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Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE

ANÁLISES E REFLEXÕES AFROCÊNTRICAS


ACERCA DA EDUCAÇÃO FILOSÓFICA
Katiúscia Ribeiro*
Valter Duarte Moreira Jr.**

RESUMO: De acordo com o filósofo afro-americano Molefi Asante, a anterioridade das civilizações
clássicas africanas deve ser considerada em qualquer pesquisa que busque discutir o desenvolvi-
mento dos fenômenos culturais africanos. Denotando, a falta desses pontos de referência, uma des-
conexão e descontinuidade histórica. No presente trabalho pretendemos fazer um levantamento
bibliográfico qualitativo sobre a produção acadêmica de filosofia, investigando os efeitos da recep-
ção do conceito de Afrocentricidade pelos profissionais dessa área de ensino no Brasil, sua utiliza-
ção como ponto de partida para problematizar a permanência do pensamento racista e colonial
reproduzido nos ambientes educacionais, refletindo a partir disso sobre o paradigma da Afrocentri-
cidade como uma forma de enfrentamento dos fenômenos complexos do Racismo Epistêmico e do
Epistemicídio, seguindo a esteira de diversas especialistas de diferentes áreas do ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Afrocentricidade; Kmt.

ABSTRACT: According to the African-American philosopher Molefi Asante, the precedence of the
African classical civilizations should be considered in any research stablished to discuss the devel-
opment of African cultural phenomena. In which the lack of these points of reference indicates a
disconnection and a historical discontinuity. In this paper we aim to make a qualitative biblio-
graphic on philosophy academic production, investigating the effects of Afrocentric concept recep-
tion by the professionals of this area of education in Brazil, its use as a starting point to problema-
tize the permanence of racist and colonial thought reproduced within the educational environ-
ments, reflecting from this about the Afrocentric paradigm as a way to get the Epistemic Racism
complex phenomena, following the trail of several scholars on this matter.
KEYWORDS: Philosophy; Afrocentricity; Kmt

Filosofia e Educação *** enfrentamento aos fenômenos complexos


No recorte deste trabalho, refletiremos do Racismo Epistêmico1 e do Epistemicídio2.
sobre a afrocentricidade como forma de O termo “filosofia”, quando utilizado
para se referir à faculdade humana da razão,
*
Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal pode ser traduzido como o ato de pensar,
do Rio de Janeiro, Mestra em Filosofia e Ensino pelo criticar, educar, refletir. “Educação”, por
Centro Federal de Educação tecnologia Celso
Suckow da Fonseca, CEFET/RJ (2017). Graduação em
sua vez, refere-se ao método pelo qual o ser
Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro humano adquire conhecimento, e ao com-
(2013). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – Brasil. E-mail: keme-
1
tic@ymail.com / katiusciaribeiro@yahoo.com. Por esta expressão conceitual referimo-nos a um
**
Doutorando em Filosofia pela Universidade Esta- conjunto de dispositivos, práticas e estratégias pro-
dual do Rio de Janeiro, Mestre em Filosofia pela Uni- dutoras de cânones que excluem a produção cultural
versidade Federal de Sergipe (2016), Graduado em e filosófica de matriz não-europeia.
2
Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe (2014). Por Epistemicídio referimo-nos a um conjunto de
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de práticas e discursos de poder que impetrou uma
Pessoal de Nível Superior – Brasil. E-mail: valtermo- desqualificação estética, ética, intelectual e espiritual
reira2@gmail.com em todos os povos não europeus.

RIBEIRO, Katiúscia; MOREIRA JR., Valter Duarte. Análises e reflexões afrocêntricas acerca da educa-
ção filosófica. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 31: mai.-out./2019, p. 87-
100. DOI: https://doi.org/10.26512/resafe.vi30.28258
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promisso de possibilitar ao aluno a reflexão filosofia. É possível perceber nessa apresen-
sobre temas inerentes a sua existência. O tação de Medeiros a importância do ensino
Dr. em filosofia Djalmo Medeiros nos traz de filosofia e a preocupação de tornar o in-
reflexões relevantes sobre a questão. Segun- divíduo crítico, capaz de julgar e avaliar a
do ele, a filosofia na sala de aula exerce o construção de seu pensamento.
papel importante na construção do sujeito, De acordo com a concepção hegemô-
responsabilizando por completo o professor nica de “conhecimento”, demarcada pelo
nesse processo, “os educandos vão se trans- crivo eurocêntrico, postula-se a produção
formando em reais sujeitos da construção e europeia como universal e superior ao crivo
da reconstrução do saber ensinado”. (ME- dos outros povos. Tal concepção recusa a
DEIROS, 2015, p. 75). Assim, cabe ao profes- validade das justificativas feitas a partir de
sor a ressignificação do saber através de referenciais não europeus, quer sejam eles
elementos curriculares capazes de promo- filosóficos, culturais, históricos, ou científi-
ver um despertar positivo na vida desses cos, definindo conhecimento a partir de
estudantes. A principal característica da discursos dogmáticos.
filosofia está no estudo e exercício desse A filosofia possibilita ao estudante
despertar. A capacidade de pensar infinita- uma reavaliação dos percursos identitários
mente permite ao estudante compreender o de grupos historicamente inferiorizados e
incompreensível. marginalizados na história. E já que com-
Medeiros nos traz a reflexão de Paulo preender os problemas da sociedade brasi-
Freire, que vislumbra na educação não ape- leira implica necessariamente levar em con-
nas a capacidade de transferir conhecimen- sideração a influência e os impactos do ra-
to, mas criar a possibilidade para a produ- cismo sobre ela, é preciso que o ensino de
ção e/ou a construção do mesmo. O proces- filosofia perceba a importância de estreitar
so de aprendizagem não está apenas embu- os diálogos com a educação antirracista. A
tido no aprender, mas no processo de defla- razão, fonte suprema no pensamento filosó-
grar na pessoa aprendiz uma curiosidade fico, precisa redesenhar-se dentro de um
crescente, que permite torná-la mais e mais modelo antirracista, conduzindo seu inter-
criadora. O que se quer dizer é: quanto mais locutor a operar de forma justa e crítica. A
criticamente se exerce a capacidade de filosofia, como nos diz Noguera (2014), ope-
aprender, tanto mais se constrói e se desen- ra com a razão a partir de princípios raciais,
volve a assim chamada “curiosidade episte- reforçando um falso lugar de inferioridade,
mológica”, sem a qual o conhecimento ca- sobretudo cognitiva, da população negra:
bal do objeto não pode ser alcançado (apud “Em busca de uma razão aberta e afropers-
MEDEIROS, 2015, p. 75). pectivista, a filosofia pode promover um
O que nos diz Medeiros pela ótica de aprendizado antirracista e edificante. É pre-
Freire é que, quanto mais críticos formos, ciso, também, desafiar o racismo epistêmi-
melhor será́ nossa capacidade de percepção co, denunciá-lo, se colocar radicalmente
sobre o que nos cerca. Ao despertar o senso contra ele em todos os aspectos” (NOGUE-
reflexivo, validamos na prática o ensino de RA, 2014, p. 98).
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Afrocentricidade Assim, com o objetivo de reorientar os afri-
canos à centralidade de sua história, um
Tomando tais reflexões como mote conjunto de intelectuais – do continente e
para pensar o ensino da filosofia na edu- da diáspora africanas – desenvolve uma po-
cação, e as implicações do eurocentrismo na sição epistemológica que realoca os africa-
construção do saber mundial, é relevante a nos como agentes de sua própria história.
construção de outro modelo de paradigma O processo de recentralizar o legado
que nos ajude a pensar a filosofia e a educa- desses povos cria a possibilidade de um no-
ção sem a marginalização dos saberes afri- vo capítulo dessa narrativa, de ser reescrita
canos, indígenas e ameríndios, retirando a com seus valores protegidos, agindo na li-
Europa do centro do sistema mundo dos bertação da mente do africano. Essa pers-
outros modelos epistêmicos. pectiva denomina-se Afrocentricidade. O
A devastação colonial promoveu aos professor Molefe Kete Asante é um dos
ocidentais o local hegemônico nos últimos principais articuladores desse paradigma. É
cinco séculos da história do mundo, basea- através de sua figura que essa perspectiva
do em um projeto de dominação cultural, ideológica toma visibilidade nos estudos de
econômica, social e política, fazendo com reintegração africana e se fundamenta o
que a humanidade tivesse a Europa como conceito e a possibilidade de que outros
única referência de civilização. Essa refe- intelectuais possam desmistificar esse para-
rência, imposta pelo eurocentrismo e alicer- digma.
çada pela colonização mental, impôs às ou- Para Asante, a afrocentricidade é defi-
tras civilizações um único paradigma de nida da seguinte forma:
conhecimento, filosofia, ciência, arte e cul-
tura, distorcendo suas identidades (cf. Fa- A ideia afrocêntrica refere-se essen-
non, 2006, 2008, por exemplo), pois passa- cialmente à proposta epistemológi-
ram a se perceber através dos olhos do co- ca do lugar. Tendo sido os africanos
deslocados em termos culturais,
lonizador. Essa dimensão ajudou a concre-
psicológicos, econômicos e históri-
tizar o local de inferioridade dos povos co- cos, é importante que qualquer ava-
lonizados, os quais foram deslocados de liação de suas condições em qual-
seus referenciais identitários. Daí ser neces- quer país seja feita com base em
uma localização centrada na África
sário pensar estratégias para reintegrar os
e sua diáspora. Começamos com a
povos do continente africano a suas identi- visão de que a afrocentricidade é
dades, uma definição para que não mais se um tipo de pensamento, prática e
localizem e atuem à margem da experiência perspectiva que percebe os africa-
nos como sujeitos e agentes de fe-
eurocêntrica.
nômenos atuando sobre a sua
Muito do que foi produzido epistemo- própria imagem cultural e de acor-
logicamente e estudado para esses fins foi do com seus próprios interesses
orquestrado do ponto de vista dos interes- humanos (ASANTE, 2009, p. 93).
ses europeus, reservando às nações de Áfri- A supremacia política, cultural, religi-
ca a localidade marginalizada na história. osa, tecnológica eurocêntrica dos últimos
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500 anos levou os povos dos seis continen- Nesse sentido, os africanos precisam
tes do mundo a interiorizarem a figura da ser vistos como agentes em todos os termos,
Europa como aquela que precede a origem representativos, subjetivos e epistêmicos.
das civilizações. Pois bem, a consequência Segundo Asante (2009), os africanos têm
dessa percepção é que os povos desses con- sido negados no sistema de dominação ra-
tinentes se tornam invisíveis e se tratando cial e encontram-se em um estado perma-
dos povos marginalizados pela colonização nente de “desagência”, algo que não é com-
– os povos Africanos – essa invisibilidade plicado de imaginar se retornarmos o per-
ganha uma proporção muito maior, pois curso histórico dos povos africanos desde as
vem tangenciada pelo racismo. A proposta expansões territoriais da colonização.
da Afrocentricidade trata justamente de Quando consideramos questões de lugar,
“centrar” os povos africanos e de reorientá- situação, contexto, e ocasião que envolvam
los na história, possibilitando-os encontrar participantes africanos, é importante obser-
sua localização e, a partir dela, construir sua var o conceito de agência em oposição ao de
própria “agência”. desagência. Dizemos que se encontra desa-
gência em qualquer situação na qual o afri-
cano seja descartado como autor ou prota-
A agência é a capacidade de dispor
gonista em seu próprio mundo. (ASANTE,
dos recursos psicológicos e culturais
necessários para o avanço da liber- 2009, p. 95).
dade humana [...]. Estou fundamen- Dada a confusão comum instaurada
talmente comprometido com a no- pelo colonialismo ―cujo objetivo é evitar
ção que os africanos devem ser vis-
que os povos africanos afirmem de forma
tos como agentes em termos
econômicos, culturais, políticos e positiva sua ética, seus valores e seu costu-
sociais. O que se pode analisar em me―, faz-se necessário informar a quem se
qualquer discurso intelectual é se os refere este filósofo quando utiliza o termo
africanos são agentes fortes ou fra-
“africano”:
cos, mas não deve haver dúvida de
que essa agência existe. Quando ela
não existe, temos a condição da Não se trata de um termo essencia-
marginalidade – e sua pior forma é lista, ou seja, não é algo que se ba-
ser marginal na própria história [...] seie simplesmente no ‘sangue’ ou
Os Africanos têm sido negados no nos ‘genes’. Muito mais do que isso,
sistema de dominação racial branco. é um construto do conhecimento.
Não se trata apenas de marginali- Basicamente, um africano é uma
zação, mas de obliteração de sua pessoa que participou dos quinhen-
presença, seu significado, suas ati- tos anos de resistência à dominação
vidades e sua imagem. É uma reali- europeia. Por vezes pode ter parti-
dade negada, a destruição da perso- cipado sem saber o que fazia, mas é
nalidade espiritual e material da aí que entra a conscientização. Só
pessoa africana (ASANTE, 2009, p. quem é conscientemente africano –
94). que valoriza a necessidade de resis-
tir à aniquilação cultural, política e
econômica – está corretamente na
área da afrocentricidade. Não signi-

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fica que os outros não são africanos, A fim de reorientar cultural, social e
apenas que não são afrocentrados. politicamente os africanos e os intelectuais
Os brancos do continente africano
que nunca participaram da resistên-
afrocentristas para trabalharem a partir dos
cia à opressão, dominação ou he- seguintes postulados:
gemonia branca, são, com efeito,
não-africanos. O fato de residir na 1. A humanidade começou na África
África por si só não torna alguém e todos os subgrupos ou variedades
africano. No final, argumentamos humanas contemporâneas, isto é
que a consciência, e não a biologia, “raças”, são ramificações da árvore
determina nossa abordagem dos genealógica na África [...].
dados. (ASANTE, 2009, p. 103) 2. Dada a premissa acima, os cauca-
sianos são os descendentes de afri-
Ama Mazama, intelectual que compõe canos que migraram para a Europa
com Asante o quadro de pesquisadores do há́ cerca de cinquenta mil anos e,
primeiro programa de doutorado em estu- com a renovação da Idade do Gelo
há́ quarenta mil anos sofreram alte-
dos afro-estadunidenses na Universidade de rações fenotípicas que os fizeram
Temple, na Filadélfia, na qual Asante lecio- perder o pigmento e embranquecer.
na ainda hoje, compartilha com ele a ideia 3. A cultura humana, como a pró-
de que a Afrocentricidade surge como um pria humanidade, começa na África
e atinge seu mais alto estágio, isto é,
paradigma desafiador às propostas de do- civilização, primeiro na África.
minação eurocêntricas responsáveis pelo 4. A civilização moderna se origina
desaparecimento do protagonismo dos po- no nordeste da África, nas terras
vos africanos: chamadas Ta-Sehiti e Kemet, mais
tarde denominadas Núbia e Egito,
entre aproximadamente seis mil e
Na verdade, a afrocentricidade sus- treze mil anos atrás.
tenta que, a menos que os africanos 5. O judaísmo e o cristianismo são,
se disponham a reexaminar o pro- ambos, correntes de religiosidade
cesso de sua conversão intelectual, humana que emanam do vale do rio
que ocorre sob o disfarce de “educa- Nilo nos sentidos conceitual, simbó-
ção formal” continuarão sendo pre- lico, de doutrina e de organização.
sa fácil da supremacia branca. O 6. A civilização greco-romana foi
que se sugere é que, em vez disso, um entre muitos subprodutos da ci-
os africanos se reancorem, de modo vilização do vale do rio Nilo, isto é,
consciente e sistemático, em sua do Egito e da Etiópia.
própria matriz cultural e histórica, 7. A ciência e a tecnologia ocidental,
dela extraindo os critérios para ava- assim como a religião originaram-se
liar a experiência africana. Assim, a na África.
afrocentricidade surgiu como um 8. Houve uma série de viagens pré-
novo paradigma para desafiar o eu- colombianas da África até as Améri-
rocentrismo, responsável por des- cas que se iniciaram aproximada-
prezar os africanos, destituí-los de mente em 1200 a.C. e continuaram
soberania e torná-los invisíveis – até́ até́ ao menos 1400.d.C. (FINCH III,
mesmo aos próprios olhos, em mui- 2009, p. 174-75).
tos casos (MAZAMA, 2009, p. 114).

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Os pensadores e pensadoras afrocên- respeite o modo de ser africano e o reinte-
tricas partem dos pressupostos apresenta- gre à história, libertando-os do exílio exis-
dos acima para entender que é perfeitamen- tencial.
te possível, e necessário aos africanos se Para Asante, a realização desse feito
perceberem como agentes de sua história, central só se dará quando todos os elemen-
pois está evidente que a história e cultura tos linguísticos, psicológicos, sociológicos e
do continente africano não são dependentes filosóficos construírem sua agência, visando
da história da Europa e de sua avaliação uma autêntica compreensão das caracterís-
sobre a África. O princípio organizador que ticas culturais africanas, (ASANTE, 2009).
determina a percepção de toda a realidade é Uma das estratégias pode e deve vir pela via
a centralidade da experiência africana para da Educação com o compromisso do ensino,
os povos africanos. (MAZAMA, 2009, p. 117). por meio da agência educacional e devoluti-
Nesse sentido, reafirmamos que o va do legado africano, reintegrando um es-
conceito de agência, apresentado acima, é pólio histórico e epistêmico covardemente
de fundamental importância, pois é a partir negado.
dele que poderemos investigar, a título de Assim, é preciso ter clareza das rela-
exemplo, a agência da filosofia africana, ções existentes entre filosofia, educação e
ponto chave deste trabalho, nas questões cultura, visto que “Educação é fundamen-
mais relevantes de seu reconhecimento, talmente um fenômeno social cujo propósi-
retirando os africanos, assim, da condição to é socializar o aprendiz; enviar uma crian-
de marginalidade em sua própria história. ça para escola é prepará-la para tomar parte
Para Molefi Kete Asante, Ama Mazama, e de um grupo social” (ASANTE, 1991, p. 170).
para qualquer intelectual que se intitule Utilizaremos, nas seções subsequentes
afrocentrista, uma perspectiva que margina- deste capítulo, o paradigma afrocêntrico
lize os africanos em sua própria história é para evidenciar a filosofia afroperspectivis-
totalmente rejeitável. ta, teorizada por Renato Noguera, a partir
Partindo desse pressuposto, Asante do pensamento educacional brasileiro, a
defende a importância de identificar a loca- qual pretende proteger e defender os valo-
lização psicológica da autora, pesquisadora, res e elementos culturais do continente
intelectual que pretende trabalhar com os africano, tendo em vista um projeto de hu-
elementos que compõem a experiência afri- manidade que de fato respeite as especifici-
cana. Desse modo, saberemos de que local dades desse povo e seu legado filosófico,
parte o seu discurso e qual seu propósito bem como oferecer uma alternativa ao mo-
frente a ele, se o mesmo serve como ferra- delo educacional vigente e responsabilizar-
menta emancipatória ou manutenção do se com ações na luta efetiva antirracial.
discurso eurocêntrico de invisibilidade.
Nessa perspectiva, cabe ao afrocentris- Afrocentricidade e a Questão do Antigo
ta proteger e defender os valores e elemen- Kemet
tos substanciais do continente, tendo em Seguindo a esteira dos trabalhos de
vista um projeto de humanidade que de fato Diop (1974) e de Obenga (1990), Asante nos
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chama a atenção para os seguintes fatos, como se a Europa o tivesse tirado da
embora a historiografia ―fundamentada na África, mililitro por mililitro, para
despejá-lo na paisagem europeia.
concepção hegeliana, segundo a qual os Todas as contribuições africanas do
povos africanos não possuíam história― Vale do Nilo se tornaram contribui-
posicione o povo africano florescido antes ções europeias, e a Europa deu iní-
da Era Cristã na “Pré-Histótia” da humani- cio à tarefa de confundir o mundo
quanto à natureza do antigo Egito.
dade, encontramos evidencias extensiva- Trata-se da maior de todas as falsifi-
mente documentadas da presença dos po- cações (idem)
vos africanos e pretos há pelo menos 6.000
anos na terra hoje conhecida como Egito Essa falsificação se sustenta de forma
(ASANTE, 1990). Esses povos, os egípcios3, mais persistente no mito da origem grega
“mantiveram sua perspectiva africana es- da civilização. Nesse sentido, Asante nos
sencial em termos de mitos, simbolismos e informa que “a África clássica deve ser o
ethos ao longo da história do país” e “apenas ponto de partida de todo discurso sobre o
com a chegada à força dos gregos e posteri- rumo da história africana. O Kemet está
ormente, no século VII, dos árabes, que o diretamente relacionado e ligado às civiliza-
padrão mitopoético do Kemet experimen- ções Cush, Cayor, Peul, Iorubás, Akanas,
tou mudanças.” (ASANTE, 1990, p.52). Des- Congo, Zulu e Bamum.” (1990, p.101).
taca-se nesses relatos duas questões funda-
mentais: (1) a anterioridade das civilizações Questões Preliminares
clássicas africanas em relação às europeias e
(2) a unidade cultural dos povos africanos, Uma pesquisa histórica preliminar nos
dos povos keméticos inclusive. mostrou que até meados do século XX o
Sobre isso, Asante nos diz: continente africano ainda era mantido co-
mo colônia de diversos países europeus,
“Depois da conquista do Egito por estando nessa condição como espólio da
Napoleão e Dominique Vivan De- Grande Guerra, no que ficou conhecido
non, imprimiu-se ao conhecimento como o Tratado de Berlim. Ainda hoje, di-
da África uma orientação totalmen-
te diferente. De repente, fomos
versos países africanos, como Gana, Congo
apresentados a um novo campo da e África do Sul, por exemplo, buscam auto-
investigação humana, a egiptologia. nomia política e econômica. Uma análise
Quando Champollion decifrou a es- estrutural e crítica do ensino de filosofia nos
crita dos antigos egípcios, a Europa
lançou-se à empreitada de desmon- permitiu perceber que apenas a partir da
tar a africanidade da história egíp- segunda metade do século XX o currículo, a
cia, bem como da história africana transmissão do conhecimento e da cultura
no que esta se relaciona ao valo do humanas através da experiência e categorias
Nilo. O único rio do continente
africano que se tornou parte da ex- europeias passaram a ser oficialmente ques-
periência europeia foi o Nilo. Foi tionados.
O polímata senegalês Cheikh A. Diop
3
Doravante referidos apenas como keméticos.
e o filósofo e egiptólogo congolês Theophile

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Obenga, em 1974, apresentaram evidências Em 1974, Cheikh Anta Diop publicou
conclusivas de que os antigos povos egíp- seu “The African Origin of Civilization:
cios eram de mesma origem que aqueles da Myth or Reality”, no qual argumenta que o
região do continente africano chamada hoje antigo Egito foi uma civilização negra e que
de África Subsaariana. E que estes denunci- os antigos egípcios eram negros (1974, p.
aram as inconsistências, preconceitos e dis- XIV). Sua insistência nesses detalhes se dá
parates dos discursos coloniais ainda cor- pelas persistentes tentativas dos historiado-
rentes e hegemônicos nas disciplinas de res e historiadoras eurocêntricos de projetar
arqueologia, história, filosofia e egiptologia, os antigos egípcios como brancos (1974, p.
acerca de uma alegada “inferioridade afri- 27). Treze anos após a obra de Diop, surge a
cana” e de uma “origem semítica/indo- publicação do “Black Athena: The Afroasia-
europeia dos egípcios faraônicos”. tic Roots of Classical Civilization”, de auto-
Nos Estados Unidos, desde 1980, filó- ria do estudioso britânico Martin Bernal, na
sofas e filósofos como Molefi Kete Asante, qual Bernal aponta a civilização egípcia co-
Ama Mazama e Clenora Hudson realizam mo fundamentalmente africana e como
pesquisas e produções de obras acadêmicas, tendo presente em seus diversos períodos
relatando a permanência do conteúdo colo- de apogeu faraós negros (Bernal, 1991, p.
nial na educação Americana e ressaltando a 242).
necessidade urgente de atualização do con- Pouco depois, Maulana Karenga
teúdo do ensino nas instituições america- (2004) produziu sua obra monumental, na
nas. qual apresenta a primeira abordagem aca-
Na África do Sul, filósofos como Mo- dêmica sobre antigo Egito a partir de seu
gobe Ramose (2011) e Simphiwe Sesanti próprio contexto e perspectiva filosófica.
(2018) também realizam esse trabalho de Desde então, filósofos como Theóphile
restauração da herança africana a partir dos Obenga e Molefi Asante, para citar alguns,
próprios termos. Sesanti realizou em 2018 têm dedicado considerável tempo abordan-
uma pesquisa em algumas universidades do o tema do Kemet. A contribuição dos
tradicionais de seu país e publica um artigo trabalhos dessas pensadoras e pensadores é
apresentando sua constatação da presença que através de suas publicações encontra-
hegemônica no currículo acadêmico dos mos uma das mais antigas discussões sobre
diversos interesses ocidentais no centro da o bem e o mal de que se tem registros na
educação africana e da imposição pela força história da humanidade, presentes nas con-
da percepção e definição da vida eurocên- cepções de Maat e que perdurou aproxima-
trica para todos os demais povos. O mesmo damente quatro mil anos. A leitura dos tra-
tendo sido feito por Ramose. Esses filósofos balhos nos permite perceber que considerar
sul-africanos constatam ― no currículo pe- a investigação filosófica da produção Kemé-
dagógico e nas produções acadêmicas ela- tica não implica considerar tratar-se de uma
boradas depois de 22 anos de democracia do sociedade perfeita. Como qualquer povo, o
país ― que a educação na África do Sul Kemet teve seus períodos de instabilidade,
permanece colonial e eurocêntrica. disputas por liderança, tentativas de golpes
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de Estado e outras intrigas internas. Sua obrigatórias em todas as modalidades de
relação direta com o ensino de filosofia ensino e níveis de educação, e permitiu o
chama a atenção para o fato de que a sepa- estabelecimento do Plano Nacional para
ração do antigo Egito do resto do continen- Implementação das Diretrizes Curriculares
te africano representa o estabelecimento Nacionais para Educação das Relações Étni-
geopolítico colonial da perspectiva eurocên- co-Raciais, segunda a qual toda a população
trica do século dezesseis. brasileira é responsável pela promoção do
No Brasil, dos pouco mais de 500 anos combate ao racismo no Brasil.
desde sua constituição, somente 131 são de Desde 2013 o filósofo brasileiro Rena-
emancipação dos povos africanos e indíge- to Noguera vem questionando o fenômeno
nas, sobre os quais há pouco mais de 50 que ele chamou de “Tabu da Filosofia”, o
anos teorias racistas como a da eugenia ain- que promoveu uma diversificação e uma
da eram desenvolvidas, aceitas e veiculadas abertura de espaço para perspectivas dife-
nas universidades do país. rentes daquelas do pensamento Ocidental
O que esses dados reunidos nos per- para o conteúdo da produção acadêmica em
mitem perceber é que há menos de um sé- filosofia.
culo os povos africanos e ameríndios ainda Seguindo na esteira de filósofas e filó-
eram compreendidos em todo o globo pelas sofos que problematizam a concepção he-
lentes da mesma perspectiva racista e colo- gemônica de filosofia no mundo, Renato
nial europeia do século dezesseis. E que os Noguera problematizou essa concepção no
reflexos desse fenômeno podem ser consta- Brasil e conceituou o fenômeno mundial do
tados nos currículos escolares e acadêmicos racismo epistêmico como ele é aqui susten-
das universidades ao redor do globo. tado nos ambientes acadêmicos, que se ma-
No que diz respeito ao Brasil, apenas a nifesta na predominante defesa do nasci-
partir do início do século XXI, mais preci- mento grego da Filosofia. Um conjunto de
samente no ano de 2003, que o currículo pesquisadoras e pesquisadores vem desde
brasileiro passou a ser oficialmente questi- então contribuindo e ampliando o debate e
onado e, pela força da lei, vem sendo atuali- a constituição de uma nova “coreografia do
zado. E mesmo passada mais de uma déca- pensamento”, para a qual é fundamental-
da das referidas medidas, o conteúdo curri- mente importante a revisão e o questiona-
cular das instituições de ensino e dos mate- mento das geopolíticas estabelecidas de
riais didáticos brasileiros permanece colo- forma hegemônica, com a finalidade de re-
nial e eurocêntrico. O que culminou na chaçar as cartografias e hierarquizações que
promulgação da Lei 10.639/03, fruto dos insistem em posicionar a Europa como cen-
diversos movimentos de resistência à opres- tro da construção histórica humana e a inti-
são do racismo, como o Movimento Negro, tular a construção grega dos pensamentos
que promoveu alterações na Lei de Diretri- filosófico e científico como (1) originais, (2)
zes e Bases da Educação Nacional, estabele- frutos de um milagre e (3) marco temporal
cendo que os estudos de História e Cultura do nascimento da razão e sua instrumenta-
Afro-Brasileira, Africana e Indígena sejam
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lização para o uso do pensamento em toda a  A dissertação de Mestrado de Luiz
humanidade. Thiago Freire Dantas, intitulada:
A reprodução imprudente desse dis- Filosofia Africana no Ensino Médio:
curso falacioso no Brasil como algo “objeti- Por uma descolonização curricular,
vo”, “universal” e inquestionável tem pro- de 2015;
longado em nossa cultura e reproduzido em  O ensaio de Jayro Pereira de Jesus,
nossa sociedade o mito da superioridade Miriam Cristiane Alves, Danielle
europeia e o relato de sua experiência como Scholz, intitulada: Paradigma da
início da história e do pensamento de toda a Afrocentriciade e uma nova concep-
humanidade. ção de humanidade e saúde coleti-
Desde a formulação do conceito filo- va: relação entre saúde mental e ra-
sófico da Afrocentricidade¸ um número cismo;
crescente de pesquisadoras e pesquisadores  O artigo de Mauricio Silva, intitu-
tem contribuído para a ampliação desse lado: Afrocentricidade: Um concei-
debate em todo o mundo. Fizemos um le- to para a discussão do currículo es-
vantamento de quantas obras se dedicaram colar e a questão étnico-racial na
especialmente aos avanços que giram em escola, de 2016;
torno de pensar filosofia a partir de outros  A tese de doutorado de Ricardo
paradigmas após o estabelecimento do “Ta- Matheus Benedicto, intitulada:
bu da Filosofia” pelo filósofo Renato Nogue- Afrocentricidade, Educação e Poder:
ra. Alguns trabalhos versam sobe o tema Uma crítica Afrocêntrica ao Euro-
referente à afrocentricidade e/ou Egito An- centrismo no Pensamento Educaci-
tigo, seja o assunto propriamente dito, seja onal Brasileiro, de 2016;
análises de obras sobre filosofia africana ou  A dissertação de mestrado de Kati-
teses de críticas ao epistemicídio e sua efi- úscia Ribeiro Pontes, intitulada:
cácia no silenciamento das epistemologias Kemet, Escola e Arcadeas a Impor-
africanas. São eles: tância da Filosofia Africana no
combate ao Racismo Epistêmico e a
 A monografia Latu Senso de Ale- Lei 10639/03, de 2017;
xandre de Lourdes Laudino, intitu-  A dissertação de mestrado de Ellen
lada: A Filosofia como modo de vi- Aparecida de Araújo Rosa, intitu-
da: um estudo comparativo dos en- lada: Rekhet – A Filosofia Antes da
sinamentos de Pthahotep e Epicte- Grécia: Colonialidade, Exercícios
to, de 2013; Espirituais e o Pensamento Filosófi-
 A monografia de Alexsandro Alves co na Antiguidade, de 2017;
da Maia, intitulada: Afrocentricida-  A tese de doutorado de Luiz Thia-
de: A possibilidade das práxis filosó- go Freire Dantas com o título: Filo-
ficas em sala de aula, de 2015; sofia desde África perspectivas Co-
loniais, de 2018;

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 A Nota de Pesquisa de Valter Du- uma narrativa da história dos povos africa-
arte Moreira Junior, intitulada: So- nos, indígenas e ameríndios enquanto sujei-
bre o resgate e a difusão da Cultura tos e agentes da experiência humana tem
Africana, de 2018. recebido mais espaço nos periódicos aca-
dêmico-filosóficos. Contudo, apesar do
Enquanto os currículos, manuais didá- caudaloso renascimento cultural africano,
ticos e um largo volume de trabalhos aca- indígena e ameríndio presente nessas pro-
dêmicos na área ainda afirmam a certidão duções, dentre essas produções, a questão
de nascimento grega da filosofia, entre os do Kemet e sua relação com os demais po-
séculos V e III a.E.C., as evidências factuais vos africanos permanecem represadas nos
revelam que esse tipo de investigação foi sinópticos espaços dos verbetes, ou em um
realizada onde quer que o ser humano te- número bastante circunscrito de produções.
nha se estabelecido e se instalado, como Apesar de nosso apreço pela posição
apresentado pelo português José Nunes acadêmica com as filosofas e filósofos do
Carreira, pelo sul-africano Mogobe Ramose, pensamento decolonial de sustentar os ob-
pelo yanomami Davi Kopenawa e pelo itali- jetivos centrais de identidade e emancipa-
ano Robert Bernasconi, para citar alguns, ção cultural em seus projetos de produção
sendo possível ainda encontrar relatos e de conhecimento, não podemos deixar de
reflexões registradas por escrito em grande notar que, como observa o filósofo sul-
volume de documentos, monumentos e ar- africano C. T. Keto (1989, p. 23), “o foco sec-
tefatos no continente africano, especial- cionalista na assim chamada ‘África Subsaa-
mente na região conhecida como o Vale do riana’, ou ‘África Tropical’, ignora os ele-
Nilo ―constituídos pelo menos dois milê- mentos da unidade cultural antes do desse-
nios antes da constituição do pensamento camento do Sael no tempo histórico e [an-
filosófico grego―, seguida e desenvolvida tes] do advento do Islam no sétimo século
por outros povos africanos, como é o caso da Era Corrente”. Em outras palavras, essa
dos povos cushitas, do atual Sudão, cuja postura vai tanto de encontro às evidências
escrita e um volumoso corpus literário per- da origem africana dos povos do antigo Egi-
manecem não decifrados. to, quanto da unidade cultural de todos os
povos daquele continente. De acordo com
Considerações Finais
Asante:
Fizemos nesse trabalho uma breve
apresentação do paradigma Afrocêntrico, A anterioridade das civilizações
clássicas africanas deve ser conside-
um levantamento bibliográfico qualitativo
rada em qualquer pesquisa Africo-
sobre a produção acadêmica de filosofia e lógica. As referências clássicas são
constatamos a resiliência do pensamento necessárias enquanto estruturas ba-
racista e colonial reproduzido nos ambien- silares para discutir o desenvolvi-
mento dos fenômenos culturais
tes educacionais pela força do hábito. Cons- africanos. Sem tais pontos de refe-
tatamos também que a reinvindicação de rência, a maior parte da pesquisa

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aparecerá desconexa, sem continui- humanidade. Constituindo juntos imperati-
dade histórica, discreta e isolada, vos anteriores ao próprio cumprimento da
incidental e não orgânica.
(ASANTE, 1990, p. 12)
Lei 10.639/03, de combate à ideologia do
racismo antinegro e do das práticas sistemá-
O que erige em nós um questiona- ticas do epistemicídio na sociedade brasilei-
mento preliminar: Por quais razões? Ou ra. Juntos, eles configuram uma possibilida-
ainda: Há nessa constatável falta de atenção de real e interessante para combater o ra-
e nesse aparente desprezo uma das manifes- cismo antinegro, contribuindo para que os
tações da dúvida gerada pela colonialidade povos descendentes de africanos, indígenas
acerca da validade da filosofia kemética? e ameríndios reconheçam na produção his-
Essa questão provoca em nós questões sub- tórica e cultural do Brasil sua participação
sequentes: se podemos reconhecer a exis- ativa e direta.
tência da filosofia kemética, o que a consti- Está longe de nossas pretensões apresen-
tui? O que há nela de semelhante, ou des- tarmos aqui respostas categóricas, rápidas,
semelhante, da filosofia produzida nos de- ou reducionistas, que em geral não levam
mais países do continente africano? Talvez em consideração toda a complexidade das
essas questões nos levem a responder aque- relações sociais, políticas, econômicas e in-
la que nos parece ser a mais importante: clusive ideológicas dentro das quais esse
Tem a filosofia kemética algo de valioso a fenômeno se manifesta. Como já dissemos
nos dizer? em outros trabalhos, tampouco nos referi-
Nossa preocupação dentro desse deba- mos a pessoas, ou quaisquer instituições.
te repousa sobre o fato de que trazer o Egito Nesse sentido seguimos os pressupostos de
(Kemet, ou Kmt) para o currículo filosófico pensadores como Deleuze, isto é, os alvos
é tanto um ato decolonial quanto afrocen- de nossas reflexões são as ideias, principal-
trado. Em outras palavras, ele é tanto uma mente as “ideias prontas”, aspecto sobre o
obrigação moral e um ato humanista quan- qual é importante sublinharmos em acrés-
to um procedimento para dar subsídios a cimo que os rumos da afrocentricidade en-
um currículo que favoreça a pluriversalida- contram-se abertos e que os caminhos até
de de perspectivas, a diversidade etnicorra- agora explorados são pontos de partida, não
cial e contribua para desconstrução das de- uma linha de chegada.
sigualdades sócio-culturais e da ignorância
generalizada acerca da história da própria

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Recebido em: 05/06/2019


Aprovado em: 31/10/2019

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