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François Jullien
I
FIGURAS
DA
M
PARA UMA LEITURA FILOSÓFICA DO I CHING,
O CLÁSSICO DA MUTAÇÃO
.,
editora '34
coleção TRANS
François Jullien
FIGURASDAIMAN~NCIA
Para uma leitura filosófica do I Ching,
o Clássico da mutação
Tradução
Carlos Alberto da Fonseca
editora.34
EDITORA 34 FIGURAS DA IMANÊNCIA
Para uma leitura filosófica do 1 Ching, o Clássico da mutação
Distribuição pela Códice Comércio Distribuição e Casa Editorial Ltda.
R. Simões Pinto, 120 Te!. (011) 240-8033 São Paulo - SP 04356-100
Prefácio ............................................................................... .. 9
Advertência ........................................................................... . 19
Figuras da Imanência 9
Tesouro de sabedoria ou enigma? É forçoso constatar que, des- sagram o "ser", o "eterno", a "verdade" ... ), mas também o que lhes
de que começaram a tomar conhecimento desse livro, os ocidentais se serviu ao mesmo tempo de moldura e suporte. O que significa que
dividiram em duas atitudes contrárias. Como despertou desconfian- seremos convidados, em pleno caminho, a reconsiderar, de fora, al-
ça, somos tentados a ver nele apenas um grande bazar de superstições gumas de nossas opiniões preconcebidas mais arraigadas (e que for-
ou fantasias. Embora concordem em reconhecer sua importância, mui- mam como que os hábitos de nosso espírito, no sentido em que se diz
tos especialistas da China o consideram mais como um thesaurus de "adquirir um hábito"): aquelas mesmas a partir das quais foi escri'ta
fórmulas e de imagens, cujo conhecimento é indispensável para a lei- nossa história da filosofia e que não interrogamos, que não sonhamos
tura de outros textos, do que como um livro que mereça ser estudado interrogar, tanto elas se confundem para nós com o próprio advento
por si mesmo e que se consiga interpretar. E então o terreno que eles da Razão.
deixam vazio é invadido pelos gurus: a imaginação se apodera daqui-
lo que o saber abandona e à desconfiança de uns se opõe, em contra- II - Esta introdução ao I Ching será, deixemos claro, uma in-
partida, o entusiasmo de outros. Eis que esses traços, esses números, trodução à sua leitura. Pois, a despeito de sua diferença de constitui-
essas figuras, sem esquecer as moedas e as varetas (destinadas à con- ção, bem como da originalidade de seu manuseio, o I Ching terminou
sulta oracular), servem de chave para muitos mistérios, prestam-se ao por formar um livro. Com isso quero dizer que pretendo reagir con- '
gentil delírio do exotismo. Quanto menos se compreendem as fórmulas tra a opinião preconcebida que consiste em dissociar a combinatória,
do livro, mais elas exercem grande fascinação. E as duas sílabas de seu que é o princípio mesmo da obra, das camadas de texto que sucessi-
título - I Ching (em pinyin: Yijing) - , imersas num vago "Oriente", vamente lhe foram acopladas e consideradas seus comentários. Assim,
assumem valor de talismã. enquanto prestamos toda atenção à primeira, tanto ela se oferece co-
O objetivo deste ensaio é uma chamada para ultrapassar essas modamente às sistematizações mais variadas, somos tentados a inte-
duas atitudes, colocadas uma contra a outra: tentar tirar essa obra da ressar-nos pelas segundas apenas para encontrar nelas uma confirma-
suspeição em que a manteve um certo saber, sem submetê-la, entre- ção do nosso próprio uso, ou então as abandonamos completamente.
tanto, ao fantasma ideológico. Dito de outro modo, trata-se simples- Sobrecarga inútil, ou interferência infeliz. É verdade que o exemplo,
'mente de propor esse livro à nossa reflexão enquanto utensílio. Esse nesse caminho, nos vem de longe. O Padre Joachim Bouvet, que foi
manual, com efeito, se enriqueceu tanto, a partir de sua origem divi- um dos primeiros a apresentar o I Ching ao público europeu, ainda
natória, e tanto fecundou o pensamento chinês durante milênios, que no tempo das missões, explica-se muito claramente numa carta a Leib-
não se pode hesitar em levá-lo a sério. E a questão não é mais saber se niz: a combinatória composta a partir da série de figuras foi obra de
é melhor colocá-lo na estante "sabedoria" ou na de "filosofia" stricto um "gênio extraordinário" e constitui um "método geral das ciências"
sensu, tal como a tradição ocidental concebeu esta última (uma outra que é "muito perfeito", mas ele foi "em seguida corrompido" pelos
maneira de descartar o livro, enaltecendo-o ao mesmo tempo), por- comentários e "quase inteiramente obscurecido no decorrer dos tem-
que um trabalho prévio se impõe, de natureza e alcance incontesta- pos". É também nesses termos que ele justifica qual será sua estratégia:
velmente filosóficos: o de reinterpretar a partir de nossos prÓpriOS]
termos a lógica que esse Clássico põe em funcionamento e, a partir de! E porque todos os comentário, que foram feitos por
um confronto com nossa visão das coisas, fazê-la servir filosoficamente. j cerca de três mil anos sobre esse sistema por grandes ho-
Como nos anuncia seu título, efetivamente, o I Ching se propõe como mens, dos quais Confúcio foi um dos principais, parecem
"clássico" daquilo mesmo que menos pensamos possa ser o objeto de mais próprios antes para confundir e obscurecer seu verda-
um clássico: a saber, da "mutação". Aquilo que muda não é inconsis- deiro sentido do que para desenvolver seu mistério, tendo
tente, ele é mesmo a única realidade, e ela possui sua coerência. Por deixado de lado todos esses comentários e me prendendo
isso, não deixaremos de descobrir nesse livro elementos para sacudir unicamente à figura, eu a considerei em tantos sentidos di-
não só algumas de nossas opções metafísicas mais comuns (que con- ferentes, que, após ter combinado e recombinado o que me
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François Jullien Figuras da Imanência
dade que se experimenta ao fazê-los convergir não esclarece apenas de um idioma, que nos situa, então, no entremeio do fenômeno e do
suas zonas de incompatibilidade, mas os revela também, um ao ou- signo - , o I Ching serve de mediação entre a ordem da natureza e sua
tro, em suas escolhas implícitas. Lendo de fora ao mesmo tempo que formalização lógica. Diferentemente dos ideogramas, os trigramas e
de dentro (isto é, transformando minha exterioridade cultural em trun- os hexagramas que servem de base ao Clássico não exprimem um sen-
fo heurístico), experimento um pensamento ao mesmo tempo no que tido, mas definem os elementos de uma matriz. Por isso, segundo a
ele diz e naquilo que ele não diz, não só no que o motiva mas também perspectiva genealógica instaurada pela teoria literária chinesa 3 , eles
naquilo em que ele se desvia, ou que deixa inculto, ou de que se es- constituem o prato-texto que assegura a continuidade entre o poder
quiva: confrontadas uma à outra, duas representações se interpretam figurador que atua em toda parte no mundo e a invenção do texto
melhor, na medida que seu distanciamento (uma da outra) nos ofere- escrito; ao mesmo tempo em que são o arqui-texto, aquele que, em seu
ce um recuo. sistema de combinação e de variação, contém todos os textos possÍ-
veis e do qual todos os outros seriam sempre uma eterna explicitação.
IV - Dentre os pontos em que a diferença é mais sensível e per- Por trás dessa oposição entre a palavra e o traço perfila-se uma
mite, assim, um esclarecimento recíproco, o primeiro diz respeito à outra que confronta mito e diagrama. "Diagrama", o esquema do I
própria natureza desse livro. Na cultura ocidental é a palavra oral que Ching, à base de traços, o é nos dois sentidos do termo: como traço
é original, o escrito só intervém depois para registrá-la: a epopéia ho- que visa à representação sumária dos fatores de um conjunto (aqui,
mérica é o "canto" de um aedo, e é dos "lábios" da Musa que Hesíodo reduzidos a dois) e de sua disposição respectiva (vista como em corte;
aprende sobre a geração dos deuses; do mesmo modo, enquanto men- como se fala, por exemplo, do diagrama de uma flor); e também como
sagem da Revelação, a Bíblia é palavra oral antes de ser Escritura Sa- traço que visa a apresentar, sob uma forma gráfica, o desenrolar e as
grada e se liga, como tantas vezes foi observado, às tradições pastoris variações de um fenômeno (como se fala do diagrama de uma febre).
do povo judeu, em que o pastor se dirige a seu rebanho. Ora, na Chi- Entre o recurso ao mito, tal como o conhecemos na cultura ocidental,
na não existe nem Palavra divina nem epopéia, a co~~c!ê~cia_nasce do e o uso dos esquemas diagramáticos que é próprio do Clássico da
traço. E o I Ching é a obra por excelência do traço escrito, que nele é mutação, a comparação é antiga 4 e se justifica pelo menos em vários
primitivo. Um primeiro traço, pleno, contínuo _, que nada particu- pontos: um e outro, com efeito, visam a revelar alguma coisa que ul-
lariza ou modifica, nos liga, por sua pura linearidade, à simplicidade trapassa a capacidade de apreensão de uma linguagem abstrata ou que
inata da Origem; e é somente de sua fissura __ que surge um valor ela não apresenta tão bem; para fazê-lo, recorrem um e outro a uma
diferencial. Mas, como esse valor é o mais geral, não constitui o traço figuração imagética (segundo o próprio Clássico, o Sábio "instaurou
ainda em signo: em si mesmos, traço pleno e traço partido não cifram as figuras hexagramáticas" para "exprimir completamente o sentido");
nenhuma Mensagem, mas bastam para reproduzir, apenas pela sua um e outro, finalmente, estão organizados em seqüências. Surgem me-
relação de oposição/correlação, a polaridade que atua em todo o real; lhor, a partir desse quadro comum, os diversos pontos de oposição
e, por seus diversos modos de interversão no interior da figura, per- entre ambos, e estes se ligam entre si de modo suficientemente mani-
mitem vislumbrar sua transformação contínua. festo para autorizar uma clivagem contínua. Proporei esquematizar do
Por isso a série de figuras compostas desses dois tipos de traço, e seguinte modo sua linha de fratura: enquanto o mito coloca em cena
sobre a qual se assenta o livro, pôde representar, aos olhos dos chine- um drama, coma história, o diagrama do I Ching representa uma evo-
ses, uma escritura ao mesmo tempo mais original e mais-fundamen.,. luçã? (por transformação); enquanto o primeiro apela para "actantes"
tal, mais simples também, em ligação direta com o dinamismo das (atores), o segundo faz intervir fatores constitutivos (yin/yang, traço
coisas e fazendo a transição entre o jogo das linhas, em constante re- pleno ou partido); enquanto o primeiro é, mais correntemente, expli-
novação, que nos oferece o espetáculo do mundo, e aquele, fixo e cativo e remete a uma causa (cf. a função etiológica do mito), o se-
codificado, que é próprio da linguagem humana: graças a esse traço gundo é indicativo de uma tendência; enquanto, finalmente, o primeiro
elementar - porque ainda não se deixou articular na particularidade é inventivo e dá uma função à ficção, o segundo representa um papel
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pectivas, a natureza intrínseca do real - ao mesmo tempo sua coe- 5° lugares; ora, essa dualidade de centros não poderia levar a uma
rência unitária e sua constante renovação. Pois o dispositivo deve apelar "divergência" que colocará em perigo sua unidade?
a vários sistemas de determinação para ver ressurgir, no encontro de Realmente, começa por responder WFZ (reportemo-nos para essa
seus diferentes planos, o indeterminado. Dito de outro modo, é só análise ao Waizhuan, pp. 1064-1065), o fato de o hexagrama não
através de uma superposição das grades de interpretação que se po- possuir um centro faz parte de seu caráter de paridade (representado
derá captar a lógica das evoluções em curso: na medida mesma em que pelos dois trigramas); e o de possuir aO mesmo tempo dois centros faz
são novas, elas escapam a toda codificação unívoca e já dada; e ape- parte de seu caráter de imparidade (representado por cada uma de suas
nas o jogo que resulta dessa superposição de grades respeita o caráter metades compostas de três posições). Ora, essa explicação, que é for-
improvisador da imanência. mai, remete a uma justificação filosófica importante de ser considera-
As posições que constituem o hexagrama reproduzem, além do da para se captar a originalidade dessa estrutura. Primeiro, se não existe
mais, a mesma relação equilibrada do par e do ímpar que considera- um centro próprio do hexagrama, é porque, por um lado, no estágio
mos anteriormente: os lugares 1,3 e 5, que são ímpares, são, portan- da unidade natural e, portanto, indiferenciada das coisas (que prece-
to, lugares yang; e os lugares 2, 4 e 6, que são pares, são, portanto, de a atualização fenomenal), "não há nada que não seja centro"lf'); é
lugares yin. Disso resulta um critério de adequação que intervirá na porque, por outro lado, desde que acontece a "cisão" diferenciadora,
apreciação de cada um dos traços (yao) que ocupam essas posições: o cada atualização particular segue sua lógica própria e "não se vê mais
traço está normalmente em seu lugar se é yang num lugar yang, ou yin o centro"(g'). O Clássico se fundamenta, então, na paridade para realçar
num lugar yin; em caso contrário, é inadequado. Mas, ao mesmo tempo o que WFZ se apraz em chamar de "sutileza de uma ausência de cen-
em que são "determinadas", essas posições são fatores de movimen- tro": ou (num estágio original) "tudo é centro" e não se poderia ins-
to. O hexagrama não poderá representar a evolução em curso, como taurar um centro particular, ou (no estágio posterior da evolução) "tu-
é de sua vocação, se não possuir em si um princípio dinâmico e se sua do é caminho" e não existe um centrO determinado.
estrutura não for funcional. Por isso, as duas posições centrais do Justifiquemos agora a coexistência dos dois centros fundada na
hexagrama constituem, aos olhos de WFZ (pp. 507-508), o pivô da imparidade: ao passo que um único centro tenderia a imobilizar o
figura: o terceiro lugar é aquele em que se produz o "avanço", ao passo processo, o fato de existirem dois centros basta para criar as condi-
que o quarto é aquele em que se produz o "recuo". A partir dessa al- ções de uma variação por alternância que, só ela, torna possível a
ternância, que concorda com o grande ritmo das coisas, o 2° e o 5° continuidade da mutação Ih') . Pode-se ir mais longe nesse sentido: ape-
lugares correspondem ao momento de equilíbrio da evolução (porque nas a coexistência de dois centros permite um verdadeiro equilíbrio.
ocupam o centro dos dois trigramas do alto e do baixo; por isso sua Com efeito, se existir apenas um centro, "atamo-nos" a ele, ele nos
posição é freqüentemente a mais favorável); ao mesmo tempo em que detém numa posição determinada e nos encontramos, por conseguin-
esses dois lugares estão subordinados entre si: o 5° lugar, por cima, te, fora de prumo com relação à renovação do curso das coisas (a re-
será a posição "soberana" da figura. Finalmente, nas duas pontas do flexão vem do Mencius, VII, A, §26). O paradoxo é apenas aparen-
hexagrama, a 1a e a 6 a posições encarnam os estágios extremos do te: não podendo se adaptar ao caráter constantemente cambiante das
processo: o "crescimento" que começa no baixo da figura e a "disso- circunstâncias, esse juste milieu imóvel nos leva infalivelmente ao seu
lução" que opera no seu cimo (1 :1). reverso, a "parcialidade". Ao contrário, a verdadeira central idade
O hexagrama consegue, assim, ao mesmo tempo ser estável e estar consjste em evoluir de um centro para o outro, e por conseguinte, em
em evolução. Uma questão se coloca, entretanto, com relação a isso, poder ir tanto num sentido como no outro, em saber manifestar tan-
que torna possível duvidar dessa coerência. O hexagrama não possui to uma determinada atitude como a atitude oposta, em função daquilo
posição central (entre os 3° e 4° traços); ora, essa ausência de centro que cada ocasião exige: em poder experimentar tanto uma "alegria"
não poderia levar à "dispersão", de que nascerá a desordem? Ao mesmo transbordante como uma profunda "tristeza", em poder dar mostras
tempo o hexagrama possui dois centros, nos dois trigramas, os 2° e tanto de uma generosa "clemência" como de uma implacável "seve-
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42 François jullien Figuras da Imanência
latente; eles se demarcam um ao outro, mas se infletem também nico. Pois é próprio do Clássico, justamente, e de seu bom uso, for-
mutuamente. mar nosso espírito para a complexidade, sempre movente, das situa-
Existem outros princípios que, colaborando entre si, nos guia- ções; por isso, devemos ficar atentos à sutileza das "adequações".
rão na leitura dos hexagramas; eles não poderiam, entretanto, por isso
mesmo, ser considerados como regras fixas. Como lembra uma fór-
mula do "Grande comentário" (B, §8), ao mesmo tempo em que o v - Do BOM USO DO CLAsSICO
Clássico "não está longe" de nós, quer dizer, se presta a um uso cor-
rente e nos convida a refletir sobre nossa conduta, o "caminho" que Uma mesma preocupação rege, com efeito, todo o manejo do livro
o Clássico segue está "em freqüente evolução". O que significa, segundo _ em função dessa alternativa: a da "adequação" ou da inadequa-
WFZ (pp. 604-606), que o Clássico não visa a nos propor uma ordem ção(o') que se manifesta a propósito de cada um dos traços em rela-
regular, determinada de uma vez por todas: pois, "embora exista uma ção, ao mesmo tempo, ao momento em que ele aparece e à posição
ordem de conjunto, não existe ordem concreta(m')". E, nisto, o Clás- que ocupa. "Quer o traço de baixo esteja apto a receber [ou a "her-
sico se conforma perfeitamente à realidade: se existe uma ordem ge- dar"] daquele que está em cima", resume WFZ (p. 612); "e quer o de
ral que conduz, no caso das estações do ano, do calor ao frio ou do cima esteja apto a se apoiar sobre o de baixo [de "subir" nele]lp'l; quer
frio ao calor, ou, a propósito da vida dos seres, da juventude à velhi- os traços similares, na proximidade, se sustentem mutuamente [rela-
ce, não seria possível, em compensação, fixar uma data precisa para ção de tipo fu} e quer os traços opostoS se correspondam à distância
cada estágio da evolução e esta não é constantemente progressiva. (Não [relação de tipo ying): existe, nesse momento, adequação em cada um
se vêem, efetivamente, seres, pergunta WFZ, que conhecem um "en- dos pontos; dessa adequação decorre o caráter favorável [da figura e
fraquecimento repentino" em sua juventude ou, ao contrário, um "ga- da situação}, ao passo que o caso contrário é nefasto". Com efeito, à
nho de vitalidade" em sua velhice?) Por isso todas as classificações parte os dois primeiros hexagramas, um completamente yang e o ou-
rigorosas a que se pode chegar, a partir da série de hexagramas, se tro completamente yin (mas veremos que eles não evocam uma situa-
revelaram vãs, seu efeito de ordem é ilusório: quer se tratasse da de ção particular e não devem, portanto, ser colocados no mesmo pla-
um Jing Fang (sob os Han), que classificava os hexagramas por ordem no), todos os hexagramas são compostos, ao mesmo tempo, de yin e
progressiva, a partir de baixo (Qian, n" 1, ; depois Gou, n° 44, __ ; de yang: é, por conseguinte, da simples "mistura", sempre diferente,
depois Dun, nO 33, == etc.), ou a de um Shao Yong (sob os Song), que desses dois fatores constitutivos, "indo" e "vindo" através das seis
classificava as figuras, ao contrário, por modificação progressiva a posições do hexagrama (do mesmo modo que eles não cessam de evo-
partir do alto (Qian - , depois Dui =, depois Li ~, etc.). Não me- luir para formar a realidade), que resulta o caráter adequado (ou ina-
nos que o real, o hexagrama não poderia se constituir em "norma" dequado) de cada figura e de cada traço.
estereotipada(n'J. Trata-se de um modelo, mas é um modelo aberto e, Surge assim uma diferença essencial- da qual não podemos noS
como tal, disponível para acolher a inovação sem fim das coisas, a esquivar. A relação de adequação que procuramos aqui, para estabe-
renovação da vida. Eis porque se deveria evitar codificá-lo muito e lecer nossa conduta em harmonia com o curso do mundo, e não uma
guardar a maleabilidade das regras de interpretação: habitualmente, verdade, cria um fosso radical, de uma cultura a outra - não tantO
é o quinto traço que é o traço "soberano", mas às vezes, observa-nos de representações, ou de tentativas, quanto de sua motivação - , cuja
WFZ, ele não o é; habitualmente, também, "estar em seu lugar" é "cor- extensão me parece importante avaliar. Não nos esqueçamos, efetiva-
reto" (por exemplo, um traço yang num lugar yang), mas às vezes não mente, de que o pensamento chinês mais fundamental, aquele que se
é esse o caso; comumente, ainda, ocupar o centro (do trigrama) é "fas- atribui como missão tanto "remontar" ao ponto de partida do real
to", mas às vezes é diferente; habitualmente, enfim, a relação de par- como "ir até o fim" da modificação das coisas, não cessou de voltar a
ceria à distância (de tipo ying) é "favorável", mas às vezes não ... Quem esse Clássico para nele buscar sua inspiração. Ora, quando interroga-
estuda o Clássico não poderia recorrer a essas regras de modo mecâ- mos hoje o pensamento chinês para julgar sua pretensão de "fazer
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François Jullien Figuras da Imanência
parte" da filosofia, nós o submetemos instintivamente à questão da do do processo, se identifica, portanto, segundo WFZ (pp. 530, 535),
"verdade"2. Por isso devemos nos perguntar: o pensamento chinês (tal com o "bem". E porque nós mesmos não podemos extrair nossa ori-
como está fundado no Clássico da mutação) não nos obriga a consi- gem de mais nada senão desse grande processo (do mesmo modo que
derar uma exploração do real que não se coloca em termos de verda- todos os existentes), o que é revelado "fasto" pelo Clássico coincide
de (a noção em si mesma jamais é marcada como tal no livro)? E não também com nossa "natureza"(r'). O objetivo do Clássico não é ou-
deveríamos forjar um termo mais amplo (porque esse pareceu muito tro, definitivamente, aos olhos de WFZ (p. 524), senão o de nos aju-
exclusivamente ocidental) que trate, por exemplo, de modos diferen- dar a "cultivar" essa "natureza essencial" que está em nós respeitan-
tes de inteligibilidade (a "chinesa", a "ocidental", cada uma em ação do sua ancoragem no real, de que provém nossa aptidão à moralida-
com seus meios próprios e sem que uma deva necessariamente se en- de. Todas as suas indicações práticas, com efeito, do gênero "remor-
quadrar com a outra e se submeter a seus critérios)? so" ou "inquietude", visam a nos fazer tomar consciência da delica-
Algumas constatações pelo menos se impõem. Por um lado, o da linha de clivagem que separa continuamente o que vai no bom sen-
cuidado de "adequação" que o pensamento do Clássico divulga não tido (o do "Caminho", o Tao, segundo a denominação tradicional), e
se limita à esfera das atividades práticas, não podendo, portanto, se por isso coopera com o real, e aquilo que se afasta dele (cf. noção de
deixar reduzir por nós à pura empiria, mas foi elaborado em visão do jie Is'); cf. p. 42 e 517): demarcação eminentemente sutil, porque apre-
mundo e possui uma dimensão global e especulativa. Em seguida, se endida em seu estágio inicial (e eis por que se tem necessidade de todo
a concepção ocidental da verdade repousa igualmente numa relação o dispositivo do Clássico para a apreender), mas que nos permite rea-
de adequação, trata-se sempre de uma adequação relativamente está- gir com tanta maior facilidade, por fazê-lo mais cedo e assim voltar à
vel (seja entre o espírito conhecedor e o objeto a conhecer; ou dentro nossa natureza e nos emendarmos. (Porque, nesse estágio, a separa-
do próprio espírito, como lógica; ou dentro do próprio objeto, como ção fica apenas esboçada e ainda não é marcante.)
ciência), e não de uma adequação em face daquilo que, por princípio, Mas esse uso, que é essencialmente moral, pode ser pervertido:
é constantemente cambiante, daquilo que é a contingência mesma, e WFZ denuncia com veemência todos aqueles que recorrem ao Clássi-
se revela através de uma manipulação (a tiragem - e não apenas por co com um objetivo interessado, quer dizer, que tentam "espiar" o
"contemplação"). Finalmente, se o pensamento ocidental se preocu- grande jogo do yin e do yang, tal como ele aí se manifesta, com vistas
pa também, e mesmo correntemente, com a adequação de nossa con- a atingir seus fins egoístas (cf. pp. 514, 538, 570). O Clássico, nesse
duta em sua relação com o mundo, ele não o faz, observemos, senão sentido, deveria ser distinguido de todos os manuais posteriores de
a título de conseqüência (nesse domínio, sempre segundo, que é a mo- adivinhação com os quais se tentou confundi-lo (Yilin, Huozhulin etc.;
ral), isto é, extraindo daí o benefício da verdade que "fundou" num cf. pp. 517, 538), porque estes visam a dar contas da complexidade
outro plano (que, comumente, é metafísico). das situações, e de sua evolução, sem se preocuparem nem com sua
Mas com o que esse "clássico" da mutação nos coloca em ade- "adaptação" (ao conjunto) nem com os "princípios normativos" que
quação? A resposta nos vem, por um termo ou por outro, em todas os regem: quer dizer, definitivamente, sem os integrar numa lógica
as páginas do comentário: com a marcha das coisas, o grande proces- global que levasse em consideração o interesse da realidade inteira (o
so do mundo. Ele nos conecta com a eficácia que é própria ao mun- ponto de vista do "Céu", do "caminho"). Somos aqui convidados, por
do, colocando-nos em fase com seu desenvolvimento. "Aquilo para que isso mesmo, a opor "chance" e "destino,l(r'). Enquanto que o resulta-
o Céu vem em ajuda", diz-nos o "Grande comentário" (A, § 12), é ~'o do contabilizado por esses manuais de adivinhação (do mesmo modo
fato de nos conformarmos". É decretado "fasto", efetivamente, tudo que por um mau uso do Clássico) seria tentar revelar a relação secre-
o que desposa a "lógica" inerente à renovação sem fim do real; é jul- ta entre o yin e o yang para daí tirar fraudulentamente partido e "fa-
gado "nefasto"(q') aquilo que se "opõe" a ela. No pensamento do zer fortuna", o verdadeiro objetivo do Clássico é ajudar a cumprir nossa
Clássico, nada transcende o horizonte desenhado por esse grande pro- vocação: não procurarmos evitar uma condição aparentemente menos
cesso das coisas; o que é "fasto", quer dizer, aquilo que vai no senti- invejável (lembremo-nos de que todas as posições, no hexagrama, são
igualmente justificadas), mas assumirmos a situação em que estamos, tribuição do Oriente para a filosofia" e partisse então à procura das "relações la-
terais" (que as diversas culturas mantêm entre si) com vistas a "abrir o conceito"
por difícil que seja, fazendo-a concordar com a perspectiva de conjunto
que o Ocidente inventou mas no qual talvez esteja encerrado, Merleau-Ponty não
da realidade e sua exigência de regulação. chega, entretanto, a conceber o trabalho explorador do pensamento, em face do
Seria cômodo estabelecer, nessas bases, a responsabilidade do real, fora desse imperativo único da verdade (ver a esse respeito as páginas tão bri-
homem. Porque, "se o caminho do homem está misturado, em seu lhantes, mas também decepcionantes, consagradas em Signes ao "Oriente e à filo-
fundamento, à realidade do mundo ('Céu e rerra')", diz-nos WFZ (p. sofia", pp. 167 ss).
612), "o uso que é feito do yin e do yang repousa no homem", "tanto Pois reconhecer que os "orientais" (indianos e chineses confundidos na mes-
ma palavra) teriam "compreendido" a verdade de modo diferente de nós (não como
no bom quanto no mau sentido": "também o que é nefasto provém
"o horizonte de uma série indefinida de pesquisas", mas como um "tesouro" es-
sempre de uma infração do homem, do mesmo modo que o que é fasto parso, "indiviso", "sincrético" ... ) os mantém, entretanto, numa dependência de
provém de um seu sucesso" ("perda" ou "obtenção"(u')). "O Sábio princípio, ficando implícito, em face desse objetivo comum que seria a "verdade"
compôs o Clássico", e "o homem de bem o consulta", de modo a ser (quer ela seja filosófica ou religiosa, impondo-se a todos não por seu conteúdo,
capaz de "bem utilizar o yinlyang" "para conduzir a seu completo mas enquanto exigência) e fora do qual a atividade especulativa do pensamento
não teria mais ponto de referência, se decomporia. Disso resulta, para Merleau-
desenvolvimento os assuntos humanos e participar do grande proces-
Ponty, essa posição abrupta e que se mostra, apesar de todas as generosas tentati-
so do real". E WFZ conclui: "não é que exista no Céu uma determi- vas de "abertura", definitiva: "o Ocidente (em sentido amplo) continua sendo um
nação do fasto e do nefasto à qual o homem não teria acesso". Com sistema de referência: foi ele que inventou os meios teóricos e práticos de uma
efeito, "se se acede à lógica inerente à realidade, concorda-se com o tomada de consciência", "que abriu o caminho da verdade" ...
Céu" (porque este não é nada mais do que essa coerência em ação; cf.
WFZ, p. 516). Apoiando-se nesse conformismo estóico, o pensador
chinês está "ansioso" em corresponder o mais "finamente" à razão das
coisas, mas está livre, de antemão, de toda angústia, porque sabe que,
no fundo, o "proveito" e a "eqüidade" se harmonizam e que não existe
felicidade ou infelicidade "que não tenha sido procurada". O desíg-
nio do livro, e de seu dispositivo, não é outro, definitivamente, senão
o de nos ajudar a descobrir, em todas as ocasiões, como opera essa
conciliação indefectível do real e do bem.
NOTAS
Existe algo de particularmente profundo, parece-me, nessa assi- do real e de fazê-lo atingir seu pleno desabrochamento. Da dimensão
milação de nosso sentimento moral à faculdade de "começar". Com transindividual desse processo, de que resulta o caráter de continuum
o risco de primeiramente nos surpreender, essa identificação esclare- da existência, o comentário canônico dá conta a partir dos motivos
ce o que pode ser, no homem, a fonte da moralidade (como fonte viva, das "nuvens" e da "chuva", e ao modo de um "fluxo" ininterrupto:
que jorra dele). Como a moralidade não poderia proceder, aos olhos
dos chineses, de uma ordem transcendente (que emanasse de Deus, da As nuvens passam a chuva se derrama:
J
Torá), ela também não dependeria, por princípio, de obrigações e o fluxo dos diversos existentes não cessa de se atuali-
exigências, de função puramente utilitária, que decorrem da vida em zar.
sociedade. Bem longe de ser imposta ao homem, ou de remeter a uma
justificação que lhe seja exterior, e de consistir em obrigações, a mo- Essa gestação contínua de que decorre a evolução em curso, diz-
ralidade corresponde simplesmente à aptidão de iniciativa, e de "cria- nos WFZ (p. 52), nada a manifesta melhor do que as nuvens; essa
tividade", de nossa consciência: à aptidão desta última de continuar difusão benéfica que se derrama sobre a terra e faz prosperar todos
a progredir em seu curso, não cessando de se expandir e dar vida. O os seres, nada a ilustra melhor do que a chuva. Passemos agora desses
fato de a consciência assim se valorizar por sua "iniciativa", ou ain- fenômenos físicos, que são sua expressão sensível, àquilo que essa ca-
da, o de sua virtude ser constantemente "iniciadora", não significa que pacidade constitui, em seu princípio invisível: ela é essa corrente ou
ela procure impor seu querer ao real (veremos que a sabedoria, ao esse "fluxo" que não cessa de atravessar as individuações e as renova
contrário, é saber desposar o curso do real e se conformar a ele); mas, segundo o próprio gênero delas (cf. sentido de Pin lsl ); graças a ela, a
antes, que, abrindo-se à virtude incitadora do real (isto é, que não cessa existência não cessa de "se atualizar" e é constantemente promovida.
de desdobrar a realidade) e permanecendo "em vigília"lol, ela chega a Os dois últimos termos dessa formulação de base se corroboram
se situar sempre a montante com relação ao desenvolvimento do cur- um ao outro, explicitando o alcance dos dois primeiros. Pois essas
so das coisas; e que, desde então, coincidindo com a emergência dos quatro noções, diz-nos WFZ (p. 44), remetem todas a uma "mesma
fenômenos, ela evolui livremente em relação a eles em vez de sofrer lógica". A noção de "proveito" (li(t)) evoca a eficácia que resulta des-
passivamente, a jusante, seu peso. Sua "criatividade" apóia-se, por- sa capacidade de iniciativa e de progressão, e conclui com a vantagem
tanto, no fato de que suas disposições interiores(p) (depois, sob sua que daí decorre para todos os existentes: bem longe, portanto, de sig-
influência, as de outrem) não param, do mesmo modo que os fenô- nificar um benefício particular e egoísta (que corresponde apenas ao
menos do mundo, de se "transformar" e se renovar(q) - em vez de se interesse individual), ela realça a positividade de conjunto desse pro-
congelarem. Por isso o mal não está inscrito no ponto de partida de cesso em que o desdobramento da energia yang se realiza para todos
nOSsa natureza, mas corresponde apenas à privação dessa faculdade e "sem se economizar". A última dessas noções, finalmente, a de "in-
de impulso (desse ir para a frente): quando nossa consciência, em vez tegridade" (jogando com os dois sentidos desse termo: zhen 1ul ), denota
de se desdobrar, se fecha, se deixa arrastar pelas realidades do exte- a "retidão" ao mesmo tempo em que a constância e a "solidez"(v): no
rior e se avassalar por elas (sob a pressão dos desejos) ou se deixa mundo, diz-nos WFZ, "só o que não é direito (correto) não está apto
condicionar pelo hábito e se esclerosa, e renuncia a sua livre e genero- a ser conservado"; e é porque o Céu não se desvia jamais da retidão
sa progressão; quando, em vez de animar o mundo, ela se torna iner- de seu curso (e, antes, do dos astros e das estações) que ele está apto a
te, não mais em expansão, e renuncia à sua criatividade. pross~gUlr sempre seu curso.
O segundo termo dessa enumeração (hengl'l) deve ser compre- O principal esforço de demonstração que WFZ fornece a partir
endido no prolongamento direto do anterior e significa a progressão daí é provar que "proveito" e "integridade" estão em pé de igualdade
e o desdobramento. Ele evoca, à imagem da energia que se expande e que essas duas noções se implicam mutuamente. Como o proveito
no interior dos alimentos e os faz cozinhar (p. 44), o poder que essa que resulta do exercício dessa capacidade de iniciativa corresponde
capacidàde de iniciativa possui de se propagar cada vez mais através sempre ao "quinhão de cada um" e porque ele respeita assim o inte-
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François Jullien Figuras da Imanência 61
te), "o homem de bem", diz-nos a fórmula canônica, "até o fim do do no céu: é proveitoso ver o grande homem". Como analisa elegan-
dia avança e avança ainda mais" continuando a manifestar sua capa- temente WFZ (p. 48), o motivo do "vôo" não exprime aqui apenas
cidade de iniciativa e de criatividade; "quando anoitece" "ele está vi- uma acentuação do dinamismo e da progressão que caracterizam as
gilante": a situação é "perigosa", mas ele "não comete nenhum erro". etapas anteriores (do dragão enterrado do primeiro traço ao dragão
Esse terceiro traço, porque nele culmina o trigrama inferior, já está sob saltando do quarto), pois esse estágio da completude é também aquele
o signo da completude (de uma maneira que prefigura o sexto); de onde em que a virtude yang, acumulada pacientemente traço a traço, se
o motivo repetido do "anoitecer" e do "fim do dia". Como, por ou- transforma de repente em perfeita satisfação: o motivo do vôo signi-
tro lado, a característica ordinária do terceiro traço é simbolizar o fica também que, graças a todos os esforços precedentes, a marcha
avanço (com relação ao quarto, que simboliza o recuo), cabe-lhe mais para a frente é de agora em diante uma evolução livre e sem esforço,
particularmente exprimir o caráter duradouro dessa marcha processiva. que a perseverança se transformou em espontaneidade. "Ninguém no
Mas, a perseverar assim (para além da completa manifestação da ca- mundo se dá conta de onde isso provém" e pessoalmente não se es-
pacidade que o segundo traço figurava), corre-se fatalmente o risco de perava chegar a esse resultado necessário; mas, "porque jamais se re-
"avançar" longe demais; daí o "perigo" que nos ameaça e a "vigilân- nunciou a ir em frente e a progredir", "um dia isso vem sozinho". Essa
cia" de que se necessita. É apenas na medida em que se está conscien- fórmula, que exprime do melhor modo a passagem do aprendizado
te da dificuldade da situação, em que não se precipita, portanto, mui- à mestria (a propósito das artes, por exemplo, música ou caligrafia:
to audaciosamente em direção ao resultado esperado (esse apogeu que quando a assiduidade da prática se transforma numa espantosa faci-
o quinto traço simboliza e do qual se fica separado pelo quarto), que lidade), serviu para caracterizar, na China, o acesso à sabedoria: esse
se pode evitar o "erro": a lição a tirar é a de que é preciso aliar a pru- estágio é aquele em que a aplicação à virtude e a concentração no es-
dência à perseverança. forço foram tão intensas e tão contínuas que elas desembocam por si
O traço seguinte pode ser compreendido no prolongamento do mesmas em seu inverso (a facilidade e a espontaneidade), e o Sábio é
terceiro traço (sempre num plano mais propriamente humano). Como, aquele que segue de agora em diante seu caminho tão naturalmente
por sua posição intermediária, ele está ao mesmo tempo em cima do como o faz o Céu (quem não se lembra de Confúcio no termo de seu
trigrama inferior e na base do trigrama superior, ele está encarregado itinerário: "seguindo meu desejo jamais transgredi a regra"). Esse es-
de ilustrar a variabilidade da situação em que está engajada nossa con- tágio é também aquele do poder político em seu ápice (o quinto tra-
duta, entre "alto" e "baixo". Eis por que WFZ compreende a fórmu- ço é, não nos esqueçamos, o do soberano): quando, graças à virtude
la canônica que o comenta como uma alternativa: "ou pular (ou) mer- que pacientemente acumulou em si, o soberano não mais necessita
gulhar: nada de erro". O "salto" está na lógica do avanço que prece- exercer uma pressão para se ver obedecido; quando seu poder se im-
de e anuncia o "vôo" que segue (no quinto traço), o "mergulho" (no põe por si mesmo - suscitando o assentimento dos outros - graças
fundo das águas) concorda com a posição de recuo que caracteriza o à sua ascendência.
quarto traço (trata-se, além disso, de uma posição yin). Mas, porque Esse quinto traço é, portanto, aquele em que a capacidade che-
a capacidade em ação é sempre a de uma iniciativa criadora e perse- ga a se transcender: a transcendência, na China, não é projetada de
verante, esse salto em altura não traduz, esclarece WFZ, uma "agita- uma só vez num ser exterior ao mundo, mas corresponde ao estágio
ção febril", nem o mergulho, "uma retirada medrosa". Por isso, se bem supremo, e por isso mesmo qualitativamente diferente, do desenrolar
que se oponham, essas duas atitudes são igualmente "sem erro": ao dos processos. Esse estágio da transcendência é aquele em que a ca-
se conformar à diferença das ocasiões, e sob a condição de dever pas- pacidade em ação é exercida em sua integralidade (ela é integral para
sar de um extremo a outro, o homem pode não cessar de progredir. o Céu, ela se torna integral para o Sábio), em que a retidão do curso
Quando, finalmente, o nível humano, em sua elevação, atinge o (o do Céu, da conduta) é desposada sponte sua, em que o "funciona-
céu, eis então a posição soberana, a do Filho do Céu, que o quinto menta", finalmente, é natural (e o objetivo do aprendizado não é mais,
traço encarna. Esse estágio do apogeu tem por divisa: "Dragão voan- então, elevar-se acima da natureza, ou transformá-la, mas, ao contrá-
(shang, com relação a yi(h')), ela corresponde à metade inferior do corpo sim completamente", os seis traços yang (de Qian) "permaneciam na
e, além disso, está habitualmente encoberta por diversos enfeites: ela sombra sem desaparecer" (não esqueçamos que essas duas primeiras
não só evoca, com relação à "roupa", uma posição inferior (como a figuras, Qian e Kun, puro yang e puro yin, foram "estabelecidas jun-
da Terra diante do Céu), mas também, porque se dissimula ao olhar, tas" e são inseparáveis na realidade): "quando urna dessas duas capa-
simboliza uma virtude que guarda em si mesma sua "irradiação" e sua cidades, chegando a seu apogeu, se esgota, a outra, que estava escon-
beleza (cf. traço 3), em vez de procurar mostrá-las e se prevalecer de- dida, surge de novo"; "daí se seguem combate e ferimentos". O san-
las (cf. ainda esse mesmo terceiro traço, ao qual não se procura atri- gue que corre então é o da luta inevitável que coloca por um momen-
buir os méritos do empreendimento). Essa reserva ilustra certamente, to face a face aquilo que está fadado a desaparecer, mas tarda em ce-
de um ponto de vista ideológico, a virtude atribuída ao yin e à Terra der o lugar, e as forças da renovação.
(à esposa, aos súditos), cuja vocação é "seguir" na sombra - em vez Ora, não o escondamos de nós mesmos: ao mesmo tempo em que
de se colocar à frente. Mas ela possui também um sentido filosófico é inelutável, essa renovação é dramática, conduz ao afrontamento ..
que o comentário simbólico desse traçai;') indica laconicamente (cf. Assim é que toda uma tradição de comentários se recusou a uma lei-
sobre esse mesmo tema o último parágrafo do Zhongyong): o "bri- tura antagonista desse traço, mesmo com o risco de forçar a letra do
lho" da personalidade do Sábio (wen) está relacionado ao "equilíbrio" texto: esse "combate" não seria mais um verdadeiro combate, mas um
que ele sabe manter em seu foro interior (zhong); e, igualmente, o que "acasalamento", e a "planície" simbolizaria a Terra sobre a qual o
"decora" e enriquece sua personalidade (wen), o Sábio não o expõe dragão yang viria se deitar; a partir daí o "sangue" misturado, e não
aos olhares, mas o guarda no fundo de si mesmo (zhong): por isso, mais vertido, se torna o fruto dessa relação (o "preto" remete ao Céu,
porque sabe permanecer insípido e discreto, a plenitude da capacida- o "amarelo", à Terra), ele exprime a vitalidade que procede da gesta-
de que ele acumula em si "sevê de por si". Eis porque o caráter "fasto" ção dessas duas energias e está apto a gerar todos os seres. Eis, então,
desse traço não é o de uma felicidade que se "procurou", mas "intrín- que o motivo do sangrento combate se transforma em seu contrário,
seca" à posição. o de uma união procriadora. Essas duas leituras, diametralmente opos-
A virtude do yin, nesse estágio, é completa e não pode apresen- tas, remetem claramente a duas visões ideológicas contraditórias. Uma,
tar crescimento: seu único futuro possível, para além da plenitude desse que é de inspiração Han (e defendida recentemente ainda por Shang
traço, é o de seu esgotamento, que provoca, por compensação, um Binghe 3 ), leva a uma concepção lenificante do desenrolar dos proces-
retorno em força do yang. WFZ interpreta, então, o sexto traço, com sos, notadamente do curso da História, e tenta riscar toda irrupção
o qual a figura se completa, segundo a mesma lógica da "passagem da violência (como se as dinastias se sucedessem sem problemas nem
ao extremo", chamando uma transformação, que se veria realçada a ruptura e a transmissão da autoridade se operasse de boa vontade):
propósito do último traço yang (o sexto da primeira figura). A divisa essa é a ideologia do poder imperial, na China, que procura fundar
é: "Dragão combatendo na planície: o sangue é preto e amarelo". Esse sua legitimidade na continuidade do mandato e no reino da harmo-
"dragão" é com certeza aquele do "puro yang" que sai de seu "enter- nia. A outra reconhece, ao contrário, no desenrolar da História, mo-
ramento" (cf. o primeiro traço de Qian) e ganha a superfície; e a "pla- mentos de conflito que justamente esse sexto traço simboliza: lem-
nície" em que se desenrola o combate evocaria, segundo WFZ, "o bremo-nos de que WFZ (do mesmo modo que, bem antes dele, Wang
exterior do hexagrama", quer dizer, acho, aquilo que se passa para Bi, no séc. I1I) vive uma época de grandes comoções em que a legiti-
além mesmo do desenvolvimento da figura. Poder-se-ia dizer: nos seus midade imperial é vivamente atacada e a própria China é invadida.
bastidores. Lá onde é representado, à parte, entre duas cenas (aquelas Mas o mérito da interpretação de WFZ não é tanto o de afirmar
que os dois primeiros hexagramas ilustram), o episódio secreto da re- o caráter inelutável da crise como o de conseguir integrá-la no desen-
novação. Como, diz-nos WFZ, o desdobramento do yin chegou ao seu rolar legítimo do processo: sob seus ares de catástrofe, que tanto nos
termo, "é necessário" que o yang faça uma nova progressão para o afetam, essa crise prepara secretamente uma "nova ordem a advir".
substituir.. "Enquanto os seis traços yin de Kun se manifestavam as- Certamente, os primeiros que, nos grandes redemoinhos da História,
fundam" na totalidade do processo da realidade, estendem-se até seu tam às "capacidades" que simbolizam ou à sua simples realidade física.
"limite extremo": por isso "aquele que estuda o Clássico" (num sen- 2 A mais corrente repousa na posição respectiva dos oito trigramas segundo
tido de formação moral) "imita o que ele pode utilizar" dessas figu- o esquema do "Céu posterior" do rei Wen: o Oeste e o Sul correspondem aos
ras, mas "não pode ir até o fim de sua dimensão". Assim, os traços trigramas yin, do mesmo gênero de Kun, de que resulta nesses lugares um acúmu-
lo do yin; o Leste e o Narre, aos trigramas yang, de que resulta para Kun, ao diri-
segundo e quinto evocam, em sua generalidade, o equilíbrio da regu-
gir-se a esse lado, a "perda" de seus "associados"; uma outra interpretação, que
lação; os traços terceiro e quarto, que correspondem mais particular- compreende esse motivo em relação ao começo e ao fim do mês lunar (a lua é yin,
mente à posição do homem, esclarecem até que ponto se estende essa como o sol é yang), tem o mérito de permitir uma leitura unitária dos diversos traços
função de "harmonização" no nível humano. O primeiro traço, em do hexagrama; mas resta saber se essa coerência temática por encadeamento de
compensação, representa o que está "escondido" sob o solo, o sexto, fases é desejável no caso de Kun e não reduz desvantajosamente sua diferença tí-
o que "plana no horizonte"; e é impossível para o homem "estender" pica com Qian; cf. infra.
sua ação a tais níveis. 3 Cf. Zhouyi Shang shi xue, Pequim, Zhonghua shuju, 1980, pp. 37 e 41.
Eis por que o Clássico trata deles em termos de curso das coisas:
"ocuItamento" ou "bloqueio" (os traços 1° e 6° de Qian), "cristaliza-
ção" ou "conflito" (os traços 1° e 6° de Kun). No caso de Qian, en-
tretanto, esclarece WFZ, o homem pode ainda, mesmo nesses estágios
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86 François Jullien Figuras da Imanência
~.
Aquele em quem o terceiro traço assim "confia" é certamente o segundo ele esteja, e, a "tomá-lo pela mão"(i), prefere a disponibilidade genero-
traço yang, que está bem a seu lado no mesmo trigrama; ao passo que sa ao recolhimento friorento e não teme condescender? O que se veri-
a "nutrição" remete simbolicamente à função do yin (que simboliza a fica de um ponto de vista mais propriamente político: o bom soberano
mãe, a Terra, os camponeses) no outro trigrama (o yang asseguran- é aquele cujo modo de se "apoiar nos sábios" não acarreta "afastar-se
do, por seu turno, a função retora: pai, Céu e soberano). A promessa do resto do mundo"(j); pois sabe fazer seus os interesses materiais mais
de felicidade está, então, no "acordo à distância"(h) (aqui com o sex- humildes, em vez de desdenhar deles, e "enriquece seus desejos com sua
to traço), ao passo que esse terceiro traço marca precisamente a fron- moralidade". Que se reflita realmente sobre isso: é só na medida em que
teira entre as duas partes da figura. Ou, como expressa o comentário não deixa de levar em consideração o "exterior" (seja qual for seu valor)
simbólico, ele é o traço de "horizonte" entre o céu e a terra. Ora, ima- e de integrar a diferença (mais do que se comprazer num colóquio com
ginemos o horizonte; ele nos dará uma imagem justa do que deve ser seus iguais) que o homem político pode renovar sua capacidade de dirigir,
a relação com outro: O céu e a terra aí se encontram, até mesmo se permanecendo "eqüitativamente" aberto e, por isso mesmo, pode "con-
penetram, do modo mais íntimo, diz-nos WFZ (p. 145); e, entretan- servar a prosperidade(k)".
to, sem se confundirem o mínimo que seja. Pois encontro (e comuni- Vejamos agora como essa lógica da relação com o outro é vivi-
cação) não é "mistura": cada um preserva sua identidade ao mesmo da pelo parceiro, do lado yin; e, para tanto, passemos ao trigrama
tempo em que entra em contato com o outro. Senão, a polaridade superior, franqueando o "horizonte" do terceiro traço: o quarto tra-
desapareceria e, com ela, aquilo a que está ligado todo o real. ço evoca essa elevação começando pela imagem de um "vôo"; ao mes-
Desconfiemos, entretanto, daquilo que poderia não ser mais que mo tempo, confirma, de seu próprio ponto de vista, o do yin, o desejo
uma generalização abusiva: se a polaridade é necessária na ordem dos de um acordo à distância: ele não conseguiria "enriquecer-se com seus
fenômenos naturais, como entre o "céu" e a "terra", o mesmo se dá próprios vizinhos" (que são os dois outros traços yin) e, se voa e se
forçosamente de um ponto de vista moral e político? Sabemos, com efei- distancia, é contra sua vontade (porque, diz-nos WFZ p. 146, é "se-
to, que será apenas depois da relação de substituição, operando num guir o yang", concordando embaixo com o primeiro traço aquilo a que
sentido favorável, sobre a qual repousa esse hexagrama, que, do mes- ele aspira "no fundo de seu coração", e não a ir para a frente, como o
mo modo que o yang prevalece por princípio sobre o yin, o "homem leva o movimento ascensional de todo hexagrama). Finalmente, esse
de bem" deve triunfar sobre o "homem sem valia". Não seria, então, tema do acordo entre parceiros de natureza oposta culmina no moti-
legítimo ficarmos entre nós, conscientes de nosso valor, e não nos for- vo do "casamento", no quinto traço (que é, como se sabe, o traço do
çarmos a ir ao encontro de pessoas que se sabe de antemão serem infe- apogeu). O caso dessa união que consagra a plenitude da interação em
riores a nós? Não, responde WFZ (pp. 144-145), desdobrando mais am- ação só pode concernir, já se viu por quê, à família do soberano. Res-
plamente o sentido existencial da figura. Pois por um lado, quando se ta ver bem que, segundo a lógica implicada pela figura, é o segundo
fica entre pessoas que se assemelham, esse grupo, por mais bem inten- traço yang que, subindo, vem concertar-se com esse quinto traço yin
cionado que seja, será fatalmente levado a se transformar em clã, em _ o que é contrário ao uso estabelecido em que é a jovem filha que se
bando, de que nascem rivalidades e tensões fatais ao conjunto (essa dirige à família do marido: eis por que, esclarece WFZ, a união evo-
tensão que nasce da rivalidade é exatamente o contrário da tensão ani- cada é projetada em tempos mais antigos (da dinastia dos Shang), an-
madora que decorre da polaridade). Como sublinha WFZ, as maiores teriores à fixação do ritual. O importante, em todo caso, é que esse
infelicidades da China nasceram amiúde ao mesmo tempo que essas "cas<;lmento" se cumpra entre os dois traços centrais da figura que
"súcias", que se tornaram intolerantes e sectárias. Mais essencial ain- encarnam a "retidão". Por isso se diz que esse traço é "fundamental-
da: essa relação satisfeita do mesmo para com o mesmo não é apenas mente fasto" e corresponde ao cúmulo da felicidade.
nociva em seus efeitos sociais, ela contradiz também o desabrochar da Cúmulo, apogeu: chegamos ao estágio extremo. Não esqueçamos
personalidade. O verdadeiro homem de bem não é, efetivamente, aquele que, do mesmo modo que todos os outros hexagramas, este é uma
que tende sempre a ir ao encontro do outro, por mais "distante" que figura em evolução. Não seria possível, portanto, imobilizar esse mo-
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François Juilien
menta, perpetuar essa felicidade - como uma eterna primavera: mes- declínio, em cuja base estão os três traços yin, e portanto também no
mo a estabilidade é transitória, e a progressão chama consigo o declí- "interior", e representam de agora em diante a força ascendente.
nio. Por isso, ao mesmo tempo em que insiste sobre a importância da Assim, esse simples fato de que, no caso de Tai, os signos anun-
relação de comunicação e de troca entre os pólos, de que decorre a ciadores do declínio nos surjam antes mesmo que a progressão tenha
prosperidade, esse comentário nos previne da necessária "derrocada" atingido seu apogeu, nos demonstra do modo mais claro que, ao mesmo
dessa prosperidade e de sua substituição. tempo em que elas se opõem diametralmente uma à outra e se suce-
Pois o declínio não é apenas aquilo que segue a progressão, ele dem ao se substituírem, as fases de progressão e declínio mantêm en-
já está misturado a ela. Por isso, é desde o terceiro traço, antes mes- tre si uma ligação interna que assegura sua continuidade. Eis por que
mo que inicie o segundo tempo da figura, que nos é anunciado que elas não cessam de se encadear e por que o processo pode se desenro-
"não existe terreno plano que não seja seguido de uma escarpa", nem lar sem cesura. A lição a tirar desses dois hexagramas pode ser, além
"ida que não seja seguida de um retorno": ainda não chegamos ao pico disso, mais geral: contrariamente à lógica que nos vem de Aristóteles,
da prosperidade (atingido somente no quinto traço), mas já aparecem os contrários, na China, não se excluem. Do mesmo modo que a pro-
os primeiros sintomas da queda a advir. Essa queda se manifesta aber- gressão e o declínio, eles nascem um do outro e se convertem entre si.
tamente no término da figura, no sexto traço ("respondendo" como
deve, por acordo à distância, ao terceiro traço que o prefigurava no
término do primeiro trigrama). A imagem, nesse intervalo de tempo, III - ESTATUTO DO NEGATIVO
tornou-se fortemente sombria e consagra esse afundamento: passa-se
da simples alternância do relevo, que dá ritmo à paisagem, à visão, Como é o simples inverso de Tai (os três traços yin estão embai-
radical, de um desmoronamento: "a muralha volta ao fosso". E a con- xo e os três traços yang estão em cima), a figura do declínio, Pi ==,
fiança na situação se reduz igualmente. Quando no terceiro traço nos nos é apresentada, primeiramente, de um modo sistemático, como seu
diziam ainda que "se se mantém firme", "não haverá falta", no sexto estrito oposto. Em seu caso, é o "grande" que "vai" e o "pequeno"
a margem de manobra foi reduzida, até mesmo tornada nula: enquanto que "vem". Não existindo mais "cruzamento" e interação entre o Céu
era "fasto" no início da figura (no primeiro traço) "partir em expedi- e a Terra, cada um se retirando em sua esfera, a existência não "se co-
ção", somos convidados, nesse último traço, a "não nos servirmos de munica" mais no interior de si mesma e se estio la; e, do mesmo modo,
nossos grupos"; contentemo-nos em "advertir" os nossos próximos a porque não há mais cruzamento entre "alto" e "baixo", o mundo social
se prepararem face à infelicidade iminente; e, se ainda for o caso de se se desagrega. As duas figuras se revelam, portanto, uma à outra por
"manter firme", essa constância não acontece "sem remorso". contraste, diz-nos WFZ (p. 149), colocando face a face as cenas da
Resta compreender, de um ponto de vista filosófico, que neces- "ordem" e da "desordem".
sidade nos faz passar assim da progressão ao declínio. WFZ trata dis- Mas de onde vem essa desordem? O termo que serve para desig-
so em termos de "tendência lógica", que pretende mostrar que se de- nar essa segunda figura, Pi, significa "obstruir". Segundo o modo pelp
senvolve sponte sua(l). Segundo ele, o terreno "plano", e portanto fá- qual WFZ compreende a fórmula inicial do texto, "aquele que obs-
cil, do terceiro traço, representa o yang; a "escarpa" que é sua conti- trui" é o "homem sem valia(m)", o que significa que, se não existe
nuação simboliza o perigo do yin. Não o yin que é representado pelos "cruzamento", e portanto coesão, na sociedade, não é porque o ho-
três traços superiores desse hexagrama, porque sabemos desde o co- mem de bem seria muito "elevado" para se deixar aproximar, mas
meço que estes "se vão" e serão progressivamente evacuados; mas o porque o homem de nada faz um bloqueio e "rompe" por sua conta
yin que, justo quando eliminado no alto dessa figura, a da progres- "com o Céu". Até aqui, portanto, tudo é simples: é esse homem sem
são, vai necessariamente reaparecer no baixo da figura seguinte (por- valia que é culpado e a responsabilidade humana fica confortada. Mas
que também não pode desaparecer da realidade, da qual é um dos o texto canônico continua: "isso não é benéfico para a integridade do
pólos): chegamos necessariamente à figura seguinte, Pi ==, que é a do homem de bem". Surge então a dúvida: será, então, que, com a che-
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90 François Jullien Figuras da Imanência
gada da desordem, a solidariedade estabelecida no início entre "pro- Por isso, percebida de fora, e por sondagem, a posição chinesa
veito" e "integridade(n)" (cf. as duas últimas das quatro qualidades poderia, creio, ser resumida da seguinte maneira. Primeiramente, os
atribuídas ao primeiro hexagrama, Qian), ou seja, no fundo, entre fe- chineses valorizam demais a analogia estabelecida no início entre os
licidade e virtude, seria repentinamente rompida? O processo do real fenômenos naturais e o mundo humano (cf. aqui entre o Céu e a Ter-
não seria mais confiável? E, indiretamente: será preciso esperar um ra, por um lado, o "alto" e o "baixo" da sociedade, de outro) para
outro mundo para ver essas duas exigências se reconciliarem? poder descer em profundidade na compreensão do mal, encarado sob
O ponto é, percebe-se, tão importante que nos leva a fazer um um ângulo propriamente moral. Os chineses pararam no caminho da
recuo maior, por um instante; creio também que uma das questões mais tentação ou da fascinação que o mal exerce, e também de sua ambi-
delicadas que a reflexão dos chineses nos coloca é precisamente aque- güidade. Poder-se-ia perguntar, então: de onde nos sai esse "homem
la do estatuto que atribuem à "negatividade". Pois a partir do momento sem valia" cuja evocação inicia aqui o texto canônico (se não for re-
em que decidimos não mais ler os textos do pensamento chinês a par- duzido a uma pura designação sociológica)? Por outro lado, os chine-
tir apenas de sua óptica (a tradição servindo apenas, como se sabe, para ses valorizam também demais a coesão do real e do bem confirman-
secretar uma falsa evidência), mas interrogar a seu respeito (portan- do-se no nível mesmO da experiência, aquela que o grande Processo
to, para nós, usando o privilégio de um ponto de vista comparatista), do mundo desdobra e que o Clássico da mutação justifica tão preci-
somos então levados a considerar não só o que esses textos dizem, mas samente, para poder durante muito tempo dar conta da situação de
também o que eles não dizem, não só os aspectos que abordam, mas injustiça em que está o homem de bem que, a despeito de sua razão,
também aqueles que não abordam - de que estão inconscientes, ou se vê maltratado. Após muito escutar esse grito de angústia e de re-
que negligenciam, ou que querem ignorar - , não podemos deixar de volta do justo oprimido, aquele que não cessou de ecoar através dos
ficar impressionados, creio eu, pela importância, em relação a esse tempos no Ocidente (da derrelicção de Jó à profissão do Vigário rous-
ponto, do deslocamento. Uma posição, como se sabe, não é compre- seauniano), poderia ser grande a tentação de apelar para a Transcen-
endida apenas do interior, deve ser encarada também de fora; e a di- dência (com toda a sua aparelhagem adequada: imortalidade da alma,
vergência das concepções, como aqui a propósito da "negatividade", retribuição divina e paraíso). E de abandonar, por conseguinte, a ló-
não se reduz a uma diferença de conteúdo, é assunto de perspectiva e gica de pura imanência que se funda na auto-regulação do Processo.
depende do modo pelo qual a questão é colocada já no seu ponto de Será muito mais interessante, nessas condições, considerar como
partida. Por isso, tudo o que resiste, quando se tenta enquadrar essas o comentário canônico e, em seguida, o de WFZ vão tentar reduzir a
duas posições, a chinesa e a "nossa" (esse nós remetendo aqui global- diferença surgida aqui, no início, entre proveito e integridade. Primeiro,
mente ao ponto de vista judaico-cristão, ultrapassando enormemente esclarece WFZ (p. 148), o fato de que "isso não seja proveitoso à in-
a simples pertinência religiosa), nos faz sondar por reação seu rebai- tegridade do homem de bem" não significa nem que "isso beneficia a
xamento respectivo. Aparece não só aquilo que cada um desses dois não-integridade do homem sem valia" nem que "o homem de bem
pensamentos assume, mas também aquilo que ele não assume. Não poderia, renunciando à sua retidão (sua integridade mora!), tirar pro-
só o que ele esclarece, mas também seus ângulos mortos e seus pon- veito dela". O que quer dizer que, se a integridade pode ser sem pro-
tos cegos: até onde ele vai num certo sentido e onde ele pára, as difi- veito, a recíproca não seria verdadeira e não poderia haver proveito
culdades que transpõe e quando é levado a negociar, os obstáculos que sem integridade. Eis, então, a coesão dos dois termos restabelecida pela
o fazem desviar e os ajustamentos que procede pacientemente em se- metade (pelo menos, no plano dos princípios). Por outro lado, o co-
guida - os caminhos, enfim, que ele não trilha ao mesmo tem po que mentário simbólico considera que, nO caso de Pi, o homem de bem
as lógicas que ele explora ... Em suma, as escolhas que faz, sem se dar "restringe" a manifestação de sua própria "capacidade" e que ele "não
conta, do mesmo modo que as coerências que o sustentam. Isto é, efe- pode conhecer a glória de grandes emolumentos". Não é, então, a
tivamente, todo o proveito (de inte1igibilidade) que encontra (nessas capacidade em si mesma, enquanto poder de "obtenção", que está em
1ü
escolhas, ém suas coerências) e também, claro, o preço a pagar. questão (cf. a interpretação tradicional de de por seu homônimo )),
92 François Jullien 93
Figuras da Imanência
mas apenas a oportunidade que o homem tem, ou não tem, de a des- último hexagrama, como a adversidade à qual se é confrontado é le-
dobrar (e é com vistas a determinar essa oportunidade, a única ques- vada por si mesma a se apagar. O exemplo invocado é, no segundo
tão que fica em suspenso, que o Clássico da mutação, precisamente, traço, o do vassalo que guarda em si mesmo seu "brilho" (cf. o trigrama
deve ser consultado). O conselho assim dado é que, no caso de Pi, agora ao mesmo tempo inferior e interior: Li, a luz), sempre continuando a
que são os fatores negativos que prevalecem, é melhor não fazer exi- servir seu tenebroso soberano ("conformando-se" a ele com a flexibi-
bição de sua capacidade, pelo receio de chocar muito abertamente lidade que é a virtude do trigrama superior, Kun, a Terra). Aos olhos
aqueles que estão agora no poder e atrair aborrecimentos para si: o dos chineses, não só é absurdo desafiar o poder, mas também é imo-
mais sábio não é "economizar" na espera de dias melhores, quer di- ral- mesmo que esse poder seja injusto - se revoltar (porque isso é
zer, contando com o retorno - previsível- dos fatores positivos que colocar em questão o princípio hierárquico que serve de fundamento
permitirão intervir de novo e triunfar2 ? Eis, então, que, graças a esse para a ordem das coisas): o Sábio espera, portanto, simplesmente que
rodeio estratégico, o princípio de base continua quase intacto: a ca- os efeitos negativos dessa tirania sejam suficientemente manifestados
pacidade interior, desde que se exerça, é sempre eficaz; os "emolu- para que a ascendência detida pelo mau soberano seja esgotada e que
mentos", diz-nos WFZ (p. 149), estão em pé de igualdade com seu a autoridade caiba então a ele sponte sua, graças ao crédito adquiri-
desdobramento, ela é sempre recompensada de maneira objetiva. Che- do junto aos outros por seu mérito. O exemplo é, no quinto traço, o
gar-se-ia, portanto, à seguinte conclusão: o Mundo não contradiz a do Sábio que vela intencionalmente sua claridade, até simulando a
virtude; e seria inútil procurar imaginar para ela, poder-se-ia continuar, loucura, para se colocar ao abrigo da ferocidade do príncipe, mas nem
um "além" qualquer. por isso preserva menos sua retidão interior. Como nos diz WFZ (p.
Poder-se-á observar ainda mais precisamente como o Clássico da 306), o "obscurecimento" a que dão lugar os maus reinos não pode-
mutação pretende dissipar todo conflito que opõe "proveito" e "inte- ria tocar a personalidade do Sábio (do mesmo modo que o obscu-
gridade" , felicidade e virtude, e, assim, integrar a negatividade na ló- recimento do dia, quando chega a noite, não coloca em causa o bri-
gica reguladora de seu sistema, reportando-nos a um outro par de lho do sol): é só que essa fonte de luz é velada (cf. na figura os três
hexagramas concebido sobre esse modelo, os do Progresso e do Obs- traços yin da terra acumulados no alto e fazendo barreira) e que a
curecimento da luz (nOs 35 e 36). Essas duas figuras são também o influência benéfica do Sábio não pode mais se expandir sobre outrem.
simples inverso uma da outra e sua única modificação, com relação Ora, ao passo que esses exemplos ocupam os dois traços centrais do
ao par Tai-Pi, é a substituição do trigrama do Céu (face à Terra) pelo hexagrama e lhe servem assim de estrutura, o caso do mau soberano
da luz e do sol (trigrama Li =). A primeira dessas figuras (jin ~~) só é evocado no sexto traço (para além, então, de sua posição legíti-
representa o sol que "se ergue sobre a terra" e simboliza o avanço na ma, a quinta): na margem extrema da figura e prestes a ser evacuado.
carreira (num nível inferior ao de Tai: o ponto de vista adotado é o É apenas em seu caso, diz-nos o texto canônico, que as trevas estão
do grande vassalo); a divisa é: "O poderoso marquês se vê gratificado completas; por isso, "depois de ter subido ao céu, ele mergulha na
com grande número de cavalos; num único dia, foi recebido três ve- terra" , e seu reino desmorona: o mundo humano está então pronto, a
zes em audiência". A figura seguinte e inversa (Ming yi = =) represen- exemplo dos ciclos naturais, para uma nova aurora.
ta, portanto, logicamente a luz do sol que "se esconde no seio da ter- Se existe um episódio que, tal como foi posto em cena pela tra-
ra" e simboliza, sempre na perspectiva dos nobres da corte, um período dição posterior, marcou profundamente a visão dos chineses, orien-
de grandes infelicidades devidas ao "obscurecimento" da soberania, tando-a, a partir das antigas crenças religiosas, para uma interpreta-
quer dizer, à tirania do príncipe. A divisa é, então, lacônica: "Nas di- ção cosmológica e "reguladora" da realidade, foi aquele que os diversos
ficuldades, é proveitoso manter-se firme". traços dessa figura evocam: o desmoronamento da dinastia dos Shang
A mesma oposição reaparece, portanto, de um par de figuras a e sua substituição pelos Zhou (no séc. XI a.c.). São, com efeito, os
outro, mas ela se apresenta, com essas duas figuras, sob um ângulo representantes da linhagem ascendente, perseverando em sua integri-
mais particular: não será mais cômodo mostrar, a propósito desse dade, que vemos surgir desde os primeiros traços (segundo WFZ, e na
ço continua a mesma: a·despeito desses tempos de obscuridade, o Sá- história, não deixa de dirigir ao I Ching: se os traços de base, pleno ou partido,
bio é imperturbável em seu foro interior; e mesmo que o perigo o devem figurar a oposição da unidade e da dualidade e, assim, dão acesso a uma
significação abstrata, a diversidade dos hexagramas nos faz passar muito "depressa"
ameace ainda, porque não recuperou o poder (malgrado a posição de
"da abstração à matéria". Assim, "começa-se por pensamentos e depois se diva-
soberania que já ocupa por sua ascendência), sua constância o coloca ga" (Geht's in die Berge). Com efeito, "jamais viria ao espírito de um europeu
ao abrigo. Enquanto que a imagem proposta no começo dessas figu- colocar os objetos sensíveis tão perto da abstração": por isso a "universal abstra-
ras é a do tufo de garança ou de junco que se "arranca", a imagem ção dos chineses" "se estende até ao concreto", "mas só a partir da ordem exte-
com que se fecha é a do bosque de amoreiras, profundamente enrai- rior, de modo que nada podemos aí encontrar de sensato".
zadas, ao qual se "prende". O Sábio, cravado ao real por sua capaci- 2 É melhor recolher-se e "fechar a porta" (como o dragão que se enfurna
dade, é indestrutível. para hibernar). Como se pode constatar ainda hoje, o homem político chinês que
Ao último traço, então, cabe fazer o balanço dessa evolução: o está em dificuldades "se economiza", retirando-se para o campo, dizendo-se "doen-
te" etc.
da "inversão{xl" do negativo. "Primeiro a obstrução, depois a alegria",
indica a fórmula canônica. Nesse estágio, conclui WFZ (pp. 152-153),
o yang está empoleirado alto demais na figura para ainda sujeitar-se,
por menor que seja a ingerência do yin, e os traços precedentes pre-
pararam suficientemente o terreno para que ele possa manifestar sua
"potência" "atacando". Nessa fase, a obstrução que os três yin prati-
cavam "manifestou-se completamente" e, portanto, "não tem mais
força"; e a "vergonha" ligada ao último desses traços yin a partir de
agora está exposta a todos os olhares. Os homens sem valia esgota-
ram todas as pequenas astúcias pelas quais se mantinham no poder:
sua derrocada é "fácil", tanto a situação se presta a isso, e o "conten-
tamento" , a partir de então, é geral.
Essa inversão do negativo no sexto traço de Pi, o declínio, é,
portanto, o exato inverso do desmoronamento da "muralha" que "re-
torna ao fosso" do último traço de Tai, a prosperidade. Ao mesmo
tempo em que correspondem aos dois momentos opostos do desen-
rolar do processo, esses traços-articulações asseguram por si mesmos
108
François Jullien Figuras da Imanência 109
nos WFZ (p. 283), há um "acordo" das duas partes da figura (como A fórmula introdutória da figura, portanto, deve ser lida, diz-nos
no caso de Tai), "mas sem sentimento de acordo"; ou, ainda, "esse WFZ, de modo condicional (e é nisso que ela está ainda mais sujeita à
acordo se faz a partir das posições estabelecidas", mas "não existe sen- caução do que pelo hexagrama anterior, cf. p. 276): é só quando existe
timento que contribua para essa união". O distinguo introduzido é, "progressão" que a duração pode ser dita "sem falta"; e é só quando
então, entre "sentimento" e "posição", quer dizer, compreendamos, ela chega a manter "proveito e integridade" que há "interesse", em
entre investimento subjetivo (afetivo) e relação objetiva (estrutural). seu caso, de "ir em frente". Se, a propósito de Xian, a incitação, a
Pelo efeito esclerosante da duração, os dois passam a não mais coin- "facilidade em reagir" pode comprometer a "integridade" (a consciên-
cidir: o que faz que, para retomar os termos de WFZ, o acordo que cia sendo então sacudida ao capricho das estimulações que recebe), no
existia em Tai entre os dois parceiros da figura, e do qual resultava a caso de Heng, a duração, a "dificuldade em evoluir" arrisca compro-
prosperidade, fica então esvaziado de seu "sentimento" e só se man- meter o "proveito" (aquele, do conjunto, do processo, que resulta de
tém no nível das "posições" . Basta, com efeito, considerar a figura para sua interação dinâmica). Mas isso não significa, observa WFZ, que "o
se perceber que, seguindo cada um sua lógica (para o yin a de "des- caminho da dissolução de Pi (a estagnação que resulta do declínio) não
cer", para o yang a de "subir"), cada um dos parceiros desse hexagrama esteja na incitação estimuladora", nem que "o caminho da conserva-
(que é derivado de Tai, a prosperidade, cujo sentido é, recordemos, o ção de Tai (a prosperidade a que leva a progressão) não exija a dura-
"cruzamento" e a "comunicação") começa a voltar à situação inver- ção". Mas, do mesmo modo que, no caso de Xian, a incitação, tudo
sa, a de Pi, o "declínio", cuja característica é que cada um se des- depende do que está sujeito à incitação/reação, no caso de Heng, a du-
solidarize e se retire (o Céu em sua altura, a Terra em sua baixura). É ração, tudo depende do que está sujeito à continuação. Se é a capaci-
assim que, no estado da duração conservadora, diz-nos WFZ, cada um dade inesgotável do grande processo do Céu e da Terra que está em
dos componentes "se apóia em si" e não tem mais "cuidado" com o causa, ou se é o caminho ideal do Sábio que se considera, sabe-se que
outro. Eis que se perdeu (com relação a Tai) essa dimensão generosa, agora toda incitação desdobra de si mesma sua positividade e que a
imparcial e serena, do grande processo do Céu e da Terra; também duração conduz sempre à renovação. Eis por que o texto canônico se
foram perdidas essa circunspecção em face de si e essa disponibilida- apresenta a partir daqui sob a forma de um díptico: primeiro, o co-
de em face de outrem que faziam a grandeza do Sábio. Não nos enga- mentário do julgamento celebra igualmente, a partir do exemplo tan-
nemos: a verdadeira "firmeza" da alma e sua capacidade de não se dei- to da natureza como do do Sábio, o que deve ser a duração; depois, o
xar "abalar" (a araraxia celebrada pelo Mencius) nascem apenas do comentário dos traços nos coloca em guarda, por sua vez, contra as
fato de que a consciência sabe penetrar a grande diversidade das opi- diversas maneiras errôneas de procurar atingi-lo.
niões e abraça por completo a realidade, e não de uma indiferença para Pois pode-se começar a interpretar a figura num sentido favorá-
com o mundo e de um recuo sobre si: é só, então, mantendo essa aber- vel e ela significará então a constante progressão. Ela se deixa ler, nesse
tura, que a "duração" pode ser "entretanto" fonte de "progressão" e caso, como uma acentuação do acordo (com relação a Tai) e não, ao
que ela preserva seu dinamismo - em vez de levar à submersão. Se- contrário, como sua esclerose: o yin, comenta WFZ (p. 284), penetra
não ela se torna negativamente conservadora: nesse caso, cada um dos no yang (no 1° traço) para se unir a ele, e o yang, por sua vez, "sai e
parceiros, diz-nos WFZ, "continua em relação com o outro, mas não sobe" (ao 4° lugar) para "colocar em movimento" seu parceiro. O que
está mais voltado para ele(m),,; ou, ainda, segundo os termos anterio- permite, assim, a duração é que essa é a "ordem constante" inerente
res, o acordo (de onde--nasce a progressão) existe somente no nível das à natureza e que cada um dos fatores segue seu caminho legítimo. Mas
"posições" ocupadas, não mais no nível dos "sentimentos" experimen- o que significa, nesse caso, a "duração"? Simplesmente que, como se
tados. Quer dizer que ele se congela, se cristaliza. A coesão (estrutu- constata a propósito da natureza, o processo em curso "não tem fim".
ral) se mantém ainda, mas não há mais tensão (interior) de um para o E o que é que lhe permite jamais se interromper? É que, como teste-
outro; e essa coesão que "endurece" não é mais "efetiva"(n) (cf. WFZ, munha a alternância cíclica dos astrOS ou das estações, sempre citada
p.275). como exemplo, esse curso não cessa de se renovar: eis, então, que é a
va WFZ (p. 504), não deve levar o yang a se deixar arrebatar pelo yin cônica de WFZ pareceria contradizer, além disso, essa crítica da pseudo-comple-
tude (mas talvez porque a reflexão ainda não estava desenvolvida; cf. p. 275).
e se "contaminar" por ele (contaminação tanto mais fácil quanto a
situação é então a da maior mistura). Pois ressurge então logicamente
o risco de engolimento para o qual o yin conduz quando segue sua
própria inclinação: o perigo de "bater a cabeça" (na água), com que
terminava a figura anterior, continua, então, neste último traço, ain-
da atual.
Esse último traço, na última figura, fecha assim o livro com um
quadro ambíguo: alegria da compreensão cordial (entre fatores opos-
tos) - ameaça de transbordamento. O que equivale a dizer que o li-
vro não se fecha, mas' que termina numa suspensão. O porvir perma-
nece aberto: do centro da desordem uma nova solidariedade é posta
em jogo, mas é conveniente continuar prudente.
Essa suspensão com que o livro se interrompe também é uma
suspensão teórica. WFZ nos levou a notar (cf. p. 500) que, no caso
dessas duas últimas figuras e contrariamente àquilo que pudemos cons-
capítulos anteriores e que gostaria de justificar aqui, de modo mais Única saída, portanto, ou única esquiva: explorar os confins dessa lín-
geral, para que possa servir de noção. A regulação, diz-nos o dicioná- gua, apoiar-se não em suas linhas de força, mas em suas linhas de
rio, designa "o processo pelo qual um mecanismo ou um organismo tangência e fazer trabalhar no centro um certo sentido habitualmente
se mantém num certo equilíbrio, conserva um regime determinado ou mais marginal ou particular. Explorando nossa língua até seu limite,
modifica seu funcionamento de maneira a se adaptar às circunstân- fazendo o sentido servir obliquamente, podemos esperar reduzir pro-
cesso, o invisível e o concreto, são considerados como parte integran- tura no seio do real. O gesto inicial da metafísica é, como se sabe, cindir
te da mesma realidade. dentro da continuidade das coisas: como condição prévia ao advento
Como não atribuir uma importância decisiva a essa interdepen- da ontologia, uma "linha" é "cortada em dois" (gramme dicha tet-
dência que nos é mostrada entre o aspecto atualizado do real e, por meméne: voltamos sempre a esse texto fundador: República VI 509d),
outro lado, o "caminho" que conduz a essa atualização e que lhe per- separando assim o visível e o inteligível, os orata dos noeta. Ora, vi-
mite exercer sua função como deve, já que é ela que torna possível que mos como WFZ insiste, ao contrário, em seu comentário da fórmula
nós apreendamos o caminho através do instrumental e que apreenda- canônica, na impossibilidade de toda dissociação: o a montante invi-
mos o visível através do invisível? Só a experiência do concreto, diz- sível do Caminho só é concebível na dependência da atualização feno-
nos com efeito WFZ seguindo a exegese da fórmula (p. 569), nos co- mênica, e estou sempre apto, a partir do concreto, a remontar a seu
loca diretamente em relação com a dupla dimensão, ao mesmo tem- fundamento legítimo, à fonte de sua eficácia.
po anterior e interior, do caminho da regulação. Pois, ao considerar o
aspecto "específico" que caracteriza cada atualização, posso apreen-
der a lógica de modificação/continuação que leva a seu advento: as-
sim é "possível", "através do concreto", "perceber" o caminho{m'); do
mesmo modo, ao tirar "proveito" de cada atualização segundo o "uso"
que ela desdobra, posso apreender a lógica que lhe é inerente: nesse
caso, é "possível" "no contato com o concreto" "encontrar" o ca-
minho{n'). Dito de outro modo, basta que um carro me sirva para trans-
portar, ou que um recipiente me sirva para conter, para que eu expe-
rimente logo a dimensão invisível do processo do real, que é também
sua função normativa, o "caminho" da imanência, o "Tao". Como
poderia, então, existir, nessas condições, conclui WFZ, um "mistério"
do invisível?
Toda "forma" é uma atualização do invisível, todo concreto é
uma concreção mais ou menos durável do invisível (que dele procede
e está destinada a se reabsorver novamente nele): quer me proponha
justificar a existência atual desse concreto ou, simplesmente, faça uso
dele; quer contemple o processo do real através dessa ou daquela de
suas lógicas particulares, quer vá ativamente ao seu "encontro" por
minha conduta, o sensível me dá diretamente acesso ao invisível, o "a
jusante" da atualização me esclarece seu "a montante". Para dar conta
da totalidade do real, para remontar até seu fundo oculto, a visão que
o pensamento chinês tem do processo e a que o Clássico da mutação
dá forma não precisa de nenhuma Revelação religiosa em que o divi-
no se entregue por sua Palavra, de nenhuma aparição maravilhosa em
que o mistério consinta em se desvelar. O caminho da imanência se
aclara por si mesmo, apenas pela experiência, e sem ter necessidade
de uma mediação. Ele não só nos dispensa de todo recurso à exterio-
ridade de um absoluto divino, mas faz ainda a economia de toda rup-
as ciências humanas desdobram, tende a se impor por toda parte, de ção decorre a duração"; cf. por exemplo a conclusão do capítulo "Modificação/
Continuação" da grande obra de teoria literária dos séculos V-VI, o Wenxin diao-
modo utilitário, no trabalho do pensamento; mas, desde que os qua-
long: "a modificação permite a duração, a continuação permite não faltar!")".
4 Eis por que preferi traduzir a noção de ji pelo termo "estopim" [em fran-
cês, amorce], privilegiando a óptica do movimento e do funcionamento, no senti-
do em que se diz "amorcer une pompe", "amorcer un tournant"; cf. a expressão
canônica: "o estopim é o ínfimo do movimenro'*).
CAPiTULO 1
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w') Yi zhi bu ke wei dian yao -t~;r:. 'f ;f,~.. b') Fang yi iu yu iu wai ,,:t liJó--t iZI ~I·
c') Yi xia kui wo zhi de shi v<" ;li.iI;~ Jl
CAPíTULO 5 d') Zhi zhi yu zhong er xian zhi J, o<.-'t -l' .li> fo1 ""-
a) Bian e tong 'l ' l!.. e') Ge qi ren qing yi du sai zhi -*'1* Á.~""J_#.:t.Ji:....
b) Zhu yang er ke yin .í. 11; .lb.i.ft- f') Yang ,:IJ no senrido de yang yang er zi de .ti; :4J .., 81f
c) Fei wu ke he zhi yi JjI. 4& "f 4- "'-li.: g') Bu qi er hui yue yu, gou zhi xiang ye ;r:..ilI,1i> i"Q;,!. ~ ~ :.....t,..
d) funzi fang chaoran zhuo li yu qi wai ;t ~ -::t~ ~ ... .iL f,$.. tI- h') Caoá ... ,,,-
e) Ming yi bu wang yu ren xin J;.l, Ã~-t: -J .A...~' i') Ben yu gan yang .i.:6it..f-ft
f) You e ming ,!I!., '!li j') Xun yi xiang ru -'-" .·I.:fi >o".
g) fian zhe wei ming er fei hu you l-:t j,o» .lb~~ 1I>:>Ir k') fi shi se er li zai 'r ~ l.. "'~~
h) Yin zhe wei you er fei iing wu i!t-,t j,,!lI. ,~~~-t.~. I') Zhi cheng .t.1Ii(
i) Yong qi guyou zhi li /Il";'1il "'" Ô(..jf m') Fei shi á erren sui dong ~i,,,.lbA.il.-tb
i) Xing qi guran zhi su wei -iT-A IJJ .f:'i "'--t/~ n') Yi yan gan ren, ze yi mo yi '~'1' "'A., "J'li:;f:J::
A..Jt.1't4- o') Xun ru yu ren zhi yin wei ..J.. )o",.~ A..:t..lt ....
k) Fan qi gu iu
l)fi. p') Lin yu yu .$..-t *
m) fi zhi suo bi dong .it '"-"í~1fI
n) Cheng; cf. ti zhi chong shi, suowei cheng ye CAPÍ1ULO 6
~, ,It~ t-t,
~1f~<!!" a) Bing iian J..Il
o) Fu qi jian tiandi zhi xin hu .fi....$.. L ~ ~*-I""". b) Zun :f:
p) Tiandi zhi xin bu yi jian J yu wu xin zhi fu ji jian zhi er c) Yi cheng wu wang zhi zhi de -1Ii41-l- ~ J.-l.t-
.lU~"'-'«Ã-.,t" -f",G~1UULL. d) Li bi ;fi .. com relação a zhi chong ~ f:
q) Tiandi wu xin er cheng hua  j~..f: I~.fp S{...t..
e) Chu yong . . lO
r) Ruo you suo biran er bu rong yi zhe -* I,j "'í",t' ,~: .Iír;r:. ,$"l,;f f) Mozhe, liang xiang xun ye Jt,t, illiAi".t.
s) fing -tt i1,t, ~:I8"*,.c..
r) fi ~ ; cf. qiling iing yingii -A"'"" A--lI\; g) Dang zhe, iiao xiang dong ye
fi Shen ~ - gui Jt cl Qiong ze bian, bian ze tong, tong ze jiu ;fi 'oHl!, ~,t·/ll... li..') Â.
g) Tiandi zhi suoyi zai wanwu zhe, li er yi yi di Bian bu ke jiu ju, ze you shun er tong zhi ~::f. '"f' ~r.. lI·'~".-li> i1-*-
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EPíLOGO
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