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INSTITUTO DE LETRAS
Brasília (DF)
2018
ISAC RAMALHO DE LIMA
Brasília (DF)
2018
“Marvel has always been and always will be a reflection of the world right outside our
window. That world may change, but the one thing that will never change is the way we tell
our stories of heroism. Those stories have room for everyone, regardless of their race,
gender, religion or colour of their skin.”
Declaração de Stan Lee, criador dos X-men, em entrevista divulgada logo após sua morte,
em 12 de novembro 2018.
RESUMO
Este estudo objetiva a compreensão acerca dos quadrinhos de heróis, especificamente os dos
X-men, como meio de reflexão sobre contextos sócio-históricos, políticos e culturais. Discute-
se a relevância de estudos relacionados a histórias em quadrinhos, bem como a desvalorização
destas como Arte. Também são abordados autores e conceitos na área de quadrinhos que
mostram como estes representam a realidade. O presente trabalho, como dito, se utiliza de um
dos grupos de histórias em quadrinhos mais conhecidos, os X-men, analisando a graphic
novel “Deus ama, o homem mata”, de Christopher Claremont e Brent Anderson. A
perspectiva adotada é a de que o enredo da HQ é capaz de gerar reflexões no leitor sobre seu
contexto, já que trata de preconceito, intolerância religiosa, racismo, entre outros. A análise é
dividida em alguns tópicos considerados importantes a serem tratados sobre a trama. Após
toda a discussão, o estudo parece indicar o poder das histórias em quadrinhos de carregar
ideologias e gerar senso crítico sobre a realidade, compreendendo também a necessidade de se
estudar mais sobre a nona arte e de levá-la para escolas, principalmente para leitores
iniciantes.
1 INTRODUÇÃO 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS 21
REFERÊNCIAS 22
5
1 INTRODUÇÃO
Atualmente, os quadrinhos parecem ter ganhado maior importância como uma arte,
bem como mais discussões e pesquisas (RAMOS, 2010; CHINEN, 2011). Apesar do
preconceito advindo provavelmente de certo conservadorismo relatado por diversos
estudiosos do tema – como Ramos –, essa forma artística vem se destacando e ganhando cada
vez mais espaço, principalmente nas escolas, com objetivo de atrair os alunos para a leitura.
Alguns dos motivos para essa popularidade também podem ser as adaptações de outras artes
(de obras literárias, por exemplo) e o crescente número de adaptações de sucesso por outras
artes a partir de histórias e personagens dos quadrinhos (por exemplo: Turma da Mônica1, no
Brasil, e Os Vingadores2, internacionalmente). Além disso, há ainda um estilo diferenciado e
próprio de contar histórias que cativa o leitor, já que une imagem e escrita.
De qualquer forma, dentre os quadrinhos que vêm ganhando destaque desde meados
do século XX está o conjunto de histórias dos “X-men3”. Apesar de pouco sucesso nos anos
60, nas décadas posteriores, as publicações obtiveram sucesso mundial.
Apesar de, geralmente, os quadrinhos dos “X-men” serem enquadrados simplesmente
na categoria de histórias de heróis, há outra face que os distingue. Eles trazem consigo uma
carga de crítica social e de reflexão da realidade enorme, principalmente através de narrativas
construídas por meio de metáforas.
Este trabalho, levando em conta isso, enxerga os “X-men” como uma possibilidade de
atração de jovens para leitura e reflexão sem perder a essência prazerosa do ato de ler os
quadrinhos. Além disso, também tem objetivo de demonstrar o potencial reflexivo e crítico
que as histórias em quadrinhos podem ter e o quão abrangente a nona arte pode ser.
Como visto, desde o início, os quadrinhos sofrem com um forte preconceito provindo
possivelmente da dificuldade que se identifica no ser humano em aceitar o novo e diferente.
1
Como exemplo, há os filmes “As Aventuras da Turma da Mônica” (1982), “A Princesa e o Robô” (1983) e
“Cine Gibi (2004)”, bem como “Turma da Mônica – Laços”, a ser lançado em 2019.
2
Dentre os filmes lançados, há “Os Vingadores” (2012), “Os Vingadores: A Era de Ultron” (2015) e
“Vingadores: Guerra Infinita (2018)”, além de filmes sobre personagens que constituem o grupo.
3
Segundo Caldas (2017, p.79), “Foram criados em 1963 por Stan Lee, o mago dos quadrinhos da Marvel, e Jack
Kirby, seu parceiro na criação da arte de muitos dos personagens do universo Marvel”.
6
Às vezes, o inovador não é aceito a primeiro momento, assim como é possível ver na história
de diversos artistas4.
Os quadrinhos eram uma produção diferente, dessa forma, também eram vistos como
algo mais irrelevante, simples e menor. Porém, é fato que sua produção é complexa e ocorre
através de diversos níveis, captando a realidade de forma única.
É necessário que continue havendo estudos sobre o assunto e que as especificidades
dessa arte sejam reveladas. Esse é um dos principais objetivos deste trabalho e, para alcançá-
lo, é essencial discutir um pouco sobre os elementos, as características e a história dos
quadrinhos.
Na literatura sobre o tema, há múltiplas definições. Um dos autores mais relevantes do
século XXI no Brasil é Paulo Ramos, que aborda o assunto de forma bastante esclarecedora e
com linguagem simples, direta e objetiva. Em um de seus livros, ele inicia a discussão pelas
diferenças entre quadrinhos e literatura, já que o senso comum classifica as histórias em
quadrinhos como uma “forma de literatura”.
O autor indica que tratar os quadrinhos dessa forma é “uma forma de procurar rótulos
socialmente aceitos ou academicamente prestigiados [...] como argumento para justificar os
quadrinhos” (RAMOS, 2010, p. 17), o que demonstra o preconceito com a nona arte,
especialmente no meio acadêmico.
Na verdade, como mostra Ramos (2010), não é necessário buscar em outras artes as
características dos quadrinhos, mas sim vê-los como um formato único e inovador, com
linguagem própria. Diversas artes se aproximam e utilizam de instrumentos de outras, mas
não deixam sua autenticidade. No caso dos quadrinhos, há um diálogo com a pintura,
literatura e fotografia, por exemplo, o que não os torna menores, mas diferentes e inovadores.
Eles se relacionam com diversos tipos de linguagem, os condensam e recriam.
Nobu Chinen (2011), em “Linguagem HQ”, reforça o quanto é difícil definir o que são
quadrinhos, pois “nenhum de seus elementos constitutivos é obrigatório, ou seja, podem
existir HQs sem balões, sem textos e mesmo sem os quadrinhos” (p. 7). Na perspectiva deste
trabalho, considera-se essa característica “imprevisível” como algo que propicia a diferença, a
criatividade, a produtividade e, assim, a Arte.
Para entender mais sobre essa “linguagem autônoma” falada, é necessário entender
melhor sobre o formato e os constituintes essenciais dos quadrinhos. Um dos elementos
centrais e mais característicos é o balão, utilizado para representar a fala. Mais precisamente,
4
Como Vincent Van Gogh e Claude Monet.
7
para Acevedo (1990, p. 97), são “uma convenção própria da história em quadrinhos que serve
para integrar à vinheta o discurso ou o pensamento dos personagens”. Essa definição é
interessante, porque traz não só a ideia de discurso direto, mas também a de pensamento.
É relevante também citar que o formato dos balões é um fator muito importante, pois
revela muito sobre a própria fala do personagem. Como diz Ramos (2010, p. 36), “A chave
para entender os diversos sentidos está na linha que contorna o quadrinho [...] O efeito é
obtido por meio de variações no contorno, que formam um código de sentido próprio”. Pode-
se perceber isso, por exemplo, pela diferença de formatos entre o balão-fala – o mais simples
e utilizado – e outros, como o balão-trêmulo ou o balão-uníssono. Na literatura, há diversas
formas de balões extremamente expressivas e diferentes, tanto que é impossível quantificar.
No âmbito da fala propriamente dita, há diversos fatores que contribuem para a
expressividade, como o tamanho da fonte, tipos de pontuações utilizadas (interrogativos,
exclamativos), uso de itálico ou negrito, tipo de fonte, sublinhado, entre outros. Todos têm
uma intencionalidade e contribuição para que a mensagem seja entendida pelo leitor
(RAMOS, 2010).
No entanto, um dos pontos essenciais em relação ao conteúdo é a escolha do
vocabulário. Ramos (2010) traz essa discussão e mostra que o assunto é pouco abordado, mas
que as possibilidades de uso da língua nos quadrinhos são infinitas e que podem dizer muito
sobre os personagens e sobre a história. Certas palavras, quando utilizadas por algum
personagem, por exemplo, o caracterizam como parte de algum grupo social.
De qualquer forma, é interessante pensar em como esses elementos discutidos acima
contribuem não só para construção dos quadrinhos, mas para a construção e representação da
realidade nos quadrinhos.
Além dos elementos já tratados, há outros presentes que parecem ter essa mesma
função. A realidade é representada através de convenções ao longo dos quadrinhos e isso pode
ser visto também pela forma como o espaço e tempo são construídos – isto é, na relação de
comparação entre o quadrinho anterior e o posterior –, nas expressões faciais e de movimento
dos personagens, nas diversas cores e estilos de desenho utilizados, entre outros.
O fato é que os quadrinhos parecem ter uma relação muito forte com uma vontade de
representar o mundo de uma forma consideravelmente “didática”, de fácil compreensão e
altamente metafórica, expressiva e até mesmo minuciosa (quando se pensa nos
acontecimentos trazidos de forma sequencial).
Alexandre Barbosa (2009), em seu texto “História e quadrinhos: a coexistência da
ficção e da realidade”, trata especificamente desse ponto. Segundo o autor, nessa conexão
8
Dessa forma, percebe-se que a função dos quadrinhos, que já é diversa, tem mais uma
face, e que o artista de histórias em quadrinhos é – ou pelo menos pode ser – um influenciador
na sociedade, principalmente quando se encara o fato de que o maior público da nona arte são
crianças e jovens, isto é, futuros constituintes efetivos da sociedade.
É claro que existem diversos tipos de intencionalidades, temas e assuntos que podem
ser abordados nos quadrinhos, e nem todos têm a prioridade de representar a realidade. Este
estudo considera essa relação com a realidade como um continuum, em que alguns tipos de
quadrinhos se afastam mais do compromisso com a expressão da realidade, enquanto outros
tentam colocar esse elemento de todas as formas, unindo o “realismo” na forma, nos desenhos
e no conteúdo.
Um exemplo característico e de fácil compreensão sobre isso são os diferentes estilos
de desenho que podem ser empregados nos quadrinhos. Ramos (2010), ao tratar disso, cita
Cagnin (1975), o qual traz três tipos de desenho: realista, estilizado e caricato. No estilo
realista, há uma preocupação com detalhes, como ângulos, expressões faciais, cores e tudo
que deixará clara a proximidade com o real e com a intenção e percepção do autor. Já no
9
5
Graphic Novel, romance gráfico, é um tipo de história em quadrinhos considerada mais longa e elaborada, com
mais elementos parecidos com obras literárias em prosa. Há narrativas mais complexas e aprofundamento
psicológico dos personagens e da trama.
6
“Deus ama, o homem mata”, ou “God loves, man kills” (em inglês), foi publicada originalmente em 1982, com
autoria de Christopher Claremont (argumento) e Brent Eric Anderson (arte). A edição utilizada nesta pesquisa é
a de 2003, da Panini Brasil LTDA, especificamente pela Panini Comics.
7
Marvel Comics é uma editora de quadrinhos americana criada em 1939, atualmente considerada a maior dos
Estados Unidos e do mundo. Alguns de seus personagens mais famosos são Homem-Aranha, Wolverine, Hulk,
Thor, Homem de Ferro, Capitão América, Feiticeira Escarlate, Pantera Negra, Deadpool e Demolidor, além de
equipes como Vingadores, X-Men, Guardiões da Galáxia e Quarteto Fantástico. A maioria dos personagens
operam em uma realidade conhecida como Universo Marvel, com locais que refletem os da vida real.
10
8
Nessa edição, originalmente Uncanny X-Men #14 (publicada em 10 de novembro de 1965, com produção de
Jack Kirby e Werner Roth), há um grupo de “sentinelas”, robôs criados por membros do governo para aprisionar
e assassinar mutantes pelo “perigo” que eles representavam para a sociedade.
9
Especificamente, Colossus (antiga União Soviética), Noturno (Alemanha), Pássaro Trovejante (apache
americano), Solaris (Japão), Banshee (Irlanda); Tempestade (Quênia) e Wolverine (Canadá).
10
Grupo desenvolvido por Claremont e McLeod (1983), constituído por mutantes mais jovens.
11
Com personagens derivados de X-men, foi desenvolvido por Bob Layton e Jackson Guice (1986).
12
Um exemplo é “Eu, Wolverine”, de 1982.
13
Originalmente, “X-Men: The Animated Series”, que estreou em 1992, através da emissora FOX.
14
“X-men” (2000), “X-men: 2” (2003) e “X-men: The Last Stand” (2006).
11
Essa publicação, justamente por ter o objetivo de alcançar esse tom narrativo
diferente, é desvinculada da trama principal e tem maior extensão. Além dos personagens
centrais dos anos 80, há alguns novos. Destes, o mais importante é William Stryker, que
aparece na trama como um antagonista que pretende extinguir os mutantes da Terra.
(CLAREMONT; ANDERSON, 2003). Diferentemente de diversos vilões de quadrinhos, as
motivações de Stryker aparecem de forma consistente, principalmente pelo fato que durante
os quadrinhos é contada a história do personagem, que desde o início tem ideologias baseadas
em um tipo de cristianismo radicalista e distorcido que o leva a matar sua esposa e filho pelo
fato deste ter nascido mutante.
Depois desse momento, o personagem passa a justificar todas as atitudes contra os
mutantes com base na bíblia até o contexto atual na história, em que conhece Charles Xavier,
investiga sobre este e planeja usá-lo para matar todos os mutantes telepaticamente. Após
raptar Xavier e alguns X-men, ele tortura-os e utiliza de instrumentos tecnológicos para fazer
um tipo de lavagem cerebral no criador do grupo de heróis para controlá-lo (CLAREMONT;
ANDERSON, 2003, p. 32). Depois de falhas, Stryker consegue o pretendido e manda que
Xavier mate os mutantes. Enquanto o antagonista discursa em um evento para membros de
alta importância nos Estados Unidos em rede nacional sobre o perigo dos mutantes utilizando
textos bíblicos, alguns X-men libertos, com o auxílio de Magneto, um antigo vilão, tentam
impedir Stryker e libertar Charles Xavier.
Após alguns esforços, enquanto também sofriam com o ataque psíquico do próprio
líder, os heróis o libertam e fazem um discurso em rede nacional sobre a situação dos
mutantes. No fim, Stryker argumenta, mas se descontrola, tenta matar um dos heróis e é morto
por um policial. Mesmo com o ocorrido, os protagonistas sabem que o preconceito e a
perseguição não terminarão facilmente. Nesse momento, Magneto pede para se aliar à
Charles, contudo, o líder dos X-men recusa a proposta pelos ideais que divergem pela forma
pretendida para lutar pelos direitos dos mutantes (CLAREMONT; ANDERSON, 2003).
Torna-se evidente, assim, as dificuldades para o sucesso do movimento, tanto no exterior
quanto no interior deste.
É importante pensar nessas contradições para entender a forma pela qual o conteúdo
dessa graphic novel reflete a realidade. Além disso, é importante também tratar de alguns
pontos essenciais da trama, bem como da metáfora principal da história dos X-men.
15
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão. Pode ser incluído no chamado Idealismo
Alemão.
16
René Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês. Chamado de fundador da filosofia moderna e pai
da matemática moderna.
17
Immanuel Kant (1724-1804), filósofo prussiano. Considerado muitas vezes como o principal filósofo da era
moderna.
18
François-Marie Arouet (1694-1778), escritor, ensaísta e filósofo iluminista francês.
19
Charles Robert Darwin, naturalista britânico que convenceu a comunidade científica da evolução e propôs
uma teoria para explicá-la pela seleção natural e sexual.
13
“Concordo que os tempos são difíceis e que vão piorar muito. Concordo que
provavelmente poderíamos conquistar o mundo, mas o custo em sangue seria
avassalador [...] os meios são tão importantes quanto os fins. Nós temos que fazer as
coisas de maneira muito certa ou não fazer nada. Menos do que isso negará aquilo
em que acreditamos”. (CLAREMONT; ANDERSON, 2003, p. 62).
A fala demonstra a completa oposição ao que Magneto propõe; entretanto, esse trecho
mostra Magneto conversando tranquilamente com os X-men, revelando que não há o
confronto entre bem/mal nessa relação, somente o conflito por interesses políticos (REBLIN,
2008).
Alguns autores, como Douglas Kellner (2001), afirmam sobre o poder que esse tipo de
produto midiático tem de carregar mensagens ideológicas, legitimando forças de dominação
ou contestando-as. Além disso, o autor demonstra que é também objetivo desse tipo de
produção o máximo consumo – e o lucro disso –, e que nesse processo busca-se tratar de
assuntos que sejam do imaginário da sociedade, algo com o que estas se identificariam,
14
podendo até mesmo “refletir assuntos e preocupações atuais que atinjam a sociedade de
maneira efetiva” (KELLNER, 2001 apud DALBETO; OLIVEIRA, 2014, p. 65). É fato que os
quadrinhos, como afirma Vieira (2008, p. 208), mesmo com seu aspecto fantástico, são
formas versáteis de representar realidade, partindo da ideia de tentar “compreender o mundo
externo a eles”, tendo como base as vivências do autor e de seu público. Essa capacidade de
propagação e de reflexão sobre ideias e valores também é falada por Dutra (2002), que
exemplifica isto e relembra que “as HQs ‘ocidentais’ foram proibidas durante a Segunda
Guerra Mundial pelas potências do Eixo, como também pelos países do bloco socialista no
período da Guerra Fria” (p. 9).
Pode-se falar também sobre o estudo de Fernandes (2014), o qual mostra que há
comparações que acreditam no fato de que Magneto e Charles Xavier são espelhados em
Malcolm X e Martin Luther King, respectivamente. A autora mostra que essa relação feita
pode ser bastante equivocada em alguns pontos, mas que é possível pensar em uma
intertextualidade, principalmente com o movimento dos direitos civis dos anos 60, nos
Estados Unidos. Em um dos capítulos do livro “The Unauthorized X-Men: SF And Comic
Writers on Mutants, Prejudice, And Adamantium”, Roberts (2005, p. 42) é bem incisivo ao
falar sobre o assunto: “[…] there are myriad ways in which he does not resemble King; he is
abald-headed white cripple with tremendous telepathic powers who lives in an enormous
mansion in New York state […]”. Mesmo tendo em vista essa perspectiva bastante válida,
ainda é possível pensar na intertextualidade, pois o pensamento não é o de considerar Xavier
ou Magneto como réplicas das personalidades, mas sim o de que há inspiração por parte dos
roteiristas, consciente ou inconscientemente. Além disso, a importância se localiza em gerar
reflexão a partir da consideração dessa intertextualidade, como afirmam Shyminsky (2006) e
Dalbeto e Oliveira (2014).
Em uma obra autobiográfica de Malcolm X, Halley (1965, p. 226) mostra uma fala
deste: “Não façam a ninguém nada que não queiram que façam a vocês. Procurem a paz e
jamais sejam o agressor... mas se alguém os atacar, não lhes ensinemos a oferecerem a outra
face”. Essa fala é muito parecida com muitas de Magneto nos quadrinhos, como a da Figura 1,
e mostra o quanto o personagem pode ser inspirado em Malcolm X, principalmente pela
perspectiva extremista.
É possível pensar a aproximação entre Charles Xavier e Martin Luther King no âmbito
ideológico, principalmente pela presença do discurso de igualdade: “Eu tenho um sonho que
um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós
celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais”
15
(KING, 2010, p. 1). Em uma das falas de Xavier em “Deus ama, o homem mata”, percebe-se
essa noção de igualdade em uma comunicação em meio televisivo: “[...] os mutantes não são,
em si, um grupo monolítico, dotado de um único conjunto de ações ou atitudes. Eles são todos
indivíduos... como nós... e devem ser julgados como tais” (CLAREMONT; ANDERSON,
2003, p. 12). Xavier tenta articular seus discursos de maneira a estabelecer um
“antipreconceito”, desmistificando e desconstruindo as ideias pré-estabelecidas sobre a
comunidade mutante e colocando aproximações entre estes e os humanos. Scott Summers,
baseado no mestre, também mostra esse posicionamento: “Nós também somos humanos! Um
ramo diferente, talvez, mas da mesma árvore” (CLAREMONT; ANDERSON, 2003, p. 62).
Conscientemente ou não, a proposta na constituição dos personagens em X-men
relembram as ideias de Martin Luther King nesse âmbito do “sonho” de igualdade, tanto que
esta palavra é recorrente nos quadrinhos. Não se pode afirmar o “espelhamento” entre os
personagens e as figuras políticas, mas há sim um tipo de reflexo entre esses personagens e
ideologias existentes na realidade, assim como a possibilidade de pensar sobre o contexto
sociocultural e político a partir de falas dos personagens.
Ainda sobre isso, Alan Ramos Gonçalves (2008) apresenta algumas coincidências que
reforçam um possível intertexto entre a realidade e os quadrinhos em X-men:
São muitas as ligações entre as histórias dos X-MEN e a história dos Estados Unidos
[...] Em 1965, [...] o intolerante Magneto é neutralizado, perdendo uma batalha para
outro mutante. Essa edição foi lançada em maio, mais ou menos três meses após o
separatista Malcolm X ser assassinado por membros da Nation of Islam, grupo do
qual Malcolm X foi membro. Já em 1968, [...] os X-MEN encontram uma
mensagem póstuma do Professor Charles Xavier, na qual ele pede a seus alunos que
continuem a lutar. Essa edição foi lançada em abril, mesmo mês em que Martin
Luther King Jr foi assassinado. (GONÇALVES, 2008, p. 2).
É imprescindível também pensar sobre um momento em que Stan Lee (2000), um dos
principais criadores de X-men, trata do assunto em uma declaração:
E então me ocorreu que, ao invés deles serem apenas heróis admirados por todos, e
se eu os fizesse as outras pessoas temê-los, suspeitar deles e de fato odiá-los porque
eles são diferentes? Eu amei essa ideia; ela não apenas os tornava diferentes, como
também era uma ótima metáfora para o que estava acontecendo com o movimento
dos direitos civis dentro do país naquele momento. (LEE, 2000, p. 1).
Percebe-se, com isso, que a construção de X-men é baseada em uma relação muito
forte com a realidade americana da época, refletindo questões raciais e de luta de minorias por
direitos. É claro que é impossível afirmar algo sobre a criação específica dos personagens
Magneto e Charles Xavier, mas é clara a influência da mente criadora de X-men pelo
movimento social dos anos 60 e por Martin Luther King e Malcolm X (Dalbeto; Oliveira,
2014). De qualquer forma, há outro ponto – falado também no trecho acima por Stan Lee
(2000) – nessas histórias em quadrinhos que é central para conectá-las com a realidade: a
metáfora dos mutantes.
X-men, como visto, tem a idealização da história feita por Stan Lee, que visivelmente
percebia os fatos históricos contemporâneos a ele e transferia-os para os quadrinhos. No
processo de síntese da realidade, trazendo o estereótipo para gerar a reflexão, X-men constrói
tipos de “metáfora para a luta pela igualdade social, nos quais os personagens e as situações
das histórias contribuem para representar e/ou personificar as minorias” (VECCHIA;
MASTELLA, 2017). Vários autores observam isso, como Alan Gonçalvez (2008), que
considera uma metáfora para o movimento negro, e Darowski (2014, p. 39), quando se refere
ao criador da história: “Lee has spelled out the series' racist subtext, that the hatread and
distrust of mutants is nothing but a thinly veiled metaphor for the real world's prejudices”.
Na história, os mutantes, que possuem o Gene X e têm características físicas e mentais
diferentes dos seres humanos comuns, geram medo e insegurança. É fato que o ser humano
tem dificuldades em lidar com o que é diferente e novo – ou com a alteridade, segundo Reblin
(2008) –, e os mutantes são justamente a personificação disso. Além disso, por terem poderes
sobrenaturais, causam a sensação de vulnerabilidade, já que os não mutantes ficam à mercê
deles. Ao mesmo tempo, um pouco contraditoriamente, “a mutação invalida a humanidade do
17
indivíduo, relegando-o a um plano inferior [...], que coloca os humanos num patamar superior
[...]” (SIANI, 2003).
Essa construção fictícia é propícia a diversas reflexões, pois além dos acontecimentos
envolvendo o movimento civil dos anos 60, é possível associar com o movimento LGBT, com
pautas do feminismo e com a luta de pessoas com necessidades especiais por direitos, assim
como a de minorias em geral (DALBETO; OLIVEIRA, 2014; SILVA, 2017). É ampla a
discussão gerada pelas narrativas de X-men, pois estas atingem o leitor de forma com que este
se envolva na trama, entenda as perspectivas dos personagens, especialmente as dos mutantes,
e consiga se identificar ou se colocar do outro lado da situação. Assim, fornece uma ponte
com a realidade do indivíduo e faz com que este reflita sobre si mesmo e sobre quais papeis
pode assumir na luta de seu grupo social – e seguindo a metáfora, podem ser passivos, ativos
brandos ou extremistas.
Também é possível usar a camuflagem da metáfora para desconstruir pensamentos
enraizados, construí-los e também fazer com que pessoas reflitam sobre a importância de
alguns movimentos. Ao tratar desse assunto, Weschenfelder (2011, p. 12) relembra que
Aristóteles mostra que “ao experimentar sentimentos fortes e acontecimentos trágicos [...]
esperava-se que as pessoas purificassem as próprias emoções; assim, faz o espectador/leitor
refletir sobre os problemas centrais da condição humana”. Eufrausino (2005) parece
complementar essa ideia, mostrando que o “faz-de-conta” pode ser uma forma de escapar do
real, mas ao mesmo tempo de construir mensagens sobre este através da fantasia e do
divertimento. Silva (2002, p. 37-38), sobre isso, aponta a fantasia como um protetor para o
ego dos conflitos com a realidade, afastando o leitor desta para continuar a abordá-la de forma
metafórica/ alegórica.
Caldas (2017) traz à tona Eco (2004), que reflete sobre o papel do leitor de perceber
sutilezas de um texto que inicialmente é cheio de “espaços brancos” a serem preenchidos. Ele
afirma que nas HQ’s isso é presente nas fronteiras entre o natural e o estranho e que é
necessário que o leitor ultrapasse a barreira da fruição e do lazer para entender as
intencionalidades e ideologias presentes. É necessário que haja um “leitor-modelo”; contudo,
é possível também pensar que as construções das tramas podem levar o leitor
“desinteressado” a ser influenciado e a repensar atitudes e vivências, conscientemente ou não.
É interessante ressaltar também que a afeição aos personagens também pode agir a
favor da transposição do ficcional na realidade, já que esta é capaz de gerar uma compreensão
que ultrapassa os limites do preconceito. A arte tem a possibilidade de ser influenciadora
quando gera empatia, pois como mostra Morrison (2012, p.461- 462), conforme citado por
18
Dalbeto e Oliveira (2014), “uma história pode nos deixar furiosos a ponto de querer mudar o
mundo”.
No caso de “Deus ama, o homem mata”, há casos que retratam a ideia da metáfora
criada para refletir o preconceito, como o da Figura 2, a seguir:
20
Termo empregado nas histórias de X-men para se referir de maneira pejorativa aos mutantes. Pode-se
considerar “equivalente” ao uso do termo “crioulo” com negros.
19
entra em discussão, sendo impedida por seus companheiros em seguida. Logo depois,
encontra Stevie21, as duas se desentendem e a mulher pede para que Kitty se acalme.
Nesse momento, a metáfora dos mutantes, a intencionalidade do roteirista de X-men e
a relação de intertextualidade entre X-men e a luta das minorias se tornam evidentes,
principalmente pela seguinte fala de Kitty: “E se ele tivesse me chamado de ‘chegada de
crioulos’, Stevie? Você continuaria tão tolerante?” (CLAREMONT; ANDERSON, 2003, p.
9). Stevie chora e através de um balão de pensamento revela que concorda com Kitty,
percebendo a equivalência entre o racismo com os negros e com mutantes. Dessa forma, se
estabelece a relação necessária no enredo para que o leitor entenda a intenção do autor, sinta
empatia pelos personagens e crie a conexão para intensificar a discussão proposta em suas
próprias vivências.
Outro ponto para discutir a presença do contexto factual em “Deus ama, o homem
mata” é a presença intolerância religiosa relacionada ao preconceito com os mutantes. Como
elemento presente no contexto social mundial, a intolerância religiosa ocorre por diversos
motivos, baseada geralmente por interpretações extremistas de textos bíblicos.
Essa é a perspectiva observada em William Stryker, personagem central para entender
a contradição da intolerância religiosa, já que todas as suas falas remetem à “guerra, agressão
física e violência. Em nenhum momento Stryker cita textos bíblicos que apresentam perdão,
tolerância, misericórdia”, como Caldas (2017, p. 82) demonstra.
Para discutir melhor o posicionamento do personagem e também da sociedade que o
apoia, é necessário rememorar alguns trechos de “Deus ama, o homem mata”. No
desenvolvimento da história, ao contar sua história pessoal, Stryker utiliza trechos da bíblia
para condenar mutantes, chamando estes de “monstros” e Charles Xavier de anticristo,
reconhecendo-se como escolhido por Deus para combatê-los. Em um momento, o personagem
diz:
[...] o mal... o pecado... era de Marcy, não meu. Ela foi o veículo empregado por
Deus para me revelar a mais insidiosa trama de satã contra a humanidade...
corromper-nos através de nossos filhos [...] os mutantes quebraram esse molde. Eles
eram criações não de Deus, mas do demônio”. (CLAREMONT; ANDERSON,
2003, p. 34).
21
Na história, é professora de dança de Kitty, amiga de alguns X-men.
20
“Deus criou o homem... a raça humana! A bíblia não faz menção a mutantes [...]
Alguns chamados cientistas, humanistas... dizem que os mutantes fazem parte do
processo natural da evolução [...] Nós somos como Deus nos fez... qualquer desvio
deste templo sagrado... qualquer mutação... não pode vir do céu, mas do inferno”.
(CLAREMONT; ANDERSON, 2003, p. 51).
Assim, percebe-se o quanto a narrativa se combina para que o leitor reflita sobre
diversas camadas de sua vida como ser humano e cidadão. Os quadrinhos de “Deus ama, o
homem mata” têm poder de tornar visível as diversas intencionalidades e o lado obscuro dos
discursos religiosos. Acima de tudo, também gera a discussão sobre o significado de
benevolência e maldade e lembra o desafio que é a construção de um ser humano empático e
cidadão. Como afirma Reblin (2007), com base em Kierkegaard e Stephen Evans, para
alcançar o amor ao próximo, é necessário “vencer o egoísmo natural e a simples inércia que
nos conduz à satisfação de nossos desejos quando esses desejos entram em conflito com o
bem dos outros” (p. 89), assim como repensar as estruturas sociais enraizadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
de quadrinhos como os de X-men, aliada à diversidade de enredos, com certeza pode ir além
da fruição e auxiliar na edificação da humanização.
REFERÊNCIAS
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