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RESUMO: De acordo com o filósofo afro-americano Molefi Asante, a anterioridade das civilizações
clássicas africanas deve ser considerada em qualquer pesquisa que busque discutir o desenvolvi-
mento dos fenômenos culturais africanos. Denotando, a falta desses pontos de referência, uma des-
conexão e descontinuidade histórica. No presente trabalho pretendemos fazer um levantamento
bibliográfico qualitativo sobre a produção acadêmica de filosofia, investigando os efeitos da recep-
ção do conceito de Afrocentricidade pelos profissionais dessa área de ensino no Brasil, sua utiliza-
ção como ponto de partida para problematizar a permanência do pensamento racista e colonial
reproduzido nos ambientes educacionais, refletindo a partir disso sobre o paradigma da Afrocentri-
cidade como uma forma de enfrentamento dos fenômenos complexos do Racismo Epistêmico e do
Epistemicídio, seguindo a esteira de diversas especialistas de diferentes áreas do ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Afrocentricidade; Kmt.
ABSTRACT: According to the African-American philosopher Molefi Asante, the precedence of the
African classical civilizations should be considered in any research stablished to discuss the devel-
opment of African cultural phenomena. In which the lack of these points of reference indicates a
disconnection and a historical discontinuity. In this paper we aim to make a qualitative biblio-
graphic on philosophy academic production, investigating the effects of Afrocentric concept recep-
tion by the professionals of this area of education in Brazil, its use as a starting point to problema-
tize the permanence of racist and colonial thought reproduced within the educational environ-
ments, reflecting from this about the Afrocentric paradigm as a way to get the Epistemic Racism
complex phenomena, following the trail of several scholars on this matter.
KEYWORDS: Philosophy; Afrocentricity; Kmt
RIBEIRO, Katiúscia; MOREIRA JR., Valter Duarte. Análises e reflexões afrocêntricas acerca da educa-
ção filosófica. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 31: mai.-out./2019, p. 87-
100. DOI: https://doi.org/10.26512/resafe.vi30.28258
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promisso de possibilitar ao aluno a reflexão filosofia. É possível perceber nessa apresen-
sobre temas inerentes a sua existência. O tação de Medeiros a importância do ensino
Dr. em filosofia Djalmo Medeiros nos traz de filosofia e a preocupação de tornar o in-
reflexões relevantes sobre a questão. Segun- divíduo crítico, capaz de julgar e avaliar a
do ele, a filosofia na sala de aula exerce o construção de seu pensamento.
papel importante na construção do sujeito, De acordo com a concepção hegemô-
responsabilizando por completo o professor nica de “conhecimento”, demarcada pelo
nesse processo, “os educandos vão se trans- crivo eurocêntrico, postula-se a produção
formando em reais sujeitos da construção e europeia como universal e superior ao crivo
da reconstrução do saber ensinado”. (ME- dos outros povos. Tal concepção recusa a
DEIROS, 2015, p. 75). Assim, cabe ao profes- validade das justificativas feitas a partir de
sor a ressignificação do saber através de referenciais não europeus, quer sejam eles
elementos curriculares capazes de promo- filosóficos, culturais, históricos, ou científi-
ver um despertar positivo na vida desses cos, definindo conhecimento a partir de
estudantes. A principal característica da discursos dogmáticos.
filosofia está no estudo e exercício desse A filosofia possibilita ao estudante
despertar. A capacidade de pensar infinita- uma reavaliação dos percursos identitários
mente permite ao estudante compreender o de grupos historicamente inferiorizados e
incompreensível. marginalizados na história. E já que com-
Medeiros nos traz a reflexão de Paulo preender os problemas da sociedade brasi-
Freire, que vislumbra na educação não ape- leira implica necessariamente levar em con-
nas a capacidade de transferir conhecimen- sideração a influência e os impactos do ra-
to, mas criar a possibilidade para a produ- cismo sobre ela, é preciso que o ensino de
ção e/ou a construção do mesmo. O proces- filosofia perceba a importância de estreitar
so de aprendizagem não está apenas embu- os diálogos com a educação antirracista. A
tido no aprender, mas no processo de defla- razão, fonte suprema no pensamento filosó-
grar na pessoa aprendiz uma curiosidade fico, precisa redesenhar-se dentro de um
crescente, que permite torná-la mais e mais modelo antirracista, conduzindo seu inter-
criadora. O que se quer dizer é: quanto mais locutor a operar de forma justa e crítica. A
criticamente se exerce a capacidade de filosofia, como nos diz Noguera (2014), ope-
aprender, tanto mais se constrói e se desen- ra com a razão a partir de princípios raciais,
volve a assim chamada “curiosidade episte- reforçando um falso lugar de inferioridade,
mológica”, sem a qual o conhecimento ca- sobretudo cognitiva, da população negra:
bal do objeto não pode ser alcançado (apud “Em busca de uma razão aberta e afropers-
MEDEIROS, 2015, p. 75). pectivista, a filosofia pode promover um
O que nos diz Medeiros pela ótica de aprendizado antirracista e edificante. É pre-
Freire é que, quanto mais críticos formos, ciso, também, desafiar o racismo epistêmi-
melhor será́ nossa capacidade de percepção co, denunciá-lo, se colocar radicalmente
sobre o que nos cerca. Ao despertar o senso contra ele em todos os aspectos” (NOGUE-
reflexivo, validamos na prática o ensino de RA, 2014, p. 98).
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Afrocentricidade Assim, com o objetivo de reorientar os afri-
canos à centralidade de sua história, um
Tomando tais reflexões como mote conjunto de intelectuais – do continente e
para pensar o ensino da filosofia na edu- da diáspora africanas – desenvolve uma po-
cação, e as implicações do eurocentrismo na sição epistemológica que realoca os africa-
construção do saber mundial, é relevante a nos como agentes de sua própria história.
construção de outro modelo de paradigma O processo de recentralizar o legado
que nos ajude a pensar a filosofia e a educa- desses povos cria a possibilidade de um no-
ção sem a marginalização dos saberes afri- vo capítulo dessa narrativa, de ser reescrita
canos, indígenas e ameríndios, retirando a com seus valores protegidos, agindo na li-
Europa do centro do sistema mundo dos bertação da mente do africano. Essa pers-
outros modelos epistêmicos. pectiva denomina-se Afrocentricidade. O
A devastação colonial promoveu aos professor Molefe Kete Asante é um dos
ocidentais o local hegemônico nos últimos principais articuladores desse paradigma. É
cinco séculos da história do mundo, basea- através de sua figura que essa perspectiva
do em um projeto de dominação cultural, ideológica toma visibilidade nos estudos de
econômica, social e política, fazendo com reintegração africana e se fundamenta o
que a humanidade tivesse a Europa como conceito e a possibilidade de que outros
única referência de civilização. Essa refe- intelectuais possam desmistificar esse para-
rência, imposta pelo eurocentrismo e alicer- digma.
çada pela colonização mental, impôs às ou- Para Asante, a afrocentricidade é defi-
tras civilizações um único paradigma de nida da seguinte forma:
conhecimento, filosofia, ciência, arte e cul-
tura, distorcendo suas identidades (cf. Fa- A ideia afrocêntrica refere-se essen-
non, 2006, 2008, por exemplo), pois passa- cialmente à proposta epistemológi-
ram a se perceber através dos olhos do co- ca do lugar. Tendo sido os africanos
deslocados em termos culturais,
lonizador. Essa dimensão ajudou a concre-
psicológicos, econômicos e históri-
tizar o local de inferioridade dos povos co- cos, é importante que qualquer ava-
lonizados, os quais foram deslocados de liação de suas condições em qual-
seus referenciais identitários. Daí ser neces- quer país seja feita com base em
uma localização centrada na África
sário pensar estratégias para reintegrar os
e sua diáspora. Começamos com a
povos do continente africano a suas identi- visão de que a afrocentricidade é
dades, uma definição para que não mais se um tipo de pensamento, prática e
localizem e atuem à margem da experiência perspectiva que percebe os africa-
nos como sujeitos e agentes de fe-
eurocêntrica.
nômenos atuando sobre a sua
Muito do que foi produzido epistemo- própria imagem cultural e de acor-
logicamente e estudado para esses fins foi do com seus próprios interesses
orquestrado do ponto de vista dos interes- humanos (ASANTE, 2009, p. 93).
ses europeus, reservando às nações de Áfri- A supremacia política, cultural, religi-
ca a localidade marginalizada na história. osa, tecnológica eurocêntrica dos últimos
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500 anos levou os povos dos seis continen- Nesse sentido, os africanos precisam
tes do mundo a interiorizarem a figura da ser vistos como agentes em todos os termos,
Europa como aquela que precede a origem representativos, subjetivos e epistêmicos.
das civilizações. Pois bem, a consequência Segundo Asante (2009), os africanos têm
dessa percepção é que os povos desses con- sido negados no sistema de dominação ra-
tinentes se tornam invisíveis e se tratando cial e encontram-se em um estado perma-
dos povos marginalizados pela colonização nente de “desagência”, algo que não é com-
– os povos Africanos – essa invisibilidade plicado de imaginar se retornarmos o per-
ganha uma proporção muito maior, pois curso histórico dos povos africanos desde as
vem tangenciada pelo racismo. A proposta expansões territoriais da colonização.
da Afrocentricidade trata justamente de Quando consideramos questões de lugar,
“centrar” os povos africanos e de reorientá- situação, contexto, e ocasião que envolvam
los na história, possibilitando-os encontrar participantes africanos, é importante obser-
sua localização e, a partir dela, construir sua var o conceito de agência em oposição ao de
própria “agência”. desagência. Dizemos que se encontra desa-
gência em qualquer situação na qual o afri-
cano seja descartado como autor ou prota-
A agência é a capacidade de dispor
gonista em seu próprio mundo. (ASANTE,
dos recursos psicológicos e culturais
necessários para o avanço da liber- 2009, p. 95).
dade humana [...]. Estou fundamen- Dada a confusão comum instaurada
talmente comprometido com a no- pelo colonialismo ―cujo objetivo é evitar
ção que os africanos devem ser vis-
que os povos africanos afirmem de forma
tos como agentes em termos
econômicos, culturais, políticos e positiva sua ética, seus valores e seu costu-
sociais. O que se pode analisar em me―, faz-se necessário informar a quem se
qualquer discurso intelectual é se os refere este filósofo quando utiliza o termo
africanos são agentes fortes ou fra-
“africano”:
cos, mas não deve haver dúvida de
que essa agência existe. Quando ela
não existe, temos a condição da Não se trata de um termo essencia-
marginalidade – e sua pior forma é lista, ou seja, não é algo que se ba-
ser marginal na própria história [...] seie simplesmente no ‘sangue’ ou
Os Africanos têm sido negados no nos ‘genes’. Muito mais do que isso,
sistema de dominação racial branco. é um construto do conhecimento.
Não se trata apenas de marginali- Basicamente, um africano é uma
zação, mas de obliteração de sua pessoa que participou dos quinhen-
presença, seu significado, suas ati- tos anos de resistência à dominação
vidades e sua imagem. É uma reali- europeia. Por vezes pode ter parti-
dade negada, a destruição da perso- cipado sem saber o que fazia, mas é
nalidade espiritual e material da aí que entra a conscientização. Só
pessoa africana (ASANTE, 2009, p. quem é conscientemente africano –
94). que valoriza a necessidade de resis-
tir à aniquilação cultural, política e
econômica – está corretamente na
área da afrocentricidade. Não signi-
Referências