios permitem modificar rapidamente a nossa aparência
emocional. A mudança de vestuário, o uso de jóias, o perfume antes de sair,
revelam a nossa intenção de desencadear no outro uma emoção diferente.
(...) [Porém] Estes aparatos são fugazes. Algumas horas mais tarde, o
encanto do perfume evaporado, o vestido enrugado e a maquilhagem
desleixada não terão concedido a este contrato social senão um aparato de
algumas horas. (1989, p.204).

Além de integrar os indivíduos, o sistema olfativo possibilita uma maior

integração espácio-temporal. Quanto a essa questão, encontra-se em Leroi-Gourhan uma

importante constatação:

(...) o olfato desempenha um importante papel nas relações entre indivíduos.


Os perfumes, os óleos aromáticos e os desodorizantes constituem um
elemento bastante importante nas relações entre os indivíduos. Os perfumes,
os óleos aromáticos e os desodorizadores constituem um elemento bastante
importante nas relações entre os sexos, quer para ocultar os cheiros naturais
do corpo, quer para criar sua imagem idealizada. (...). O cheiro tornou-se o
símbolo de todo um desenvolvimento motor cujas referências já não se
situam no nível da mecânica digestiva impermeável à figuração, mas sim no
plano da dinâmica muscular, base comum ao comportamento afectivo e à
integração espacial. Neste estádio, o olfacto situa-se no limiar do imaginário
em sentido estrito.
Um tal limiar é ultrapassado quando o olfacto passa a estar ligado à
integração espácio-temporal, quando se torna base da percepção de uma
dada situação. (LEROI-GOURHAN, 1983, p.100).

Dando voz ao pensamento do etológo Boris Cyrulnik, fica sempre uma questão

em aberto: o que resta, no jogo da sedução, quando todo o aparato efêmero constituído pelo

indivíduo sobre seu corpo se desfaz? O que, ainda, atrai o outro?

O indivíduo não é limitado pelas paredes do seu próprio corpo. Qualquer ser
vivo possui em seu redor uma bolha espacial que intervém nos seus
funcionamentos fisiológicos e nas suas maneiras de estabelecer um
relacionamento.
Hall diz que em redor de cada corpo existe uma zona de 0,40 m de distância
íntima: zona dos odores inconscientes e dos odores indiscretos. É a zona das
proximidades sexuais, das violências intrusivas, das ternuras familiares.
(CYRULNIK, 1993, p.180-181).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [95]

Cyrulnik indica uma instigante brecha na comunicação extra-corporal, que é esse

universo ao redor do corpo que ele denomina de “bolha espacial”. Essa bolha interfere

consciente ou inconscientemente na capacidade de estabelecer vínculos e, portanto, de

estabelecer comunicação com o outro. As relações interpessoais dão sinal de ternura e afeto

ou agressão e desafeto a partir da reação que o corpo dispara. Podem servir para afetividade

ou para violência. Naturalmente, num primeiro momento em que temos a percepção do outro,

do diferente, a primeira reação é preparar-se para a agressão, a defesa ou para a aproximação.

O que determinará uma ou outra reação serão os rituais simbólicos deflagrados pelos corpos

de maneira consciente. Pela via inconsciente, aparecem os fantasmas de corpo-a-corpo, com

medo de efração ou de penetração. Desse modo, “o outro, assim que aparece no meu campo

de consciência, altera o meu mundo.” (CYRULNIK, 1993, p.183).

Cabem, nesse momento, algumas ressalvas acerca dessa “bolha espacial” ou

“espaço pericorporal” de que fala Cyrulnik. Seguindo a concepção desse autor, o eu corporal

não se limita às paredes do corpo, ou seja, não podemos apagar e ignorar o espaço físico ao

redor desse corpo que constitui um campo de imenso significado. O etólogo afirma, ainda,

que não há uma precisa cisão ou divisão entre o espaço exterior e o espaço interior. Para ele,

“Em nosso redor, no exterior, existe uma bolha que prolonga o nosso espaço do interior. E

dentro de nós existe uma zona do corpo que prolonga o espaço do exterior. O espaço boca, o

espaço ânus compõem estes espaços onde a junção se efectua.” (CYRULNIK, 1993, p.183).

O corpo é um organismo em constante processo de troca e comunicação com o

mundo, com os espaços ao redor. Em torno desse eixo é que se torna possível constituir

vínculos comunicacionais que permitam sua sobrevivência. O ser humano é uno com o

mundo; não é dissociável. Ele é marcado por momentos de intensa necessidade afetiva, de

proximidade com o outro, e momentos de necessidade de distância para não gerar

agressividade. Portanto, o ser humano oscila entre esses dois tempos, da proximidade e da
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [96]

distância. Ele é um indivíduo marcado não pelo seu caráter extremista, mas pela sua

capacidade de ponderação, de homotermia, de ordem.

Assim que me sinto observado por outro inquieto-me. A consciência do


outro em mim agride-me. A ausência do outro em mim faz-me morrer.
Quanto estou só, o mundo pertence-me, mas morro. Quando aparece outro
no meu mundo agride-me e permite-me viver. Aliás, a palavra agressão
contém a noção de espaço. Ad gredior, lembra Lorenz, significa ir em
direcção a, ao encontro de. (CYRULNIK, 1993, p.183).

O que sustenta esse vínculo é o feromônio sexual, presente no outro, que ainda

atrai. Sabe-se que o feromônio tem grande força de atração entre os indivíduos, visto que

inúmeros experimentos comprovam a presença desse ecto-hormônio nos comportamentos

sexuais das pessoas. A primeira pesquisadora a fazer um experimento dessa natureza foi a

psicóloga Martha McClintock. O experimento consistiu na exposição dos narizes de dez

mulheres ao suor de outras mulheres em intervalos regulares, enquanto que outras dez

mulheres tiveram seus narizes expostos ao álcool. Observou-se que, “nas mulheres que

tiveram seus narizes expostos ao suor de outras mulheres, depois de um período, os ciclos

menstruais eram idênticos, enquanto que nas outras, expostas ao álcool, nada se alterou.”

(ACKERMAN, 1996, p.51-52).

Há também experimentos que revelam que, em homens envolvidos

amorosamente, a barba cresce muito mais rapidamente do que antes. Além disso, mulheres

que vivem afastas dos homens, em colégios internos ou conventos, entram na puberdade

muito mais tarde do que as mulheres que convivem com os homens (ACKERMAN, 1996,

p.52).

Admitamos ou não a presença do feromônio, não é possível negar, segundo

Ackerman (1996), a importância do olfato para a relação sexual humana, sobretudo para as

mulheres. A sensibilidade para os cheiros é mais efetiva nas mulheres, talvez pelo elo com o

papel desenvolvido pelo olfato durante a evolução, sempre ligado ao acasalamento, ao


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [97]

namoro, à maternidade (cuidado com as crianças). Além do mais, as mulheres sempre

estiveram mais envolvidas com a comida e as crianças, tendo que “farejar” qualquer coisa que

estivesse fora de ordem, algo que muito pouco tinha a ver com o homem. Durante todas as

fases da vida, a mulher tem um olfato mais desenvolvido do que os homens. E, portanto, com

base na pesquisa feita por Robert Henkin, afirmamos que “um quarto das pessoas que

apresentam desordem olfativa perde o impulso sexual.” (HENKIN, APUD ACKERMAN,

1996, p.68).

Essa constatação leva crer que o olfato guarda uma certa relação com o impulso

sexual. Segundo Douglas (1998), quando perdemos nossa capacidade olfativa, também

diminuem os impulsos sexuais.

Em sua obra Fisiopatologia oral, Douglas (1998) registra que não há somente os

feromônios ligados à conduta sexual. Existem também aqueles que se comportam como

veículos informativos. Esse autor classifica esses feromônios em três categorias: feromônios

de agregação, que servem para unir indivíduos de uma colônia quando estes reconhecem o

feromônio receptivo; feromônios demarcadores, que delimitam o espaço territorial específico

do grupo; e feromônio de alarme, que indica e sinaliza perigo para outros indivíduos

pertencentes ao mesmo grupo ou clã.

A exposição do autor, com exemplificação biológica, não invalida nossa

transposição para a esfera da comunicação humana, pois, antes mesmo de sermos seres

culturais, somos seres biológicos e, por isso, acreditamos que talvez os feromônios de caráter

informativo sejam elementos impulsionadores de uma ontogênese do vínculo que, sem

dúvida, pode ser aplicado ao ser humano. Fica aqui um registro para aprofundamento dos

estudos da teoria do vínculo.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [98]

3.5 Olfato e civilização

O termo “civilização” está aqui empregado com o sentido freudiano, ou seja, um

conjunto de realizações e regulamentações que distinguem nossa vida da vida dos animais, e

que está a serviço de dois intuitos: o de proteger os indivíduos e o de regular as suas relações

mútuas. (FREUD, 1997, p. 42).

Dentre essas pilastras fundamentais de sustentação daquilo que se denomina

civilização, Freud elege como principal a beleza: “(...) constatamos que essa coisa não

lucrativa que esperamos que a civilização valorize é a beleza. Exigimos que o homem

civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos

objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso.” (1997, p. 45).

Porém, para esse autor, a questão da beleza não anula as outras exigências que

foram apontadas anteriormente. Seguindo esse pensamento, vê-se claramente que não é

somente pelo o que é útil que está pautado todo o desenvolvimento de uma sociedade. Freud

(1997) aponta algumas das exigências essenciais para a constituição da civilização. Dentre

elas, a limpeza e a renúncia aos instintos constituem as bases para a formação da civilização.

Quanto à limpeza, afirma que:

A sujeira de qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização. Da


mesma forma, estendemos nossas exigências de limpeza do corpo humano.
Ficamos estupefatos ao saber que o Roi Soleil [Luís XV, da França] emanava
um odor insuportável, meneamos a cabeça quando, na Isola Bella, [a
conhecida ilha do Lago Maggiore, visitado por Napoleão poucos dias antes
da batlha de Marengo] nos é mostrada com a minúscula bacia em que
Napoleão se lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos surpreende a idéia
de estabelecer o emprego do sabão como um padrão real de civilização.
(FREUD, 1997, p. 46).

É provável que a civilização tenha, de certa forma, expelido dos corpos os odores

naturais que se tornaram repugnantes. A utilização de elementos que apagam nossa assinatura

natural tornou-se fundamental. Em nossa civilização é proibido cheirar. A cultura judaico-


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [99]

cristã impõe que nos distanciemos, cada vez mais, dos sentidos de proximidade (paladar, tato

e olfato), tudo para negar a existência corpórea.

A renúncia ao instinto parece ter se apoiado principalmente no fato de que os

odores se tornaram algo indesejável como fonte primeva do prazer libidinal no homem

civilizado, por conta da aparente necessidade de intensa limpeza. Dessa maneira, o processo

civilizatório acabou por alterar todo o desenvolvimento libidinal do indivíduo, fazendo com

que as condições para a satisfação dos desejos fossem deslocados, como aponta Freud. Em

alguns casos, “esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos), com que

nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele.” (1997, p. 52).

A sublimação de um instinto constitui um conjunto de eventos impostos pela

civilização. Esta, de certo modo, assenta-se na renúncia aos instintos, seja através da opressão,

repressão ou qualquer outro meio. Essa sublimação deve-se principalmente ao

desenvolvimento cultural. Por meio dele é que se constituiu a força emancipatória do ser

humano, a qual possibilitou as atividades psíquicas superiores, artísticas, científicas e

ideológicas. Recaímos sobre aquilo que Freud (1997) denominou “frustração cultural”, que

domina grande parte dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Essa parece ser uma

luta enfrentada por todas as civilizações. Porém, é do mesmo autor que advêm algumas

ressalvas para uma situação em que há a necessidade de privação da satisfação de um instinto.

Ocorre que, para ele, isso não se elabora impunemente. Se esse fato não for compensado,

pode gerar sérios distúrbios.

É conveniente perguntar a que se deve o desenvolvimento da civilização. Ainda

muito se trabalha no campo das hipóteses. A formação dos pequenos núcleos denominados

“famílias” deu-se, segundo Freud, a partir do momento em que a satisfação genital não estava

mais sincronizada com os odores expelidos durante o período menstrual da mulher. Todo o

faro sincronizador do encontro foi guardado, anestesiado, processo que ele denominou
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [100]

“recalque do orgânico”. Por causa desse processo, perdemos grande parte da noção da

importância do olfato para ser humano.

A periodicidade orgânica do processo sexual persistiu, é verdade, mas seu


efeito sobre a excitação sexual psíquica foi invertida. Parece mais provável
que essa modificação se tenha vinculado à diminuição dos estímulos
olfativos, através dos quais o processo menstrual produzia efeito sobre a
psique masculina. Seu papel foi assumido pelas excitações visuais, que, em
contraste com os estímulos olfativos intermitentes, conseguiram manter um
efeito permanente. O tabu da menstruação deve-se a essa ‘repressão
orgânica’ (...). (FREUD, 1997, p.53).

Lacan vai mais a fundo na questão do “recalque do orgânico” de que falava Freud:

para aquele psicanalista, o recalcamento social do olfato tornou-se um mecanismo facilitador

do encontro: “A regressão orgânica de seu olfato, no homem, está, para muitos, em acesso à

dimensão do outro.” (LACAN APUD CYRULNIK, 1995, p.20).

Enquanto éramos animais quadrúpedes e vivíamos nos arrastando com o rosto

muito próximo ao chão, o olfato desempenhava um importante meio de contextualização do

homem com o mundo, auxiliando com toda a percepção do entorno, seja para detectar

alimentos ou inimigos. De certa forma, quando pensamos na questão da olfação, do cheirar,

que, para Freud está muito mais próximo da nossa condição animal. Mas que pela ocasião da

obtenção da posição ereta do ser humano, quando este passou a mostrar sua genitália e

distanciou seu nariz do chão, o olhar, devido a essa postura adquirida, predomina como

sentido de preservação e de segurança, pois esse Homo erectus já consegue visualizar e

perceber seu inimigo a uma grande distância, por meio da visão, enquanto que, ainda na

posição de quadrúpede, seu instinto de preservação maior era o olfato. Essa diminuição dos

estímulos olfativos possibilitou a formação da civilização, pois começamos a nos aproximar

mais uns dos outros13:

13
Ao afirmar que a aquisição da posição ereta entre os nossos antepassados privilegiou a visão em detrimento do olfato, Freud talvez tenha
ido longe demais em seu determinismo. Acreditamos que nada na cultura morre, tem um fim, mas, em certos momentos, atrofia, retroage, e
em outros desenvolve-se e evolui. Na mesma esteira de pensamento, apoiamo-nos em Boris Cyrulnik, que afirma que é “a consciência do
nosso olfato que está atrofiado.” (1993, p.179).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [101]

O processo fatídico da civilização ter-se-ia assim estabelecido com a adoção


da postura ereta. A partir desse ponto, a cadeia de acontecimentos teria
prosseguido, passando pela desvalorização dos estímulos olfativos e o
isolamento do período menstrual até a época em que os estímulos visuais se
tornaram predominantes e os órgãos genitais ficaram visíveis e, daí, para a
continuidade da excitação sexual, a fundação da família e, assim, para o
limiar da civilização humana. Isso não passa de especulação teórica, mas é
sufucientemente importante para merecer uma averiguação cuidadosa a
respeito das condições de vida que predominam entre os animais
estreitamente relacionados ao homem.. (FREUD, 1997, p. 54).

Quando o homem passa a viver em civilização, dotado de postura ereta, é tomado

por uma imensa necessidade de limpeza, de se livrar das excreções desagradáveis ao sentido.

“(...) a beleza, a limpeza e a ordem ocuparam uma posição especial entre as exigências da

civilização.” (FREUD, 1997, p.47). Os excrementos são valiosos para as crianças, pois, para

elas, são parte do próprio corpo que se separou. À medida que ela vai se revestindo do seu

meio cultural, seus cheiros naturais passam a repugná-la. Por isso, existe a necessidade

extrema de limpar-se. Porém, a repúdia pelo cheirar está estritamente relacionada ao cheiro do

outro. Não se aceita o cheiro do outro, mas dificilmente se tem essa atitude em relação aos

seus próprios odores. Observa Freud, referindo-se a essa questão:

O incentivo à limpeza origina-se num impulso a livrar-se das excreções, que


se tornaram desagradáveis à percepção dos sentidos. Sabemos que, no
quarto das crianças, as coisas são diferentes. Os excrementos não lhes
despertam repugnância. Parecem-lhes valiosos, como se fossem parte de seu
próprio corpo que dele se separou. A partir disso, a educação insiste com
especial energia em apressar o curso do desenvolvimento que se segue e que
tornará as excreções desvalorizadas, repugnantes, odiosas e abomináveis.
Essa inversão de valores dificilmente seria possível se as substâncias
expelidas do corpo não fossem condenadas por seus intensos odores a
partilhar do destino acometido aos estímulos olfativos depois que o homem
adotou a postura ereta. O erotismo anal, portanto, sucumbe em primeiro
lugar à “repressão do orgânico” que preparou o caminho para a civilização.
(FREUD, 1997, p.54).

Segundo esse mesmo autor, um terço do nosso cérebro está consagrado ao circuitos olfativos. Todos esses circuitos funcionam e mantêm
relações com outras zonas do cérebro. Vale ressaltar que essa “zona cerebral” é responsável por toda a regulação das emoções, das cargas
afetivas, circuitos de memória, estimulação endócrina que comanda as glândulas sexuais de tal maneira que os neurologistas a denominam de
cérebro afetivo.
Partindo dos pressupostos culturais, talvez, essa atrofia olfativa se deva, sobretudo, a esse aculturamento que nos tornou mais polidos,
recobrindo-nos com um segunda pele (pele da cultura), as roupas que geraram um ruído na força comunicativa dos odores. “O nossos odores
actuais são fermentados, degradados pelo vestuário, não possuindo qualquer valor estimulante, ao passo que os odores naturais possuem um
grande valor erótico.” .(CYRULNIK, 1993, p.179).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [102]

Complementando esse pensamento, Zurique Plessner afirma, que a libertação do

conjunto olhos-mão deve-se irrefutavelmente à condição ereta. Essa posição, supostamente,

apareceu nos primatas pré-humanos, que, com a retração das florestas dos seus territórios e

com o desenvolvimento das savanas, com grandes regiões de clareiras, foram forçados a uma

adaptação do campo visual e, com isso, também foram levados a uma posição ereta.

(PLESSNER, 1977, p.8).

Com a posição ereta, torna-se cada vez mais necessária a utilização das mãos e

dos olhos. O mesmo autor demonstra que, com essa postura, o Homo eretus desenvolveu

maior capacidade de objetivação, de abstração, pois a audição e a visão tornaram-se sentidos

de distância e, assim, tornaram-se necessárias maiores abstrações:

Na família dos sentidos, o olfato (ele exclui o tato) perdeu seus direitos de
primogenitura. A visão e a audição assumiram o comando. Visão e audição
se tornaram agora verdadeiramente sentidos de distância. A visão, enquanto
percepção que antecede o contato prático com as coisas, se sobrepõe
principalmente ao tato. A visão como apresentação da distância e o tato
como apresentação da proximidade, fenomenologicamente segundo suas
qualidades experienciais e em sua distribuição de papéis para a compreensão
e o conhecimento, são pólos opostos. A necessidade de empregar metáforas
provenientes do visual para tudo que se refere ao conhecimento e a outros
aspectos nessa linha é conhecida. A terminologia filosófica estabelecida
pelos gregos demonstra isso claramente, e com certeza não é uma
decorrência do fato de serem os gregos um povo visual por excelência. As
expressões de conhecimento na língua grega (...) mostram claramente uma
preponderância da esfera visual, que tem suas raízes na coisa. (PLESSNER,
1997, p.9).

Segundo esse psicanalista, o olfato tem sido recalcado pela própria condição do

ser civilizado, como se fosse o mais baixo e repugnante dos sentidos, supérfluo, assim como

pensava Immanuel Kant. Se não o possuíssemos, seríamos poupados de ter sensações

desagradáveis. Como afirma Restrepo, “O odor não permite exterioridade nem distância.

Estamos imbuídos nele como estamos na existência diária acossados por forças que nos

envolvem e comprometem corporalmente, sobre as quais, sem mediação de separação

possível, é imperativo tomar decisões”.(1998, p.33).


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [103]

É inegável que, com a adoção da postura ereta e a suplantação do sentido do

olfato, não foi só o erotismo anal que sucumbiu, mas também, como afirma Freud, toda a

sexualidade, uma vez que os odores estão intimamente relacionados à sensorialidade, à

sensualidade e à sexualidade. São claros vetores da sexualidade que podem ser investidos de

afeto, prazer, ira, cólera. Com isso, toda a função sexual fora acompanhada de uma

repugnância que acabara por impedir a satisfação completa, forçando a desviar o objeto

libidinal. E, sem dúvida, o afeto e o prazer podem utilizar o odor como modo de se manifestar

à consciência: “(...) a raiz mais profunda da repressão sexual, que avança juntamente com a

civilização, é a defesa orgânica da nova forma de vida alcançada com o porte ereto do homem

contra a sua primitiva existência animal.” (FREUD, 1997, p.62).

Contudo, existem na Europa povos cujos fortes odores genitais que consideramos

repulsivos são recebidos como estimulantes sexuais. É realmente um foco libidinal que esses

povos recusam a abandonar. Quanto a isso, Boris Cyrulnik registra que “Em certas regiões

melanésias deve-se passar a mão sob a axila do amigo que está de partida e depois levar os

dedos ao nariz, significando assim que conservamos ainda seu traço olfativo.” (1995, p.20).

Em nossa civilização, o olfato é claramente repulsivo. Para Freud, os estímulos

olfativos foram submetidos aos visuais, pois estes conseguiram manter um efeito permanente,

ao passo que aqueles tinham respostas estimulantes durante o período animal. Portanto,

Cyrulnik mostra como se dão, não ao acaso, os encontros:

(...) com um outro homem capaz como eu de inventar um mundo de signos e


convenções lingüísticas, observo em seu corpo os signos sexuais e sociais
que ele lhe terá imprimido, porque vivo num universo mais visual que
olfativo. Depois, interesso-me por suas palavras, que vão apresentar nossos
universos mentais e nossas histórias passadas. Nosso encontro será presente
e impregnado de outros lugares. Para podermos estar juntos, nossos rituais
utilizarão coisas presentes para criar signos, traçando mundos ausentes.
(1995, p.113).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [104]

Esse reconhecimento mais visual que olfativo, que predomina em nossa

civilização, desenvolverá aquilo que Boris Cyrulnik, na obra Sob o signo do afeto, denominou

de “cartaz etológico”:

Os vestuários, os gestos, as mímicas e as decorações do corpo tornam parte


da corte, como um cartaz onde estão inscritas informações respeitantes ao
estilo sexual e à categoria social do cortesão. Esse cartaz etológico do
encontro sexual explica por que razão a escolha do parceiro deve tão pouco
ao acaso, ou melhor, por que razão o acaso do encontro só existe no interior
de uma seleção muito reduzida de parceiros possíveis, o grupo dos elegíveis.
(1989, p.207).

O pensamento desse autor leva a refletir um pouco mais sobre a questão das

relações inter-humanas no mundo civilizado. A aquisição da postura ereta liberta, como

aponta Plessner (1988), o conjunto olho-mão, viabilizando o surgimento daquilo que se

classifica como sentidos de proximidade (paladar e olfato) e sentidos de distância (visão e

audição). Como estes últimos requerem mais abstração, o evento pode ter colaborado para a

manifestação da linguagem. Isso fundamenta, mas não explica. E, a partir do momento em

que o indivíduo passa a viver no mundo da linguagem, os sentidos parecem ser anestesiados.

Essa anestesia é poéticamente trabalhada por Michel Serres em seu livro Os cincos sentidos.:

“O verbo ocupa e anestesia a carne, até escreveram que ele se fazia carne. Nada insensibiliza

mais a carne do que a palavra.” (2001, p.54).

Mais adiante ainda dirá: “O conhecimento eficaz presta homenagem à

linguagem, sua linhagem direta, apaga sua história oblíqua e a mensagem na anestesia do

esquecimento. Com isso perdemos os cinco sentidos.” (2001, p.200). Por fim, ele revela

ainda: “O sentido começa e pára na linguagem. Anestesia, boca paralisada. Poção.” (2001,

p.224).

Talvez tenhamos exigido do Homo sapiens muito mais do que ele pode dar. O

organismo quer viver e perdurar, e isso leva-o “a filtrar, selecionar e organizar o percebido em

função do que é necessário para viver.” (CYRULNIK, 1995, p.17).


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [105]

O que mostra Cyrulnik, sem dúvida, corrobora o pensamento dos autores

mencionados durante essa discussão. É evidente que a partir do momento em que o homem

primitivo adquire a postura ereta, os sentidos predominantes e essenciais para a sua defesa

foram assumidos pela audição e pela visão. Em conseqüência dessas transformações, esse

indivíduo passou a interpretar e abstrair os estímulos recebidos. Ou seja, dá-se aí o ato

propulsor da linguagem. E com o mundo da linguagem, o tempo do encontro e do vínculo

ocorre primeiramente em outra esfera que não a dos sentidos de proximidade, pois para o

indivíduo que cercado por um caos psíquico de informações visuais e auditivas, são essas

imagens e sons que mais chamam a atenção. Desse caos psíquico, retiram-se as informações

que, para ele, sejam importantes. Com essas informações, ele elabora seu meio externo e seu

mundo interior. Afirma Cyrulnik: “Antes de conversarmos, é preciso nos aproximarmos;

antes de trocarmos nossos mundos internos e contarmos nossas histórias, precisamos ver,

saber a quem nos dirigimos, para escolher a parte de nosso mundo interno comunicável ao

outro.” (1995, p.23).

A partir dessa constatação, é preciso repensar um pouco mais seriamente o que

aponta Serres:

Esquecemos depressa demais que o Homo sapiens designa quem reage à


sapidez, quem a aprecia e a procura, quem dá importância ao sentido do
gosto, bicho de sabor, antes de significar homem falante. Ascensão da boca
de ouro em detrimento da boca que saboreia. Além de aceitação da primeira,
escondida em uma língua morta, aceitação da primeira na boca morta: a
sabedoria vem depois do sabor, ela não pode advir sem ele, mas o esquece.
(2001, p.155).

Nesse sentido, não se pode olvidar que “(...) nosso mundo humano é tanto um

mundo de sentidos quanto um mundo dos sentidos, um mundo onde nossos sentidos ganham

sentido, um mundo onde nossa sensorialidade se impregna de história, ela que governa tanto

nossa emoção quanto nossa percepção.” (CYRULNIK, 1995, p.10).

É ainda esse autor quem escreve algo muito instigante:


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [106]

Mas desde que o homem se tornou capaz de história, ele se tornou culpado
de histórias. O passado não morre jamais para um homem que dele faz
relatos (...). À força de narrá-lo, acaba-se dando consistência ao mito que nos
proporciona um sentimento de verdade tão autêntico quanto a percepção de
um objeto. Nossas culturas alucinadas confundem o real com a idéia do real.
Habitamos um mundo inventado por nossas palavras sem suspeitarmos do
poder delas. (1995, p.223).

Sendo assim, é inegável que nossos sentidos estão anestesiados, nas palavras de

Michel Serres (2001). Para Boris Cyrulnik, os sentidos corporais tornaram-se seletivos para

informações que esse caldo caótico do mundo sensório revela.

Talvez, tenhamos nos tornado seletivos demais, adentrando o mundo das palavras,

mundo ausente, que torna presente o objeto por meio da palavra evocada, e, por isso,

tenhamos nos esquecido de que nossos sentidos comungam desse mundo e buscam sobrevida

nele. E é por meio desses sentidos que captamos o mundo, e por meio deles que o mundo se

revela verdadeiramente.

O conhecimento eficaz presta homenagem à linguagem, sua linhagem direta,


apaga sua história oblíqua e a mergulha na anestesia do esquecimento. Com
isso perdemos os cinco sentidos.
Eles voltam na amnésia de uma sabedoria ou de uma cultura perdidas.
(SERRES, 2001, p.200).

A partir do pensamento de Michel Serres, percebemos que a linguagem amortece

e seda os sentidos. Impregnados da razão, que faz prevalecer a falsa idéia de que a linguagem

alcança o efeito de prazer que os sentidos proporcionam ao corpo, os sentidos se entregam à

sociedade que fabricou essa razão.

O verbo triunfante encobre com sua aquisição o que poderia dar perfume ou
sabor e o transubstancia em visto e lido e ouvido, seus canais próprios.
Isto que comes e bebes é o corpo e o sangue do verbo.
Aqui, onde compras, jaz o túmulo do pão, do vinho, do corpo e do sangue,
mortos e ressuscitados em forma de mensagem.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [107]

O verbo proíbe o sentido, sobretudo aqueles em que ele não tem o que fazer.
Triunfante, impõem a proibição, essa organização social da anorexia e do
dessabor.
A língua que mata na boca a língua que saboreia. Mata-a no coletivo, na que
diz entre nós. Isto, que se diz, reduz-se a um preço. Comerás palavras, mas,
com mais freqüência, de agora em diante, o código e a cifra. Portanto, ficarás
muito, e mais ainda, e sempre mais, enfunado deles. Nada é tão aceito como
um código, nada cresce tanto como um número. Engolirás contas. Teu corpo
invadirá o espaço, como o próprio verbo levado pelo vento, como a
sociedade fundada sobre o verbo. (SERRES, 2001, p.189).

Portanto, a linguagem (verbo) permite a abertura da consciência humana a um

mundo de metáforas, evocando um mundo simbolizado que se constrói segundo a história do

indivíduo, comportamento esse muito distante do macrossomático, que somente encontra

segurança no mundo por meio dos seus sentidos, o que demonstra a pouca importância

atribuída pelo ser humano aos sentidos, quando a ele foi dado o dom do verbo.

No homem, a palavra, assim que percebida enquanto sonoridade, evoca, sem


qualquer precisão, uma representação intensamente ouvida, sentida e mesmo
vista. O que significa que num gato ou num mamífero macrossomático não
pode haver contra-senso pela percepção de um indício olfactivo. A menos
que o sistema olfactivo seja alterado, originando, assim, perturbações
diferentes de acordo com a história dos indivíduos, explicando deste modo a
possibilidade de simbolização não partilhada e de loucura. (CYRULNIK,
1996, p. 281-282).

O universo cultural, impregnado pelo mundo civilizado, balizou os sentidos

corporais. O olfato é, por excelência, culturalmente determinado. “(...) No entanto, esse

sentido que nos escapa é o mais incontrolável dos sentidos.” (CYRULNIK, 1995, p.43).

Cyrulnik insiste em mostrar o mundo por meio dos cheiros. Porém, continua-se a

renegá-lo como se ele fosse o mais baixo dos sentidos que o homem civilizado pudesse obter.

Por isso, insiste-se em não lhe dar atenção. “Dos cincos sentidos, este ou estes é que nos

parecem os menos estéticos, o olfato e o paladar.” (SERRES, 2001,p.154).

Realmente, o olfato tornou-se o “anjo caído”. Recebem-se informações por meio

dele, tal como ocorre com os animais inferiores, porém não temos a resposta imediata, como
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [108]

os animais. “Somos conscientes do aroma, mas não reagimos automaticamente de maneiras

específicas, como a maioria dos animais.” (ACKERMAN, 1990, p.61).

É como se toda a idéia freudiana do “recalque do orgânico” tivesse recaído sobre

nós e, como numa fatídica maneira de nos esquecermos de nossa condição próxima de animal,

negamos os cheiros. Por isso, aspergimo-nos grandes quantidades de perfume, geralmente

com estonteantes aromas que, no mínimo, fazem-nos esquecer de nosso passado não muito

distante, apagando nossas imagens endógenas de origem olfativa que nos remetem à nossa

condição primeva, animal, que nada ou muito pouco tem a ver com esse homem racional e

simbólico que somos.

Toda essa explanação sobre o olfato, desde suas raízes mais arcaicas no cérebro

humano até o seu papel naquilo que se denominou de civilização, leva-nos, neste momento,

para uma análise das mídias, mais especificamente, do texto publicitário de perfume.

Explanaremos como o olfato se apresenta no plano da imagem.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [109]

CAPÍTULO IV
A IMAGEM DO CHEIRO: UMA ANÁLISE DA PUBLICIDADE
DE PERFUME

4.1 Das escolhas

Divulgadas entre 1993 e 2004 em revistas brasileiras ditas femininas, em

campanhas que se estendem por meses e têm o estatuto de texto publicitário, as imagens que

analisaremos a seguir constituem um conjunto homogêneo, sobretudo no que se refere à

maneira como é apresentado ao público. Em função desse critério seleção, todas imagens

exploram um único tema: a beleza feminina. Num primeiro olhar sobre elas, vemos como

cenário, ou mesmo como ponto fulgurante do anúncio, um corpo, um rosto, uma silhueta.

Muitas vezes, um fragmento de mulher: uma mão, lábios, um torso, uma cabeleira, mas

sempre reconhecíveis como uma parte que vale pelo todo.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [110]

Sem dúvida, a maneira como esses elementos são figurados, o modo como são

utilizados e dispostos na superfície desses anúncios de perfume, não é neutro. Essas imagens,

portanto, traduzem os papéis convencionais que são atribuídos às mulheres. Trata-se de um

discurso em imagens que, em conjunto, não traz surpresas, mas convida a uma análise, a uma

crítica, a uma denúncia. No entanto, neste momento, não nos interessa tal abordagem de certo

modo até um pouco convencional sobre as mídias. Nossa abordagem partirá de outro

princípio. O que realmente merece ser analisado, neste momento, é como o texto publicitário

de perfume transcodifica a linguagem dos cheiros/odores para o mundo das imagens visuais, e

de que estratégias iconográficas se utilizam para tal efeito.

Na medida em que será analisado um pequeno número de anúncios selecionados a

título de amostragem, deixaremos de fora o que a publicidade afirma a respeito das mulheres,

voltando-nos exclusivamente à compreensão de como a encenação publicitária nos faz olhar

os simulacros que constrói e o que ela nos faz ser ao contemplá-los.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [111]

4.2 O que dizem as imagens?

Nosso compromisso é trazer a teoria que explanamos nos capítulos anteriores e

transportá-la ao mundo das imagens midiáticas, mais especificamente às peças publicitárias

de perfume. Nesse sentido, procuraremos então, a partir desse momento, num olhar

panorâmico sobre a amostra selecionada desses anúncios, que elementos evocativos da teoria

anteriormente exposta elas trazem.

O que salta aos olhos nas imagens publicitárias de perfume é que todas elas nos

remetem a idéia de higienização perfeita, sempre com o conceito de que o perfume limpa e

serve de meio para jogar com a aparência do indivíduo, tendo ainda a capacidade de construir

vínculos com as outras pessoas, de aproximar e de atrair esse outro pelo cheiro que exala

desse corpo ungido. Esse cheiro permite o acesso a outro sem que isso seja um tabu

civilizatório. Em sua grande maioria, os cenários desses anúncios contêm corpos nus

entrelaçados que remetem à idéia de relação mais íntima, de proximidade e contato físico de

um corpo com o outro, seja do mesmo sexo, o que não é uma figura muito recorrente nesse

universo dos cheiros, ou do sexo oposto. Esta é a proposta primeira dessas peças: a relação

sexual, a sensualidade por si só. Observando a presença ou não da aliança, símbolo de amor

mais estável, vê-se que essa relação pode ser fugaz ou duradoura. Ainda perseguindo essa

idéia do corpo limpo e purificado, a publicidade de perfume apresenta uma oposição

semântica básica: a relação caos/cosmos, reforçando a idéia de que o perfume retira o corpo

do caos da vida mundana impura e suja para transportá-lo diretamente para o mundo do

cosmos, relação que estabelecemos no capítulo III dessa dissertação no item “olfato e sexo”,

em que explicamos que esse termo do mundo estético se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’,

‘bem arranjado’, de forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal.

É sempre em torno dessa perspectiva que as imagens publicitárias giram.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [112]

Dois anúncios servem como exemplo da relação caos/cosmos. Primeiro, um da

BLV-Bvlagari que nos remete à metáfora de que o perfume BLV é uma jóia italiana

contemporânea, idéia retirada do slogan da marca: “Contemporary italian jewellers”.

Portanto, quem utiliza o perfume/a marca torna-se essa jóia, simbolizada também pelo colar

que tem as mesmas cores do vidro do perfume.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [113]

O outro exemplo é a peça publicitária de Carolina Herrera em que a modelo se

encontra num lugar bucólico, incomum, mas que remete aos templos e castelos dos contos

infantis. Isso é destacado pelo slogan do anúncio: “O perfume que veste seus sonhos”. Joga-se

com o campo do onírico, fazendo crer que o perfume transporta quem o usa para o mundo dos

sonhos, tornando-o real. A temática caos/kosmos se coloca nesse anúncio pela composição do

cenário, em que tudo é simétrico para ser fotografado.

Aproveitando a temática do amor, analisaremos dois anúncios muito díspares do

texto publicitário de perfume que explora o erotismo. Podemos observar no anúncio da

Fórum 40 que o produto que exala do frasco do perfume não é senão algo que envolve os

corpos, por um instante contagiados pela sensualidade que o cheiro do perfume evoca. De

outro lado, ainda na mesma temática de amores, sensualidade e erotismo, a peça publicitária

da Eternity – Calvin Klein retira o perfume da esfera dos amores passageiros, jogando com a

própria palavra que dá nome ao perfume: eternity. O cenário é um casal contagiado pelo

amor, mas que não é aquele de uma noite só e nada mais, mas aquele que se une para

constituir uma família, algo que sugere, de uma certa forma, também uma durabilidade maior

ou uma eternidade.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [114]

Esse ideal de corpo limpo e purificado pelo odores é bem explorado por esses

textos publicitários, que ostentam corpos sem manchas, marcas ou cicatrizes. Pode-se dizer

sem história, já que tudo que se põe sobre o corpo e no corpo compõe uma história. A idéia de

pureza é obtida não apenas pela ausência de marcas nos corpos, mas também pelo excesso de

luz e claridade nos cenários, algo que tem o poder de penetrar nas entranhas e purificá-las,

realizando uma higiene profunda que nada ou muito pouco tem a ver com o corpo biocultural.

É inegável que o corpo utilizado pela publicidade serve de suporte semântico para

sua própria linguagem, estabelecendo a comunicação por meio de representações do corpo

idealizado sempre portadora de uma excelência vital, por uma certa cultura. A publicidade,

portanto, trabalha com um corpo específico, que difere totalmente do corpo humano vivo, que

não tem como escapar da ação do tempo-espaço, e, por conseguinte, vive de seu próprio

desgaste.

Dessa forma, o corpo da publicidade representa um modelo que o corpo

biocultural deve desejar para receber o reconhecimento social. Esse corpo que deflagramos no
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [115]

texto publicitário brasileiro, com o qual esta pesquisa trabalha, parece estar congelado no

melhor, guardando para si somente as qualidades consideradas de excelência: a vitalidade da

infância, a força muscular da juventude, a maturidade da idade adulta, a sabedoria da velhice.

Um corpo verdadeiramente mítico que nada lembra as ameaças que a sombra da morte

imprimem sobre as células vivas. É um corpo que parece negar a segunda lei da

termodinâmica: não transpira, não tem uma mecha de cabelo fora do lugar. Isso é, sem

dúvida, algo que está muito mais conectado ao mundo do cosmos, como afirma Hillman, do

que do caos.

Essas peças publicitárias em sua maioria revelam o perfume como mídia. Em

alguns momentos, resgata o pensamento de Harry Pross sobre a mídia primária, quando se

põe no cenário publicitário com único elemento da composição, auto-referindo-se e valendo-

se da força discursiva que a marca do produto, reforçada pela assinatura do anunciante,

emprestam a esse cheiro.

Nessa mesma corrente de pensamento, entendemos que essas imagens levantam a

hipótese de que o perfume realmente assume no imaginário das pessoas a idéia de uma

segunda pele ou roupa, algo que reveste esse corpo. Muito mais do que revestir, parece

investir, impregnar e amalgamar essa pele através dos poros, querendo alterar até o corpo

biológico. Esse pensamento foi apresentado no capítulo II desta dissertação.

Os cenários expostos nesses textos publicitários contam muito a respeito da

transcodificação do mundo dos aromas/perfumes para o mundo das imagens. Essas imagens

asseguram a idéia tão recorrente de caos/cosmos, os atores, modelos que se apresentam nesses

espaços como deuses, quase sempre captados em repouso. Empregam-se como imagem de

fundo: prédios, casas e outros elementos que remetem ao mundo urbano das cidades.

Naturalmente, trata-se de uma cidade ideal, onde há apenas festa e amores. É preciso esquecer

que tudo que lembre trabalho. Os corpos que estão ali são imagens, cuja função é representar
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [116]

o ideal do divino, daí emergindo um rosto, um corpo ideal liberto das impropriedades da

esfera do mundano.

Tudo nesse espaço parece calado, silencioso, ou seja, misterioso, cheio do segredo

profundo que se atribui a toda a beleza que não fala. Raras vezes isso acontece, mas nada mais

simples do que pela via do simulacro.

Reduzindo tudo a um rosto, um ombro, cabelos, corpos esquartejados, cujos

pedaços expressam a virtude e irrealidade de seus sexos devido à dificuldade de atribuir a

esses pedaços uma casa genérica segura. Esses cenários publicitários fazem crer que aquilo

que o leitor/consumidor contempla passivamente é realidade, é a cidade em que vive. Assim,

a cidade é na verdade mito, sonho e maravilha. É uma audácia não colocar esses corpos no

alto do pedestal tal como deuses embonecados, lânguidos, angelicais ou virilizados. A

publicidade não representa, mas teatraliza em tal grau que se torna uma farsa publicamente

aceita.

Para exemplificar tal façanha publicitária sobre o corpo, tomamos o anúncio da

Opium-Yves Saint Laurent. Sabemos que existem inúmeras peças publicitárias que remetem a

essa temática, mas esta apresenta um corpo perfeito que pouco ou nada lembra esse corpo

biocultural que insiste em suar, cheirar, sujar. Ao colocar um corpo em repouso, como se se

negasse/recusasse ao mundo do trabalho, entrega-se ao mundo dos prazeres, torna-se um

exemplo fulgurante.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [117]

Retomando um pouco da história do perfume, no capítulo I desta dissertação no

item do “Século XIX até os dias atuais”, apontamos o cruzamento da história da moda com a

história do perfume, mais precisamente o século XX, quando grandes estilistas começaram a

realizar a associação entre a moda e a perfumaria. Ou seja, as marcas consagradas das altas

costuras transferiram para o mundo dos perfumes todo o requinte e a elegância que suas

marcas já inspiravam no imaginário do consumidor. Em alguns anúncios em que a marca do

perfume está associada também a um grande nome do mundo da moda e da alta costura, as

modelos são colocadas nos cenários publicitários vestindo roupas que são verdadeiras obras

de arte. A composição desses cenários cria uma relação entre aspergir um “bom” perfume e

vestir uma roupa de alta costura. Veja-se, como exemplo, os seguintes anúncios da Opium-

Yves Saint Laurent. Observa-se que o vestido da modelo compõe numa semelhança de cores

com o frasco do perfume Opium. A mesma metáfora ocorre nos anúncios da Organza
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [118]

Indécence-Givenchy e da So Pretty-Cartier, estabelecendo uma relação clara entre perfume e

roupa, como se aquele tivesse a força metafórica de vestir/recobrir o corpo.

A transcodificação da linguagem do cheiro para o mundo das imagens parece

querer afirmar que o olhar se sobrepõe aos outros sentidos corporais. Contudo, no caminho

oposto dessa escalada dos sentidos, o anúncio da Moschino-Couture aponta que o mais

importante nesse mundo dos perfumes não é a aparência ou o que se vê. Tanto é assim que os
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [119]

olhos estão cobertos pelos cabelos, deixando o nariz e a boca em destaque, mostrando ao

leitor que o mais importante do mundo do perfume advém das experiências do olfato e do

paladar, o que, por sua vez, abre uma brecha para pensar que esses dois sentidos, olfação e

gustação, confundem-se e complementam-se em vários momentos, como foi discutido no

capítulo III desta dissertação.

A modelo do anúncio Inspiration-Charles Jourdan posa de olhos fechados,

explorando olfato e gustação como os sentidos mais importantes para compreender o mundo
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [120]

dos perfumes/cheiros. E a cobra que tem grande semelhança ao vidro do perfume Inspiration-

Charles Jourdan, toma a face da modelo, encobrindo todo nariz como se somente a ela

importasse a sensação de farejar a essência do perfume. Numa tentativa de capturar também

algo da esfera da gustação, a modelo aparece com a boca entreaberta, como se, num golpe de

inspiração, pudesse sentir o gosto daquele perfume e contagiar-se com os odores através dos

sentidos de proximidade.

Unindo os anúncios da Moschino-Couture e da Inspiration-Charles Jourdan ao da

Rubylips-Salvador Dalí, vêem-se, instigantemente, três modelos. Duas encontram-se em

estado lânguido, como se estivessem tomadas de uma forte emoção. Já a terceira, do anúncio

da Moschino, apresenta-se frontalmente, com total despudor por parecer nua e cobrir somente

olhos, como se tudo ali naquele mundo fosse prazer. O que chama atenção são os lábios

vermelhos das modelos, que são verdadeiros pontos de fulga do olhar do leitor, como se o

resto dos elementos dos cenários fossem secundários. O que se almeja com esse anúncio é

transportar o leitor direto para o mundo dos prazeres do contato e das emoções, pura evocação

da proximidade. Não se trata de um prazer como outro qualquer, mas de um prazer sublimado

e bem afastado, pelo menos no imaginário, dos odores da atração animal.

As questões da aproximação e do vestir o corpo podem ser encontradas nos

anúncios da Eternity Moment-Calvin Klein, em que a mulher quase nua se deixa envolver

pelos braços do homem completamente vestido no modelo ternário. O perfume serve aqui de

metáfora para algo que veste e aproxima os indivíduos. O slogan do anúncio diz: “Just one

moment can change everything” (Um só momento pode mudar tudo). No layout da peça, lê-se

a palavra “Introducing”, que conecta a frase para a marca do perfume. Portanto, um momento

pode mudar tudo, introduzindo o perfume Eternity, como se este tivesse o poder de mudar os

rumos da vida amorosa de uma pessoa.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [121]

4.3 Imagem: superfície refinada

As imagens fixas são por natureza a construção por meio da redução do mundo do

sensível a apenas duas de suas dimensões. A fotografia se constitui pelo simples arranjo de

formas e superfícies de sombras, de luzes e de cores. Ela é efetivamente capaz ainda, se

necessário, de aplanar as anatomias e cristalizar as posturas, bem como de figurar qualquer

coisa, graças ao mínimo de refinamento, que pertença à ordem do inapreensível e do

instantâneo. A imagem ganha tanta expressão que imediatamente faz “viver” e “falar”; o

corpo e o olhar fixados no papel dão a impressão de se animar e se tornar diante de nós algo

além de morfologias.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [122]

Passamos da superfície do visível à do sensível, da superfície do papel à textura

da pele, da “representação” à “presença”, assim como da abstração esquemática ao semblante

vivo. Muitas vezes é o olhar (aquele que a imagem cria) que é conjugado a outros elementos

cenográficos, produzindo a idéia de um simulacro de uma presença.

Observando essa seqüência de anúncios em que a modelo se encontra de frente,

encarando o leitor, observa-se que a capacidade simuladora das imagens faz crer, pela “força

emotiva” desses olhares, que ali há um corpo e que em sua face simulacra parece querer

pulsar uma vida real. A imagem de um olhar intimidativo encara o observador, convidando-o

a entrar no mundo mágico da publicidade, no qual tudo parece amor, perfeição e pulsação em

formas simuladas.

A composição dos olhares entreabertos com faces vívidas e olhares pungentes

convidam o leitor a adentrar ao universo dos cheiros, e a uma comunicação de maior

proximidade. A proposta fica mais evidente no anúncio da Hugo Boss, em que a modelo se

encontra totalmente tomada nos braços de uma pessoa do sexo oposto.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [123]

Tomando o cenário todo do anúncio, a cor vermelha, que é também a cor do

frasco do perfume, parece envolver os dois modelos. O fato nos leva a pensar que o perfume

está a serviço da aproximação do envolvimento dos corpos. Essa mesma proposta é

apresentada no anúncio do Dolce & Gabbana light blue, porém em menor intensidade de

conotação de vínculo amoroso pela ausência da figura de um outro personagem. Talvez

possamos deduzir que esse outro ausente seja o próprio leitor do anúncio.

Vale ressaltar que o que nos credencia a ler tais imagens assim é a presença da luz

de mesma cor do frasco dos perfume vermelho e azul, respectivamente, referindo-se ao Hugo

Boss e ao Dolce & Gabbana light blue. No anúncio da Calvin Klein, a cor sobre o corpo da

modelo é pálida, uma metáfora para o perfume que reveste. Mas, pela ausência de qualquer

elemento concreto que remeta ao perfume propriamente dito, permanecemos no campo das

hipóteses no que se refere a esse anúncio.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [124]

4.4 Metonímia: uma parte que fala pelo todo

Tomando pelo espantoso número de peças publicitárias que recorrem à estratégia

de utilizar uma parte do corpo para representá-lo como um todo, atentamo-nos para essas

“imagens fragmentadas”. O que se observa na maioria delas é um pescoço que se expõe e se

oferece ao leitor para ser possuído e devorado por esse outro que, atraído pelo “cartaz

etológico” de que fala Cyrulnik, ou o “mapa da ternura” de Michel Serres, no capítulo III, no

item olfato e sexo. Não se pode esquecer de que o perfume compõe um dos elementos

atrativos para o outro. Assim como a região do pescoço se oferece ao outro como zona de

acesso, ao se aproximar do pescoço, ao cheirá-lo, estamos de certa forma dominando o corpo

desse outro. Nesse sentido, pode-se dizer que o pescoço é uma zona erógena do corpo. As

imagens oferecem uma pontuação interessante: especialistas em perfume afirmam que se deve

aplicar o produto no pescoço, pois seu aroma tem maior tempo de permanência quando

aplicado em pontos onde a circulação sangüínea é mais intensa, como umbigo, nuca ou atrás
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [125]

dos joelhos. Se voltarmos uma atenção especial ao universo da cultura, mais especificamente

ao mundo tropical, essas imagens que exploram o pescoço também reforçam um fetiche, pois,

nesses países não se costuma recobrir essa região. É realmente uma zona do corpo que se

expõe. Quando se transporta a análise novamente para o mundo das imagens publicitárias que

nos oferecem corpos cortados, nota-se que, de fato, geralmente se vê um busto em que o

pescoço está acessível. Quando as vemos, logo nos vem à mente um corpo totalmente nu e

pronto para vincular-se ao outro. Tal constatação pode ser observada no anúncio da Carolina

Herrera-Flore, em que a mulher é fotografada de perfil, com o rosto virado e acentuando a

região do pescoço para o leitor do anúncio. Essa idéia é reforçada pela posição das mãos, que

apontam para o pescoço.

Ainda devemos ater ao cabelo amarrado em forma de coque. O que mais salta ao

olhar do leitor é a de alguém que está se oferecendo completamente. Parece dizer a esse leitor:

“Venha e fareje-me. Sinta meu aroma.” Essa mesma idéia se repete nos anúncios da Dolce &

Gabbana. Porém, nessas duas peças publicitárias, o corpo aparece quase que em plano
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [126]

completo na imagem e um pouco mais recoberto por roupas, que de certa forma também são

evocativas de uma sensualidade, cumprindo a promessa de permitir que o corpo se aproxime,

cheire e se envolva completamente.

Na mesma sintonia temática se apresenta o anúncio do Narciso Rodriguez. Nessa

peça, a modelo oferece o pescoço para o leitor cheirar. No entanto, ela não parece

dissimulada. Seu olhar, voltado para a frente, parece encarar o leitor e perguntar se ele é

capaz de tomá-la nos braços. É diferente do anúncio da Dolce & Gabbana, em que a modelo,

embora se encontre de frente, tem o olhar perdido no horizonte, remetendo a uma idéia de

sensualidade e prazer imediato. O contraste de luz e sombra também revela muito, na medida

em que a parte iluminada é a mesma em que se encontra o frasco do perfume, o que faz alusão

a algo transcendental, que ilumina e reveste o corpo e o torna mais atraente.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [127]

Numa proposta um pouco menos ousada, em que a modelo não parece se oferecer

ao leitor, está o anúncio da Flower by Kenzo. O corte que desconfigura a face da modelo e a

torna irreconhecível só permite ao leitor desconfiar que ela seja uma mulher tomada por uma

sensação de plena segurança, que caminha livremente em um lugar qualquer, totalmente

limpa e fresca. Tal idéia é traduzida pelo movimento dos fios de cabelo e pela blusa branca

que forma um contraste com a pele, igualmente limpa, clara, sem marcas e manchas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [128]

Já o anúncio da Dior-J’adore parece propor que esse corpo envolvido em

aromas/perfumes e investido de um poder de sedução que o torna objeto de desejo atrai o

outro para um envolvimento amoroso. Os braços que o envolvem revelam-nos a capacidade

de aconchego e de carinho que ocorpo oferece quando aspergido pelo perfume. O olhar

frontal e entreaberto sugere uma mulher que precisa de carinho e atenção. A peça que envolve

o pescoço da modelo, dourada como o frasco do perfume e todo o cenário desta peça, chama

ainda mais atenção para a idéia do perfume como algo que envolve que estabelece vínculos e,

portanto, aproxima.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [129]

4.5 O corpo reconhecido

Retomemos a idéia de que o perfume recobre um corpo como se fosse uma roupa

que o outro reconhece como “boa”, “bonita”, “cara”, “barata” etc. Isto pode ser observado no

anúncio do Carolina Herrera 212, em que os corpos presentes no plano da imagem

encontram-se nus, em posição recostada, como se se entregassem um ao outro para o ato

sexual. Tem-se a impressão de que o que torna esses dois corpos atraentes não é outra coisa

senão o perfume que os envolve. A idéia de reconhecimento não só pelo perfume que utiliza,

mas também por meio do cenário de fundo do anúncio que se compõe de uma cidade,

provavelmente uma grande metrópole, a julgar pelo estilo das construções. Reconhecido

também pelo outro que os observam, tanto os habitantes que os vêem em um plano interno

como o próprio leitor, externo a esse plano. Atendo-se ainda à questão do plano, os corpos

num plano mais elevado da cidade levam-nos a pensar, mais uma vez, que o perfume os retira

do mundo do caos urbano, para transferi-los ao mundo do cosmo, mais próximo do céu.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [130]

A mesma interpretação pode ser dada à peça publicitária da Thierry Mugler-

Angel, em que a modelo também parece ter sido retirada do plano mundano, da cidade grande,

para adentrar o mundo do cosmo, da perfeição. Seu corpo está revestido de uma roupa com

uma cauda enorme, que a torna uma estrela e reproduz frasco do próprio perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [131]

4.6 A civilização do olfato

Como vimos no capítulo III desta dissertação, certos odores são empregados por

alguns animais, entre os quais o Homo sapiens, para atrair o parceiro sexual. Na medida em

que se substituem os odores naturais do corpo por outros artificiais, fica implícita a idéia de

que aqueles são indesejáveis, e exalá-los pode levar um indivíduo a ser repelido. A fragrância

possivelmente artificial do perfume faz seu portador cheirar a frutos cítricos, entre outras

substâncias. É a esse olor que se atribui a eficácia da atração erótica. O que ocorre no discurso

desse anúncio da Dolce & Gabbana é a naturalização do artifício, um dos mecanismos mais

eficientes da publicidade: se você consumir “isso” se tornará “isso” que anunciamos, ou seja,

mais atraente.

Numa perspectiva de análise mais freudiana, traremos à tona todo o

desenvolvimento exposto no capítulo III, no item “Olfato e civilização”. Ali, tratamos

especificamente do mal-estar da civilização ante certos odores corporais que devem ser

“civilizados” pela supremacia perfumada da cultura, pois os odores naturais do corpo podem

nos fazer regredir à mesma condição dos homens primitivos, que eram atraídos pelos fortes

odores emanados das partes baixas das mulheres, fazendo com que esse “ser primitivo”

agarrasse sua parceira por trás. Nesse período, a ativação do prazer concentrava-se mais no

nariz do que no olhar. Em outras palavras, a esse homem primitivo era negado “ver” o prazer

nos olhos do outro, diferentemente do que é considerado erótico atualmente.

Analisando o anúncio propriamente, seguimos o percurso do olhar (de cima para

baixo e da esquerda para a direita), e interpretamos que esse homem civilizado é atraído

primeiramente pelo cheiro que exala do pescoço, uma das zonas do corpo que geralmente se

encontram recobertas pelo perfume. Segundo a análise de Freud, esse homem tornou-se

atraído não mais pelo cheiro natural, mas pelo cheiro artificial e pela “força” erótica e sensual

do corpo feminino. Tanto isso é verdade que as zonas de tabu para o homem civilizado, que
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [132]

são as partes baixas e também, muitas vezes, os seios, encontram-se devidamente recobertass

e inacessíveis. Esse tabu também pode ser bem observado quando nos atemos a imagem do

anúncio em que os corpos do casal somente se aproximam por completo, havendo realmente o

contato do quadril para cima. As partes baixas não se encontram, sinalizando que o sexo

precisa ser suavizado, domesticado, de maneira a desfazer-se da concepção original e recusar

o chamamento animal, que é totalmente olfativo. A partir da leitura desse anúncio,

compreende-se que primeiramente é preciso curvar-se ao mundo dos perfumes civilizados,

artificialmente construídos, para depois dirigir-se às partes baixas, que remetem ao seu lado

mais primitivo. Essa idéia de “curvar-se ao mundo dos perfumes civilizados” pode ser

entendida, na cena, pelo contato direto da face do modelo sobre o pescoço da mulher e,

metaforicamente, pelos vidros de perfume à direita na parte de baixo do anúncio, em que eles

aparecem totalmente próximos, tocando-se de corpo inteiro. Ou seja, na medida em que se

curva aos odores culturais pode se aproximar do outro.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [133]

4.7 O duplo

A questão do duplo de Morin, apresentada no capítulo II, no item Corpo e

perfume: perfume como mídia, também está presente no anúncio da True Love-Elizabeth

Arden. O corpo e cheiro estão metaforicamente sinalizados pelas rosas que circundam o vidro

de perfume e pelas alianças que se entrecruzam na tampa da embalagem, indicando que o

produto é capaz de unir e atrair as pessoas. Como observamos também no capítulo I, que se

refere à história do perfume, a maioria das fragrâncias equivale a uma flor.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [134]

Nesse sentido, pode-se dizer que o perfume exalado pelas rosas nesse cenário

publicitário remete a dois corpos atraídos um pelo outro.

No campo do verbal, o duplo se faz presente no anúncio do perfume Burberry:

“When we’re apart, I still feel your touch” (Mesmo de longe, sinto seu toque.). Diz-se

textualmente que o perfume/cheiro da amada é de tal forma evocativo de sua presença que,

mesmo na ausência corpórea dela, seu toque ainda pode ser sentido. Esse toque, que vem por

meio do perfume e do ar (portanto, do duplo), torna presente o corpo ausente.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [135]

Outra peça publicitária também remete à idéia do duplo. Desta vez, porém, é

evocada por meio de um objeto qualquer: um lenço impregnado do perfume da pessoa amada

que a torna ainda mais saudosa. Tal como verificamos no capítulo III, nos itens Comunicação

olfativa e Por uma arqueologia olfativa, observa-se primeiramente que há uma relação entre o

cheiro e o sentimento. Ou seja, um determinado aroma pode ser associado a uma perda, a um

amor, ou ainda servir de vínculo social. Cada um de nós pode reconhecer o filho, a mãe ou a

pessoa amada pelo cheiro. Nesse sentido, a percepção do cheiro dependerá tanto da sensação

que ele provoca como da emoção que resgata.

Na imagem do anúncio a seguir, a atriz italiana Mônica Belucci aparece triste,

cabisbaixa, como se sentisse a ausência de uma pessoa amada cuja reminiscência olfativa lhe

provoca uma emoção forte. Há ainda a emoção e a explosão tradicionalmente associadas aos

italianos, que seriam mais sensíveis que os outros povos do mundo.


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [136]

De maneira geral, podemos afirmar que as imagens publicitárias de perfume, cuja

finalidade última é vender o produto, cumpre seu papel na medida em que elabora em seu

plano imagético um discurso que transporta da sensualidade e do erotismo, que representam o

mundo do caos, para o mundo do kosmos, da beleza, do sexo sublimado, muito distante da

idéia animal. Outro tema abordado é a emoção, sempre vinculada à idéia de perfume/cheiro

capaz de evocar uma emoção ou despertar uma sensação. Jogando com a efemeridade do

perfume, com o modo como ele se dissipa rapidamente, as relações amorosas encenadas no

plano das imagens são passageiras. No entanto, a publicidade também demonstra que os

perfumes não despertam só os amores fugazes, mas também os amores eternos ou duradouros,

exibindo mãos com alianças ou até mesmo cenas do cotidiano de uma família comum feliz. A

relação do perfume com a roupa, com algo que recobre e que veste, está presente na maioria
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [137]

dos anúncios apresentados, justificando a questão da necessidade do perfume como objeto que

torna a outra pessoa “bonita” e “reconhecida” para quem a observa.

A maioria dos anúncios que compuseram essa amostragem tinha em seu

enquadramento um corpo que, embora não tenha nenhuma referência real, essas imagens são

formadas por pequeninos grânulos que devem ser desejados, tocados e observados pelos

leitores. Portanto, podemos lançar a hipótese de que a passagem da linguagem dos

cheiros/perfume para o plano das imagens dá-se por meio da exposição de corpos-imagens

que evocam o desejo do leitor de tocá-la. À medida que esse desejo simbólico se constrói,

surge a falsa idéia de poder sentir o cheiro do perfume, tal como numa fantosmia, que é um

distúrbio do olfato em que o indivíduo tem a percepção de um odor que não existe.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [138]

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da visão saturada ao olfato esquecido

O mundo da visão saturada é o mundo da visibilidade exacerbada, em que há o

nítido predomínio da visão. A visão é um sentido de distância que, ao contrário dos sentidos

de proximidade (olfato, tato e paladar), não requer a presença, possibilitando sem grandes

déficits a substituição pelas imagens, enquanto os demais sentidos exigem sempre a presença

e a corporeidade. À medida que das imagens visuais são mais valorizadas, somente assume

status de valor aquilo que se pode ver. Esse fenômeno gera um desequilíbrio comunicacional

dos sentidos, próprio do tempo da tecnologização dos discursos e, nesse sentido, percebe-se,

um empobrecimento da comunicação, pois o equilíbrio comunicacional do homem requer

uma certa presença distribuída de distância e proximidade, uma vez que a visão prepara os

corpos para a proximidade e os sentidos de proximidade preparam esses corpos para a

afetividade.

A era da visibilidade fez com que tudo e todos se transformassem em imagens.

Em conseqüência, acabamos por inverter o vetor da interação humana. A visão satisfaz-se

com a sua própria criação, as imagens visuais. A partir dessa inversão, em que distância se

sobrepõe à proximidade, os vínculos comunicativos entram em crise também, pois, quando

abandonamos nossos sentidos de proximidade, a comunicação interpessoal, fraternal, fica em

crise. São esses os dispositivos responsáveis pelo equilíbrio das tensões e conflitos pessoais

que adormecem e são suprimidos paulatinamente pelas relações escravizadoras da era da

visibilidade. Não temos nos dado conta do ambiente comunicativo ao qual estamos sendo

conduzidos: uma era de violência não somente física, mas também simbólica. É a violência

bruta prevalecendo para que haja um contato físico entre os corpos.

Caminhamos para um ambiente comunicativo desfavorável ao abdicar dos

sentidos corporais de proximidade e gerar horizontes comunicativos obscuros devido ao


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [139]

excesso de luzes de holofotes que nos conduzem a um falso presente, sem corporeidade, sem

presença. É o corpo transformado em efígie.

Vivemos a era dos superlativos e das megalomanias, daquilo que Harry Pross

(1987) chama de “verticalismo”. Como afirma Baitello: “A obsessão da vertical transformada

em vida e da vida transformada em vertical impõe a cada um de nós a luta permanente em

direção ao mais alto.” (2005, p. 03).

Voltando-nos ao mais alto, buscamos o nada, o vazio, o inóspito, o espaço

inabitável, um local inatingível, geralmente reservado aos deuses, seres celestiais, imateriais.

Portanto, sem corpo e sem vida (imortais). A transformação da vida em uma linha vertical tem

provocado enormes efeitos. Segundo Baitello (2005), o primeiro efeito refere-se à demolição

da corporeidade e dos espaços que (a) abrigam, ou seja, a destruição da realidade

tridimensional por meio da transformação dos corpos em traços verticais abstratos. O segundo

é a perda dos vínculos com o indivíduo ao lado, pois os vínculos que constroem a natureza

humana estabelecem-se na horizontal. Isso mostra que o ser humano abdicou da sua

capacidade de se comunicar, inaugurando uma escalada rumo à (in)comunicação.

A verticalização da vida leva o ser humano à perda das três dimensões do seu

espaço de comunicação. Assim, entende Vilém Flusser que essa escalada da abstração, que

nas mais remotas origens da espécie humana, bem como de outras espécies animais, havia

uma comunicação com o corpo, seus gestos, seus sons, seus odores, seus movimentos:

tratava-se de uma comunicação tridimensional. Ao passar a utilizar objetos como suporte

sobre os quais deixava seus sinais, o homem abriu-se para um mundo das imagens, em que

ocorre uma comunicação bidimensional. Algumas dessas imagens transformaram-se em

pictograma, depois em ideograma, e por fim em letra, inaugurando a escrita, o que se

denominou de comunicação unidimensional. E, por fim, com essa escalada, tem-se o

desenvolvimento das tecno-imagens. Alcançamos a comunicação nulidimensional, uma vez


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [140]

que essas imagens técnicas, produzidas por aparelhos eletrônicos, são fórmulas abstratas e

algorítmicas, um número (FLUSSER, 2002).

Ao concordar com Flusser quanto à existência de uma crescente perda das

dimensões, atamos o pensamento desse pesquisador ao de Kamper (2003), que aponta como

grande sacrificado nessa escalada o espaço tridimensional do corpo, pois “em seu lugar

entram as imagens bidimensionais, a escrita unidimensional e as tecno-imagens, virtualidades

nulodimensionais” (BAITELLO, 2003, p.81).

Nesse jogo de abstração no qual se insere, esse corpo tridimensional foi

transformado em imagem, revestindo-se daquilo que Kamper (2003) denominou “armadura

de imagem”, ou seja, uma verdadeira sobreposição de imagens sobre imagens do corpo. A

cultura das imagens (transformação de toda a natureza tridimensional em planos e superfícies

imagéticas) abre a possibilidade para uma crise da visibilidade, pois a exacerbação da

exposição agrega às imagens um desvalor, já que, como entende Baitello (2004), não se trata

de uma crise das imagens, mas de uma rarefação de sua capacidade de apelo.

Para que possamos compreender a crise da visibilidade do nosso tempo,

primeiramente precisamos entender que, para a nossa sociedade, já não há uma diferença

entre o corpo do homem e a sua própria concretude. Parece-nos particularmente instigante o

pensamento de Kamper, ao indagar a respeito desse fenômeno. Dessa forma, ao abrir mão

daquilo que é concreto, transformamos nossos corpos em imagens, “des/encarnamos” em uma

cadeia de imagem e simulação que nada tem a ver com a capacidade simbólica do homem,

mas com os modismos do mercado. Esse desencadeamento de imagem revela a obsessão da

nossa sociedade pelo o corpo, o que nos faz pensar que faltam situações que solicitem ou

estimulem a participação direta do corpo e que o convidem a experimentar sua concretude

espaço-temporal.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [141]

Apóia-nos o psicólogo J. Hillmam (1993, p.40), que afirma: “Tudo nos olhos e na

cabeça. O sentido corporal de orientação está perdido.” Receamos, então, que esse processo

de abrir-se e transformar o mundo em imagem seja o próprio corpo e seus sentidos

proprioceptivos (o sentido do corpo para a percepção de si mesmo) que são atingidos.

Portanto, “quanto mais imagem, menos visibilidade, e quanto mais visão, menos

propriocepção, sentido por excelência do aqui e agora” (BAITELLO, 2000, p.81).

Baitello nos convida a pensar que, em nosso tempo, no qual perdura a cultura do

olhar, das imagens visuais, não perdemos lentamentema sensação do próprio corpo, do tempo

e do espaço habitado pelo nosso eu e, assim, anestesiando nossos sentidos corporais?

Todo nosso encadeamento reflexivo, exposto neste capítulo, é resultado do

diálogo com autores de diversas áreas que parecem apontar para uma importante deflagração

epistemológica, a perda dos sentidos, do distanciamento do corpo, da privação de experiências

sensoriais que sofremos em nossa sociedade tecnológica.

Se nos esquecemos dos sentidos de proximidade, esquecemo-nos também do

nosso corpo. O corpo precisa do tempo e do espaço, pois é por meio dessas noções que ele

dialoga com o mundo. O corpo sente e tem prazeres e, muitas vezes, muito mais desprazeres,

principalmente com os sentidos de proximidade. A era das imagens, ao contrário, não nos

proporciona essas sensações, uma vez que uma imagem não tem cheiro, nem sabor, nem pode

ser sentida pelo tato. Então, questionamos: se a visão predomina sobre os outros sentidos, não

estaríamos deflagrando um corpo que agoniza por não ter mais o prazer e, por fim, também

ocorreria um “esmaecimento do afeto”14

14
Apropriamo-nos do termo “esmaecimento do afeto” empregado por Fredric Jameson (2004), como a terceira característica que diferencia
a passagem da alta modernidade para a pós-modernidade. Emprega-se esse conceito não no sentido que todos os afetos, todo sentimento ou
emoção, toda a subjetividade tenha desaparecido na pós-modernidade. Ocorre a transformação dos objetos em mercadorias, bem como a
transformação das figuras humanas, que se transformam em mercadoria e se transformam na própria imagem. O esmaecimento do afeto é “o
fim do ego burguês, ou da mônada, sem dúvida, traz consigo o fim das psicopatologias desse ego. (....) No que diz respeito à expressão de
sentimentos e emoções, a libertação de qualquer sociedade contemporânea, da antiga anomie do sujeito centrado (...) libertação de qualquer
sentimento porque não há mais a presença de um ego.” (2004, p.43).
Para maiores esclarecimentos sobre a temática, indicamos a leitura da obra: JAMESON, F.. Pós-modernidade: a lógica cultural do
capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2004.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [142]

A primeira e incisiva resposta que vem à tona é positiva. A prova cabal que

sustenta nossa afirmação provém de um lide da reportagem de O Estado de S.Paulo sobre os

ataques ao reduto do Hezbollah, no sul de Beirute, que adverte: “Para quem entra, um aviso:

aguce os ouvidos e a visão e ignore o olfato”. Destacamos um trecho da reportagem:

Quem entra no bairro de Haret Hreik deve aguçar a audição e a visão. E


ignorar o olfato. (...) Os objetos no chão coberto de pó, dentro das casas, dos
pátios, entre os destroços, são mais reveladores que a destruição em si – que
o tempo banaliza. O cheiro de cadáveres exalado dos escombros produz
primeiro náusea, depois dor de cabeça, até secar completamente a garganta.”
(SANT’ANNA, 2006, p.A9).

Essa reportagem evidencia, sem sombra de dúvida, a fadiga dos sentidos de

distância e como eles são sempre evocados e explorados pelos meios de comunicação de

massa: as imagens, sejam elas visuais ou sonoras, já não chocam mais, não só pela exacerbada

utilização desses sentidos, mas também pela rarefação da capacidade de apelo. Concordamos

com Roland Barthes (1978) em sua obra La chambre claire, que afirma que as imagens de

grande apelo, com explícita força emocional, já não mais chocam nem comovem, porque já

sofreram por nós. O olfato, por mais que queiramos, é o sentido que nos escapa pelo fato de

não ser convidado ao banquete dos sabores e dessabores do mundo. Se as imagens já não nos

envolvem e comovem, e o sentido do olfato é ignorado, o que nos resta de afetividade do

mundo, se os poros fabricadores dessa afetividade estão em crise?

Resta perguntar como fica o sentido do olfato diante da predominância do olhar.

A primeira hipótese é a de que ele esteja esquecido, amortecido, lacrado, trancafiado. No

pensamento de Cyrulnik, “(...) entre os seres vivos, ao erguer-se, teria podido submeter-se

menos ao olfacto, especializar-se num mundo visual (...).” (1996, p.66).

Talvez, e dizemos talvez, pois nesse campo pantanoso somente formulamos

hipóteses, a prevalência da visão em detrimento do olfato, além de ser uma questão

estratégica biofisiológica do Homo eretus, é também uma questão de estratégia de cativação e


A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [143]

hipnose desse indivíduo. Como afirma Cyrulnik (1996), os odores colocam em movimento,

enquanto que a visão (as imagens) hipnotiza e imobiliza.

(...) no homem o odor é uma transmissão de matéria. Aquele que cheira,


palpa com o nariz uma amostra da matéria do outro, um indício que o
penetra tal como entre os animais. (...) A palpação olfativa que nos penetra
provoca uma apetência ou uma aversão, uma intenção de movimento, tal
como qualquer penetração. Porém sobretudo, assim que o cérebro do nariz
palpou uma amostra do odor do outro, a informação estimulante não é
enviada para o córtex, mas de imediato para circuitos da emoção e da
memória. À informação que nos põe em movimento, acrescenta-se a
evocação de emoções e de recordações. Pode-se influenciar com o odor,
atrair, rejeitar ou evocar, mas não pode hipnotizar, imobilizar. O olfacto dá
impulsão: palpa-se, evita-se, mentaliza-se, mas não se pode cativar. (1996,
p.94)

Mais adiante, acrescenta:

Com o olfato podemos comover e fazer agir sobre o outro. Ao passo que
com os outros órgãos dos sentidos o podemos cativar, tomar a sua
consciência e pô-lo na expectativa. Se cativar, por uma sonoridade, uma
imagem, uma encenação ou uma palavra, concentro as suas actividades
físicas e mentais na sensoridade que organizei, em sua intenção, na sua
direção....para tomar! E o outro está de acordo com essa intrusão sensorial,
porque é delicioso ser cativado. É um acontecimento sensorial e afectivo
intenso que nos torna cúmplices daquele que nos cativa. É muito diferente de
uma captura, em que o outro se apodera de nós quando nos opomos. (1996,
p.95).

As imagens visuais e as auditivas cativam a atenção do outro com mais eficiência,

já que:

(...) a molécula move e comove, a pressão física capta tocando, ao passo que
a gustação e o olfacto afloram a boca e o cérebro do nariz. Estas
estimulações sensoriais imobilizam por um breve instante, exactamente o
tempo de provocarem um movimento de atracção ou de fuga, de cheiro ou
de mastigação. O que não acontece com as imagens visuais e auditivas que
captam e põem na expectativa. (1996, p.98).

Esse esquecimento do olfato revela, então, que a cultura judaico-cristã convenceu-

nos da impureza e do pecado que o corpo representa. Cada vez mais, acatamos os valores
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [144]

apregoados pelo sistema, negando o corpo e suas formas, em favor de um corpo-imagem, que

já não quer e não precisa mais sentir. Como demonstra Restrepo, “o interdito que separa a

intelecção da afectividade parece ter origem em que, frente a uma percepção mediada pelo

tato, gosto ou olfato, o Ocidente preferiu o conhecimento dos exteroceptores, ou receptores à

distância, como são a vista e o ouvido. Nossa cultura é uma cultura audiovisual.”(1998, p.32).

Quando expulsamos a problemática dos sentidos, queremos demonstrar o que o

nosso tempo tem feito com o corpo e seus sentidos. Em nenhum momento pretendemos

pregar um regresso, um retorno à condição humana mais arcaica, mas compreender um tempo

em que a visão foi extremamente explorada. Há uma exacerbação da visão e, assim, uma

fadiga do olhar, que já não vê mais, uma vez que essas imagens perderam muito da sua

capacidade de apelo.

Nesse jogo de linguagem, fica sempre o gosto amargo de um corpo que não é

suscitado por inteiro, um corpo em que a razão se torna pilastra de sustentação. Não se requer

os sentidos de proximidade para si, na angústia primeva de não ter que sentir em si aquilo que

está impregnado no outro. É um corpo que padece de uma patologia e ainda não há um nome

que se possa atribuir às deficiências contemporâneas: padecemos de uma cegueira, apesar dos

olhos; de uma falta de tato, apesar dos dedos, mão e pele; uma inexpressiva olfação, apesar do

nariz para farejar ou cheirar.

O que realmente salta aos olhos é que a mídia primária, o corpo, está em plena

agonia. Somos seres que não conseguimos lidar com a mídia primária, embora nos

vangloriemos de ser uma das mais competentes e complexas máquinas que medeiam a

comunicação humana.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [145]

Pode-se dizer que essa deficiência recai sobre a mídia primária, e, neste trabalho,

concentramo-nos na olfação. Essa é a forma de nos tornarmos anósmicos15, denominação que

vem da combinação greco-romana “sem + cheiro.” (ACKERMAN, 1990, p. 65).

Restrepo (1998) embora construindo seus conceitos calcados e voltados para a

educação, oferece uma brecha para pensar e aplicá-los aos fenômenos midiáticos

contemporâneos, em que há a clara predominância da ambiência comunicacional, nitidamente

voltada à comunicação vertical (verticalismo). Quando se deflagra esse direcionamento

vetorial da comunicação, crê-se que a ausência e a não-solicitação do olfato fazem pensar que

já nenhuma ou muito poucas escolhas são realmente feitas pelos sentidos; escolhe-se por meio

de um conceito estabelecido segundo a razão de nosso tempo, que se apresenta bondosa e

soberana. “Ao excluir o tato e o olfato do processo pedagógico, nega-se a possibilidade de

fomentar uma intimidade, uma proximidade afetiva com o aluno, perpetuando-se uma

distância corporal que reforça a posição de poder do mestre, que agora se torna verdade

incontestável.” (1998, p.34).

Diagnosticamos, neste momento, que é preciso reposicionar essa mãe soberana do

nosso tempo, a razão, pois:

Esta razão universal, incapaz de perceber a singularidade, não entende que


aprender é sempre aprender com o outros, pois as estruturas de pensamento
são mais do que relações entre corpos que se interiorizam, afeições que, ao
se tornarem estáveis, nos impõem um certo modelo de fechamento ou de
abertura para o mundo. (RESTREPO, 1998, p.33).

15
Aplicando uma outra denominação médica ao fenômeno midiático, no que se refere principalmente aos anúncios
publicitários de perfume, não nos tornamos anósmicos, mas sofremos de fantosmia, que é a percepção de um odor que não
existe. O que fazem os meios de comunicação, como aponta Susan Sontag (2004), quando se refere a compulsão de
fotografar, ou seja, “a necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo
estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de
imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. (...) Que nos impeliu em “transformar a experiência em si em um
modo de ver.” (SONTAG, 2004, p.35).
Para maiores elucidações sobre o assunto, recomendamos a leitura das seguintes obras: LALWANI, A. K.; SNOW Jr., J. B.
Distúrbios do olfato, da gustação e da audição. In: KASPER, D. L.. et al... Harrison: medicina interna. v. 2. Rio de
Janeiro: Mc.Graw-Hill 2006.
SONTAG, S. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [146]

Por isso, é fundamental pensar numa semiótica do corpo. Para isso, é necessário

pensar primeiramente numa pedagogia dos sentidos. É o corpo saindo de seu labirinto

sensorial, desnudando-se para o mundo e fazendo-se vivo por meio dos seus próprios

sentidos.

Pensar numa semiótica do corpo, numa estética, é pensar antes naquilo que James

Hillman denominou aisthesis. A idéia já está bem definida no próprio sentido da palavra: a

faculdade de sentir por meio dos sentidos, “um faro para a inteligibilidade aparente das coisas,

seu som, cheiro, forma de falar para e através das reações do nosso coração, respondendo a

olhares e linguagem, tons e gestos das coisas entre as quais nos movemos.” (1993, p.21).

Permitamo-nos cheirar, sentir o cheiro, movermo-nos pelo mundo dos sentidos

para que tenhamos realmente a percepção do mundo e do outro, de nottia, ou seja, “formar

noções verdadeiras das coisas a partir da observação atenta – notar” (1993, p.21), “notar” aqui

entendido como extrair verdadeiramente as qualidades sensíveis do objeto, que não se

encontram nos arquétipos ou modelos que o representam e nem nos objetos, mas nas

percepções de nossa mente sobre esse objeto. É realmente necessário insistir no titanismo

midiático e resistir a ele, para não permitir que a razão titânica do “não sentir” prevaleça, mas

apenas o engolir e o ver.

O titanismo midiático, fenômeno, que tomou conta da cultura de massa, amortece

os sentidos corporais. Cada vez mais, não queremos mais sentir o mundo no sentido de nottia,

ou seja, ter as acepções reais do produto. Ao resgatar a idéia de organismo poroso de

Cyrulnik, crê-se que os poros estão fechados, anestesiados. Sentimos, cheiramos, ou melhor,

percebemos aquilo que o Grande Titã quer que percebamos. Utilizando uma expressão

habermasiana (1990), o sistema tem colonizado o mundo da vida. E o mundo da vida tem-se

deixado apropriar pelo sistema, que suga energia desse mundo e devolve excrementos.

Estabelece-se uma verdadeira relação paranóica entre eles, criam-se “relações enganosas entre

o produto e o que se fala sobre o produto.” (Hilman, 1993, p.16). Sem dúvida, esse
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [147]

bombeamento de energia do fluxo contínuo, num único sentido (mundo da vida para o

sistema), acaba por patologizar o mundo. Percebemo-lo claramente no consumo, que se

tornou maníaco: “(...) instantaneidade de satisfação, descartabilidade, intolerância para

interrupção (consumismo), a euforia de comprar sem pagar (cartão de crédito) e o vôo das

idéias que se tornam visíveis e concretas nas revistas e anúncios de televisão.”(Hilman, 1993,

p.16).

É preciso haver consciência de que não podemos jogar para debaixo do tapete

toda a afetividade, a aisthesia do mundo, nem levantar a bandeira do sentimentalismo contra o

excesso de razão, mas antes: “(...) compreender que há sempre na emoção algo de razão e na

razão um tanto de emoção, embora se tente, a partir de diferentes óticas, afirmar o contrário.

(...) Os sentimentos não podem continuar confinados ao terreno do inefável, do inexprimível

(...)” (RESTRESPO, 1998, p.37).

Além disso, já não é possível separar a razão da emoção: não podemos deixar que

a grande sombra, a (in)comunicação, manifestada por meio do titanismo midiático, rompa

com os vínculos comunicativos, para que os sentidos de proximidade na comunicação de

massa prevaleçam.É preciso sair da anestesia e do entorpecimento dos sentidos de distância,

abrindo nossos sentidos para o mundo,ou seja, “Pensar de acordo com uma lógica do sensível,

aberta à captação de diferença, é prestar atenção a esses vaivéns afetivos que dão conta de nossos

toques e nossos encontros.” (RESTREPO, 1998, p.38). Por fim, damos voz ao pensamento de

Hillman, que nos revela uma nítida brecha para rompermos com o titanismo midiático e que

nos convida a sentir o mundo sem os excessos desenvolvidos pelos meios de comunicação de

massa.

Somos antiestéticos, estamos anestesiados, psiquicamente entorpecidos.


Além disso, existe um império imenso, feio e maligno trabalhando dia e
noite para nos conservar dessa forma. A diversão e a televisão maniacamente
saturadas, excessivas, sonoras e fortes, as informações da mídia, (...)
desenvolvimento e melhorias, consumismo, compra, compra, compra. (...)
Não somos nem mesmo múmias ou zumbis em nosso entorpecimento
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [148]

psíquico, porque não estivemos no Mundo das Trevas, a terra dos mortos.
Estamos simplesmente na caverna de Platão, drogados pelo que está em
nossas próprias cuias, paralisados, entorpecidos.
Meu alerta não é bem aquele clássico: acorde e veja; mas, em vez disso, o
dos sentidos, o senso comum. O inimigo não é invisível, intangível.
Podemos cheirar o titanismo, tem gosto, fere os ouvidos, as membranas e o
globo ocular, os dedos. Nossos sentidos tocam e recuam e se fecham para o
mundo, o mundo comum está insensível aos sentidos e, também, à
linguagem do sentido, à linguagem comum e descritiva de adjetivos e
advérbios. .(HILLMAN, 1993, p.151).”
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [149]

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CURSOS

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Comunicação (PUC-SP), ministrado pelo Professor Dr. Norval Baitello Júnior. Aula do dia 15
de março de 2006.

______. Curso de Fundamentos da Comunicação, no Programa de Pós-Graduação em


Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Aula do dia 30 de agosto de 2006.

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