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François Jullien
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PARA UMA LEITURA FILOSÓFICA DO I CHING,
O CLÁSSICO DA MUTAÇÃO

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editora '34
coleção TRANS

François Jullien

FIGURASDAIMAN~NCIA
Para uma leitura filosófica do I Ching,
o Clássico da mutação

Tradução
Carlos Alberto da Fonseca

editora.34
EDITORA 34 FIGURAS DA IMANÊNCIA
Para uma leitura filosófica do 1 Ching, o Clássico da mutação
Distribuição pela Códice Comércio Distribuição e Casa Editorial Ltda.
R. Simões Pinto, 120 Te!. (011) 240-8033 São Paulo - SP 04356-100
Prefácio ............................................................................... .. 9
Advertência ........................................................................... . 19

Copyright © Editora 34 Ltda., 1997


1. UM "CLÁSSICO" DA "MUTAÇÃO"
Figures de l'immanence © Éditions Grasset & Fasquelle, Paris, 1993
ou O dispositivo do livro e seu manejo
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA ("G ran de comenta"no " ,passzm
') ............... . 21
APROPRIAÇÃO ll"\DEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. I. Sucessão dos autores, unidade da obra .............................. . 21
lI. O estatuto absoluto do livro ............................................ .. 25
m. O dispositivo em ação .................................................... .. 30
Título original: IV. Estrutura do hexagrama .................................................. . 37
Figures de l'immanence . Pour une lecture philosophique du Yi king, V. Do bom uso do Clássico .................................................. .. 45
le Classique du changement
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: 2. O "INICIADOR" E O "RECEPTIVO"
Bracher & Malta Produção Gráfica ou as duas capacidades atuantes no seio do real
(hexagramas 1 e 2, Qian e Kun) .............. .. 50
Revisão:
I. A relação inicial ................................................................ .. 51
Carla C. C.S. de Mello Moreira
lI. Iniciativa e criatividade ..................................................... . 54
lIl. A progressão do dragão ou as etapas do processo .......... .. 60
IV. O estatuto do parceiro: a aptidão para se conformar ...... . 68
1" Edição - 1997
V. Conduta humana e curso do mundo ................................ . 72
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 3. '''PROGRESSÃO'' - "DECLíNIO"
São Paulo - SP TellFax (011) 816-6777 ou os estágios opostos do processo
(hexagramas 11 e 12, Tai e Pi) ................. 80
I. Passagem ou obstrução ....................................................... 82
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro lI. O tempo da prosperidade .................................................. 86
(Fundação Biblioteca Nacional, R], Brasil) m. Estatuto do negativo ........................................................ 91
IV. A inversão do declínio ...................................................... 96
Jullien, François, 1951·
194f Figuras da imanência: para uma leitura filosófica
do I Ching, o Clássico da mutação I François Jullien ; 4. "INCITAÇÃO" - "CONSERVAÇÃO", "DIMINUIÇÃO"-
tradução.de Carlos Alberto da Fonseca. - São Paulo:
"AUMENTO", "COMPLETUDE" - "INCOMPLETUDE"
Ed.34,1997
256 p. (Coleção TRANS) ou como pensar a transição?
ISBN 85-7326-059-9 (hexagramas 31 e 32, Xian e Heng, 41 e 42, Sun e Yi,
1. I Ching. 2. Filosofia chinesa. L Título. 63 e 64, Jiji e Weiji) .......................... 102
lI. Série: Trans (Ed. 34). I. A incitação estimuladora .................................................... 103
CDD·181.11 lI. A duração conservadora .................................................... 108
m. A diminuição não deve ser temida .................... ................ 114 8. "MODIFICAÇÃO" E "CONTINUAÇÃO",
IV~ Só a diminuição permite a evolução, "ESTOPIM" E "LIMITE SUPREMO"
só a evolução permite a duração ......................................... 117 ou o devir é a única eternidade
V. O caminho do aumento e o desabrochar natural............... 122 ("Grande comentário", A §10-11-12) ............ 219
VI. A "completude" (momentâneo) L O curso das coisas: "modificação" e "continuação" ........... 219
e o deslocamento da tendência ................................ ........... 129 lI. Prever o futuro: o "estopim ínfimo" da mutação ............... 223
VII. A "incompletude" e a suspensão fina!............................. 137 lII. O "limite supremo" do Processo:
a unidade não transcende a dualidade ................................ 229
5. "DESPOJAMENTO" E "RETORNO", IV. "A montante" e "a jusante" da atualização:
"ELIMINAÇÃO" E "INSINUAÇÃO" não existe corte metafísico ................................................. 233
ou a exploração dos limites
(hexagramas 23 e 24, Bo e Pu, 43 e 44, Guai e Gou) .. 144 Epílogo .................... .............................................................. 238
. L Até onde pode ir O "despojamento" (do dispositivo)? ......... 145 Glossário ............................................................................... 245
lI. O advento é um retorno ao estágio patente das coisas ....... 150
lII. É no estágio da emergência
que se revela o coração da realidade .................................. 154
IV. Ir até o fim da eliminação do negativo ............................. 159
V. Pre~enir-se, desde o primeiro encontro,
do risco de insinuação ....................................................... 165

6. "O CÉU ESTÁ NO ALTO, A TERRA ESTÁ EMBAIXO"


ou o dispositivo da realidade
("Grande comentário", A, §1) .................. 171
I. Colocando em seu lugar: "Céu" e "Terra", alto e baixo..... 171
11. A colocação em movimento:
a transformação nasce de uma interação ........................... 175
lII. Saber e realização: o conhecimento "processivo" ............. 178
IV. Facilidade e simplicidade: o caminho da imanência.......... 184

7. "UM YIN - UM YANC", EIS O "TAO"


ou O Caminho da regulação
("Grande comentário", A, §4-5) ................ 189
I. O visível e o invisível .......................................................... 189
lI. Confiança na regulação ........................................... :;........ 194
lII. De onde provém a realidade? ........................................... 199
IV. O bem deve ser concebido
no prolongamento da Regulação natural........................... 203
V. Que consciência temos dos Fundos de imanência? ............ 208
VI. O caminho da regulação está em perpétua inovação ........ 213
PREFÁCIO

I - Dentre todos os livros que as diversas civilizações puderam,


ou sonharam, produzir, o I Ching ou Clássico da mutação (alias "Li-
vro das mudanças" ou das "transformações") bem poderia ser o mais
estranho. Não tanto por causa de sua mensagem quanto, antes de tudo,
pelo modo como foi composto. Pelo fato de esse livro, inicialmente,
não ser um livro e seu primeiro traço não ter sido "escrito", ele nos
coloca o mais longe possível daquilo para que milênios de cultura
livresca nos formaram: ele não se constitui, para começar, de palavras,
mas apenas por meio de duas marcas, as mais simples que existem,
traço contínuo e descontínuo, pleno ou partido, _ e __ ; e é a partir
das diversas combinações às quais se prestam esses dois tipos de tra-
ço, e não pelo enunciado de um discurso, pela formulação de um sen-
tido, que seu texto é tecido. Esse livro, portanto, não foi, para,_come-
çar, escrito em l}enhUIJ1~ língua,";;:e'mpó·ssui sua própriâ-IÍng~~_ (co~~
sé~st[véssé-~os.lida_ndo co~ um ~-Ódigº,_!l~ idi~ma- secreto): em prin~
cípio .~Ql.r~2ÇJ.~_'::.~ nada, nem pensam~~,t9· n~Jr~_q-~er~r,e é ape_n_a~
d"(;Tog-º~..9..~ sl!as figu_r,as" ~e seus ~feitos de oposiçã_()__ e_ de correlação,
de s;as_possibiIid-~des de tran~f~rmação, que nas~~ um sentido. Tam-
bêm q~a;;to"à leitura essa obra ocupa um lugar à parte: não existeJ!t::l.~
uma trama definjrix.a que nos conduza de ponta a ponta, mâsum-modo
~~----"-
° .
de emp}:.~g.o . a_~eguir,um dispositivo a manipuJar;.e próprio roteiro,
e'm fu~ção dessas' óperações, é sempre improvisado.
Eis, então, um "livro" que não visa, como princípio, a comuni-
car um sentido, que é feito apenas de figuras e indicações a serem
observadas, se dá a "consultar" tanto quanto a "ler" e não nos forne~
ce nenhum plano ou ordem estabelecidos. E, entretanto, aquilo que,
d~sse modo, parece tão pouco formar um livro, foi o livro que serviu
de base para toda uma civilização. Tratar-se-ia apenas, em seu caso,
do vestígio de mentalidades arcaicas, "pré-lógicas", muito piedosamen-
te conservado no país da tradição, a China? Ou, ao contrário, de um
sistema extremamente coerente - tão forte que pôde chegar até nós,
e até mesmo se desenvolver?

Figuras da Imanência 9
Tesouro de sabedoria ou enigma? É forçoso constatar que, des- sagram o "ser", o "eterno", a "verdade" ... ), mas também o que lhes
de que começaram a tomar conhecimento desse livro, os ocidentais se serviu ao mesmo tempo de moldura e suporte. O que significa que
dividiram em duas atitudes contrárias. Como despertou desconfian- seremos convidados, em pleno caminho, a reconsiderar, de fora, al-
ça, somos tentados a ver nele apenas um grande bazar de superstições gumas de nossas opiniões preconcebidas mais arraigadas (e que for-
ou fantasias. Embora concordem em reconhecer sua importância, mui- mam como que os hábitos de nosso espírito, no sentido em que se diz
tos especialistas da China o consideram mais como um thesaurus de "adquirir um hábito"): aquelas mesmas a partir das quais foi escri'ta
fórmulas e de imagens, cujo conhecimento é indispensável para a lei- nossa história da filosofia e que não interrogamos, que não sonhamos
tura de outros textos, do que como um livro que mereça ser estudado interrogar, tanto elas se confundem para nós com o próprio advento
por si mesmo e que se consiga interpretar. E então o terreno que eles da Razão.
deixam vazio é invadido pelos gurus: a imaginação se apodera daqui-
lo que o saber abandona e à desconfiança de uns se opõe, em contra- II - Esta introdução ao I Ching será, deixemos claro, uma in-
partida, o entusiasmo de outros. Eis que esses traços, esses números, trodução à sua leitura. Pois, a despeito de sua diferença de constitui-
essas figuras, sem esquecer as moedas e as varetas (destinadas à con- ção, bem como da originalidade de seu manuseio, o I Ching terminou
sulta oracular), servem de chave para muitos mistérios, prestam-se ao por formar um livro. Com isso quero dizer que pretendo reagir con- '
gentil delírio do exotismo. Quanto menos se compreendem as fórmulas tra a opinião preconcebida que consiste em dissociar a combinatória,
do livro, mais elas exercem grande fascinação. E as duas sílabas de seu que é o princípio mesmo da obra, das camadas de texto que sucessi-
título - I Ching (em pinyin: Yijing) - , imersas num vago "Oriente", vamente lhe foram acopladas e consideradas seus comentários. Assim,
assumem valor de talismã. enquanto prestamos toda atenção à primeira, tanto ela se oferece co-
O objetivo deste ensaio é uma chamada para ultrapassar essas modamente às sistematizações mais variadas, somos tentados a inte-
duas atitudes, colocadas uma contra a outra: tentar tirar essa obra da ressar-nos pelas segundas apenas para encontrar nelas uma confirma-
suspeição em que a manteve um certo saber, sem submetê-la, entre- ção do nosso próprio uso, ou então as abandonamos completamente.
tanto, ao fantasma ideológico. Dito de outro modo, trata-se simples- Sobrecarga inútil, ou interferência infeliz. É verdade que o exemplo,
'mente de propor esse livro à nossa reflexão enquanto utensílio. Esse nesse caminho, nos vem de longe. O Padre Joachim Bouvet, que foi
manual, com efeito, se enriqueceu tanto, a partir de sua origem divi- um dos primeiros a apresentar o I Ching ao público europeu, ainda
natória, e tanto fecundou o pensamento chinês durante milênios, que no tempo das missões, explica-se muito claramente numa carta a Leib-
não se pode hesitar em levá-lo a sério. E a questão não é mais saber se niz: a combinatória composta a partir da série de figuras foi obra de
é melhor colocá-lo na estante "sabedoria" ou na de "filosofia" stricto um "gênio extraordinário" e constitui um "método geral das ciências"
sensu, tal como a tradição ocidental concebeu esta última (uma outra que é "muito perfeito", mas ele foi "em seguida corrompido" pelos
maneira de descartar o livro, enaltecendo-o ao mesmo tempo), por- comentários e "quase inteiramente obscurecido no decorrer dos tem-
que um trabalho prévio se impõe, de natureza e alcance incontesta- pos". É também nesses termos que ele justifica qual será sua estratégia:
velmente filosóficos: o de reinterpretar a partir de nossos prÓpriOS]
termos a lógica que esse Clássico põe em funcionamento e, a partir de! E porque todos os comentário, que foram feitos por
um confronto com nossa visão das coisas, fazê-la servir filosoficamente. j cerca de três mil anos sobre esse sistema por grandes ho-
Como nos anuncia seu título, efetivamente, o I Ching se propõe como mens, dos quais Confúcio foi um dos principais, parecem
"clássico" daquilo mesmo que menos pensamos possa ser o objeto de mais próprios antes para confundir e obscurecer seu verda-
um clássico: a saber, da "mutação". Aquilo que muda não é inconsis- deiro sentido do que para desenvolver seu mistério, tendo
tente, ele é mesmo a única realidade, e ela possui sua coerência. Por deixado de lado todos esses comentários e me prendendo
isso, não deixaremos de descobrir nesse livro elementos para sacudir unicamente à figura, eu a considerei em tantos sentidos di-
não só algumas de nossas opções metafísicas mais comuns (que con- ferentes, que, após ter combinado e recombinado o que me

10 François ] ullien Figuras da Imanência 11


pareceu mais sólido nos princípios das ciências chinesas com tivo formal, tal como é aqui o jogo das figuras, e o horizonte das pa-
os princípios mais antigos de nossas ciências, [... ] não du- lavras. Segundo o modo pelo qual os chineses o conceberam, alguma
vido de modo algum que não tenha finalmente descoberto coisa chegou a se revelar no contato desses planos, foi esboçado um
todo o mistério, ou pelo menos um caminho muito seguro sentido que está em ligação direta com o funcionamento do Mundo.
e muito fácil para aí chegar. . .1 Ademais, os pensadores chineses evitarão, a todo custo, desviar-se dessa
ligação inicial da linguagem humana com uma ordem interior às coi-
Nessa "metafísica numerária" que ele descobre através do exa- sas; mas, por um paciente trabalho de elucidação, procurarão daí ex-
me apenas das figuras, o Padre Bouvet não tarda a encontrar alterna- trair uma visão sempre mais coerente, mais explícita, da realidade:
damente o sistema de "'Pitágoras e de Platão", e até os "números do perceberemos uma visão do mundo que, contrariamente àquela que
Sabá" e da "antiga Cabala"; nele vai encontrar até mesmo o sistema poderia ser nossa impressão primeira, não visa a especular sobre o
de numeração binária que seu correspondente, Leibniz, está prestes a mistério, mas antes a integrá-lo, que se funda num exame muito me-
definir ... Também nos nossos dias bastará implantar essa série de fi- ticuloso da "razão" das coisas (o li chinês) e serve de suporte para a
guras num computador para especular comodamente sobre as com- mais "natural" das morais.
binações possíveis, acreditar descobrir nelas algum "símbolo univer-
sal" ("dos princípios mais abstratos de todas as ciências", como fes- III - Esse trabalho de interpretação não poderia terminar com
tejava antecipadamente o Padre Bouvet) e experimentar de novo um os diversos comentários atribuídos a Confúcio, sobre os quais se fe-
fácil maravilhamento. Ou, ao contrário, descobriremos, como já acon- cha, no fim da antigüidade, a obra canônica. De uma época a outra, e
teceu a Hegel, que essa máquina de traços, uma vez montada, não leva durante mais de dois milhares de anos, esse "clássico" foi objeto de
a nenhuma ordem "concreta", porque passa de maneira muito abrupta uma imensa exegese. Em cada época, os chineses não deixaram de
"da abstração à matéria" - e que ela gira no vazio. reexaminar o I Ching em função de suas preocupações particulares e
Minha escolha será decididamente inversa. Considerarei o I Ching de fazer dele o principal instrumento de sua reflexão. Poder-se-ia mes-
a partir daquilo em que a tradição chinesa o tornou. Essa obra que, mo dizer, nesse sentido, que o pensamento chinês se renovou periodi-
tanto por sua origem como por sua disposição interna, é tão diferente camente através de sua leitura do I Ching, ou, melhor ainda, a partir
de todas as outras, tentarei não obstante lê-la como um livro; ou, an- dela: assim com Wang Bi, no século IH de nossa era, ou com os pen-
tes, tentarei lê-la apoiando-me na particularidade mesma de seu dis- sadores "neoconfucianos" que reagiam à influência do budismo, a
positivo. Na prática, isso significa que manterei associados a transfor- partir do século XI e durante os séculos seguintes. Impossível, por
mação das figuras que serve de base ao corpus e o sentido que os glo- conseguinte, procurar ler o Clássico independentemente dessa histó-
sadores delas extraíram. Certamente, as fórmulas que serviram para ria ou, pelo menos, porque seria muito longo encarar essa história em
comentar essas figuras podem nos espantar por seu caráter insólito ou seu conjunto, sem procurar tomar pé nessa evolução; é somente a partir
gratuito; basta folhear a obra para constatar que as imagens evocadas dessa ancoragem que a explicitação do livro, que surge num universo
apelam para os registros mais diversos e dificilmente se organizam em intelectual determinado, terá chances de ser significativa. Coloquemos
redes contínuas: parece, então, ser imenso o fosso existente entre a efetivamente a questão (pois se trata de uma opção que comandará
comodidade de manipulação das figuras e nossa dificuldade em inter- toda a leitura): confronrando-o com interrogações decisivas, porque
pretar o texto. Entretanto, os chineses não cessaram de voltar a esse alilT!entadas por todas as apostas de uma época, percebendo-o igual-
texto, exploraram incansavelmente seus recursos. Pois esse texto, que mente num ambiente nacional que seja ao mesmo tempo o mais pre-
se desenvolveu por camadas sucessivas, talvez tenha sido menos afi- ciso e o mais coerente, não deveríamos estar mais aptos a considerar
xado sobre a combinatória do que implantado nela. E, de todo modo, para quê esse livro pôde efetivamente servir e qual é seu alcance?
subsiste qualquer coisa de indelével, cujo efeito talvez seja até mesmo Esse ponto de apoio cômodo, graças ao qual se vai abordar o
inesgotável, no primeiro encontro que se produziu entre um dispo si- livro, eu o escolhi no século XVII, na obra de Wang Fuzhi (Wang

12 François Jullien Figuras da Imanência 13


Chuanshan, 1619-1692). Além do fato de o ponto de vista próprio a sições; ela chega também a nos fazer passar sem ruptura da exegese
esse autor, sendo relativamente tardio na tradição chinesa, oferecer uma filológica, que justifica a letra do texto, ao debate filosófico - que leva
ampla recapitulação das leituras precedentes, existem pelo menos duas mais longe os desafios. Ao mesma tempo em que é engajada, ou mes-
razões que, da minha parte, justificam essa escolha. A primeira refe- mo apaixonada, porque está em busca de respostas ao drama de seu
re-se ao caráter crucial de que se reveste, aos próprios olhos desse tempo, ela toma o cuidado de voltar aos princípios e operar de modo
pensador, sua interpretação do I Ching. Ele viveu uma das piores épo- racional; ao mesmo tempo em que é aberta e leva em consideração os
cas da história chinesa, quando as facções fazem reinar o terror na corte mais diversos domínios de aplicação, permanece animada pelo cuida-
e vastas revoltas populares abandonam as províncias à pilhagem: Pe- do de chegar a uma inteligibilidade de conjunto. Ela oferece, portan-
quim é tomada, a dinastia desmorona (a dos Ming, em 1644), a Chi- to, essa preciosa vantagem de ser constantemente tomada pela sis-
na é invadida pelos manchus. Ora, em vez de procurar uma saída para tematicidade sem jamais se fechar no conforto de um sistema (sendo
as desordens do mundo, do mesmo modo que um refúgio para sua este último defeito muito freqüentemente o dos intérpretes do I Ching,
perambulação, Wang Fuzhi (doravante chamado WFZ), aderindo à que transformam o dispositivo do livro num mecanismo estereotipa-
fé búdica, como foram tentados a fazê-lo inúmeros de seus contem- do). Por isso o leitor poderá acompanhar como as formulações do texto
porâneos, não cessa de voltar ao I Ching para daí extrair elementos canônico se ligam estreitamente às figuras e fazem sentido com elas;
de coerência que tornem aquele real, tão perturbador à primeira vis- ele descobrirá, durante o trajeto, o que pode ser um pensamento no
ta, diretamente inteligível (isto é, sem ruptura com o curso imediato qual tudo só é considerado a partir de "figuras" (mais do que de con-
dos fenômenos ou dos eventos e com uma passagem para a fé): sob a ceitos) assim como em termos de processo. No final do percurso, fi-
crise que assola o mundo podem ser descobertos os indícios de uma nalmente, ele estará apto a avaliar a capacidade da idéia de transfor-
lógica em ação que nos permite confiar no desenrolar dos aconteci- mação que deve dar conta, sozinha, de todo real 2
mentos. Por isso essa leitura do I Ching está no centro de seu pensa- Disse acima que "me apoiarei" nesse comentário. O que signifi-
mento e é nela que se fundamenta para descobrir a racionalidade dos ca que não devo me contentar em traduzir algumas de suas passagens
processos, sejam eles concernentes à natureza ou à História. A outra e antes que deverei procurar explorar essa obra. Como amiúde os ter-
razão de meu interesse por esse autor diz respeito à exigência teórica mos do pensamento chinês do século XVII só fazem sentido em rela-
que lhe é própria. Já se disse com muita freqüência que os chineses ção a seu próprio contexto nacional, que, como se sabe, se desenvol-
preferiam uma estratégia intuitiva em lugar do raciocínio e que des- veu independentemente do nosso (e repousa em oposições do tipo:
confiavam da lógica. Descobrir-se-á, ao contrário, com WFZ, um pen- "duro" /"mole", yin/yang etc.), tais termos não são diretamente trans-
samento que não só se move com flexibilidade e é espantosamente poníveis para o universo de nossas representações; por isso preciso
audacioso, como também, mais que isso, sabe formular muito preci- começar o trabalho tentando tirar esse comentário da codificação em
samente suas questões e se desenvolve com rigor. que sua própria tradição o encerra diante de nós, para de novo expri-
Apoiando-me, de uma ponta a outra deste estudo, num único mir progressivamente o que nele está em jogo. Como, por outro lado,
comentarista, e mesmo, mais precisamente, no último comentário desse mesmo quando aborda os assuntos mais gerais, o comentário de WFZ
autor (seu Comentário interior, o Neizhuan), eu desejaria propor uma se mantém disperso, segundo a maneira chinesa, na linha das formu-
via de acesso ao I Ching que, a despeito de sua extrema brevidade, lações canônicas, ocorre-me ligar entre si todas essas anotações para
permita ultrapassar esses dois escolhos que constatamos AO início: tanto tentar construir, a partir delas, uma posição de conjunto. Finalmente,
a fascinação fácil (do exotismo) como a rejeição do insólito. Por pro- esse valor agregado (ao comentário chinês) fica acrescido, ainda, do
ceder inteiramente de uma única perspectiva, espero desta apresenta- único reverso dessa situação - pois também esta funciona de modo
ção do Clássico que ganhe em coerência e clareza. Além disso, a in- positivo. Introduzindo o pensamento de WFZ no horizonte do nosso,
terpretação que devemos a WFZ oferece o mérito mais particular de eu os faço reagir. Ei-Ios forçados a pôr em desordem a falsa evidência
ser ao mesmo tempo minuciosa em suas análises e radical em suas po- em que tendem, individualmente, a se fechar. Pois a própria dificul-

14 15
François Jullien Figuras da Imanência
dade que se experimenta ao fazê-los convergir não esclarece apenas de um idioma, que nos situa, então, no entremeio do fenômeno e do
suas zonas de incompatibilidade, mas os revela também, um ao ou- signo - , o I Ching serve de mediação entre a ordem da natureza e sua
tro, em suas escolhas implícitas. Lendo de fora ao mesmo tempo que formalização lógica. Diferentemente dos ideogramas, os trigramas e
de dentro (isto é, transformando minha exterioridade cultural em trun- os hexagramas que servem de base ao Clássico não exprimem um sen-
fo heurístico), experimento um pensamento ao mesmo tempo no que tido, mas definem os elementos de uma matriz. Por isso, segundo a
ele diz e naquilo que ele não diz, não só no que o motiva mas também perspectiva genealógica instaurada pela teoria literária chinesa 3 , eles
naquilo em que ele se desvia, ou que deixa inculto, ou de que se es- constituem o prato-texto que assegura a continuidade entre o poder
quiva: confrontadas uma à outra, duas representações se interpretam figurador que atua em toda parte no mundo e a invenção do texto
melhor, na medida que seu distanciamento (uma da outra) nos ofere- escrito; ao mesmo tempo em que são o arqui-texto, aquele que, em seu
ce um recuo. sistema de combinação e de variação, contém todos os textos possÍ-
veis e do qual todos os outros seriam sempre uma eterna explicitação.
IV - Dentre os pontos em que a diferença é mais sensível e per- Por trás dessa oposição entre a palavra e o traço perfila-se uma
mite, assim, um esclarecimento recíproco, o primeiro diz respeito à outra que confronta mito e diagrama. "Diagrama", o esquema do I
própria natureza desse livro. Na cultura ocidental é a palavra oral que Ching, à base de traços, o é nos dois sentidos do termo: como traço
é original, o escrito só intervém depois para registrá-la: a epopéia ho- que visa à representação sumária dos fatores de um conjunto (aqui,
mérica é o "canto" de um aedo, e é dos "lábios" da Musa que Hesíodo reduzidos a dois) e de sua disposição respectiva (vista como em corte;
aprende sobre a geração dos deuses; do mesmo modo, enquanto men- como se fala, por exemplo, do diagrama de uma flor); e também como
sagem da Revelação, a Bíblia é palavra oral antes de ser Escritura Sa- traço que visa a apresentar, sob uma forma gráfica, o desenrolar e as
grada e se liga, como tantas vezes foi observado, às tradições pastoris variações de um fenômeno (como se fala do diagrama de uma febre).
do povo judeu, em que o pastor se dirige a seu rebanho. Ora, na Chi- Entre o recurso ao mito, tal como o conhecemos na cultura ocidental,
na não existe nem Palavra divina nem epopéia, a co~~c!ê~cia_nasce do e o uso dos esquemas diagramáticos que é próprio do Clássico da
traço. E o I Ching é a obra por excelência do traço escrito, que nele é mutação, a comparação é antiga 4 e se justifica pelo menos em vários
primitivo. Um primeiro traço, pleno, contínuo _, que nada particu- pontos: um e outro, com efeito, visam a revelar alguma coisa que ul-
lariza ou modifica, nos liga, por sua pura linearidade, à simplicidade trapassa a capacidade de apreensão de uma linguagem abstrata ou que
inata da Origem; e é somente de sua fissura __ que surge um valor ela não apresenta tão bem; para fazê-lo, recorrem um e outro a uma
diferencial. Mas, como esse valor é o mais geral, não constitui o traço figuração imagética (segundo o próprio Clássico, o Sábio "instaurou
ainda em signo: em si mesmos, traço pleno e traço partido não cifram as figuras hexagramáticas" para "exprimir completamente o sentido");
nenhuma Mensagem, mas bastam para reproduzir, apenas pela sua um e outro, finalmente, estão organizados em seqüências. Surgem me-
relação de oposição/correlação, a polaridade que atua em todo o real; lhor, a partir desse quadro comum, os diversos pontos de oposição
e, por seus diversos modos de interversão no interior da figura, per- entre ambos, e estes se ligam entre si de modo suficientemente mani-
mitem vislumbrar sua transformação contínua. festo para autorizar uma clivagem contínua. Proporei esquematizar do
Por isso a série de figuras compostas desses dois tipos de traço, e seguinte modo sua linha de fratura: enquanto o mito coloca em cena
sobre a qual se assenta o livro, pôde representar, aos olhos dos chine- um drama, coma história, o diagrama do I Ching representa uma evo-
ses, uma escritura ao mesmo tempo mais original e mais-fundamen.,. luçã? (por transformação); enquanto o primeiro apela para "actantes"
tal, mais simples também, em ligação direta com o dinamismo das (atores), o segundo faz intervir fatores constitutivos (yin/yang, traço
coisas e fazendo a transição entre o jogo das linhas, em constante re- pleno ou partido); enquanto o primeiro é, mais correntemente, expli-
novação, que nos oferece o espetáculo do mundo, e aquele, fixo e cativo e remete a uma causa (cf. a função etiológica do mito), o se-
codificado, que é próprio da linguagem humana: graças a esse traço gundo é indicativo de uma tendência; enquanto, finalmente, o primeiro
elementar - porque ainda não se deixou articular na particularidade é inventivo e dá uma função à ficção, o segundo representa um papel

16 François Jullien Figuras da Imanência 17


de detecção (conforme à sua função primeira, a adivinhação). No ponto ADVERT~NCIA
de chegada dessa clivagem, opera-se uma separação de planos: o mito
tem relação com a transcendência; o esquema diagramático do I Ching,
por sua vez, vale como revelação da imanência.
É próprio de um pensamento preocupado com a transcendência
procurar explorar o outro do outro (quer dizer, aquilo em que o ou-
tro é verdadeiramente outro e pode se constituir em exterioridade). Em
contraste com essa abertura para o além, é próprio de um pensamen- Todos os capítulos deste ensaio comentam, com maior ou me-
to da imanência procurar valorizar, e fazer operar, tudo o que existe nor proximidade, uma parte do Clássico: o primeiro capítulo, que é
de meSmo no outro e que permite sua correlação. Ver-se-á que o pen- uma apresentação geral do dispositivo do livro e de seu funcionamento,
samento do I Ching é dominado, efetivamente, por uma lógica de inspira-se em diversas passagens do "Grande comentário" (ou "Fór-
emparelhamento que permite um funcionamento bipolar e da qual mulas anexas"; cf. Philastre §1132 ss.), que foi a primeira interpreta-
decorre sponte sua uma interação contínua. Eis porque o único obje- ção da íntegra da obra a fazer parte do corpus; os quatro seguintes,
tivo do livro é nos revelar a coerência interna aos processos. Nosso que analisam casos de figura particularmente significativos, bem como
único objetivo será procurar conceber, em sua continuação, o que pode sua transformação, relacionam-se ao texto dos diversos hexagramas
ser essa lógica da imanência. indicados nos seus respectivos títulos; os três últimos, finalmente, re-
tornam à primeira parte do "Grande comentário" para propor a lei-
tura atenta de algumas de suas passagens: elas servirão para fazer um
NOTAS balanço da reflexão empreendida sobre o devir e a imanência.
Essa dependência com relação ao texto canônico devia inevita-
1 Carta de 8 de novembro de 1700, citada em Leibniz Korrespondiert mit velmente levar a que se voltasse várias vezes a algumas partes. Mas
China, Der Briefwechsel mit den jesuitenmissionaren (1689-1714), Vittorio Klos- considerei que eu não poderia eliminar isto sem prejudicar o rigor da
termann, Frankfurt, 1990, p. 124.
argumentação que se desenvolvia a cada passo. Pensei também que o
2 Para uma apresentação muito geral da interpretação do I Ching por Wang leitor pudesse ter interesse em examinar novamente certos efeitos de
Fuzhi, pode-se recorrer a Xiao Hanming, Chuanshan yixue yanjiu, Recherches sur coerência de maneira a melhor perceber, através da dispersão das fi-
l'étude du Classique du changement chez Wang Fuzhi. Pequim, Huaxia chubanshe,
1987. guras e dos desdobramentos, a lógica de fundo, profundamente unitá-
Nos cursos que dedicou ao pensamento de Wang Fuzhi, o professor Jacques ria, que esse Clássico não se cansa de explicitar. E, diante de um pen-
Gemet interessou-se particularmente pelo papel representado pelo Clássico da samento que é exterior tanto a nossos hábitos conceptuais como a
mutação no pensamento desse autor; cf. Annuaire du CoW!ge de France, Résumé nossas opções metafísicas mais comuns, é necessária uma assimilação
des cours et travaux, anos 1986-1990. pela aquisição de um costume que ultrapasse a mera compreensão.
3 Cf. sobretudo o capítulo introdutório da principal obra de "teoria" literá- A edição utilizada neste estudo foi a das Oeuvres completes de
ria chinesa (séc. V-VI), o Wenxin diaolong, "Yuan dao". Wang Fuzhi, Chuanshan quanshu, Yuelu shushe chuban, Changsha,
4 Cf. já Hellmut Wilhelm, Heaven, Earth and Man in lhe Book of Changes. 1988, vol. I.
University of Washington Press, 1977, pp. 29 ss. . As traduções do I Ching citadas em referência são respectivamente
a de Philastre, Zulma, 1992; a de Legge, The I Ching, reed. Dover, New
York, 1963; e a de Richard Wilhelm, retraduzida do alemão para o
francês sob o título Le Livre des transformations por Etienne Perrot,
Librairie de Médicis, Paris, 1973.
A bibliografia referente ao I Ching, suspeita-se, é imensa e não é

18 François Jullien Figuras da Imanência 19


possível acolhê-la neste ensaio. Para uma exposição geral da impor- 1.
tância filosófica do I Ching na tradição chinesa, remeto o leitor sinólogo UM "CLÁSSICO" DA "MUTAÇÃO"
ao estudo recente Histoire philosophique de l'étude du "Yi king", Yixue ou o dispositivo do livro e seu manejo
zhexue shi, de Zhu Bokun, Universidade de Pequim, 2 volumes publi- ("Grande comentário", passim)
cados (1986 e 1988); para o conhecimento do I Ching a partir de des-
cobertas arqueológicas, consultar a nova abordagem de Li Xueqin, A
la source du «Yi king" et de ses commentaires, Zhouyi jingzhuan suy-
uan, Pequim, Changchun chubanshe, 1992. Retornemos ao estatuto do livro. Sabemos que o I Ching se des-
No Ocidente, a leitura do I Ching permaneceu muito (demasia- dobra e se organiza independentemente de um texto: repousa inteira-
do) tempo dominada pelas escolhas interpretativas dos Wilhelm, pai mente apenas sobre o jogo de dois tipos de traço, os mais simples, ° pleno
e filho (ver, por exemplo, Richard Wilhelm, Wandlung und Dauer, _ , e o partido __ , e a série das figuras com eles construídas é, em si
trad. inglesa Lectures on the I Ching, Princeton, 1973); por outro lado, mesma, exaustiva. Quanto ao texto que foi enxertado na combinatória
é sempre muito proveitoso reportar-se aos trabalhos já antigos de lulian e permanece unido a ela, parece reduzido a representar, desse modo, o
Shchutskii, dos quais pode-se ler em inglês Researches on the I Ching, papel de um mero comentário. Por essa razão, o texto parece destina-
Princeton, 1979. do ao empilhamento sem fim dos comentários: por ser ele exterior, por
As letras entre parênteses e em sobrescrição remetem ao Glossá- princípio, ao cerne do livro, à matriz que o engendrou, não seria fatal-
rio das expressões chinesas apresentado no final deste volume. mente muito delicado estabelecer até onde pertence ao livro, a partir
de onde - e também em nome de quê - não mais faz parte dele? Para
trás, o I Ching é contemporâneo das clivagens primeiras, leva-nos de
volta ao momento inicial em que o traço natural, ao se partir e se opor
a si mesmo, mal começa a valer como signo: eis-nos projetados para
aquém de toda escrita, para o tempo anterior aos códigos. Para a fren-
te, em compensação, como todo o texto não corresponde senão a uma
etapa posterior da formação do livro, que serve para sua explicitação,
nada parece dever interromper esse texto em sua necessidade de inter-
pretar as figuras, de comentar seu agenciamento: por isso, um texto como
esse, que é apenas glosa, está condenado de imediato à proliferação.
Eis, então, que, de um e de outro lado, o I Ching extravasa o
quadro que a tradição atribuiu ao livro. Do ponto de vista de suas
fronteiras, como também do de sua matéria, o "livro" em si está num
estado-limite. Começaremos, então, por perguntar: trata-se ainda de
um livro? E mais: a que "leitura" ele pode se prestar?

I- SUCESSÃO DOS AUTORES, UNIDADE DA OBRA

Nem mesmo os comentaristas chineses deixaram de se interro-


gar sobre a coerência do Clássico e sua unidade. Não podendo duvi-
dar do fato de que o I Ching foi composto durante milênios e foi ob-

20 François Jullien Figuras da Imanência 21


jeto de uma lenta estratificação, dedicaram-se a realçar a continuida- Última etapa, aquela atribuída a Confúcio (séc. VI-V a.c.). Por
de que une os diferentes estágios de sua elaboração. Se coerência existe, um lado, "prende-se" ele aos julgamentos compostos pelo rei Wen e
ela corresponde à lógica unitária de um processo. Quer dizer, ela pro- pelo duque de Zhou "para neles valorizar sua lógica", de que resul-
vém, aos olhos dos chineses, do desdobramento de sua própria histó- tam seus diversos comentários (" Wenyan", "Comentário do julgamen-
ria no tempo e no espaço. to", "Comentário simbólico"); por outro lado, restabelece "em seu
Quatro etapas servem tradicionalmente para representar a filia- princípio unitário" toda a "diversidade" levada em consideração por
ção da sabedoria da qual nasceu esse livro. A primeira é atribuída a essas figuras e suas interpretações, e para isso servem seus diversos
Fu Xi, o soberano dos primeiros tempos que teria composto a série tratados ("Grande comentário", "Tratado explicativo dos gua" etc.).
dos hexagramas. Desde esse estágio, diz-nos nosso comentarista (p. Ora, por isso mesmo, tais tratados não fazem senão "elucidar", ob-
649), a lógica inerente ao sistema já está "completamente presente"; serva-nos WFZ (p. 649), aquilo que constituía os "andaimes" de seus
mas, como esses tempos de "longínqua antigüidade" eram ainda muito comentários; e esses comentários se ligam aos "julgamentos" do rei
"rudes", não se tinha então "tempo livre" para "trazer à luz" o prin- Wen e do duque de Zhou, do mesmo modo que esses, se remontar-
cípio que justifica essa combinatória (o "aquilo pelo qual isto é assim"), mos ao ponto de partida do livro, se ligavam aos traçados esquemáticos
"a fim de com ela instruir as gerações vindouras". Em suma, o siste- de Fu Xi, o grande iniciador. Então, se "quatro Sábios" colaboraram
ma já tem seu lugar, mas sua lógica não está explicitada. Nada, nesse sucessivamente no livro, eles "se pautavam", contudo, "pelo mesmo
estágio, ainda foi escrito e o próprio nome" I Ching" (em pinyin: Yi- princípio,,(b): aquele que vinha depois visava somente a "apreender"
jing), que se funda na noção de "mutação" (enquanto "Clássico da "a intenção de quem o havia precedido". A ponto de, de um a outro,
mutação"), ainda não surgiu (cada dinastia conferindo-lhe seu título não ter havido "nem diminuição", "nem aumento".
próprio: "Lian-shan" sob os Xia, "Guizang" sob os Shaog). E o siste- Pois se tivesse havido variação de um para outro, prossegue WFZ,
ma só serve ainda de modo prático, para a adivinhação. Foi graças aos o rei Wen e o duque de Zhou "teriam abandonado os traçados hexa-
adivinhos, entretanto, que essas figuras foram transmitidas, de gera- gramáticos de Fu Xi e composto um outro livro" (para expor "suas
ção em geração, de maneira fiel. visões pessoais", como é o caso do Taixuan de Yang Xiong, no final
É apenas com o rei Wen, fundador da dinastia dos Zhou (no fi- do último século antes de nossa era, e como é também o caso do Qian-
nal do segundo milênio a.C.), que tem início o texto propriamente dito xu, de Sima Guang, no século XI, ou o do Hongfanshu, de Can Shen,
- que se inicia, portanto, a explicitação (donde o nome Zhouyi, "[Li- no século XII): e, do mesmo modo, se tivesse pretendido fazer uma obra
vro da] mutação da dinastia dos Zhou" conferido ao corpus): a esse original, Confúcio "teria abandonado as fórmulas do rei Wen e do
sábio, louvado pela tradição por seu caráter exigente, são atribuídos duque de Zhou e composto um outro livro" (como fizeram Jiao Gan
os lacônicos "julgamentos" que comentam a série das figuras. O rei e Jing Fang sob os Han, ou Shao Yong sob os Song). Não, não existe
Wen "baseia-se" nos esquemas traçados por Fu Xi, diz-nos WFZ (cf. um "Livro da mutação" que deva ser atribuído ao rei Wen, um outro
p. 41), para "elucidar", a partir deles, de onde provém a oposição entre ao duque de Zhou, um outro ainda a Confúcio, e esses três sábios não
"o sucesso e o fracasso, o fasto·e o nefasto". Procedendo desse modo, tentaram "enganar seu mundo", indo buscar, na noite dos tempos, o
foi levado a explorar "até o fim" tanto aquilo que constitui o funda- patronato do fabuloso Fu Xi. De um autor a outro, de uma etapa à
mento da realidade como o modo pelo qual o homem nela se enraíza (a): seguinte, o livro permaneceu idêntico a si mesmo: ele já existia com-
assim desenvolve o valor moral daquilo que era até então apenas um pletamente no ponto de partida, pela série das figuras; e o texto dos
manual de adivinhação e confere ao livro sua dimensão última. O Sábios, que foi anexado a elas posteriormente, apenas promoveu, de
duque de Zhou, seu filho, só terá de completar esse trabalho de eluci- modo cada vez mais explícito, essa completude inicial.
dação, continuando-o no nível de cada um dos traços constitutivos Poder-se-á avaliar melhor o esforço de argumentação fornecido
dessas figuras: esclarece, assim, o "estopim" da modificação delas e aqui por WFZ se se fizer referência ao caso, relativamente similar,
chega·à análise mais "fina" da mutação. oferecido pela Bíblia. Ela também é o livro de fundo de toda uma civi-

22 François Jullien Figuras da Imanência 23


lização, foi igualmente composta ao longo de inúmeros séculos, pos- te da humanidade e fica esclarecida, até o seu fundo, por uma renova-
sui uma grande variedade de estratos e de autores. Mas, nesse caso, a ção da luz, a "razão das coisas" (o li chinês). O que parece dever im-
unidade do livro está assegurada por princípio, e globalmente, por seu plicar que o desenvolvimento da civilização (caminhando par a par com
estatuto de texto inspirado, "aceito de uma vez por todas" (hapax o desdobramento do livro) coincidiu, por si mesmo, com a.ordem ine-
paradéchesthai). Do mesmo modo que a Providência se estende à to- rente ao real. Por isso, é a História, em última instância, que, desen-
talidade da criação, diz-nos Orígenes, reutilizando um" esquema estóico, volvendo-se como um processo ao mesmo tempo contínuo e definiti-
a natureza divina da Escritura se estende à totalidade do texto sagra- vo e fixando-se em sua antigüidade, assegura ao livro, para além de
do, concerne até à sua mínima letra: a Escritura deve ser considerada, sua unidade, seu estatuto de absoluto.
por conseguinte, como um único corpo, e todas as suas partes estão
ligadas por uma harmonia invisível, um "encadeamento dos sentidos
espirituais" (Orígenes ainda: heirmos tôn pneumatikôn) que, de todos II - O ESTATUTO ABSOLUTO DO LIVRO
esses textos, forma um texto único. Ora, os chineses, desprovidos de
uma caução como essa (que só é fornecida pela fé na transcendência), Voltemos ao paralelo que estabelecemos: se o I Ching pode ser
não tiveram outro recurso, para estabelecer a coerência e a unidade comparado à Bíblia é sobretudo porque um e outro têm por vocação
do I Ching, senão o de justificar essa coerência e essa unidade a partir esclarecer o mistério do real, porque possuem do Absoluto um alcan-
do modo como o livro se constituiu, e, portanto, retrabalhando cui- ce absoluto, um desafio total. Como sublinha o "Grande comentário"
dadosamente sua gênese. Eis por que WFZ insiste no fato de que a atribuído a Confúcio, o Clássico da mutação serve para "revelar o
lógica do livro existe '.'completamente" desde seu ponto de partida Caminho1f)" (A, §9; cf. WFZ, p. 550), aquele de onde procedem sem
(através da série dos hexagramas), no fato de que nenhurri de seus cessar as existências e ao qual o homem deve se conformar; ele per-
autores posteriores se afastou da obra de seus antecessores (sentido de mite aceder à dimensão do "espírito", propriamente "insondável", que
ji 1c ); cf. p. 649), no fato de que cada parte acrescentada ao livro está não cessa de animar a realidade lg) (B, §5; cf. WFZ, pp. 591-592). Per-
"ligada" e "anexada" àquelas que a precederam (sentido de xi em xi gunta-se então: na ausência de um Deus que tivesse escolhido fazer-se
ci1d ), cf. p. 505). De Fu Xi até Confúcio, cada "autor" apenas se reve- conhecer aos homens, como opera essa comunicação com o Invisível
zou com outro, cada nova etapa do livro correspondeu apenas à ex- e de onde procede, aqui, a "revelação"?
posição "à luz", ou ao reconhecimento do "valor,,(e), daquilo que o Vimos anteriormente que a unidade do Clássico e sua coerência
livro implicava inicialmente. Finalmente, se "Confúcio" atribui a si resultavam apenas do fato de que se pensa que sua gênese coincide com
todos os últimos comentários do corpus (embora o empreendimento o próprio desenvolvimento da civilização; veremos, da mesma maneira,
de comentar, na realidade, esteja apenas começando nesse final da que sua legitimidade em significar o absoluto provém do fato de que
Antigüidade), não foi só, parece-me, para assegurar ao livro uma con- -';- ele coincide perfeitamente com o processo do real, do fato de que sé
sagração definitiva, graças à posição do Sábio, eminente entre todos, "enquadra" inteiramente com ele. O conteúdo do livro não é garanti-
mas, de modo mais essencial ainda, para concluir esse lento trabalho do por uma "verdade" interna, na qual se deve crer ou que deva ser
de explicitação, colocar um termo à proliferação do comentário e se- demonstrada, mas por sua capacidade de adequação - supostamen-
lar o Livro em sua perfeição. ,te total. Como celebra uma fórmula do "Grande comentário" (A, §4;
Assim, essa caução que os chineses não poderiam' encontrar na .cf. WFZ, p. 519), o Clássico da mutação tem "a medida do Céu e da
transcendência, eles a encontram, de modo definitivo, em sua tradi- Terra": "eis porque ele concorda universalmente com o Caminho do
ção. Desde a aurora da civilização, de que Fu Xi foi o iniciador, até Céu e da Terra", isto é, o grande processo do Mundo, esposando "com-
seu completo desabrochar, marcado pelo ensinamento confuciano, os pletamente", esclarece-nos WFZ, sua "lógica interna,,(h). Seus dois
Sábios que colaboraram no I Ching podem ser reunidos numa mes- primeiros hexagramas, efetivamente, que representam a polaridade de
ma linha de cume a partir da qual se desenha para sempre o horizon- onde tudo provém, "impõem-se no conjunto da realidade"; a partir

24 François Jullien Figuras da Imanência 25


deles, as outras figuras, e todos os seus traços, "vão até o fim" de to- é tudo" que conclui a citação seria, então, muito rico em ensinamento:
das as modificações possíveis. Por isso, o Clássico da mutação repro- é a ele que cabe, segundo nosso comentarista, marcar uma fronteira a
duz, a partir de sua própria estrutura, e de modo fiel, não só todo o não ser ultrapassada no desdobramento da glosa e das interpretações
"ser constitutivo da realidade", mas também dela desdobra, de modo (face ao perigo de uma proliferação do comentário que evocamos no
exaustivo, através de idas e vindas e segundo as abordagens mais di- começo). Desde que o sistema viu a luz do dia, diz-nos, com efeito,
versas (sentido de qu), todo o "funcionamento" (em termos neocon- WFZ (p. 557), ele se prestou tanto à "multiplicação" das teorias como
fucianos, ti e yong)(i). Por isso permite apreender inteiramente, e de a um "excesso" (de interpretação, deve-se compreender) na ordem "do
modo sempre correto, a marcha das coisas. fasto e do nefasto". E foi contra esse transbordamento que teria rea-
Esse motivo de uma total adequação estabelecida entre o livro e gido o rei Wen ao compor as primeiras fórmulas de "julgamento"; ele
o mundo comparece novamente no fim do mesmo parágrafo na for- visava tanto a recentrar o livro naquilo que constitui o fundamento
ma das imagens associadas do "molde" e do "cercado"(j) (cf. WFZ, do real (o "Céu") como à maneira pela qual o homem nele se enraíza,
p. 523): o Clássico da mutação imita as "transformações geradas pelo e desejava suprimir na mesma ocasião todas as "excrescências" às quais
Céu e pela Terra" de modo tão semelhante quanto por um "molde"; o uso da combinatória, desviando-se, teria podido prestar. Na seqüên-
ele as recolhe completamente, e as cerca, no interior de seu próprio cia, ainda, o livro deu lugar a muitos excessos, que WFZ enumera com
"perímetro" . Por conseguinte, esse livro "não excede" a realidade, mas o maior desdém: ou existe abuso na interpretação das concordâncias
também não deixa "nada de lado". Entre o livro e o real, os limites se (o livro serve aos "presságios"; cf. o Qianzuodu), ou o livro serve para
sobrepõem, o encaixe é perfeito. Segundo uma outra fórmula do "Gran- imaginar toda sorte de deduções indevidas (como no Cantongqi), ou,
de comentário" (A, §11; cf. WFZ, p. 557): ainda, serve de enfeite para as teorias mais falaciosas, como a dos
budistas (como quando Li Tongxuan comenta o sutra Huayan). E, a
o Mestre diz: partir da especulação que nos faz sair da experiência e nos leva para
O Clássico da mutação serve para quê? fora do real, não há mais do que um passo para a mais tola supersti-
Ele abre a existência, conclui os negócios~ ção: os "geomantas" e os "leitores da sorte" depressa o deram, "sa-
cobre os caminhos do mundo inteiro, queando" o livro "cada um mais do que o outro".
e isso é tudo. Mas em nome de que seria possívehnterromper a deriva e deci-
dir entre o que corresponde ao ensinamento do livro (porque isso cor-
"Ele abre a existência" significa, segundo WFZ, que a alternân- responde ao real) e aquilo que o ultrapassa e, assim, o falsifica? A única
cia regulada do yin e do yang, que o Clássico da mutação põe em cena, maneira de bem estabelecer essa demarcação necessária é voltar à ar-
"está na origem de todas as situações e de todos os seres existentes"; ticulação de base que os dois primeiros hexagramas (um yang, o ou-
dizer, paralelamente, que ele "conclui os negócios" implica que o Clás- tro yin: o Céu e a Terra) instauram no começo do livro. Se O Clássico
sico não se limita a desvelar para nós a lógica inerente ao real, mas da mutação é capaz de prestar contas, por princípio, da totalidade do
que também possui uma utilidade prática ao permitir dirigir o curso real, é porque ele O faz a partir apenas do jogo dessa polaridade; e,
das coisas e de fazê-lo chegar a um termo. O Clássico é contemporâ- por conseguinte, todas as interpretações que não se fundamentam nela,
neo de todos os inícios, tanto dos fenômenos como das condutas, e ou não se limitam a ela, devem ser rejeitadas. Segundo uma fórmula
também os acompanha até seu completo desdobramento. Desde seu. do "Grandé comentário" (A, §12; cf. WFZ, p. 567), essas duas pri-
ponto de partida até seu fim extremo, ele "recobre" todos os percursos. meiras figuras constituem todo o "interior" do livro: basta que "elas
Mas não importa apenas que o livro se estenda a todo o real, estejam bem colocadas" para que "o livro seja estabelecido"; do mes-
convém também que não o transborde. O quadro (no sentido em que mO modo que basta que sejam "arruinadas" para que "não se possa
:se diz aqui que o livro "se enquadra" com o mundo), ao mesmo tem- mais perceber em que consiste esse livro". Ou, ainda, esses dois hexa-
po em que abre um espaço, serve para delimitá-lo. Aquele discreto "e gramas formam a "porta" (com dois batentes ,,) por onde tudo pas-

26 François Jullien Figuras da Imanência 27


sa (cf. WFZ, p. 599): a "extrema complexidade 1kl " do real (cf. pp. 538, comentário" resume desse modo sua plenitude, procurando cercar o
570), que a série das figuras e dos traços leva em consideração, não texto sob seus diferentes aspectos (B, §6; cf. WFZ, p. 601):
poderia escapar desse quadro inicial. Esse sentido da complexidade
seria, aliás, levado tanto mais adiante, no Clássico da mutação, pelo As denominações que ele utiliza são restritas,
fato de sua primeira explicitação ter vindo à luz numa época de gran- mas seu desenvolvimento analógico é grande;
de declínio, a do rei Wen, no final dos Shang, e por ser apenas nas seu alcance se estende para longe,
épocas de "declínio", observa-nos WFZ (p. 600), que se podem con- sua intenção é ordenada;
siderar todas as possibilidades de evolução, que se assiste à conco- as palavras, ao mesmo tempo que desviadas, atingem
mitância dos aspectos mais diversos, os menos esperados também, até o centro,
seu emaranhamento paradoxal (as épocas de ordem nos fazendo ver, as coisas ao mesmo tempo são expostas e ocultadas.
ao contrário, apenas a simplicidade de um curso normal e regular). O
rei Wen soube, nada mais nada menos, reconduzir toda essa "extre- Tantas tensões diversas, mas concorrentes, que exploram o texto
ma complicação(i)" das coisas - eis aí seu mérito - à interação de em todos os sentidos, lhe conferem todas as dimensões. A partir da
base, a do yin e do yang; e, porque a reduziu a esse princípio, tornou- oposição entre o particular e o geral (a estreiteza das denominações
a inteligível. remete, segundo WFZ, tanto aos nomes dos hexagramas como às reali-
Essa capacidade de ir do mais simples ao mais complexo, à qual dades ou situações evocadas nos julgamentos pronunciados em rela-
se deve a "amplitude" e o "alcance" do livro, celebrados pelo "Gran- ção a eles), a primeira fórmula estabelece o princípio de uma compreen-
de comentário", está também no nível de sua expressão. Ela transpa- são analógica e presta contas do alcance simbólico da expressão: as-
rece particularmente na relação complementar do próximo e do dis- sim, o 3° hexagrama, Zhun, designa a "vegetação que sai da terra",
tante ("Grande comentário", A, §6; cf. WFZ, p. 532): mas é possível desdobrar seu tema até fazê-lo significar (cf. a fórmula
do julgamento) o "estabelecimento dos príncipes feudatários". Ora,
Sua intenção se estende para longe sem encontrar obs- por essencial que seja, esse valor simbólico não é o único, ele se des-
táculo, dobra especialmente num desígnio estratégico: esse texto opera de
ela se estende para perto até o ponto em que, mesmo modo indireto e desviado para melhor atingir o objetivo; considera,
em repouso, [se apreende] sua retidão. ao mesmo tempo, todos os aspectos das coisas, de modo exaustivo, e
os reconduz ao "centro" de onde emanam(m). A densidade da escritura
o fato de sua intenção se estender "para longe" significa, segundo se deve ao fato de que ela não deixa de cruzar todos esses passos, maS
WFZ, crue o Clássico está apto a desdobrar até o fim, para lhes dar sem os misturar, joga eficazmente com os contrários e atinge um através
sentido, as "inúmeras modificações" do real; e que ela se estenda "para do outro. O que também acontece com os planos do "manifesto" e
perto" significa, em sentido inverso, que se pode "experimentá-la", com do "oculto"{nl entre os quais o Clássico não cessa de operar: aquele,
um "retorno sobre si", "na vida de todos os dias". A compreensão do por um lado, da claridade das coisas - que ele "expõe" - e aquele,
livro é, então, ao mesmo tempo a mais extensiva e a mais íntima: por de outro, do "mistério" da razão das coisas - que ele quer desvelar.
um lado, a ausência de "obstáculo" deve ser entendida do ponto de Essa relação entre o manifesto e o oculto, essencial a todo proje-
vista do desenvolvimento da "razão das coisas"; de outro, podemos to de revelação, nos leva, de maneira mais precisa ainda, para o caso
verificar por nós mesmos, e "sem necessidade de nos colocarmos em bíblico. Também a Bíblia foi escrita no encontro desses dois planos,
movimento", a exatidão desses "constantes princípios". Eis, portan- ek phanerôn kai kryptôn. Mas a comparação pára aí. Ou, antes, de
to, que o caráter absolutamente completo do sistema dos hexagramas, um livro a outro, o encaminhamento seguido pelo trabalho da revela-
que, como se viu, abrange a totalidade do real, também vale do pon- ção é levado a se inverter. Na Bíblia, ao mesmo tempo em que visa a
to de vista da manifestação do sentido. Uma outra fórmula do "Grande fazer conhecer aos homens os mistérios úteis à sua salvação, Deus toma

28 François Jullien Figuras da Imanência 29


o cuidado de "esconder" esses mistérios sob o revestimento (endyma, nos" (xiang no sentido de faxiang 1ol ). Os do mundo de fora: Qian =
! cf. Orígenes) de textos mais fáceis de ler, como são as narrativas his- o céu e Kun == == a terra; Zhen == == o trovão e Xun __ o vento; Kan ==
tóricas ou as compilações de leis: essa "criptagem" (epikrypsis) faz, a água e Li ~ o fogo; Gen == a montanha e Dui ~ o lago. Ao mes-
então, parte do desígnio divino e é sob esse véu, que excita nosso de- mo tempo em que as principais disposições interiores e seus modos de
sejo (cf. Clemente de Alexandria, Strômate V), que se deve procurar a atividade: a dureza (Qian) e a maleabilidade (Kun); o irromper inicial
Verdade. Mas, porque não transcreve nenhuma Mensagem, porque não (Zhen) e a penetração suave (Xun); o perigo oculto (Kan) e o brilho
, está carregado de nenhum Querer, o Clássico da mutação opera em da luz (Li); a imobilização do repouso (Gen) e o desdobramento da
sentido oposto: se a "razão das coisas" está "profundamente escon- alegria (Dui). Ora, nesse estágio, no qual começa a consideração da
dida" (cf. WFZ, p. 601), é o dispositivo que o Clássico da mutação diversidade, fica claramente mantida, entretanto, a polaridade inicial.
põe em funcionamento que a deve elucidar. Será conveniente, então, Não só cada uma dessas figuras possui um parceiro, que é a figura
considerar esse dispositivo COm tanto maior cuidado, já que é apenas oposta, mas, além disso, se, como observa o "Grande comentário" (B,
pelo seu funcionamento que podemos esperar que venha à luz o mis- §4), e~tre os seis trigramas intermediários (que se intercalam entre os
tério da realidade. dois trigramas inteiramente yang == ou yin ==, "pai" e "mãe" da sé-
rie), os que são yang (os três "filhos": Zhen ~, Kan ==, Gen ~) são
compostos de uma maioria de traços yin e os que são yin (as três "fi-
III - O DISPOSITIVO EM AÇÃO lhas": Xun =-=, Li =-=, Dui =-=), de uma maioria de traços yang, é por-
que os primeiros "são ímpares" e os outros são "pares". O que WFZ
Esse dispositivo é, de saída, o mais simples que existe. Dois ti- verifica num plano estritamente numérico (p. 587): esses três trigramas
pos de traço, pleno ou partido (_ e __ ), opõem entre si as duas ver- yang totalizam: 6 + 6 + 9 = 21 (número ímpar); e, multiplicados por
tentes das coisas: o lado iluminado e o lado sombreado da montanha, 3, totalizam: 18 + 18 + 27 = 63 (novo número ímpar). Ao passo que
a luz e a obscuridade, o "duro" e o "maleável", masculino e femini- os três trigramas yin totalizam 9 + 9 + 6 = 24 (número par), e, multi-
no~ O traço contínuo é ímpar: ele contém três em um e, ao se desdo- plicados por 3, totalizam: 27 + 27 + 18 = 72 (novo número par). A
brar, atinge o número máximo, o número nove; o traço descontínuo tensão entre o par e o ímpar fica mantida, então, ao longo de toda a
é par: contém apenas dois terços do anterior (o terço de esquerda e o série: ao mesmo tempo em que são desdobradas, essas figuras preser-
de direita, cf. WFZ, p. 45) e, desdobrado (por triplicação igualmen- vam em si a relação, ao mesmo tempo oposta e complementar, dos dois
te), chega apenas ao número seis. Esses dois traços são suficientes para traços de que nasceram.
representar os fatores constitutivos de toda a realidade: encarnam seus Dobremos novamente as parcelas e obteremos então a série dos
dois pólos, yin e yang. 64 hexagramas que corresponde ao último estágio do desenvolvimento
Dobremos esses dois traços, e então vemos o esboço de uma sé- das figuras. Mas, em primeiro lugar, como opera essa duplicação de
rie. Basta, efetivamente, que sob cada um desses dois traços acrescen- 3 para 6? Mais do que pensar que ela corresponde à duplicação de um
temos um segundo traço, idêntico ou oposto, para que obtenhamos primeiro trigrama (um segundo trigrama vindo a se juntar por baixo
quatro casos ( = == "velho yin" e = "velho yang", =-= "jovem yin" e de um trigrama inicial, segundo uma interpretação antiga), é muito mais
~ "jovem yang") que podem ser alinhados numa ordem progressiva lógico considerar, demonstra WFZ (pp. 573-576), que essa duplica-
(quando o yin vai crescendo, o yang vai decrescendo, e reciprocamente) ção opera no nível de cada um dos traços. Tratar-se-ia menos de uma
e formam um encadeamento contínuo (segundo esses dois pólos - e +: "duplicação", por conseguinte, do que de um desdobramento, e este
6 "velho yin" - 7 "jovem yang" - 8 "jovem yin" - 9 "velho yang"). não modifica a natureza da figura: o hexagrama não seria nada mais
Acrescentemos ainda um traço a cada uma dessas figuras e obtemos do que um trigrama desenvolvido. Com efeito, ao passo que o trigrama
então a série dos oito trigramas. Formando um sistema já relativamente representa a realidade do ponto de vista de seu "ser constitutivo", cabe
complexo, esses trigramas podem representar os principais "fenôme- ao hexagrama representar a mesma realidade do ponto de vista de seu

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"funcionamento" (ti oposto a yong, segundo os termos neoconfucia- complexidade daquilo que se encontra no mundo; meditou para saber
nos). Vê-se, então, por que uma tal duplicação era necessária (mesmo como caracterizá-la e a representou de modo concreto e adaptado: daí
se exegetas modernos considerem que talvez o contrário é que fosse resulta o termo figura". Mas o que faz, deve-se perguntar, com que
historicamente verdadeiro: os trigramas correspondendo então a um essa esquematização seja possível? É que, responde-nos WFZ (p. 537),
esforço posterior de formalização que visava a apresentar os hexagra- "quer se trate do advento dos existentes, ou da formação do concreto,
mas em redução): para representar a marcha das coisas, convém real- do crescimento ou da diminuição das energias, da alternância de ordem
çar a cada vez a dualidade de aspectos, inversos mas correlatos, de que e de desordem no curso das coisas, do caráter favorável ou desfavorável
decorre a interação que permite o "funcionamento". Eis por que, sem dos negócios humanos, do sucesso ou do fracasso, enfim, na forma-
todos os traços que compõem a série dos hexagramas, conclui WFZ, ção de si ou na ação exercida sobre o mundo", "não existe nada que
"não se conseguiria explorar até o fim" um tal funcionamento. não seja aquilo a que levou, por inversão/retorno (entre os traços do
Repartamos agora esses 64 hexagramas em função de seus tra- hexagrama), a relação de um yin e um yang". Evidentemente, porque
ços constitutivos, yin ou yang (cf. WFZ, pp. 587-588): todo o real procede apenas da interação do yin e do yang, o hexagrama
- 6 hexagramas comportam apenas um traço yin; eles totalizam: é bem capaz, através apenas do jogo de seus dois traços par/ímpar, yin
(5 x 9) + 6 = 51; ou yang, de tudo representar simbolicamente. Por ser bipolar e explorar
- 6 hexagramas comportam apenas um traço yang; eles tota- sistematicamente todas as suas possibilidades de variação, sua estru-
lizam: (5 x 6) + 9 = 39; tura lhe permite tomar a seu cargo ao mesmo tempo a diversidade e a
- 20 hexagramas são compostos de três traços yin e três traços complexidade das coisas. E essa representação simbólica não só pode
yang; eles totalizam: (3 x 6) + (3 x 9) = 45. ser sempre adequada, mas também, além disso, é dotada de efeito: pela
Disso resulta que 32 hexagramas são ímpares. E, do mesmo modo: "diferenciação" que opera "entre o duro e o mole, entre o que cresce
- 1 hexagrama é composto de seis traços yang; ele totaliza: 9 x e o que diminui", ela "barra os desvios" e "estabiliza" o real "em sua
6 = 54; positividade" (cf. WFZ, p. 538); por seu caráter concreto, também,
- 1 hexagrama é composto de seis traços yin; ele totaliza: 6 x 6 ela fixa as condições de possibilidade da instrumentalidade das coisas
= 36; (cf. "Grande comentário", A §10; cf. WFZ, p. 552): até mesmo obje-
- 15 hexagramas comportam dois traços yin; eles totalizam: (9 tos só são viáveis quando respeitam interiormente a relação entre "a
x 4) + (6 x 2) = 48; duro e o mole", "o vazio e o cheio", que essas figuras empregam.
- 15 hexagramas comportam dois traços yang; eles totalizam: Ao passo que a figura é global e corresponde ao conjunto do
(6 x 4) + (9 x 2) = 42. hexagrama 1q ) (cf. WFZ, p. 516), o traço (yao) constitui seu elemento
Disso resulta que 32 hexagramas, igualmente, são pares. Verifi- "diferencial"(rl. É seu elemento móvel e é ele que, por conseguinte, nos
ca-se que, do mesmo modo que anteriormente, no nível dos trigramas, faz passar de uma figura a outra. Com efeito, diz-nos WFZ (p. 537),
o equilíbrio instaurado entre o par e o ímpar está plenamente respei- enquanto que o hexagrama constitui o "ser determinada" das situa-
tado: apesar de seu desenvolvimento, o sistema permanece conforme ções e dos existentes, o traço corresponde aa "estopim" (como está-
a seu princípio de base e continua sendo trabalhado, de uma ponta a gio inicial) dessas ocasiões e dessas situações. Ou, ainda, aa passo que
outra, pela polaridade. a figura nos apresenta o aspecto resultante de uma disposição, o tra-
O ponto forte do dispositivo é que esses conjuntos de traços, ço diz respeito à mutação que intervém n? interior dessa configura-
constitutivos dos trigramas e dos hexagramas (gua), tenham vocação ção de conjunto. Do mesmo modo como o Sábio podia, foi-nos dito
para representar e sirvam como figuras (xiang)lp). O Sábio, diz-se no antes, "considerar toda a complexidade daquila que se encontra no
"Grande comentário" (A, §2; cf. WFZ, p. 513), "estabeleceu os hexa- mundo", ele podia igualmente, é-nos dito na seqüência, "considerar
gramas e considerou sua figuração". Esse Sábio, autor do livro, diz- os movimentos que estão em ação no mundo": ele observou não só
se em' outro lugar (A, §8; cf. WFZ, p. 537), "podia considerar toda a de que modo a encontro que aí se produz "se produz justamente" nesse

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ponto, mas também, além disso, como o movimento que resulta nes- Todas as peças desse dispositivo se imbricam, assim, umas nas
se momento de um tal encontro (e transparece, no hexagrama, no ní- outras e funcionam num encadeamento. Como observa WFZ (p. 587),
vel do traço) "se comunica de si mesmo com a lógica própria ao con- na ausência da figura constituída pelo hexagrama não haveria julga-
junto do hexagrama e se desdobra através dele" (noção de hui-tongls )). mento (que recai sobre a figura); na ausência de julgamento (global)
Quer dizer: a obra do Sábio, autor do livro, foi observar como todo dirigido à figura, não haveria traços (considerados individualmente);
encontro adventício, do qual decorre um impulso de movimentação na ausência de julgamento e de traços, não haveria fórmulas que os
das coisas, se integra na lógica de conjunto dos processos: de modo a comentassem. Confirma-se, então, que é da figura hexagramática que
poder estabelecer a partir daí, diz-nos o texto canônico, os "princípios todo o resto procede e depende e que ela é a base sobre a qual repou-
normativos" do funcionamento das coisas e os "colocar em ativida- sa toda essa montagem. Por isso o "Grande comentário' (B, §3) pode
de,,(t). O traço se caracteriza, por conseguinte, pelo seu "momento" e decretar de modo lacônico: "[o que constitui] o Clássico da mutação
pela sua "posição" (shi-wei lu )) no hexagrama e estes servem de crité- é a figura". É por meio dela, com efeito, comenta WFZ (p. 586), que
rio para o caráter adequado ou inadequado da modificação que é de- "a razão das coisas se manifesta"; e eis por que "na ausência das fi-
tonada através do traço. Por isso, essa grande variedade de traços de guras não se conseguiria chegar ao Clássico da mutação" . Fica invali-
que a combinatória dispõe (os 384 traços que compõem os 64 hexa- dada, ao mesmo tempo, do ponto de vista da origem do livro, a posi-
gramas) permite "explorar até o fim" a extrema diversidade das mo- ção de um Shao Yong (séc. XI) - para quem o Clássico da mutação
dificações em ação, ligando essa diversidade a uma mesma alternati- seria anterior aos traçados dos hexagramas - , porque não existe con-
va - conforme a evolução que aponta caminhe no bom ou no mau cepção própria a esse livro que possa preceder o advento concreto das
sentido (do mesmo modo que, anteriormente, a propósito da figura, figuras e porque toda a reflexão que incide sobre o devir decorre ape-
toda a "complexidade" do real era reportada apenas à relação entre nas da disposição delas (a mutação não podendo, efetivamente, ser
yin e yang); e essa alternativa, por ser única (porque é a única possí- instaurada a título de entidade metafísica, independente das situações).
vel), exclui por si mesma toda "desordem" (cf. "Grande comentário" Do mesmo modo fica invalidada também, na outra ponta, do ponto
A, §8; WFZ, p. 538): então, permitindo a análise mais "fina"lv) do de vista da interpretação do livro, a posição de um Wang Bi (séc. II1;
curso das coisas, cada traço pode "mostrar"(w) de modo preciso qual cf. o Zhouyi lüeli §Ming xiang) para quem, para "atingir o sentido",
é, em função de sua ocasião/posição, o "caminho" a seguir. seria conveniente "abandonar a figura" (cf. WFZ, p. 505, mas a cita-
Última peça do dispositivo, as "fórmulas" (ei lx )) de comentário: ção que se faz de Wang Bi parece errônea): porque não existe sentido
ou elas remetem ao conjunto da figura considerada globalmente (tuan IY ), relativo à mutação que possa ser efetivamente pensado tomando dis-
o "julgamento", atribuído ao rei Wen), ou a cada um dos traços con- tância em face à figura e de maneira abstrata.
siderados individualmente (a obra atribuída ao duque de Zhou, consi- Ao mesmo tempo em que repousa completamente sobre a série
derada prolongamento da de seu pai). Essas fórmulas, diz-nos o "Grande das figuras, que é exaustiva, o dispositivo assim constituído se presta
comentário" (A, §2), foram "ligadas" à representação hexagramática. a dois usos complementares (cf. "Grande comentário", A, §2; WFZ,
Quer dizer, como comenta WFZ (p. 513), elas "se apóiam" totalmen- pp. 515-516) - e é com isso que esse dispositivo se completa: ou, "em
te nela e não podem ser consideradas "separadamente". Sua função é repouso", "contemplamos" a série das figuras, tal como estão defini-
indicar "o sentido da representação" e nos servir de "advertência" (em tivamente estabelecidas, e procuramos apreciar a exatidão das fórmulas
termos de "fasto" e de "nefasto"): efetivamente, por um-lado, "a lógi- que as comentam; ou, quando estamos "em movimento" e queremos
ca que está contida na representação e que faz com que seja assim" não agir, consideramos as "modificações" em ação no hexagrama e nos
poderia ser "posta à luz" sem essas fórmulas de comentário; e, por isso, entregamos à "consulta" (zhan{a·)) no nível do traço. Pois enquanto a
é próprio dessas fórmulas "mostrar a cada vez a que isso vai levar(z)", série das figuras constitui o elemento estável desse dispositivo, o tra-
quer dizer, nos prevenir da tendência em ação, a fim de que possamos ço, como vimos, constitui seu elemento individualizante e móvel: é no
retificar, a tempo, nossa conduta. seu nível que se opera a detecção da evolução em curso e que as figu-

34 François Jullien Figuras da Imanência 35


ras se comunicam entre si. Por um lado, então, pelo "estudo" das fi- capacidade "natural" (ao mesmo tempo que "lógica"(c'); cf. WFZ, p.
guras podemos adquirir o que deveremos "conservar" sempre em nós, 553) de revelar a imanência; a partir do esquema de conjunto das fi-
para servir de "regra imutável" da conduta; e, de outro, pela consulta guras, estabelecido de uma vez por todas e que lhe serve de quadro,
relativa ao traço podemos "analisar", nos "mínimos detalhes", a "ló- se lê, a cada solicitação nova, o curso inédito das coisas.
gica" própria à tendência que aponta(b') e, assim, prevendo a evolu-
ção vindoura, adaptar nossa conduta a cada instante.
A combinação, dentro de um mesmo dispositivo, desses dois fa- IV - ESTRUTURA DO HEXAGRAMA
tores opostos - estabilidade por um lado e mobilidade por outro -
está evocada, numa outra passagem do "Grande comentário" (A, §11), Essa leitura só é possível em função de certos códigos que reme-
pelo simbolismo do redondo e do quadrado: tem à estrutura hermenêutica do hexagrama. Primeiro princípio or-
gânico: o hexagrama desdobra-se de baixo para cima e é decifrado,
Assim, a virtude da aquilégia é ser redonda para che- portanto, progressivamente a partir de sua base até seu cimo. As duas
gar ao invisível, primeiras "posições" (wei), na parte baixa da figura, correspondem
a do hexagrama é ser quadrada de modo a servir para ao nível da "terra", as duas posições seguintes (3 e 4), ao nível do
conhecer {...f. "homem" e as duas superiores (5 e 6), ao nível do "céu" 1 :. Através
O "acesso ao invisível" permite prever o futuro, dessa sucessão de andares, o hexagrama reproduz as três instâncias do
o o< conhecimento" consiste em entesourar o passado. real (suas três "capacidades" ou suas três "extremidades,,(d') (o "ho-
mem" situando-se, como deve ser, entre os dois outros), e cada um
De um lado, o "quadrado", aquele que o traçado de cada hexa- desses níveis se apresenta sob sua dualidade de aspectos (cf. o que dis-
grama preenche sobre a página, mas também no sentido em que se diz semos anteriormente sobre a passagem do trigrama ao hexagrama):
comumente, do ponto de vista da "virtude" manifesta, que qualquer yin e yang do ponto de vista das energias em ação, "duro" e "maleável"
um ou qualquer coisa apresenta um aspecto claramente demarcado e do ponto de vista da materialidade das coisas, "compaixão" e "eqüi-
que seu caráter é bem "quadrado"; de outro, a "redondez", aquela dos dade" do ponto de vista da moralidade ("Grande comentário, A, §2,
finos talos de aquilégia cuja rotundidade permite deslizar facilmente cf. WFZ, p. 515 e B §10, cf. WFZ, p. 610). Ora, ao mesmo tempo em
entre os dedos, no curso das operações do manuseio das varetas!, sem que assegura essa tripartição dos papéis, o hexagrama se apresenta
que eles jamais se agarrem ou se amontoem. Na estrutura solidamen- como uma dualidade: as três posições de baixo compõem o trigrama
te estabelecida do hexagrama é retida e "entesourada", como numa inferior ("interior": zhen) que serve de "base" para a figura e consti-
rede, toda a experiência das evoluções passadas; paralelamente, a ma- tui seu "ser determinado", as três posições de cima compõem o tri-
nipulação e!tlinentemente flexível e fluida da aquilégia permite ao con- grama superior ("exterior": hui)(e'l que adapta a figura à "evolução"
sulente captar mais de perto a mínima inflexão, ainda "invisível" (por e permite seu "funcionamento" (ti e yong; cf. WFZ, p. 340). Esse rea-
ser embrionária), de uma evolução em curso. Enquanto a série dos grupamento das posições em três não concerne, aliás, apenas à parte
hexagramas constitui a armadura global do devir e permite conhecê- alta e baixa da figura: ele se estende também aos trigramas "nuclea-
lo em sua generalidade, a consulta pela aquilégia permite chegar à res" que a compõem e podem ser lidos em filigrana (ou 2°, 3° e 4° tra-
improvisação que é particular a cada ocasião e que a armadura de con- ços, ou 3°,4° e 5° traços).
junto não poderia determinar. Por isso, graças ao funcionamento cor- Devemos portanto justificar, para começar, esse caráter plurívoco
relato dessas duas peças, o dispositivo do Clássico consegue fazer coin- da estrutura do hexagrama. As possibilidades diversas que acabamos
cidir em si essas duas dimensões opostas: ao mesmo tempo as gran- de evocar se conjugam, efetivamente, para erigi-Io em estrutura de
des linhas do funcionamento do processo e a sutileza do detalhe, as geometria variável e lhe permitir, assim, apreender, a partir de uma
lições do passado e a previsão do futuro. Dessa cooperação resulta sua multiplicação dos ângulos de visão, e, portanto, por recorte das pers-

l
36 François Jullien Figuras da Imanência 37
pectivas, a natureza intrínseca do real - ao mesmo tempo sua coe- 5° lugares; ora, essa dualidade de centros não poderia levar a uma
rência unitária e sua constante renovação. Pois o dispositivo deve apelar "divergência" que colocará em perigo sua unidade?
a vários sistemas de determinação para ver ressurgir, no encontro de Realmente, começa por responder WFZ (reportemo-nos para essa
seus diferentes planos, o indeterminado. Dito de outro modo, é só análise ao Waizhuan, pp. 1064-1065), o fato de o hexagrama não
através de uma superposição das grades de interpretação que se po- possuir um centro faz parte de seu caráter de paridade (representado
derá captar a lógica das evoluções em curso: na medida mesma em que pelos dois trigramas); e o de possuir aO mesmo tempo dois centros faz
são novas, elas escapam a toda codificação unívoca e já dada; e ape- parte de seu caráter de imparidade (representado por cada uma de suas
nas o jogo que resulta dessa superposição de grades respeita o caráter metades compostas de três posições). Ora, essa explicação, que é for-
improvisador da imanência. mai, remete a uma justificação filosófica importante de ser considera-
As posições que constituem o hexagrama reproduzem, além do da para se captar a originalidade dessa estrutura. Primeiro, se não existe
mais, a mesma relação equilibrada do par e do ímpar que considera- um centro próprio do hexagrama, é porque, por um lado, no estágio
mos anteriormente: os lugares 1,3 e 5, que são ímpares, são, portan- da unidade natural e, portanto, indiferenciada das coisas (que prece-
to, lugares yang; e os lugares 2, 4 e 6, que são pares, são, portanto, de a atualização fenomenal), "não há nada que não seja centro"lf'); é
lugares yin. Disso resulta um critério de adequação que intervirá na porque, por outro lado, desde que acontece a "cisão" diferenciadora,
apreciação de cada um dos traços (yao) que ocupam essas posições: o cada atualização particular segue sua lógica própria e "não se vê mais
traço está normalmente em seu lugar se é yang num lugar yang, ou yin o centro"(g'). O Clássico se fundamenta, então, na paridade para realçar
num lugar yin; em caso contrário, é inadequado. Mas, ao mesmo tempo o que WFZ se apraz em chamar de "sutileza de uma ausência de cen-
em que são "determinadas", essas posições são fatores de movimen- tro": ou (num estágio original) "tudo é centro" e não se poderia ins-
to. O hexagrama não poderá representar a evolução em curso, como taurar um centro particular, ou (no estágio posterior da evolução) "tu-
é de sua vocação, se não possuir em si um princípio dinâmico e se sua do é caminho" e não existe um centrO determinado.
estrutura não for funcional. Por isso, as duas posições centrais do Justifiquemos agora a coexistência dos dois centros fundada na
hexagrama constituem, aos olhos de WFZ (pp. 507-508), o pivô da imparidade: ao passo que um único centro tenderia a imobilizar o
figura: o terceiro lugar é aquele em que se produz o "avanço", ao passo processo, o fato de existirem dois centros basta para criar as condi-
que o quarto é aquele em que se produz o "recuo". A partir dessa al- ções de uma variação por alternância que, só ela, torna possível a
ternância, que concorda com o grande ritmo das coisas, o 2° e o 5° continuidade da mutação Ih') . Pode-se ir mais longe nesse sentido: ape-
lugares correspondem ao momento de equilíbrio da evolução (porque nas a coexistência de dois centros permite um verdadeiro equilíbrio.
ocupam o centro dos dois trigramas do alto e do baixo; por isso sua Com efeito, se existir apenas um centro, "atamo-nos" a ele, ele nos
posição é freqüentemente a mais favorável); ao mesmo tempo em que detém numa posição determinada e nos encontramos, por conseguin-
esses dois lugares estão subordinados entre si: o 5° lugar, por cima, te, fora de prumo com relação à renovação do curso das coisas (a re-
será a posição "soberana" da figura. Finalmente, nas duas pontas do flexão vem do Mencius, VII, A, §26). O paradoxo é apenas aparen-
hexagrama, a 1a e a 6 a posições encarnam os estágios extremos do te: não podendo se adaptar ao caráter constantemente cambiante das
processo: o "crescimento" que começa no baixo da figura e a "disso- circunstâncias, esse juste milieu imóvel nos leva infalivelmente ao seu
lução" que opera no seu cimo (1 :1). reverso, a "parcialidade". Ao contrário, a verdadeira central idade
O hexagrama consegue, assim, ao mesmo tempo ser estável e estar consjste em evoluir de um centro para o outro, e por conseguinte, em
em evolução. Uma questão se coloca, entretanto, com relação a isso, poder ir tanto num sentido como no outro, em saber manifestar tan-
que torna possível duvidar dessa coerência. O hexagrama não possui to uma determinada atitude como a atitude oposta, em função daquilo
posição central (entre os 3° e 4° traços); ora, essa ausência de centro que cada ocasião exige: em poder experimentar tanto uma "alegria"
não poderia levar à "dispersão", de que nascerá a desordem? Ao mesmo transbordante como uma profunda "tristeza", em poder dar mostras
tempo o hexagrama possui dois centros, nos dois trigramas, os 2° e tanto de uma generosa "clemência" como de uma implacável "seve-

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ridade". Um juste milieu imóvel, tímido ou medroso, nos condenaria Um mesmo evento, assim, confere a todos os elementos da figura sua
à meia-medida, porque não ousaríamos jamais seguir resolutamente significação e seria absurdo, afirma WFZ, querer mudar de perspecti-
uma determinada orientação; ao contrário, a capacidade de oscilar de va no meio do caminho: o que se teria, então, seriam traços e julga-
um centro ao outro nos permite abraçar todo o real, de uma ponta a mentos que "caminham por seus próprios pés", e a coerência da figu-
outra, de modo radical portanto, e explorar a fundo todas as suas ra se perderia.
possibilidades. Esse princípio de uma homogeneidade da figura deverá nos es-
Disso resulta um princípio fundamental ao qual WFZ não ces- clarecer em sua leitura. É a ele que se deve em particular o fato de que,
sará de voltar: todas as fases, no processo do real, são i ustificadas. E, como indica o "Grande comentário" (B, §9), o último traço da figura
do mesmo modo, todas as posições ocupadas pelos diversos traços do seja interpretado mais "facilmente" que o primeiro. Segundo uma das
hexagrama são fundadas. Por mais diferentes que possam ser entre si mais antigas conceptualizações chinesas (que é também uma das mais
no escalonamento da base ao cimo, elas se inscrevem numa mesma fecundas), o primeiro traço, na base da figura, é como a "cepa" en-
continuidade, participam da mesma lógica de conjunto, e nenhuma terrada da árvore; o sexto, no seu cimo, é semelhante à "ramagem"
delas, por conseguinte, deve ser rejeitada. A única questão é, como que se destaca distintamente diante de nossos olhos. No primeiro tra-
vimos, sua adequação ao momento (relação entre shi e wei). Ainda uma ço, a tendência encarnada pela figura está apenas esboçada, ao passo
vez, o Clássico não nos impõe não ousarmos ir até o fim de nossos que o último traço se esclarece a partir de tudo o que o precedeu. Com
sentimentos (de toda nossa "alegria" ou de toda nossa "tristeza"), não efeito, contrariamente a uma interpretação antiga que queria que, no
nos engajarmos plenamente (seja para "participar" dos negócios ou último traço, a figura, chegada à sua extremidade, fosse por isso mes-
"nos retirarmos deles"), mas fazê-lo apenas de modo "oportuno", isto mo levada a se "modificar", WFZ considera que esse último traço é
é, quando se está adaptado. simplesmente o do "acabamento" (tanto do ponto de vista da "lógica
Vamos encontrar a prova de que todas as posições do hexagrama interna da figura" como.do procedimento de tiragem que a fez sur-
participam da mesma lógica de conjunto na continuidade que une o gir). O primeiro traço aponta para o estágio inicial, não ainda afirmado,
julgamento, que incide sobre a totalidade da figura, e o comentário de uma evolução; e o último, fazendo o balanço da evolução, lhe atri-
de seus diversos traços. Recorramos, com efeito, a essa conceptua- bui seu resultado.
lização neoconfuciana que não deixaremos mais de ver em ação: o jul- Se a figura é unitária e se as posições primeira e última do hexa-
gamento representa o "ser constitutivo" da figura e os diversos tra- grama nos fornecem as duas pontas da evolução, poderíamos nos per-
ços, seu "funcionamento". Ora, diz-nos WFZ (p. 607), é preciso "re- guntar então para que servem as quatro posições intermediárias. Seu
montar à totalidade do ser constitutivo da figura para saber de onde papel é, segundo a passagem seguinte do "Grande comentário", con-
procede seu funcionamento", ao mesmo tempo em que "convém des- ferir toda sua amplidão à "capacidade" encarnada pela figura ao mes-
dobrar seu funcionamento para conhecer a modificação última de seu mo tempo em que operar as "diferenciações" necessárias. Para medir
ser constitutivo". Traços e julgamentos se completam: referindo-se o o alcance conferido à figura por esses traços centrais, veja-se, por exem-
julgamento ao ser constitutivo da figura, ele nos dá o ponto de parti- plo, o hexagrama Fu, o "Retorno", n° 24 ~ ~: só se pode perceber a
da dos traços (revelando seu funcionamento), e os traços que se enca- importância decisiva do primeiro traço yang, diz-nos WFZ (p. 609),
deiam na figura nos indicam a que finalmente ela leva. Por conseguinte, a partir da acumulação dos traços yin que o seguem. Para verificar o
"esses seis traços se comunicam entre si para formar um único ser· valor diferenciador dessas posições intermediárias, bastará verificar os
constitutivo". Consideremos, por exemplo, o hexagrama Lü, "Cami- hexagramas Jiaren, a "Família", e Kui, a "Dissensão", nOs 3 7 e 38,
nhar (sobre a cauda do tigre)", nO 10 --o é claro que o traço que "ca- ::: = e ::::::: ambos possuem um traço yang tanto na base como no topo,
minha" (sobre o yang) para ir em frente é o terceiro traço yin, e eis mas, no primeiro caso, os quatro traços centrais estão todos em seu
por que, do começo ao fim da figura, tudo procede desse "conteúdo" lugar (yang nos lugares ímpares, yin nos lugares pares) e, no segundo,
comum que é o do terceiro traço yin querendo se estender sobre o yang. dá-se o contrário. É, então, apenas a partir dos traços medianos da

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figura que será possível opor essas duas situações: a da "família feliz" (ambos no alto); ou, ainda, um traço é percebido em relação àquele
em que cada um está em seu lugar sob a autoridade do yang (que con- que se encontra imediatamente ao lado dele no interior do mesmo
trola a situação em suas duas extremidades; cf. n° 37) e aquela em que, trigrama (cf. o eixo metonímico). No primeiro caso, a relação será
a despeito dos esforços do yang para "estreitar os laços" (sempre nas favorável se ela oferecer, no campo defronte, um "parceiro" (ao mes-
duas extremidades), ninguém está mais em seu lugar, aquela em que mo tempo oposto e complementar), de que resulta uma possibilidade
a concordância entre seus membros só é aparente e tudo se desune em de emparelhamento e de interação (noção de ying 1i ' l: um traço yin
segredo. "correspondendo" a um traço yang, e reciprocamente); ao passo que,
O "Grande comentário" nos orienta ainda mais precisamente na no segundo caso, a relação é significativa se se apoiar na similitude,
interpretação dessas posições medianas, avaliando-as umas em relação de que nascem "confiança" e suporte (noção de fu 1j '): um traço yin se
às outras. Os lugares segundo e quarto, que são pares e portanto yin, acrescentando a um traço yin, um traço yang a um traço yang). Essas
têm méritos opostos: o mérito do quarto lugar refere-se à respeitosa duas relações, certamente, se completam: por um lado, a relação com
"apreensão" que ele retira de sua "proximidade" com o quinto, logo o outro, à distância; de outro lado, a relação com o mesmo, na proxi-
acima dele, que é a posição soberana; ao passo que o mérito do segun- midade. A primeira lógica é a do "casamento", e é da polaridade, como
do refere-se à sua posição central no trigrama inferior (e que faz que se sabe, que decorre a geração do real; a segunda, por contraste, é a
ele não procure se aproveitar de seu "distanciamento" em face da po- da "amizade" (ou da solidaridade fraterna), e é ela que assegura ao
sição soberana para com ela rivalizar). Quanto aos lugares terceiro e real sua coesão.
quinto, que são ímpares, e portanto yang, eles se opõem entre si por Não esqueçamos, finalmente, que, comO representação de uma
seu "valor" maior ou menor, de que decorre essa sutil diferença de certa fase do processo, um hexagrama não poderia ser considerado
caso. No da terceira posição, é evidentemente "perigoso" que um tra- isoladamente, mas deve ser compreendido com relação às transfor-
ço yin a ocupe (porque ela é yang: como quando um "homem sem mações que o ligam aos outros. Dois princípios, ainda, determinam
valia" ocupa a posição de autoridade de um "homem de bem"); pode os modos típicos de conversão: ou ela procede de uma inversão siste-
ser igualmente "nefasto", porém, que um traço yang a ocupe (por ex- mática traço a traço (noção de cuo 1k '); exemplo: o hexagrama 3 ~ ~
cesso do "duro"), ainda que isso seja normalmente preferível. Em se transformando no hexagrama 50 = =); ou procede de uma dupla
compensação, no caso do quinto lugar, mesmo se é um traço yin que reviravolta (entre o alto e o baixo de cada trigrama e entre os dois
o ocupa (sendo que o lugar é igualmente yang), ele pode ser "fasto"; trigramas do alto e do baixo: noção de zang(l'); exemplo: o hexagrama
e o é com mais forte razão, certamente, quando ocupado por um tra- 3 ~ ~ se transformando no hexagrama 4 ==). WFZ faz as contas (p.
ço yang. 553): os 64 hexagramas formam 32 pares de hexagramas invertidos
Ocupamo-nos até aqui apenas das relações respectivas das seis traço a traço, mas apenas 28 pares de hexagramas invertidos entre
posições do hexagrama. Ora, a partir delas se estabelecem ligações alto e baixo. (Realmente, oito hexagramas permanecem, ao serem
específicas entre os diferentes traços da figura. Surgem, então, efeti- revirados, idênticos a si mesmos: Qian (n° 1) ,Kun (n° 2) ~~, Yi
vamente, dois tipos de relações que, tanto não deixam de lembrar os (n° 27) ~~,Daguo(n028) ==,Kan(n029) ;"Li(n030) ::,Zhongfu
dois eixos, metafórico ou metonímico, da lingüística contemporânea, (n° 61) == e Xiaoguo (n° 62) ~~. Em compensação, oito hexagramas
que WFZ os concebe, por seu turno, de modo sistemático (cf., por formam quatro pares em que um é ao mesmo tempo o inverso traço
exemplo, pp. 105-106,508,612; e, para uma exceção que confirma a ttaço e por reviravolta do outro (Tai e Pi, 11 e 12, == e = =; Sui e
a regra, p. 503). Ou um traço de um dos dois trigramas que compõem Cu, 17e 18, ~~ e ==;Jiane Cuimei, 53 e54, ;; e ==;Jijie Weiji,
a figura é percebido em relação ao traço que ocupa uma posição aná- 63 e 64, ==:: e :::::); nos outros 48 casos, as relações de inversão e de
loga no outro trigrama (cf. o eixo metafórico): o primeiro em relação reviravolta diferem. Ora, quer sejam eles invertidos ou revertidos, tais
ao quarto (que é o primeiro do trigrama superior), o segundo em re- hexagramas possuem naturalmente entre si ligações particulares: um
lação ao quinto (ambos no centro), o terceiro em relação ao sexto se opõe ao outro ao mesma tempo em que nele permanece de modo

43
42 François jullien Figuras da Imanência
latente; eles se demarcam um ao outro, mas se infletem também nico. Pois é próprio do Clássico, justamente, e de seu bom uso, for-
mutuamente. mar nosso espírito para a complexidade, sempre movente, das situa-
Existem outros princípios que, colaborando entre si, nos guia- ções; por isso, devemos ficar atentos à sutileza das "adequações".
rão na leitura dos hexagramas; eles não poderiam, entretanto, por isso
mesmo, ser considerados como regras fixas. Como lembra uma fór-
mula do "Grande comentário" (B, §8), ao mesmo tempo em que o v - Do BOM USO DO CLAsSICO
Clássico "não está longe" de nós, quer dizer, se presta a um uso cor-
rente e nos convida a refletir sobre nossa conduta, o "caminho" que Uma mesma preocupação rege, com efeito, todo o manejo do livro
o Clássico segue está "em freqüente evolução". O que significa, segundo _ em função dessa alternativa: a da "adequação" ou da inadequa-
WFZ (pp. 604-606), que o Clássico não visa a nos propor uma ordem ção(o') que se manifesta a propósito de cada um dos traços em rela-
regular, determinada de uma vez por todas: pois, "embora exista uma ção, ao mesmo tempo, ao momento em que ele aparece e à posição
ordem de conjunto, não existe ordem concreta(m')". E, nisto, o Clás- que ocupa. "Quer o traço de baixo esteja apto a receber [ou a "her-
sico se conforma perfeitamente à realidade: se existe uma ordem ge- dar"] daquele que está em cima", resume WFZ (p. 612); "e quer o de
ral que conduz, no caso das estações do ano, do calor ao frio ou do cima esteja apto a se apoiar sobre o de baixo [de "subir" nele]lp'l; quer
frio ao calor, ou, a propósito da vida dos seres, da juventude à velhi- os traços similares, na proximidade, se sustentem mutuamente [rela-
ce, não seria possível, em compensação, fixar uma data precisa para ção de tipo fu} e quer os traços opostoS se correspondam à distância
cada estágio da evolução e esta não é constantemente progressiva. (Não [relação de tipo ying): existe, nesse momento, adequação em cada um
se vêem, efetivamente, seres, pergunta WFZ, que conhecem um "en- dos pontos; dessa adequação decorre o caráter favorável [da figura e
fraquecimento repentino" em sua juventude ou, ao contrário, um "ga- da situação}, ao passo que o caso contrário é nefasto". Com efeito, à
nho de vitalidade" em sua velhice?) Por isso todas as classificações parte os dois primeiros hexagramas, um completamente yang e o ou-
rigorosas a que se pode chegar, a partir da série de hexagramas, se tro completamente yin (mas veremos que eles não evocam uma situa-
revelaram vãs, seu efeito de ordem é ilusório: quer se tratasse da de ção particular e não devem, portanto, ser colocados no mesmo pla-
um Jing Fang (sob os Han), que classificava os hexagramas por ordem no), todos os hexagramas são compostos, ao mesmo tempo, de yin e
progressiva, a partir de baixo (Qian, n" 1, ; depois Gou, n° 44, __ ; de yang: é, por conseguinte, da simples "mistura", sempre diferente,
depois Dun, nO 33, == etc.), ou a de um Shao Yong (sob os Song), que desses dois fatores constitutivos, "indo" e "vindo" através das seis
classificava as figuras, ao contrário, por modificação progressiva a posições do hexagrama (do mesmo modo que eles não cessam de evo-
partir do alto (Qian - , depois Dui =, depois Li ~, etc.). Não me- luir para formar a realidade), que resulta o caráter adequado (ou ina-
nos que o real, o hexagrama não poderia se constituir em "norma" dequado) de cada figura e de cada traço.
estereotipada(n'J. Trata-se de um modelo, mas é um modelo aberto e, Surge assim uma diferença essencial- da qual não podemos noS
como tal, disponível para acolher a inovação sem fim das coisas, a esquivar. A relação de adequação que procuramos aqui, para estabe-
renovação da vida. Eis porque se deveria evitar codificá-lo muito e lecer nossa conduta em harmonia com o curso do mundo, e não uma
guardar a maleabilidade das regras de interpretação: habitualmente, verdade, cria um fosso radical, de uma cultura a outra - não tantO
é o quinto traço que é o traço "soberano", mas às vezes, observa-nos de representações, ou de tentativas, quanto de sua motivação - , cuja
WFZ, ele não o é; habitualmente, também, "estar em seu lugar" é "cor- extensão me parece importante avaliar. Não nos esqueçamos, efetiva-
reto" (por exemplo, um traço yang num lugar yang), mas às vezes não mente, de que o pensamento chinês mais fundamental, aquele que se
é esse o caso; comumente, ainda, ocupar o centro (do trigrama) é "fas- atribui como missão tanto "remontar" ao ponto de partida do real
to", mas às vezes é diferente; habitualmente, enfim, a relação de par- como "ir até o fim" da modificação das coisas, não cessou de voltar a
ceria à distância (de tipo ying) é "favorável", mas às vezes não ... Quem esse Clássico para nele buscar sua inspiração. Ora, quando interroga-
estuda o Clássico não poderia recorrer a essas regras de modo mecâ- mos hoje o pensamento chinês para julgar sua pretensão de "fazer

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François Jullien Figuras da Imanência
parte" da filosofia, nós o submetemos instintivamente à questão da do do processo, se identifica, portanto, segundo WFZ (pp. 530, 535),
"verdade"2. Por isso devemos nos perguntar: o pensamento chinês (tal com o "bem". E porque nós mesmos não podemos extrair nossa ori-
como está fundado no Clássico da mutação) não nos obriga a consi- gem de mais nada senão desse grande processo (do mesmo modo que
derar uma exploração do real que não se coloca em termos de verda- todos os existentes), o que é revelado "fasto" pelo Clássico coincide
de (a noção em si mesma jamais é marcada como tal no livro)? E não também com nossa "natureza"(r'). O objetivo do Clássico não é ou-
deveríamos forjar um termo mais amplo (porque esse pareceu muito tro, definitivamente, aos olhos de WFZ (p. 524), senão o de nos aju-
exclusivamente ocidental) que trate, por exemplo, de modos diferen- dar a "cultivar" essa "natureza essencial" que está em nós respeitan-
tes de inteligibilidade (a "chinesa", a "ocidental", cada uma em ação do sua ancoragem no real, de que provém nossa aptidão à moralida-
com seus meios próprios e sem que uma deva necessariamente se en- de. Todas as suas indicações práticas, com efeito, do gênero "remor-
quadrar com a outra e se submeter a seus critérios)? so" ou "inquietude", visam a nos fazer tomar consciência da delica-
Algumas constatações pelo menos se impõem. Por um lado, o da linha de clivagem que separa continuamente o que vai no bom sen-
cuidado de "adequação" que o pensamento do Clássico divulga não tido (o do "Caminho", o Tao, segundo a denominação tradicional), e
se limita à esfera das atividades práticas, não podendo, portanto, se por isso coopera com o real, e aquilo que se afasta dele (cf. noção de
deixar reduzir por nós à pura empiria, mas foi elaborado em visão do jie Is'); cf. p. 42 e 517): demarcação eminentemente sutil, porque apre-
mundo e possui uma dimensão global e especulativa. Em seguida, se endida em seu estágio inicial (e eis por que se tem necessidade de todo
a concepção ocidental da verdade repousa igualmente numa relação o dispositivo do Clássico para a apreender), mas que nos permite rea-
de adequação, trata-se sempre de uma adequação relativamente está- gir com tanta maior facilidade, por fazê-lo mais cedo e assim voltar à
vel (seja entre o espírito conhecedor e o objeto a conhecer; ou dentro nossa natureza e nos emendarmos. (Porque, nesse estágio, a separa-
do próprio espírito, como lógica; ou dentro do próprio objeto, como ção fica apenas esboçada e ainda não é marcante.)
ciência), e não de uma adequação em face daquilo que, por princípio, Mas esse uso, que é essencialmente moral, pode ser pervertido:
é constantemente cambiante, daquilo que é a contingência mesma, e WFZ denuncia com veemência todos aqueles que recorrem ao Clássi-
se revela através de uma manipulação (a tiragem - e não apenas por co com um objetivo interessado, quer dizer, que tentam "espiar" o
"contemplação"). Finalmente, se o pensamento ocidental se preocu- grande jogo do yin e do yang, tal como ele aí se manifesta, com vistas
pa também, e mesmo correntemente, com a adequação de nossa con- a atingir seus fins egoístas (cf. pp. 514, 538, 570). O Clássico, nesse
duta em sua relação com o mundo, ele não o faz, observemos, senão sentido, deveria ser distinguido de todos os manuais posteriores de
a título de conseqüência (nesse domínio, sempre segundo, que é a mo- adivinhação com os quais se tentou confundi-lo (Yilin, Huozhulin etc.;
ral), isto é, extraindo daí o benefício da verdade que "fundou" num cf. pp. 517, 538), porque estes visam a dar contas da complexidade
outro plano (que, comumente, é metafísico). das situações, e de sua evolução, sem se preocuparem nem com sua
Mas com o que esse "clássico" da mutação nos coloca em ade- "adaptação" (ao conjunto) nem com os "princípios normativos" que
quação? A resposta nos vem, por um termo ou por outro, em todas os regem: quer dizer, definitivamente, sem os integrar numa lógica
as páginas do comentário: com a marcha das coisas, o grande proces- global que levasse em consideração o interesse da realidade inteira (o
so do mundo. Ele nos conecta com a eficácia que é própria ao mun- ponto de vista do "Céu", do "caminho"). Somos aqui convidados, por
do, colocando-nos em fase com seu desenvolvimento. "Aquilo para que isso mesmo, a opor "chance" e "destino,l(r'). Enquanto que o resulta-
o Céu vem em ajuda", diz-nos o "Grande comentário" (A, § 12), é ~'o do contabilizado por esses manuais de adivinhação (do mesmo modo
fato de nos conformarmos". É decretado "fasto", efetivamente, tudo que por um mau uso do Clássico) seria tentar revelar a relação secre-
o que desposa a "lógica" inerente à renovação sem fim do real; é jul- ta entre o yin e o yang para daí tirar fraudulentamente partido e "fa-
gado "nefasto"(q') aquilo que se "opõe" a ela. No pensamento do zer fortuna", o verdadeiro objetivo do Clássico é ajudar a cumprir nossa
Clássico, nada transcende o horizonte desenhado por esse grande pro- vocação: não procurarmos evitar uma condição aparentemente menos
cesso das coisas; o que é "fasto", quer dizer, aquilo que vai no senti- invejável (lembremo-nos de que todas as posições, no hexagrama, são

46 François Jullien Figuras da Imanência 47


"

igualmente justificadas), mas assumirmos a situação em que estamos, tribuição do Oriente para a filosofia" e partisse então à procura das "relações la-
terais" (que as diversas culturas mantêm entre si) com vistas a "abrir o conceito"
por difícil que seja, fazendo-a concordar com a perspectiva de conjunto
que o Ocidente inventou mas no qual talvez esteja encerrado, Merleau-Ponty não
da realidade e sua exigência de regulação. chega, entretanto, a conceber o trabalho explorador do pensamento, em face do
Seria cômodo estabelecer, nessas bases, a responsabilidade do real, fora desse imperativo único da verdade (ver a esse respeito as páginas tão bri-
homem. Porque, "se o caminho do homem está misturado, em seu lhantes, mas também decepcionantes, consagradas em Signes ao "Oriente e à filo-
fundamento, à realidade do mundo ('Céu e rerra')", diz-nos WFZ (p. sofia", pp. 167 ss).
612), "o uso que é feito do yin e do yang repousa no homem", "tanto Pois reconhecer que os "orientais" (indianos e chineses confundidos na mes-
ma palavra) teriam "compreendido" a verdade de modo diferente de nós (não como
no bom quanto no mau sentido": "também o que é nefasto provém
"o horizonte de uma série indefinida de pesquisas", mas como um "tesouro" es-
sempre de uma infração do homem, do mesmo modo que o que é fasto parso, "indiviso", "sincrético" ... ) os mantém, entretanto, numa dependência de
provém de um seu sucesso" ("perda" ou "obtenção"(u')). "O Sábio princípio, ficando implícito, em face desse objetivo comum que seria a "verdade"
compôs o Clássico", e "o homem de bem o consulta", de modo a ser (quer ela seja filosófica ou religiosa, impondo-se a todos não por seu conteúdo,
capaz de "bem utilizar o yinlyang" "para conduzir a seu completo mas enquanto exigência) e fora do qual a atividade especulativa do pensamento
não teria mais ponto de referência, se decomporia. Disso resulta, para Merleau-
desenvolvimento os assuntos humanos e participar do grande proces-
Ponty, essa posição abrupta e que se mostra, apesar de todas as generosas tentati-
so do real". E WFZ conclui: "não é que exista no Céu uma determi- vas de "abertura", definitiva: "o Ocidente (em sentido amplo) continua sendo um
nação do fasto e do nefasto à qual o homem não teria acesso". Com sistema de referência: foi ele que inventou os meios teóricos e práticos de uma
efeito, "se se acede à lógica inerente à realidade, concorda-se com o tomada de consciência", "que abriu o caminho da verdade" ...
Céu" (porque este não é nada mais do que essa coerência em ação; cf.
WFZ, p. 516). Apoiando-se nesse conformismo estóico, o pensador
chinês está "ansioso" em corresponder o mais "finamente" à razão das
coisas, mas está livre, de antemão, de toda angústia, porque sabe que,
no fundo, o "proveito" e a "eqüidade" se harmonizam e que não existe
felicidade ou infelicidade "que não tenha sido procurada". O desíg-
nio do livro, e de seu dispositivo, não é outro, definitivamente, senão
o de nos ajudar a descobrir, em todas as ocasiões, como opera essa
conciliação indefectível do real e do bem.

NOTAS

1 Sobre os princípios da tiragem, reportar ao §9 da primeira parte do "Grande


comentário"; e, para uma análise da origem da consulta pela aquilégia e de seus
procedimentos, ver Léon Vandermeersch, Wangdao ou la Vaie Royale, Paris, École
Française d'Extrême-Orient, 1980,11, capo XIX, "Le rationalisme divinatoire".
2 Seria demasiadamente longo reabrir esse velho debate e me deterei breve-
mente apenas no exemplo de Merleau-Ponty, sintomático em muitos sentidos:
mesmo que ele guarde distância com relação ao esquema hegeliano de um pensa-
mento "oriental" que permaneceu em sua infância porque incapaz de se compre-
ender a si mesmo (e condenado a passar sem mediação de uma abstração vazia,
inoperante portanto, à entrega a granel do sensível; mesmo que estivesse inclina-
do a prestar atenção, mais do que havia feito antes, à "secreta" e "surda" "con-

48 François ] ullien Figuras da Imanência 49


2. entidade única, a Terra, que serve de parceiro a essa eficiência regula-
O "INICIADOR" E O "RECEPTIVO" dora encarnada pelo Céu. Estabelece-se, assim, o princípio de uma
ou as duas capacidades atuantes no seio do real interpretação do mundo que não repousa mais na ação divina, mas
(hexagramas 1 e 2, Qian e Kun) num funcionamento bipolar (que o yin e o yang vão simbolizar), e essa
concepção se imporá tão definitivamente à civilização chinesa, que não
mais será percebida como uma "concepção" particular e passará, aos
olhos dos chineses, como evidência.
Abramos novamente o livro no seu início: no ponto de partida É a essa representação que o Clássico da mutação dá forma, e
da realidade encontramos não uma mas duas instâncias. A realidade, sistematiza. Esse Clássico, que, segundo a tradição, continua os ma-
como vimos, não deve seu engendramento à ação pessoal, abscôndita, nuais de adivinhação das duas dinastias anteriores (Lianshan-Guizang),
invisível, de um querer divino transcendente, mas à interação espon- deverá precisamente sua originalidade ao fato de instaurar as duas
tânea dos dois pólos cuja existência constatamos simplesmente quan- figuras simbólicas do céu e da terra à testa de seu dispositivo. Todo o
do "erguemos" ou "baixamos os olhos": os pólos do Céu e da Terra, esforço despendido pelos autores sucessivos do Clássico foi feito com
que servem de quadro para toda a realidade. Por conseguinte, as ca- o objetivo de chegar, a partir daí, a uma visão coerente da realidade,
pacidades que veremos por toda a parte em ação não são uma, mas fundada na reciprocidade e na imanência. Por essa razão, o interesse
duas: o mundo não é atravessado pela irradiação que emana de uma do Clássico da mutação não será apenas o de nos permitir avaliar esse
fonte única, a que denominamos Bem (a Idéia platônica do Bem) ou apartamento típico, e até máximo, cavado entre duas visões culturais
Amor, mas está sendo constantemente promovido pela cooperação de que se desenvolveram independentemente uma da outra (e nos pro-
duas aptidões, ao mesmo tempo opostas e complementares, simboli- põem duas escolhas também diferentes na interpretação do real): mais
zadas pelas duas primeiras figuras do Clássico da mutação: Qian e importante ainda é ver como essa outra visão do mundo, através do
Kun(a), a capacidade de "iniciativa" e a "receptividade". "trabalho" do livro e de seus comentários, e notadamente daquele que
O apartamento é flagrante entre essas duas visões do mundo, escolhemos seguir, chegou a se justificar e a se constituir como lógica.
aquela desenvolvida pela cultura chinesa e aquela a que estamos liga- Assim, o desafio da diferença ultrapassa em muito a "curiosidade" do
dos, por tradição grega ou cristã. E, entretanto, a religião chinesa antiga antropólogo: vemos voltar a ser questionada não só nossa visão das
conheceu os cultos de tipo animista que encontramos em outras par- coisas, mas também a racionalidade que a funda, e esse encarar-se,
tes na aurora das civilizações: as inscrições em osso ou carapaça nos tornando-se recíproco, assume uma significação filosófica.
informam sobre sacrifícios oferecidos aos rios, aos ventos, aos pon-
tos cardeais ... Sobretudo, a representação do mundo elaborada pelos
chineses foi cedo dominada pela idéia de um "Senhor que está no alto", I- A RELAÇÃO INICIAL
cujo querer determina, em última instância, o curso dos eventos (e cujo
poder é concebido à imagem do de um rei feudal): como um deus pes- A primeira escolha interpretativa de WFZ conta, de fato, com
soal, ele dirige suas ordens ao mundo humano. Mas assistimos, na argumentos muito fortes e consiste precisamente em separar, na série
China, desde o final do segundo milênio antes de nossa era, e sobre- dos 64 hexagramas que compôem o livro, oS dois primeiros de todos
tudo a partir do advento da dinastia dos Zhou (no final do séc. XI), os. outros. Na análise da mutação incessante que constitui a realidade
ao apagamento progressivo dessa representação antropomórfica do do mundo e da vida, as duas primeiras figuras representam aquilo que
todo-poderoso: a noção de "Céu" a suplanta, orientando a atenção "preside" a mutação e que, como tal, "não pode mudar,,{b) (pp. 41-
para a idéia de uma marcha regular, e benéfica, do curso do mundo, 42): Qian, que é composto de seis traços yang e remete ao Céu, e Kun,
tal como dada a ver pela alternância do dia e da noite, pelo ciclo das que é composto de seis traços yin e remete à Terral, simbolizam todo
estações; Paralelamente, as antigas divindades ctônicas se fundem numa o "capital" da realidade que é ao mesmo tempo constante e "absolu-

50 François Jullien Figuras da Imanência 51


tamente suficiente"(c) (todas as operações que o livro descreve são feitas sas? Vimos que ela corresponde, do ponto de vista dos "fenômenos",
a partir apenas desses seis traços yin + seis traços yang); as 62 outras à natureza do céu e da terra: o céu estende sua influência sobre a terra
figuras, nascidas do crUZamento de seus traços, constituem, em rela- e a penetra, a terra se abre para essa influência e faz prosperar os exis-
ção à série, variações que decorrem por interação, como é o caso de tentes. Do ponto de vista da "materialidade" que constitui essas duas
tantas figuras particulares, dessa relação inicial. Assim, se cada um dos realidades, essa relação corresponde àquela do yin e do yang: o yang
outros hexagramas representa um "momento" diferente da transfor- é "firme" e "sólido", o yin é "macio" e "maleável,,{el. Do ponto de
mação das coisas, os dois primeiros são independentes da particulari- vista da capacidade em ação, finalmente, aquela que os dois hexa-
dade do momento (p. 43), participam de cada etapa da transforma- gramas colocam mais particularmente em evidência, ela corresponde
ção e são, portanto, coextensivos a todo o processo. Os dois primei- ao "desdobramento" ou à "condensação" das energias(fl: ao passo que
ros hexagramas não representam, portanto, outra coisa que os 62 que a energia yin tende à concentração e leva constantemente à atualiza-
vêm depois, evocam ambos a mesma realidade evocada por todos os ção material dos existentes, a energia yang, atravessando esta última
- a única realidade que existe: a da mutação - , mas de um outro de ponta a ponta, desdobra-a e a anima, orientando-a positivamente
ponto de vista: o real é considerado, por um lado, sob o ângulo de seus (p. 43). É próprio da energia yang, que o curso incessante do Céu
fatores constitutivos (Qian e Kun), que esclarecem o caráter de cons- encarna, sua capacidade de constante "iniciativa" que lhe permite "ir
tância da mutação; de outro (as Outras figuras), sob o ângulo da ope- sempre em frente" (jian); a capacidade da energia yin, no sentido in-
ração mesma da mutação, tal COmo não cessa de provir desses fato- verso, aquela que a Terra simboliza, é se tornar continuamente dis-
res, enquanto modificação contínua. Segundo os termos neoconfu- ponível para essa penetração benéfica (com o risco, se não o fizer, de
cianos que já vimos em ação, os dois primeiros hexagramas informam se rei ficar e se tornar inerte): seu mérito próprio é obedecer e "se con-
sobre o "ser constitutivo" da mutação (seu ti) e os outros 62 sobre seu formar" (shun).(g)
"funcionamento" (seu yong)(dJ. Trata-se da mesma relação (entre dois opostos que cooperam se
Essas imagens vão no mesmo sentido: Qian e Kun, as duas pri- completando), mas que pode ser analisada sob esses três ângulos dife-
meiras figuras, são como dois "picos", erguidos frente a frente, de onde rentes. Resta saber se é legítimo "isolar" assim, para "os realçar,,(h),
procede o "caminho da mutação"; ou como os dois "batentes" (da esses dois termos antitéticos, agora que se vê com bastante clareza que
mesma porta) que não cessam de abrir para a transformação das coi- tudo, na realidade, só existe sempre no estado de mistura entre os dois:
sas. Ora, estabelecer assim "à testa" e "em paridade" os dois primei- se, como reconhece o próprio WFZ (p. 43), não existe jamais yin sem
ros hexagramas é de importância decisiva para toda a continuação da yang nem yang sem yin e, do mesmo modo, não temos nunca "céu sem
reflexão (e WFZ se mostra bastante consciente disso na crítica que faz terra" nem "terra sem céu", com que direito podemos conceber a rea-
de alguns de seus antecessores, como Shao Yong: do mesmo modo que lidade a partir dessas duas figuras iniciais das quais uma é "puramente
o "Caminho", o Tao, não poderia preexistir ao céu e à terra [cf. Wai- yang" (seis traços plenos) e a outra puramente yin (seis traços partidos)?
zhuan, pp. 822-823], a mutação decorre dessa relação inicial, a título Responder a essa pergunta nos leva a compreender melhor em que con-
de conseqüência necessária, e não poderia se constituir em entidade siste a interdependência (entre o Céu e a Terra, o yin e o yang) sobre a
metafísica anterior aos fenômenos; cf. p. 42). É a essa posição de par- qual repousa a relação. Decerto, o yin e o yang jamais "se deixam um
tida que o pensamento chinês deve o fato de ser possível representar a ao outro" nem "triunfam um sobre o outro" (p. 74), mas o fato de que
geração do real, não ao modo de uma criação, mas por simples in- não po.dem existir assim um sem o outro não significa que cada um deles
teração; é a ela também que deve o fato de poder se isentar de uma não possua sua identidade própria. Se são inseparáveis, no sentido em
causalidade que transcende o mundo e de explicar a realidade como que um deixaria de ser sem o outro, são separáveis, em compensação,
um processo imanente. enquanto fatores constitutivos e enquanto propriedades (em sua "na-
Mas qual é, então, a natureza dessa relação inicial da qual ema- tureza" e em seu "efeito": enquanto zhuan(i)). Por isso foi este último
na em seguida - com tanta facilidade - toda a explicação das coi- ponto de vista que o Clássico da mutação privilegiou com justeza, diz-

52 François Jullien Figuras da Imanência 53


nos WFZ, para realçar a relação inicial, bipolar, de que depende todo gredir sempre, em seu curso, sem jamais se desviar nem cansar. Re-
o real: os dois primeiros hexagramas não tratam diretamente do céu e sulta dessa atividade o fato de as estações não pararem de se encadear
da terra (mesmo que remetam a eles simbolicamente), nem do yang e e a existência não parar de advir: essa fórmula de base nos diz, por-
do yin (mesmo que sejam compostos, um de seis traços yang, o outro tanto, o que serve para promover a realidade. Sua originalidade e, por
de seis traços yin), mas das duas capacidades encarnadas por um e outro conseguinte, seu interesse numa perspectiva comparatista provêm, em
pólo (a aptidão de ir sempre em frente, como constante iniciativa, e primeiro lugar, parece-me, do ponto de vista que ela consegue adotar
aquela de seguir e se conformar). É nisso que eles se distinguem radi- em face da existência, ao mesmo tempo transindividual (e, portanto,
calmente de todos os outros hexagramas, que remetem diretamente à impessoal) e não transcendente (pois voltaríamos ao esquema clássi-
natureza das coisas e às atividades humanas. co da criação): ele lhe permite, assim, aclarar do interior, e ao modo
Por um lado, é só do pOnto de vista da capacidade em ação (a de um processo, o acesso à vida e seu desdobramento; a existência é
do deli)) que o homem (o Sábio) pode se comunicar com a lógica ine- finalmente considerada corno fenômeno. Desde essas primeiras pala-
rente ao grande processo do real: este se desenrola, com efeito, de modo vras se dissolve também a oposição do subjetivo e do objetivo, do
imanente e, portanto, independentemente do Sábio, e é só porque ele mesmo modo que toda separação entre realidade natural e virtude
mesmo faz a experiência, através da sua conduta, daquilo que serve, moral: elas nos levam, então, a compreender como a capacidade de
no yin/yang, para promover o real, que ele pode aceder àquilo que advento do real é o que define igualmente o bem humano.
funda o curso do mundo (análogo àquilo que o curso de sua própria O primeiro dos quatro termos (yuan(k)) evoca, em relação com
conduta realça; cf. Waizhuan, p. 821). Por outro lado, se se sabe que o simbolismo da cabeça, a faculdade de começar. Tudo no mundo, diz-
°
o masculino inexiste sem yin e que feminino inexiste sem yang (do nos WFZ (pp. 43-44), encontra sua "origem" e seu "estopim" nessa
mesmo modo que o céu não é exclusivamente yang nem a terra exclu- energia "incitadora" e "expansiva" que não cessa de se desdobrar(l}.
sivamente yin: "o céu não penetra na terra"? "a terra não contém em De fato, não há nada de "grande" que essa energia yang não possa
si a transformação que nela produz o céu"?), isso não impede que, do "atingir", nada de "pequeno" que ela não possa "penetrar", e, ope-
ponto de vista da "atividade que ele desdobra", o masculino, "espa- rando de maneira "harmoniosa e doce", ela "triunfa" sempre sem
lhando-se", se afirme então completamente como yang, e o feminino, encontrar obstáculo (p. 43): por isso sua "amplidão" é "incompará-
"recebendo", se afirme então completamente como yin (p. 822). Em vel". Na natureza, tanto as forças cósmicas como as mínimas indivi-
outros termos, o céu não é totalmente yang, mas a operação que lhe é duações aí encontram seu "capital" de partida e seu "fundamento";
própria o é totalmente: se, portanto, enquanto realidade, tudo só existe e, no que concerne ao homem, essa faculdade de começo está na ori-
sempre a título de mistura, no nível das capacidades postas em ação, gem não só de sua existência biológica, mas também de sua "nature-
em compensação, estamos aptos a perceber uma pura oposição; e, za" moral 1m ): ela representa nele o capital de "humanidade" (no sen-
portanto, no direito de representar frente a frente, como nos dois pri- tido do ren(n) confuciano) que permite à nossa consciência não se do-
meiros hexagramas, "puro" yin e "puro" yang. brar egoisticamente sobre si mesma, mas estar aberta às outras e se
sentir solidária com o mundo inteiro ("desdobrando-se" e "comuni-
cando-se" intuitivamente, de consciência a consciência, notadamente
II - INICIATIVA E CRIATIVIDADE quando ela reage de modo imediato à infelicidade de outrem, como
em Mt;ncius). A mesma universalidade é, por isso, necessária de am-
Por isso as quatro palavras pelas quais começa o texto do Clás- bas as partes: do mesmo modo que a faculdade de começo, que é pró-
sico da mutação, a propósito do primeiro hexagrama, Qian, compos- pria ao Céu, não se interrompe jamais e "comanda" todas as si.tua-
to de seis traços yang, devem ser entendidas do ponto de vista da ca- ções como todos os existentes, do mesmo modo esse sentimento mo-
pacidade: elas denotam, formando série, os diversos aspectos da apti- ral deve estar no início de todos os nossos comportamentos, bem como
dão de éonstante iniciativa que é própria do Céu e lhe permite pro- inspirar continuamente nossa conduta, sem jamais se esgotar.

54 François Jullien Figuras da Imanência 55


"'

Existe algo de particularmente profundo, parece-me, nessa assi- do real e de fazê-lo atingir seu pleno desabrochamento. Da dimensão
milação de nosso sentimento moral à faculdade de "começar". Com transindividual desse processo, de que resulta o caráter de continuum
o risco de primeiramente nos surpreender, essa identificação esclare- da existência, o comentário canônico dá conta a partir dos motivos
ce o que pode ser, no homem, a fonte da moralidade (como fonte viva, das "nuvens" e da "chuva", e ao modo de um "fluxo" ininterrupto:
que jorra dele). Como a moralidade não poderia proceder, aos olhos
dos chineses, de uma ordem transcendente (que emanasse de Deus, da As nuvens passam a chuva se derrama:
J

Torá), ela também não dependeria, por princípio, de obrigações e o fluxo dos diversos existentes não cessa de se atuali-
exigências, de função puramente utilitária, que decorrem da vida em zar.
sociedade. Bem longe de ser imposta ao homem, ou de remeter a uma
justificação que lhe seja exterior, e de consistir em obrigações, a mo- Essa gestação contínua de que decorre a evolução em curso, diz-
ralidade corresponde simplesmente à aptidão de iniciativa, e de "cria- nos WFZ (p. 52), nada a manifesta melhor do que as nuvens; essa
tividade", de nossa consciência: à aptidão desta última de continuar difusão benéfica que se derrama sobre a terra e faz prosperar todos
a progredir em seu curso, não cessando de se expandir e dar vida. O os seres, nada a ilustra melhor do que a chuva. Passemos agora desses
fato de a consciência assim se valorizar por sua "iniciativa", ou ain- fenômenos físicos, que são sua expressão sensível, àquilo que essa ca-
da, o de sua virtude ser constantemente "iniciadora", não significa que pacidade constitui, em seu princípio invisível: ela é essa corrente ou
ela procure impor seu querer ao real (veremos que a sabedoria, ao esse "fluxo" que não cessa de atravessar as individuações e as renova
contrário, é saber desposar o curso do real e se conformar a ele); mas, segundo o próprio gênero delas (cf. sentido de Pin lsl ); graças a ela, a
antes, que, abrindo-se à virtude incitadora do real (isto é, que não cessa existência não cessa de "se atualizar" e é constantemente promovida.
de desdobrar a realidade) e permanecendo "em vigília"lol, ela chega a Os dois últimos termos dessa formulação de base se corroboram
se situar sempre a montante com relação ao desenvolvimento do cur- um ao outro, explicitando o alcance dos dois primeiros. Pois essas
so das coisas; e que, desde então, coincidindo com a emergência dos quatro noções, diz-nos WFZ (p. 44), remetem todas a uma "mesma
fenômenos, ela evolui livremente em relação a eles em vez de sofrer lógica". A noção de "proveito" (li(t)) evoca a eficácia que resulta des-
passivamente, a jusante, seu peso. Sua "criatividade" apóia-se, por- sa capacidade de iniciativa e de progressão, e conclui com a vantagem
tanto, no fato de que suas disposições interiores(p) (depois, sob sua que daí decorre para todos os existentes: bem longe, portanto, de sig-
influência, as de outrem) não param, do mesmo modo que os fenô- nificar um benefício particular e egoísta (que corresponde apenas ao
menos do mundo, de se "transformar" e se renovar(q) - em vez de se interesse individual), ela realça a positividade de conjunto desse pro-
congelarem. Por isso o mal não está inscrito no ponto de partida de cesso em que o desdobramento da energia yang se realiza para todos
nOSsa natureza, mas corresponde apenas à privação dessa faculdade e "sem se economizar". A última dessas noções, finalmente, a de "in-
de impulso (desse ir para a frente): quando nossa consciência, em vez tegridade" (jogando com os dois sentidos desse termo: zhen 1ul ), denota
de se desdobrar, se fecha, se deixa arrastar pelas realidades do exte- a "retidão" ao mesmo tempo em que a constância e a "solidez"(v): no
rior e se avassalar por elas (sob a pressão dos desejos) ou se deixa mundo, diz-nos WFZ, "só o que não é direito (correto) não está apto
condicionar pelo hábito e se esclerosa, e renuncia a sua livre e genero- a ser conservado"; e é porque o Céu não se desvia jamais da retidão
sa progressão; quando, em vez de animar o mundo, ela se torna iner- de seu curso (e, antes, do dos astros e das estações) que ele está apto a
te, não mais em expansão, e renuncia à sua criatividade. pross~gUlr sempre seu curso.

O segundo termo dessa enumeração (hengl'l) deve ser compre- O principal esforço de demonstração que WFZ fornece a partir
endido no prolongamento direto do anterior e significa a progressão daí é provar que "proveito" e "integridade" estão em pé de igualdade
e o desdobramento. Ele evoca, à imagem da energia que se expande e que essas duas noções se implicam mutuamente. Como o proveito
no interior dos alimentos e os faz cozinhar (p. 44), o poder que essa que resulta do exercício dessa capacidade de iniciativa corresponde
capacidàde de iniciativa possui de se propagar cada vez mais através sempre ao "quinhão de cada um" e porque ele respeita assim o inte-

56 François Jullien Figuras da Imanência 57


resse comum, esse proveito é sempre "correto"; reciprocamente, a si mesmo e que seu desenrolar é ininterrupto (o "fim" já contém O
retidão que desse modo se manifesta com relação a todas as situações "começo", do mesmo modo que está contido nele, não existe portan-
e todos os existentes só pode ser proveitosa para todos. "Virtude" e to início primeiro). As "seis posições" são certamente as dos seis tra-
"felicidade", conclui WFZ, "procedem", portanto, "da mesma origem ços do hexagrama que expõem as etapas sucessivas do desenvolvimento
e jamais se contradizem". O que significa - do modo mais claro pos- dos seres e das coisas. Se cada uma das posições advém "em seu tem-
sível, se expressamos novamente essa posição nos nossos termos mais po", essa diversidade das ocasiões não deve fazer esquecer que todas
correntes-que a ligação que une a "felicidade" e a "virtude" (de tipo concorrem para o mesmo efeito, como os cavalos de uma única pare-
"sintético", diria Kant, e não analítico, pois senão significaria a sim- lha: o do curso "dirigido" dos fenômenos e a boa marcha do mundo.
ples confusão das duas) se afirma plenamente a partir deste mundo, o Por isso, embora a mutação de que o real é presa seja incessante, cada
único que existe aos olhos dos chineses, e não precisa de nenhuma re- individuação que resulta desse grande processo de engendramento
conciliação posterior a esperar num além de um paraíso: segundo a recebe dele sua "norma" própria que constitui sua "natureza" e lhe
óptica transindividual e global desse processo de advento da realida- cabe como "destino"(w). E, dado que cada uma respeita essa exigên-
de (diferente nesse sentido do ponto de vista pessoal da "alma" oci- cia interna à sua natureza, essas existências individuais se preservam
dental, principalmente aquela dos postulados kantianos), a conjunção uma à outra, essas sinas se unem e se conciliam. O resultado, nessas
da felicidade e da virtude não implica, portanto, nenhuma ultrapas- condições, só pode ser a "harmonia".
sagem da experiência ou do sensível, ela se realiza totalmente no inte- O mesmo desenvolvimento pode ser lido a propósito do Sábio.
rior mesmo desse processo e sponte sua. Graças à "claridade" de que desfruta constantemente porque sabe
Por isso o comentário canônico dá conta das duas noções de desposar de ponta a ponta, em seu foro interior, a lógica iniciadora e
"proveito" e de "integridade" conjugadamente, por meio de uma evo- reguladora do curso das coisas (cf. noção de cheng1x )), este pode to-
cação de conjunto: mar igualmente parte em todos os estágios do desenvolvimento da rea-
lidade, conformar-se àquilo que cada ocasião particular exige e jamais
Vasta claridade, do fim ao começo, se desviar de sua conduta. "Proveito" e "integridade" tomam, então,
as seis posições advêm cada uma em seu tempo: um sentido político: graças à influência expandida por seu sentimen-
em todo tempo, cavalgar os seis dragões para dirigir to moral em constante progressão, o Sábio é benéfico aos outros, "sem
o céu; mesmo que eles disso se dêem conta", sua virtude os penetra insensi-
o caminho de Qian [a capacidade de constante inicia- velmente e os eleva da mesma maneira que a vida, desdobrando-se
tiva] modifica e transforma, continuamente em nós, opera sem que o saibamos; ele os "conserva",
e cada um recebe a natureza que lhe cabe e constitui portanto, mantendo-os unidos na "retidão": como conclui a fórmula
sua retidão: canônica que segue esse desenvolvimento (p. 54), a tradução social
(todos) se conservam e se unem numa completa har- dessa harmonia natural é a "paz" em "todos os países".
monia; Assim, a moralidade é apenas o reflexo, no plano humano, da-.
assim são o cCproveitoj' e a cCintegridade'j. quilo que constitui a lógica de advento da realidade. Como se viu, é a
mesma capacidade de iniciativa e de desdobramento que se encontra
Antes de ser a do Sábio (como o compreendem muito estreita- na origem de todos os fenômenos e deve animar constantemente nos-
mente Legge, p. 214, ou Wilhelm, p. 415), a "vasta claridade" para a sa consciência, dirigir nossa conduta. E é bem essa a intuição que en-
qual se abre esse desenvolvimento é, segundo WFZ (p. 52), a do Pro- contramos constantemente no centro da visão dos chineses. Por isso
cesso em si mesmo, o "Céu": o que leva a expressão a significar que não deixaremos de ficar dando voltas, de voltar de uma maneira ou
esse processo de advento da realidade não se desenrola ao acaso, de de outra a esse ponto: pois ela continua sendo de difícil apreensão,
maneira'cega, e também que esse processo não cessa de se encadear a justamente por ser tão simples (dando lugar ao mínimo de constru-

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ção teórica e não apresentando nenhuma consistência dogmática), e dobra. Do ponto de vista da natureza, o primeiro traço é aquele em
por fazer vacilarem algumas das oposições mais profundamente arrai- que a vitalidade se propaga no nível das raízes; o segundo traço, aquele
gadas em nossa cultura, aquelas que colocam frente a frente o real e o em que a vegetação cresce e frutifica. Por isso, do ponto de vista da
bem, a "natureza" e a "graça". Ora, na China, compreendamos esse conduta humana, o primeiro traço é o do recolhimento, quando o Sábio
fato, o real é também o ideal. Eis por que, como testemunha a pro- ainda vive na obscuridade, retirado do mundo, e se prepara: ele se
gressão do dragão que o primeiro hexagrama dá a ler, o real se en- consagra ao estudo, mas não ensina (ou, se ensina, é apenas de modo
contra justificado em cada uma das etapas de seu desenvolvimento. indireto, através do exemplo que dá com sua conduta), cultiva em si-
lêncio sua personalidade moral, contenta-se com uma vida frugal e sem
despesas. Embora ela ainda não apareça, a capacidade já está presen-
III - A PROGRESSÃO DO DRAGÃO OU AS ETAPAS DO PROCESSO te nesse estágio [e WFZ está particularmente atento a esse ponto (cf.
p. 45): os seis traços da figura formam um sistema homogêneo e é a
Porque uma mesma tensão dinâmica percorre todo seu corpo num mesma capacidade eminente - a do "dragão" - que se encontra em
impulso; porque não cessa de transformar esse impulso, ao Se dobrar, cada uma das posições]; apenas, ainda é muito cedo, com relação ao
para avançar, e porque evolui assim e se desenrola como um con- desenvolvimento da situação, para exercer essa capacidade, e a adver-
tinuum, o dragão estava como que fadado a servir de representação tência da fórmula oracular é "não usar": o primeiro estágio da sabe-
emblemática para essa capacidade de iniciativa e de constante reno- doria é saber esperar para manifestá-la.
vação. "Quando o yang está em progressão, ele [o dragão] emerge", No estágio do segundo traço, ao contrário, essa capacidade se
diz-nos WFZ (p. 45), "e quando o yang está em declínio, ele hiberna; revela completamente na conduta do Sábio, e, através desta, se expande
ele evolui assim, destacado do solo, e se apóia nos sopros cósmicos para sobre o mundo. Esse segundo traço pode ser interpretado, com efei-
se modificar." Cabe, então, ao dragão encarnar o "puro yang", e eis to, segundo duas perspectivas conjuntas que favorecem igualmente sua
por que esse motivo comparece de ponta a ponta no primeiro hexa- posição: do ponto de vista de todo o hexagrama, ele representa, con-
grama. A estrutura clássica do hexagrama, como se sabe, representa forme já dissemos, o estágio da emergência para cima do solo e, por-
com seus dois primeiros traços, na base da figura, o nível da terra, com tanto, da manifestação; do ponto de vista apenas do trigrama inferior,
seus dois traços medi~nos, o nível do homem e com seus dois traços cuja posição mediana ele ocupa, representa o ideal do equilíbrio e da
superiores, o nível do céu: nos hexagramas posteriores, observa WFZ, regulação: por isso simboliza nossa atividade em seu regime pleno. Por
essa ordem se presta a variações, tão importante é que a realidade não isso esse "campo" em que o dragão aparece não designa apenas o acima
seja imobilizada, que o modelo que a representa não se torne estereo- do solo, é também aquele que o homem cultiva e faz frutificar. Segundo
tipado; mas, no estágio do primeiro hexagrama, essa ordem é impe- uma fórmula do Ritual que WFZ cita em comentário, "para os Anti-
cável: ela deixa muito mais comodamente perceber, de um estágio a gos reis, os sentimentos dos outros eram como um campo (a ser culti-
outro, a progressão do dragão e o desdobramento do processo. vado)". O que significaria que os Antigos reis não queriam impor seus
Mais precisamente ainda, os dois traços inferiores pelos quais desígnios a seu povo, mas se conformavam às disposições interiores
começa a figura (e que correspondem ao nível da terra) se repartem do povo - como quando se conforma às exigências da planta para
em dois degraus sucessivos: respectivamente, sob e depois sobre a ter- fazê-la brotar -, a fim de expandir sobre ele sua benéfica influência:
ra (cf. comentário de WFZ, pp.45-46 e 56). No estágio do primeiro ta~bém esta se difundia completamente através do país, e sua "polí-
traço, o dragão ainda se dissimula ao olhar, seu corpo está "enterra- tica" era a mais eficaz.
do" no solo; no estágio do segundo, o dragão emerge acima da terra Mas essa plenitude da atividade não poderia se perpetuar sem
e se torna "visível no campo". Enquanto, no primeiro traço, o dra- transformação, de uma maneira estagnada. A propósito do terceiro
gão ainda "hiberna" e "alimenta" sua energia antes de empreender sua traço, em que se afirma plenamente a posição do homem sobre a ter-
progressão, no segundo traço essa energia se torna patente e se des- ra (no ponto em que o motivo do dragão se esfumaça temporariamen-

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François Jullien Figuras da Imanência 61
te), "o homem de bem", diz-nos a fórmula canônica, "até o fim do do no céu: é proveitoso ver o grande homem". Como analisa elegan-
dia avança e avança ainda mais" continuando a manifestar sua capa- temente WFZ (p. 48), o motivo do "vôo" não exprime aqui apenas
cidade de iniciativa e de criatividade; "quando anoitece" "ele está vi- uma acentuação do dinamismo e da progressão que caracterizam as
gilante": a situação é "perigosa", mas ele "não comete nenhum erro". etapas anteriores (do dragão enterrado do primeiro traço ao dragão
Esse terceiro traço, porque nele culmina o trigrama inferior, já está sob saltando do quarto), pois esse estágio da completude é também aquele
o signo da completude (de uma maneira que prefigura o sexto); de onde em que a virtude yang, acumulada pacientemente traço a traço, se
o motivo repetido do "anoitecer" e do "fim do dia". Como, por ou- transforma de repente em perfeita satisfação: o motivo do vôo signi-
tro lado, a característica ordinária do terceiro traço é simbolizar o fica também que, graças a todos os esforços precedentes, a marcha
avanço (com relação ao quarto, que simboliza o recuo), cabe-lhe mais para a frente é de agora em diante uma evolução livre e sem esforço,
particularmente exprimir o caráter duradouro dessa marcha processiva. que a perseverança se transformou em espontaneidade. "Ninguém no
Mas, a perseverar assim (para além da completa manifestação da ca- mundo se dá conta de onde isso provém" e pessoalmente não se es-
pacidade que o segundo traço figurava), corre-se fatalmente o risco de perava chegar a esse resultado necessário; mas, "porque jamais se re-
"avançar" longe demais; daí o "perigo" que nos ameaça e a "vigilân- nunciou a ir em frente e a progredir", "um dia isso vem sozinho". Essa
cia" de que se necessita. É apenas na medida em que se está conscien- fórmula, que exprime do melhor modo a passagem do aprendizado
te da dificuldade da situação, em que não se precipita, portanto, mui- à mestria (a propósito das artes, por exemplo, música ou caligrafia:
to audaciosamente em direção ao resultado esperado (esse apogeu que quando a assiduidade da prática se transforma numa espantosa faci-
o quinto traço simboliza e do qual se fica separado pelo quarto), que lidade), serviu para caracterizar, na China, o acesso à sabedoria: esse
se pode evitar o "erro": a lição a tirar é a de que é preciso aliar a pru- estágio é aquele em que a aplicação à virtude e a concentração no es-
dência à perseverança. forço foram tão intensas e tão contínuas que elas desembocam por si
O traço seguinte pode ser compreendido no prolongamento do mesmas em seu inverso (a facilidade e a espontaneidade), e o Sábio é
terceiro traço (sempre num plano mais propriamente humano). Como, aquele que segue de agora em diante seu caminho tão naturalmente
por sua posição intermediária, ele está ao mesmo tempo em cima do como o faz o Céu (quem não se lembra de Confúcio no termo de seu
trigrama inferior e na base do trigrama superior, ele está encarregado itinerário: "seguindo meu desejo jamais transgredi a regra"). Esse es-
de ilustrar a variabilidade da situação em que está engajada nossa con- tágio é também aquele do poder político em seu ápice (o quinto tra-
duta, entre "alto" e "baixo". Eis por que WFZ compreende a fórmu- ço é, não nos esqueçamos, o do soberano): quando, graças à virtude
la canônica que o comenta como uma alternativa: "ou pular (ou) mer- que pacientemente acumulou em si, o soberano não mais necessita
gulhar: nada de erro". O "salto" está na lógica do avanço que prece- exercer uma pressão para se ver obedecido; quando seu poder se im-
de e anuncia o "vôo" que segue (no quinto traço), o "mergulho" (no põe por si mesmo - suscitando o assentimento dos outros - graças
fundo das águas) concorda com a posição de recuo que caracteriza o à sua ascendência.
quarto traço (trata-se, além disso, de uma posição yin). Mas, porque Esse quinto traço é, portanto, aquele em que a capacidade che-
a capacidade em ação é sempre a de uma iniciativa criadora e perse- ga a se transcender: a transcendência, na China, não é projetada de
verante, esse salto em altura não traduz, esclarece WFZ, uma "agita- uma só vez num ser exterior ao mundo, mas corresponde ao estágio
ção febril", nem o mergulho, "uma retirada medrosa". Por isso, se bem supremo, e por isso mesmo qualitativamente diferente, do desenrolar
que se oponham, essas duas atitudes são igualmente "sem erro": ao dos processos. Esse estágio da transcendência é aquele em que a ca-
se conformar à diferença das ocasiões, e sob a condição de dever pas- pacidade em ação é exercida em sua integralidade (ela é integral para
sar de um extremo a outro, o homem pode não cessar de progredir. o Céu, ela se torna integral para o Sábio), em que a retidão do curso
Quando, finalmente, o nível humano, em sua elevação, atinge o (o do Céu, da conduta) é desposada sponte sua, em que o "funciona-
céu, eis então a posição soberana, a do Filho do Céu, que o quinto menta", finalmente, é natural (e o objetivo do aprendizado não é mais,
traço encarna. Esse estágio do apogeu tem por divisa: "Dragão voan- então, elevar-se acima da natureza, ou transformá-la, mas, ao contrá-

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rio, "reunir-se" a ela): essa transcendência não representa, como se midade. Quem chega ao fim não tem mais "além" para onde "avan-
pode ver, senão a totalização da imanência, seu estágio absoluto, por- çar", a única possibilidade que resta é a da conversão e do retiro. Do
que essa perfeita capacidade que se manifesta na marcha regulada do próprio ponto de vista da marcha do céu, sabe-se bem que os astros
mundo ou na conduta desembaraçada do Sábio só é transcendente na que chegaram ao seu apogeu são necessariamente levados a voltar a
perspectiva dos estágios inferiores - anteriores (mas que podem le- descer; e, do ponto de vista operatório da consulta oracular, chegou-
var atai) - , os do paciente esforço e da assiduidade. Eis por que, como se aqui ao número máximo [9 (o número da plenitude do yang) x 4 (o
observa WFZ (pp. 46, 48), no segundo e no quinto traços, a fórmula número das operações necessárias) x 6 (o número das posições) = 216]:
canônica não indica diretamente ao consulente, como no caso dos segundo o comentário simbólico, "o que é pleno não pode durar", o
outros traços, o que lhe convém fazer, pois esse não pode "ousar" se que não aumenta está condenado a declinar. Assim ocorre, "natural-
identificar a uma tal posição (aquela, absoluta, da sabedoria): só se mente", conclui WFZ (p. 58), com os "fenômenos" e com as "quan-
indica nesse nível que "é proveitoso ver o grande homem". Esse está- tidades": "o próprio Céu não poderia se opor a isso: muito menos o
gio do absoluto é, portanto, abordado de viés e a posição considera- Sábio!"
da por aquele que "estuda" o Clássico da mutação, ou que o consul- Mas essa conclusão, com seu aspecto de evidência, não deveria
ta, é concebida como a do sujeito que frui o reino de um Sábio sobe- iludir. Não deveria dissimular o fato de que convém dissociar, efeti-
rano ou do discípulo que recebe os ensinamentos do Mestre: na jun- vamente, a propósito desse traço, esses dois pontos de vista: o do cur-
ção do Céu e do homem, a perfeita soberania, a sabedoria, desenham, so das coisas, com relação ao fato de que esse traço anuncia um declí-
acima de nós, o horizonte humano. nio necessário, e o da consciência moral- que se deve assumir para
O que ocorre então ao sexto traço que culmina a figura, mas que esta posição, da mesma forma que para as precedentes. Pois também
se situa para além do apogeu: perdido no céu, fora de nosso horizon- nesse estágio do fim das coisas, como observa WFZ, o dragão é "dra-
te? Eis o dragão bloqueado nessa posição superior (sentido de kang(Y)), gão" e sua virtude permanece: o "pesar" que agora o Sábio experi-
e a fórmula canônica nos adverte de que ela será para ele uma fonte menta concerne apenas à "tendência lógica(z)" que percebe na evolu-
de "pesar". Pode-se fazer, com efeito, uma conta pormenorizada de ção da situação e que não poderia colocar em causa seu aperfeiçoa-
todos os elementos formais que prejudicam essa posição (cf. WFZ, p. mento interior. Esse traço nos situa, então, precisamente, na intersecção
49): em primeiro lugar, na estrutura do hexagrama, apenas os traços das duas concepções que contribuíram para dar forma à visão do mun-
1-3-5 são posições "corretas" (correspondendo respectivamente às três do dos chineses: por um lado, a lógica dos processos, que repousa na
instâncias: terra-homem-céu), e as outras três posições só valem a tí- alternância (e implica, por conseguinte, a sucessão progressão/declí-
tulo de "dublê"; em seguida, essas três últimas posições (2-4-6) são nio); por outro, a exigência da consciência moral que é a de um pro-
yin, não são, portanto, favoráveis ao desdobramento do yang. Se tais gresso contínuo (cf. o retrato que Confúcio fazia de si próprio e que
inconvenientes não eram ainda significativos no estágio do segundo WFZ lembra aqui ao conceptualizá-Io: em seu ardor de aperfeiçoamen-
traço (porque este, no início da figura, fazia parte de sua perspectiva to, o Mestre é levado a afirmar sua indiferença face às obrigações
ascendente e, além disso, se beneficiava de uma posição de equilíbrio objetivas que pesam sobre a condição humana e até à "velhice que
- centralidade no trigrama inferior), eles se confirmam, em compen- vem", Conversações, VII, 18). Ora, não creio que o pensamento chi-
sação, cada vez mais marcantes à medida que se sobe no diagrama, nês tivesse podido articular um e outro plano mais do que faz aqui WFZ
no quarto traço (cf. o "mergulho") e sobretudo no sexto: este é, por- (na ausência da representação de um deus pessoal e de sua providên-
tanto, aquele que, diz-nos WFZ numa fórmula não destituída de am- cia que sabemos ter culminado, no pensamento ocidental, na ideolo-
bigüidade, é "o menos próprio ao uso humano". Mas a ameaça que gia do Progresso - do mundo e da humanidade -, que é estranha à
pesa sobre esse último traço é compreendida sobretudo com relação visão dos chineses). Por isso, para além da absolutização da imanên-
à lógica de conj unto da figura, e o comentário explora com facilidade cia consagrada pelo quinto traço, essas duas lógicas só se encontram
seu alcance simbólico: esse traço, empoleirado no alto, é o da extre- por coincidência: a regulação do mundo se torna a de um curso exte-

64 François Jullien Figuras da Imanência 65


rio r (ao qual só posso "consentir", assentior; cf. a passagem da no- cos, diz-nos WFZ (p. 50), todos eles possuem como defeito o fato de
ção de tiandao à de tianyun(a'}); a "natureza" se retira naquilo que não partir de um princípio, de realçar uma idéia - de que se faz em segui-
depende de mim: o "pesar" do dragão é estóico. da um ponto de vista de escola, uma doutrina - que, destacados de
Vemos, então, despontar, no estágio desse último traço, o risco todo o resto e colocados à frente de seu sistema, levam fatalmente a
de que a consciência não tome suas distâncias com relação ao curso "forçar" todos os aspectos eminentemente diversos do real para os
do mundo (através do tema do pesar): seria então recolocada em ques- submeter a essa unidade(b'}; ao mesmo tempo em que a verdadeira uni-
tão a unidade fundamental sobre a qual repousava toda essa reflexão, dade de um pensamento deve provir de que, não privilegiando nada
a solidaridade da natureza e da moral. Por isso se revela urgente, com (conseguindo nada privilegiar), este se encontra naturalmente apto a
relação à lógica de conjunto que é aqui posta em ação, abandonar o exprimir a coerência interna a todo o real: ele reproduz sua lógica
ponto de vista mais perigosamente pessoal a que induziria esse sexto imanente - que não é outra senão a do "Céu".
traço para voltar à perspectiva do processo, transindividual e global. A '''virtude do Céu", diz-nos o comentário simbólico dessa fór-
Para o que serve, de fato, a expressão seguinte do texto canônico que mula (p. 58), é precisamente a de que, para o Céu, "nada existe que
fecha esse desenvolvimento, mostrando que todas as etapas desse pro- possa estar na frente(c')". Com efeito, esclarece WFZ, o grande pro-
cesso são igualmente justificadas: "ver todo o grupo dos dragões sem cesso de engendramento da realidade jamais coloca na frente um "mo-
cabeça é fasto". Do modo como WFZ a compreende (pp. 49-50: dan- mento" ou um "existente" particulares "a que os outros seguiriam".
do a jian um sentido ativo, "ver" e não "visível", diferentemente de Se consideramos o solstício de inverno como uma data inicial, é ape-
Philastre, §20, ou Wilhelm, p. 419), essa fórmula não significa, de um nas por comodidade de cálculo; ou se é a primavera que considera-
ponto de vista simplesmente moral, que convém imitar esses dragões mos como início do ano, é apenas com relação aos indícios da flora-
"sem cabeça", isto é, que a recolhem "recuando o pescoço", e esco- ção. Mas, em seu curso ininterrupto que faz alternar sem cessar "a vida
lher ficar para trás (na espera de ser de novo "empurrado" para a frente e a morte", "a luz e a obscuridade", o grande processo do mundo não
pela evolução da situação) - mais do que procurar se impor de uma conhece nenhum início que devesse favorecer em particular. Por isso,
vez aos outros e atrair para si fatalmente sua hostilidade (a interpre- só se começarmos a nada "colocar na frente" nem nada privilegIar que
tação clássica de Wang Bi, inspirado no Laozi); e sim que convém poderemos apreender o que é o "Céu", em sua fundamental indife-
"ver", e, portanto, compreender, que nenhum desses traços (compa- rença e como integralidade: que compreenderemos o que é a natureza
rados, no termo desse percurso, a dragões reunidos em tropa) ultra- (como imanência). O "Céu", diz-nos WFZ (p. 58), jogando novamente
passa os outros uma cabeça e que mesmo os traços segundo e quinto, com as noções correlatas de "ser constitutivo" e de "funcionamento"
que, entretanto, se beneficiam de uma posição mais vantajosa, perma- (ti e yong), "não possui ser constitutivo que lhe seja próprio(d')", mas
necem "em igualdade" com os outros, "no mesmo plano" que eles e "desdobra completamente seu funcionamento através do encadeamen-
sem se opor aos outros pelo valor. Na evolução que todos esses dra- to das estações, da geração dos existentes": "não existe ser (constitu-
gões diversos simbolizam, do enterramento inicial ao pesar final, cada tivo) particular de que ele não se sirva (para fazê-lo "funcionar")" e,
etapa surge "em seu tempo", nenhuma, por conseguinte, pode ser ao mesmo tempo, "não existe funcionamento particular do qual não
dessolidarizada das outras (os dragões permanecem "agrupados") e faça seu próprio ser constitutivo,,(e'), O que significa, em outros ter-
não poderia nem mesmo ser privilegiada. Nada, portanto, no curso mos, que o "Céu" não se deixa isolar em um ser individual, à parte
das ·coisas deve, em sentido inverso, ser temido ou depreciado: a coe- dos outros, mas corresponde à marcha do mundo em sua totalidade,
são do real e do bem está de novo assegurada. identifica-se ao grande Processo do real. A maneira de "ser" que lhe
Querer tudo considerar no mesmo plano (sem que nada ultra- cabe propriamente é "ser" a totalidade do funcionamento dos seres e
passe "uma cabeça") assume, além disso, na reflexão de WFZ, um valor das coisas, sua constante renovação.
particular, da ordem do método filosófico, que permite aprofundar
ainda mais a formulação: As teorias viciadas e os pensamentos man-

66 François Jullien Figuras da Imanência 67


IV -O ESTATUTO DO PARCEIRO: A APTIDÃO PARA SE do um fora dessa enfeudação por correlação sobre a qual o processo
CONFORMAR se fecha). Ao passo que a virtude atribuída ao conformismo (isto é, a
aptidão para seguir e "se conformar"), ao suprimir, em nome da har-
Uma iniciativa só tem peso em relação ao que ela acarreta em sua monia, a expressão legítima dos antagonismos, é o que barra mais
seqüência; uma influência só tem alcance na proporção em que ela se eficazmente - e isso ainda hoje pode ser constatado na China - toda
exerce e se espalhe: a capacidade de expansão e de desdobramento da tentativa de emancipação.
energia yang só pode ser compreendida em relação com a capacidade O fato de que essas duas capacidades opostas são correlativas e
inversa - de condensação e de materialização - da energia yin, que se exercem em paridade está provado no fato de que as aptidões de
ela atravessa de ponta a ponta e que anima. O "Céu" dos chineses não "começo" e de "progressão" (yuan/heng) são atribuídas tanto à ener-
se isola em sua transcendência, mas continua indissociável da terra. É gia yin como à energia yang, tanto à Terra como ao Céu. O texto ca-
à relação dessas duas capacidades que devemos, como vimos, que a nônico relativo ao segundo hexagrama, Kun, principia, portanto, pe-
iniciativa do céu não se erija em poder criador (a menos que fosse o los mesmos dois termos que no caso de Qian, a figura inicial da capa-
de uma criação contínua), que o estatuto do outro com relação à sua cidade. Ao Céu, que "começa" pela iniciativa contínua de seu curso,
atividade não se reduza à do objeto-matéria (que lhe bastaria formar corresponde a Terra, que "faz nascer"(f') ao gerar materialmente; a esta
e informar), mas seja o de um verdadeiro parceiro - o yin é sopro- é devida a "atualização física", àquele a "natureza" moral(g') que aí
energia do mesmo modo que o yang - e que o processo da realidade, se propaga. Ora, uma influência só pode se propagar efetivamente,
por conseguinte, se desenrole por interação e de modo imanente. difundindo sua energia, se seu parceiro já se encontra ali para a rece-
Ao mesmo tempo, essa lógica correlativa, tão coerente, forneceu ber: a receptividade é, então, contemporânea da iniciativa e os dois
o mais forte apoio à visão hierárquica dos chineses, servindo-lhe de pólos do processo, o Céu e a Terra, não possuem, conclui WFZ (pp.
justificação ideológica: o fato de que fosse inscrito na natureza que a 74-75), relação de anterioridade entre si. Por isso a capacidade de
aptidão para seguir e se conformar (a do yin) seja uma virtude, do começo da Terra é coextensiva à do Céu, e, portanto, tão "ampla"
mesmo modo que a iniciativa e a capacidade de guiar, porque delas quanto ela, o que atesta simbolicamente sua "espessura" que lhe per-
se supõe que cooperem harmoniosamente em conjunto, funda, mais mite "suportar" todos os seres "sem exceção". Quanto à capacidade
rigorosamente, no plano dos valores, a inferioridade por enfeudação de progressão e de desdobramento própria à Terra, ela se deve, com
da "mulher" com relação ao "marido", ou do "vassalo" com relação certeza, à sua submissão diante do Céu: porque sabe oferecer uma
ao "senhor". Essa posição do parceiro é, a bem da verdade, bastante "perfeita vacuidade" para se abrir a essa influência, o que ela contém
ambígua: ele está ao mesmo tempo no mesmo plano e é inferior, é tão em si mesma é "vasto"; e essa penetração em profundidade se trans-
necessário quanto o outro - e desde a origem - mas por sua sub- forma em "irradiação" para fora: desdobrando completamente as se-
missão (por sua alienação, poder-se-ia mesmo dizer, porque a função mentes da energia celeste, diz-nos WFZ (p. 76), a terra não se conten-
do yin é deixar-se atravessar de parte a parte e transformar). Sem dú- ta em gerar todos os seres, ela lhes dá também consistência e os faz
vida, é à impo~tância dessa ancoragem cosmológica que serve de fun- prosperar. Graças a ela, a "vitalidade" que não cessa de "se comuni-
damento, na ausência de toda referência teológica concorrente, é a essa car de parte a parte" se torna, ao se individuar, sensível e concreta; e
idealização da servidão que devemos, por exemplo, o fato espantoso a "floração" do real se expõe em profusão sob nossos olhos.
de que, durante toda a sua história, jamais os chineses imaginaram Mas a capacidade de atualização que é própria ao yin e que, as-
qualquer relação política senão aquela que se estabelece entre o que sociada ao yang que a orienta atravessando-a, leva a essa fecundidade
"dirige" e aquele que "segue" - rei e súditos; não conceberam nenhum sem fim do real, se tornaria negativa, em compensação, se fosse aban-
outro regime senão aquele de um poder monárquico que se identifica donada a si mesma. Privada da animação do yang, essa tendência à
à susera.nia do Céu e é correlativo da terra-vassalo. A liberdade, per- condensação que caracteriza a energia yin levaria finalmente, diz-nos
cebe-se, portanto, por contraste, está ligada à transcendência (abrin- WFZ (p. 75), a uma reificação que bloquearia, por sua "opacidade",

68 François Jullien Figuras da Imanência 69


a renovação do real e causaria obstáculo à sua fluidez. Daí nasceriam em nós mesmos leva a uma "fixação" passional, a um "bloqueamento"
rupturas e conflitos. Por isso, é a propósito do terceiro aspecto das das disposições interiores, que impedem a consciência de permanecer
capacidades próprias ao Céu e à Terra, o do "proveito" (li), que uma aberta, de se manter em progressão e se renovar. Ora, como se viu, o
diferença aparece entre eles e que eles se repartem hierarquicamente: processo da consciência tem por vocação não parar de evoluir, trans-
porque, ao passo que a positividade atribuída ao Céu é vista como formando-se, a exemplo da do mundo.
indeterminada e vale, então, de modo absoluto, aquela atribuída à A seqüência da fórmula canônica coloca bem em evidência o
Terra é esclarecida pelo texto canônico como a "integridade" própria perigo dessa densificação: "no Sudoeste encontramos associados; no
a uma "égua". Ela é, então, condicional e relativa. Por sua perseve- Nordeste os perdemos"; e o texto canônico comenta: "finalmente, é
rança em avançar, diz-nos WFZ, o cavalo encarna a energia yang, mas, a festa". Deixarei de lado as numerosíssimas especulações a que essa
na medida em que, diferentemente do dragão, ele galopa no chão, ele oposição de pontos cardeais deu lugar2 . Fundamentando-se no comen-
se liga também à terra que é yin; em comparação, a "égua" aparece tário simbólico que segue ("a disposição-tendência da terra é Kun"),
como duplamente yin por seu sexo e pela terra que ela pisoteia. En- WFZ compreende essa oposição em função da geografia chinesa: o
tretanto, conformando-se à sua condição yin que é seguir o curso do "Sudoeste" (correspondente ao Shenxi e ao Sichuan atuais) é uma
yang, ela também é capaz, diz-nos o texto canônico, ao "percorrer a região de montanhas muito escarpadas, onde "a neve e o gelo se amon-
terra" inteira, de não parar - a exemplo do Céu - de "ir em frente". toam mesmo no verão": o lugar por excelência, portanto, da concen-
A seqüência do texto canônico desenvolve essa relação de enfeu- tração do yin (cf. o primeiro traço da figura, que se refere ao motivo
dação num plano temporal segundo o itinerário do "homem de bem": do congelamento); ao contrário, o "Nordeste" (do Hebei ao leste do
"primeiramente, ele se extravia, em seguida, encontra um mestre; de- Shandong) se estende em planície até o mar: é aí, então, que "a ener-
pois o proveito". Assim, a perspectiva adotada não é mais a do Sá- gia da terra" se confirma ser a menos "suficiente" (cumulada agora
bio, encarnada pelo dragão, mas a do "homem de bem" que deve to- pela imensidão do céu que se estende sobre ela). O mais importante, e
mar como exemplo o Sábio, do mesmo modo que o yin se deve abrir que não se presta à contestação, é o sentido que convém dar a essa
ao yang e se deixar conduzir por ele. Se dermos em nós a prioridade segunda oposição: "encontrar seus associados" significa a acumula-
ao yin, cuja natureza é maleável, diz-nos WFZ (p. 75), as paixões le- ção negativa do yin que causa obstáculo, por sua compacidade, à pe-
varão a melhor sobre a razão e o mundo exterior, nos arrebatando, netração do yang (cf. em WFZ o tema das montanhas que se encadeiam
nos fará renunciar à nossa aspiração moral: "nos extraviaremos" a par- e do gelo); a "perda de seus associados" significa, ao contrário, que o
tir de então, longe do caminho "reto". A lição é fácil de tirar: só sabe- yin se libera de sua própria opacidade, dissipa sua concentração e se
remos resistir à tentação dos desejos irrazoáveis e preservar nossa "in- abre resolutamente ao yang (cf. em WFZ o abaixamento progressivo
tegridade" (zhen, o último dos quatro aspectos da capacidade), se nos da terra, na China, que, aplainando-se e se alargando de Oeste para o
ativermos primeiro à firmeza do yang. Leste, concorda assim com sua vocação). A lógica indicada é de novo
Vê-se, portanto, em que termos se coloca, na China, a escolha a de uma aprendizagem: como atesta o motivo final da "festa", é to-
moral: o mal não está inscrito a título de princípio diabólico em nós, mando consciência de sua insuficiência (cf. a "vacuidade" do yin sim-
porque o yin tem por vocação cooperar com o yang tanto no quadro bolizada pelo 6 oposto à "plenitude" do yang simbolizada pelo 9),
de nossa conduta como para a geração do real. Daí também que, essa compreendendo, portanto, que não deve "se apoiar sobre si mesmo",
parte yin de nós mesmos, aquela do patológico e das paixões, não deve mas depender do outro, que o yin é preenchido.
ser destruída, muito menos erradicada - e a moral chinesa não é Essa diferença hierárquica entre as duas capacidades, uma das
ascética -, mas submetida, disciplinada. Não é do próprio yin que vem quais deve guiar a outra, não nos deve fazer perder de vista, entretan-
o perigo, mas de sua acumulação, quando ela secreta a opacidade e to, sua necessária correlação. Esta se encontra reexpressa no comen-
leva à obstrução: do mesmo modo que tenderia a imobilizar o real, tário simbólico das duas figuras que superpõe, à oposição de valor entre
fora de nós, e, portanto, a paralisar seu curso, essa acumulação do yin alto e baixo (céu/terra), aquela, perfeitamente balanceada, do interior

70 François Jullien Figuras da Imanência 71


e do fora, da relação a si mesmo e da relação com os outros. A sabe- pareçam ainda todos esses esforços. Duas capacidades, portanto dois
doria é, diz-se, fazer uso da "firmeza" do yang em seu foro íntimo: regimes e, por conseguinte, também, duas leituras: assim como a pri-
ela permite triunfar sobre seus interesses egoístas e não parar de pro- meira figura nos impunha de uma vez sua construção unitária e siste-
gredir em sua conduta, do mesmo modo que o Céu persegue seu cur- mática, no caso da segunda, a coerência que liga a constelação dos
so sem se desviar; mas é também usar a flexibilidade e a maleabilidade motivos só pode ser apreendida por associação progressiva e minuciosa.
do yin em face dos outros, aceitando igualmente todas as suas dife- Essa diferença, que se encontra na série dos hexagramas, se jus-
renças à imagem da Terra que pode tudo "suportar": porque sabe se tifica, com efeito, de modo particularmente claro, no caso dos dois
conformar à natureza dos outros e porque sua influência sobre eles se primeiros. O céu é um fundo unido e homogêneo, ao passo que a ter-
exerce com doçura, essa influência os penetra muito mais profunda- ra está esquartejada entre seus pontos cardeais; e, do mesmo modo,
mente e se pode facilmente governá-los. Como, com efeito, eles seriam todos os seres, quando se atualizam (graças à energia materializante
renitentes à nossa autoridade, já que ela não se exerce como uma vio- da Terra), não podem mais ser percebidos senão sob uma variedade
lência a seus olhos? Diferentemente, portanto, da força do "homem de facetas. No nível do céu, a trajetória se deixa apreender num cla-
forte" que só é forte aos olhos dos outros, fazendo pesar sobre eles rão, mas, no nível da terra, é preciso descer à particularidade das in-
sua pressão e os constrangendo, a verdadeira força moral é fortificar- dividuações e toda a complexidade do concreto: ao caráter bem mar-
se interiormente ao mesmo tempo em que se vai acomodando diante cado, decisivo, da "iniciativa" segue o lento e sinuoso "acabamento"
de outrem. Com efeito, nenhuma das situações representadas pelos 64 das coisas. O sobrevôo, a visão panorâmica não são mais possíveis:
hexagramas, conclui generalizando WFZ (pp. 55 e 78), é má em si: o entramos na fragmentação do tempo, no fracionamento da imagem.
mal vem sobretudo do fato de que se engana de figura e, portanto, Por isso caberia ao leitor "jogar" com essa rapsódia de motivos, con-
quanto à solução adequada, de se fazer uso de yang quando seria pre- siderar sucessivamente seus diversos aspectos, seguir em detalhe seus
ciso yin ou de yin quando seria preciso yang. O Sábio alia vantajosa- esboços. E, do mesmo modo que a terra coloca tanta paciência para
mente um e outro: pela pureza que adquire em si mesmo, ele se torna fazer germinar e amadurecer, seria preciso aprender a deixar o senti-
idêntico à "limpidez" do Céu; e, pela camada de paciência que apre- do se decantar.
senta diante dos outros, ele se torna semelhante à "espessura" da Terra. Em conformidade com a significação de conjunto da figura, cabe
Situando-se plenamente entre Céu e Terra, ele se conforma à diferen- ao primeiro traço, em sua base, nos colocar em guarda contra o risco
ça deles e torna perfeita sua complementaridade. de acumulação do yin que causa obstáculo à difusão do yang: essa exces-
siva condensação encontra naturalmente sua imagem no "congelamen-
to". Se somos prevenidos desde o início contra esse perigo é porque não
v- CONDUTA HUMANA E CURSO DO MUNDO é preciso esperar ter chegado ao estágio de acumulação para começar-
mos a nos precaver contra ela, mas porque convém, ao contrário, sa-
o primeiro hexagrama, Qian, foi concebido na óptica do "Sá- ber descobrir essa tendência mal ela aponte. A divisa é: "Colocar o pé
bio", cuja satisfação é de agora em diante perfeita e segue resoluta- na geada: o gelo compacto está chegando". A "geada", enquanto cris-
mente o Caminho: os traços constitutivos da figura remetem, então, talização mínima, serve de primeiro indício à coagulação e ao endure-
de ponta a ponta, à perspectiva do dragão que, por sua progressão cimento que vão seguir (o "gelo"), e o comentário simbólico do traço
impecável, simbolizava a capacidade em seu estágio absoluto. O se- realça a continuidade do processo que conduz, de modo lógico e por-
gundo hexagrama, Kun, foi concebido na óptica do "homem de bem", tanto inelutável, do estágio inicial- e, por conseguinte, sutil- ao seu
que se inspira nesse exemplo e procura pacientemente, com seus es- cumprimento mais patente. A lição valerá também no plano da histó-
forços, imitá-lo: por isso oS traços constitutivos da figura não mais ria: o aspecto espetacular do evento é apenas o resultado de uma evo-
oferecem essa continuidade temática, mas uma grande variedade de lução subterrânea e progressiva; e quanto antes se é capaz de assinalá-
orientaçÕes e de imagens - por mais dispersos, à primeira vista, que la, tanto mais comodamente se agirá sobre o curso das coisas.

72 François Jullien Figuras da Imanência 73


Ao apogeu que o quinto traço constituía na primeira figura cor- também à Terra, cuja função é conduzir a existência à sua realização).
responde, de maneira simétrica porém inversa, o apogeu que o segun- Mas, sem se atribuir os méritos do empreendimento que, como deve
do traço constitui dentro dessa figura. Mesma situação de centralidade ser, pertencem ao yang.
e de equilíbrio nos trigramas respectivos: lá, diz-nos WFZ (p. 79), a Ao contrário, o quarto traço é, como se sabe, o do recuo: ele
capacidade yang tocava o Céu, a posição soberana, mas sem ainda a encontra sua imagem no "saco" que se fecha e em cuja boca se dá um
ultrapassar (como no sexto traço); aqui, a capacidade yin emerge da nó. O comentário é "nem erro nem glória". Se esse motivo do fecha-
terra - estágio da floração - mas sem ainda manifestar esgotamen- mento e do recuo sobre si, no começo do segundo trigrama, faz certa-
to. Por isso as características desse traço são completamente positivas: mente eco ao primeiro traço da figura (da geada ao gelo), ele conse-
"reto-quadrada-amplo". O simbolismo é simples: a capacidade pró- gue entretanto tomar aqui um valor neutro e não mais negativo: pois,
pria à terra é permanecer reta e estável (concentrada - sem se mexer), ao passo que, no nível do primeiro traço, o recolhimento sobre si ope-
e o que define seu "ser próprio" é a "amplidão". Mas, sobretudo, é rava de modo subterrâneo (literalmente falando: sob o segundo tra-
nessa fase que se manifesta a maneira natural com que se desenvolve ço, que é o do nível do solo) e ao modo de um processo acumulativo
sua fecundidade. A divisa é então: "Sem que ela tenha que se exercer que, a partir do momento em que é encetado, é inelutável e, portanto,
(se aplicar), não há nada a que ela não constitua proveito". O que é o ameaçador, no caso desse traço, que corresponde ao plano da ativi-
crescimento dos seres e das plantas, devido à terra, diz-nos o comen- dade humana, trata-se de um recuo consciente e voluntário, cuja úni-
tarista (antes de WFZ, Wang Bi, no séc. IH, o primeiro a se mostrar ca intenção é assegurar nossa segurança. Esse traço ilustra, como se
sensível ao sentido filosófico dessa naturalidade), senão um processo vê, a situação clássica do letrado chinês que, nas épocas tumultuosas,
que se desenvolve "completamente sozinho" e "por si mesmo", sem escolhia o retiro e a obscuridade para tentar escapar à tirania do po-
"aplicação" nem "esforço", e cujo resultado advém sponte sua? der e salvar sua cabeça. WFZ nos dá um comentário luminoso (p. 81):
O segundo traço é o da plenitude e da irradiação. Em seu pro- nessas épocas de opressão, "palavras perigosas" (compreenda-se: pa-
longamento, o terceiro traço expõe a que manifestação ocasional po- lavras que, porque se diz o que se pensa, correm o risco de desconten-
dem dar lugar essas qualidades e qual é seu cumprimento legítimo. É tar as autoridades) "atraem sobre nós a infelicidade"; e, em sentido
aqui que a divisa deve ser lida de perto, seguindo-se as sinuosidades inverso, "palavras de fingimento" (isto é, nas quais se esconde uma
do sentido (cf. WFZ, pp. 79-80): "Possuindo-se essa irradiação inte- opinião para não desagradar) "se opõem ao Caminho" (da exigência
rior, é-se capaz de integridade; é possível engajar-se a serviço do rei: moral). Mas, "se se fecha bem o saco de modo que nada saia dali", os
sem se atribuir o sucesso vai-se até o fim". Essa irradiação interior é, outros não podem perceber coisa alguma; e "isso é o cúmulo da pru-
claramente, a do segundo traço: é ele que permite que nessa fase de dência". "Fechar o saco", escapar, calando-se, das suspeitas do prín-
completude (a do primeiro trigrama), e a despeito de uma posição des- cipe e de seus esbirros, ou mais correntemente ainda às denúncias de
favorável (traço yin num lugar yang), seja possível preservar a inte- seus vizinhos, é então a única maneira de preservar sua "integridade",
gridade. O avanço, característico do terceiro traço, se traduz aqui pelo nos dois sentidos do termo, ao mesmo tempo no plano físico e no plano
motivo do compromisso a serviço do rei: este ilustra a virtude do yin moral: imagino que muitos intelectuais chineses tenham devido me-
que, em vez de permanecer confinado em si mesmo, se abre para a ditar, hoje como ontem, sobre a justeza dessa posição ...
presença do yang (o rei) e coopera sob sua direção. Não é que a mo- O quinto traço se beneficia, como o segundo, de uma posição de
dalidade do "é possível que", que introduz esse motivo, não deva ser central idade e de equilíbrio (no trigrama superior); ele pode, então,
analisada cuidadosamente: essa eventualidade significa que esse com- novamente, exprimir plenamente, através do motivo da "saia amare-
promisso não corresponde necessariamente àquilo que essa irradiação la", a virtude do yin e da Terra. O "amarelo", primeiro, lembra WFZ
interior implicava e que se obedece agora às necessidades do momen- (p. 81), é a própria cor da terra: entre os coloridos "pálidos" do preto
to; entretanto, a partir do momento em que se compromete, vai-se até e do branco e os "luminosos" do vermelho e do verde, é a ele que
o fim (como convém ao fim desse primeiro trigrama e como acontece compete encarnar, entre as cinco cores, ajuste milieu. Quanto à "saia"

74 François Jullien Figuras da Imanência 75


,

(shang, com relação a yi(h')), ela corresponde à metade inferior do corpo sim completamente", os seis traços yang (de Qian) "permaneciam na
e, além disso, está habitualmente encoberta por diversos enfeites: ela sombra sem desaparecer" (não esqueçamos que essas duas primeiras
não só evoca, com relação à "roupa", uma posição inferior (como a figuras, Qian e Kun, puro yang e puro yin, foram "estabelecidas jun-
da Terra diante do Céu), mas também, porque se dissimula ao olhar, tas" e são inseparáveis na realidade): "quando urna dessas duas capa-
simboliza uma virtude que guarda em si mesma sua "irradiação" e sua cidades, chegando a seu apogeu, se esgota, a outra, que estava escon-
beleza (cf. traço 3), em vez de procurar mostrá-las e se prevalecer de- dida, surge de novo"; "daí se seguem combate e ferimentos". O san-
las (cf. ainda esse mesmo terceiro traço, ao qual não se procura atri- gue que corre então é o da luta inevitável que coloca por um momen-
buir os méritos do empreendimento). Essa reserva ilustra certamente, to face a face aquilo que está fadado a desaparecer, mas tarda em ce-
de um ponto de vista ideológico, a virtude atribuída ao yin e à Terra der o lugar, e as forças da renovação.
(à esposa, aos súditos), cuja vocação é "seguir" na sombra - em vez Ora, não o escondamos de nós mesmos: ao mesmo tempo em que
de se colocar à frente. Mas ela possui também um sentido filosófico é inelutável, essa renovação é dramática, conduz ao afrontamento ..
que o comentário simbólico desse traçai;') indica laconicamente (cf. Assim é que toda uma tradição de comentários se recusou a uma lei-
sobre esse mesmo tema o último parágrafo do Zhongyong): o "bri- tura antagonista desse traço, mesmo com o risco de forçar a letra do
lho" da personalidade do Sábio (wen) está relacionado ao "equilíbrio" texto: esse "combate" não seria mais um verdadeiro combate, mas um
que ele sabe manter em seu foro interior (zhong); e, igualmente, o que "acasalamento", e a "planície" simbolizaria a Terra sobre a qual o
"decora" e enriquece sua personalidade (wen), o Sábio não o expõe dragão yang viria se deitar; a partir daí o "sangue" misturado, e não
aos olhares, mas o guarda no fundo de si mesmo (zhong): por isso, mais vertido, se torna o fruto dessa relação (o "preto" remete ao Céu,
porque sabe permanecer insípido e discreto, a plenitude da capacida- o "amarelo", à Terra), ele exprime a vitalidade que procede da gesta-
de que ele acumula em si "sevê de por si". Eis porque o caráter "fasto" ção dessas duas energias e está apto a gerar todos os seres. Eis, então,
desse traço não é o de uma felicidade que se "procurou", mas "intrín- que o motivo do sangrento combate se transforma em seu contrário,
seca" à posição. o de uma união procriadora. Essas duas leituras, diametralmente opos-
A virtude do yin, nesse estágio, é completa e não pode apresen- tas, remetem claramente a duas visões ideológicas contraditórias. Uma,
tar crescimento: seu único futuro possível, para além da plenitude desse que é de inspiração Han (e defendida recentemente ainda por Shang
traço, é o de seu esgotamento, que provoca, por compensação, um Binghe 3 ), leva a uma concepção lenificante do desenrolar dos proces-
retorno em força do yang. WFZ interpreta, então, o sexto traço, com sos, notadamente do curso da História, e tenta riscar toda irrupção
o qual a figura se completa, segundo a mesma lógica da "passagem da violência (como se as dinastias se sucedessem sem problemas nem
ao extremo", chamando uma transformação, que se veria realçada a ruptura e a transmissão da autoridade se operasse de boa vontade):
propósito do último traço yang (o sexto da primeira figura). A divisa essa é a ideologia do poder imperial, na China, que procura fundar
é: "Dragão combatendo na planície: o sangue é preto e amarelo". Esse sua legitimidade na continuidade do mandato e no reino da harmo-
"dragão" é com certeza aquele do "puro yang" que sai de seu "enter- nia. A outra reconhece, ao contrário, no desenrolar da História, mo-
ramento" (cf. o primeiro traço de Qian) e ganha a superfície; e a "pla- mentos de conflito que justamente esse sexto traço simboliza: lem-
nície" em que se desenrola o combate evocaria, segundo WFZ, "o bremo-nos de que WFZ (do mesmo modo que, bem antes dele, Wang
exterior do hexagrama", quer dizer, acho, aquilo que se passa para Bi, no séc. I1I) vive uma época de grandes comoções em que a legiti-
além mesmo do desenvolvimento da figura. Poder-se-ia dizer: nos seus midade imperial é vivamente atacada e a própria China é invadida.
bastidores. Lá onde é representado, à parte, entre duas cenas (aquelas Mas o mérito da interpretação de WFZ não é tanto o de afirmar
que os dois primeiros hexagramas ilustram), o episódio secreto da re- o caráter inelutável da crise como o de conseguir integrá-la no desen-
novação. Como, diz-nos WFZ, o desdobramento do yin chegou ao seu rolar legítimo do processo: sob seus ares de catástrofe, que tanto nos
termo, "é necessário" que o yang faça uma nova progressão para o afetam, essa crise prepara secretamente uma "nova ordem a advir".
substituir.. "Enquanto os seis traços yin de Kun se manifestavam as- Certamente, os primeiros que, nos grandes redemoinhos da História,

76 François Jullien Figuras da Imanência 77


tentaram, por sua própria iniciativa, restabelecer a situação (e en- extremos, preservar sua moralidade interior e sua serenidade; ao pas-
carnavam, assim, o retorno do yang face ao esgotamento do yin) fo- so que nas duas extremidades de Kun, o "gelo" (no 1° traço) e o "san-
ram freqüentemente destruídos no combate em que enfrentavam seus gue" (no 6°) são signos de que o curso das coisas está "gravemente
adversários (assim, diz-nos WFZ, Chen Sheng e Xiang Liang, que fo- atingido"; e apenas essas posições são perigosas. Mas, por outro lado,
ram os primeiros a se sublevar contra a tirania de Qin e "se afunda- um vez que tanto no caso de Kun como no de Qian, a capacidade
ram com ele"; ou Xu Shouhui e Zhang Shicheng na luta que empre- evocada pelo hexagrama é "pura" e não tem mistura, a figura dá conta
endem contra os mongóis). Tais destinos são comparáveis ao "sangue" apenas do desenvolvimento sponte sua que está inscrito na ordem das
vertido do dragão: ao preço a pagar para a renovação. Mas, na medi- coisas sem levar sua falta ao homem. Eis por que, se, tanto no estágio
da em que sabemos que uma lógica está em ação através da crise, como em que "o gelo se condensa" como naquele em que "os dragões se
não cessa de nos indicar o Clássico, somos capazes de "assumir pes- enfrentam", o consulente aprende a "conhecer o destino" e a estar
soalmente" esses momentos de prova, por dolorosos que sejam. Eis atento à revolução secreta da realidade, esses estágios, não implican-
por que WFZ, que passou a vida a estudar o Clássico da mutação, do a responsabilidade do homem, não são declarados "nefastos".
continuou confiante no meio das perturbações de sua época; e, em vez Cabe, então, a essa segunda figura instaurar de modo discreto
de ceder, face à invasão externa, e de colaborar com os manchus, sua (apenas pelo efeito de sua estrutura) uma articulação essencial ao li-
postura foi a de resistir. vro. Ao mesmo tempo em que Kun está estabelecido no mesmo plano
Mas seria possível pensar de maneira mais precisa ainda a rela- de Qian, esse hexagrama assegura a transição com os outros: é ele que
ção do curso do mundo e do engajamento humano? Para tanto, re- delimita de modo mais preciso o que depende do homem e o que inde-
consideremos o sexto traço em relação ao conjunto do hexagrama: ao pende dele, inscreve a conduta humana no curso das coisas e põe em
passo que seus quatro traços centrais concernem diretamente à nossa cena a relação do homem com seu destino.
conduta (e desenham assim a esfera de nossa atividade), os traços pri-
meiro e sexto remeteriam, nas duas pontas da figura, aos planos que
a ultrapassam: ao encaminhamento subterrâneo das coisas (no 1° tra- NOTAS
ço) e à irrupção de sua violência (no 6°). Com efeito, quer se trate de
Kun ou de Qian, observa WFZ (p. 82), esses dois hexagramas "se 1 Céu e Terra, com ou sem maiúscula nas páginas seguintes, segundo reme-

fundam" na totalidade do processo da realidade, estendem-se até seu tam às "capacidades" que simbolizam ou à sua simples realidade física.
"limite extremo": por isso "aquele que estuda o Clássico" (num sen- 2 A mais corrente repousa na posição respectiva dos oito trigramas segundo
tido de formação moral) "imita o que ele pode utilizar" dessas figu- o esquema do "Céu posterior" do rei Wen: o Oeste e o Sul correspondem aos
ras, mas "não pode ir até o fim de sua dimensão". Assim, os traços trigramas yin, do mesmo gênero de Kun, de que resulta nesses lugares um acúmu-
lo do yin; o Leste e o Narre, aos trigramas yang, de que resulta para Kun, ao diri-
segundo e quinto evocam, em sua generalidade, o equilíbrio da regu-
gir-se a esse lado, a "perda" de seus "associados"; uma outra interpretação, que
lação; os traços terceiro e quarto, que correspondem mais particular- compreende esse motivo em relação ao começo e ao fim do mês lunar (a lua é yin,
mente à posição do homem, esclarecem até que ponto se estende essa como o sol é yang), tem o mérito de permitir uma leitura unitária dos diversos traços
função de "harmonização" no nível humano. O primeiro traço, em do hexagrama; mas resta saber se essa coerência temática por encadeamento de
compensação, representa o que está "escondido" sob o solo, o sexto, fases é desejável no caso de Kun e não reduz desvantajosamente sua diferença tí-
o que "plana no horizonte"; e é impossível para o homem "estender" pica com Qian; cf. infra.
sua ação a tais níveis. 3 Cf. Zhouyi Shang shi xue, Pequim, Zhonghua shuju, 1980, pp. 37 e 41.
Eis por que o Clássico trata deles em termos de curso das coisas:
"ocuItamento" ou "bloqueio" (os traços 1° e 6° de Qian), "cristaliza-
ção" ou "conflito" (os traços 1° e 6° de Kun). No caso de Qian, en-
tretanto, esclarece WFZ, o homem pode ainda, mesmo nesses estágios

78 François Jullien Figuras da Imanência 79


3. de" ou registro; mas elas são também disparatadas demais entre si para
"PROGRESSÃO" - "DECLÍNIO" se fundirem numa única história. Postas em série, não organizam ne-
ou os estágios opostos do processo nhum verdadeiro inventário e parecem inaptas à ordenação do real;
(hexagramas 11 e 12, Tai e Fi) consideradas como fragmentos de um discurso, elas se revelam inca-
pazes de produzir um sentido. Ao mesmo tempo, essas rubricas estão
alinhadas de modo uniforme demais para que se possa interrogar so-
bre suas possibilidades de imbricação (como num "quebra-cabeças").
Uma vez estabelecidas essas duas vertentes, erigido esse grande A despeito de sua forma de lista, essa obra seria apenas um magma; e
confronto, como vamos descer para a particularidade do real, entrar nenhum fio condutor nos é proposto para colocá-la em ordem.
no vivo do concreto? Para além da relação recíproca que foi colocada Por isso, querer separar os dois primeiros hexagramas de todos
pelos dois primeiros hexagramas e que funda a polaridade, qual é o os outros a fim de erigir, a partir deles, um quadro rigoroso e siste-
curso do devir? O quadro está montado, falta preenchê-lo. Mas por mático seria nos fecharmos numa lógica constritiva demais - que seria
onde começar? Sim, porque existe, longe do grande dispositivo da rea- impossível manter por longo tempo; e o quadro poderia ser pintado,
lidade, percebido em sua absoluta generalidade, o dispositivo do "Céu a partir daí, apenas por pinceladas improvisadas. A máquina de tra-
e da Terra" , no hic et nunc de cada ocasião, na infinita variedade das ços, uma vez montada, se poria a girar no vazio? E, dos julgamentos
situações. incidentes sobre os hexagramas até o comentário de cada um dos tra-
Por isso, a partir dos hexagramas que seguem imediatamente os ços, tudo se tornaria um vão enchimento 1 ? Ou seria que o real, visto
dois primeiros, quais sejam Zhun, o Enfrentamento inicial e difícil (n° de perto, não é mais do que um grande bazar e que convém dar lugar
3), ou Meng, a Confusão do espírito da juventude (n° 4), Xu, a Espe- ao heteróclito? Ora, quer se caminhe num ou noutro sentido, apenas
ra confiante (n° 5), ou Song, o tempo do Conflito (n° 6) etc., estamos os dois primeiros hexagramas, à testa do livro, e o "Grande comentá-
arriscados a provar o sentimento de que a coerência inscrita na parti- rio", que reflete a partir deles, no fim do volume, apresentariam um
da se relaxa, às vezes se perde; de que o sistema não pôde fazer face à pensamento coerente; todo o resto da obra, entre os dois, seria mais
irrupção desordenada das coisas, para submetê-la às suas exigências; um reservatório de fórmulas e de motivos, obra de fantasia.
de que o livro, entio, cai na gratuidade. Deixando de ser um puro Proponho tentar a hipótese inversa: a de que a série diversifica-
princípio, trabalhando na individualidade das fases ou dos fenômenos, da dos hexagramas, e até no detalhe de todos os seus traços, possa cons-
a polaridade não é mais tão visível; do mesmo modo, a ligação dos tituir um conj unto coerente; mas creio, então, que essa coerência só
traços, como a das figuras, não é mais tão legível. A despeito do "Tra- pode aparecer desde que se siga a lógica de transformação que religa
tado sobre o encadeamento dos hexagramas" que se encontra no fi- entre si essas diversas figuras e que se descubra, no interior de sua rede,
nal do corpus e que os enfileira cuidadosamente um após o outro por certas articulações mestras. Na seqüência dessas figuras, com efeito,
associação temática, todos os casos de figura que são passados em algumas enquadram outras e as comandam à distância (do mesmo
revista de uma ponta à outra da obra não compõem nenhuma progres- modo que as duas primeiras, Qian e Kun, comandam e enquadram a
são, não orientam em nenhuma direção; e o leitor ficará logo fatiga- todas). A despeito da unidade de sua apresentação, esses hexagramas
do por esse esvaziamento. Ladainha de traços, de figuras: as "Tropas" não devem ser considerados num mesmo plano: há aqueles que ser-
(n° 7) estão ao lado da "Associação" (n° 8), depois vêm a "Pequena ve.m de modelos ou de casos-limite em relação aos quais a série dos
parada" (n° 9) e "Pisar com os pés (a cauda do tigre)" (n° 10); mais outros deve ser compreendida como uma simples variação. Uma vez
adiante, passa-se do "Poço" (n° 48) à "Ruptura" (n° 49), e do "Cal- localizadas essas articulações, os outros hexagramas nos virão em
deirão" (n" 50) ao "Abalo" (n° 51) ... É claro, nem que seja por seus cachos e se deixarão elucidar mais facilmente.
títulos, que as rubricas abertas por esses 62 hexagramas são circuns- Por isso proporei começar por passar diretamente dos dois pri-
tanciadas'demais para servirem de simples índice - dicionário, "gra- meiros hexagramas aos dois primeiros da segunda dezena, as figuras

80 François Jullien Figuras da Imanência 81


11 e 12, Tai e Pio Eles opõem duas situações típicas: aquela em que a Então, o Céu e a Terra se cruzam e todos os existen-
comunicação se efetua no real e na qual, por conseguinte, a interação tes se comunicam,
se exerce plenamente; e aquela, contrária, em que essa comunicação é [na sociedade igualmente] o alto e o baixo se cruzam
rompida e, portanto, o funcionamento é obstruído. Destacam-se de e as aspirações são comuns.
uma só vez, a partir dessa alternativa, os dois estágios opostos do O interior é yang e o exterior é yin,
desenrolar de todo processo: o da "progressão" e o do "declínio". o interior possui a capacidade de iniciativa e o exte-
rior a aptidão de se conformar;
no interior está o homem de bem, no exterior aquele
I- PASSAGEM OU OBSTRUÇÃO que vale menos:
o caminho do homem de bem vai crescendo,
Esses dois hexagramas são compostos, com efeito, dos dois tri- o do homem sem valia vai diminuindo.
gramas do Céu e da Terra - três traços yang _ em face de três tra-
ços yin == == - mas inversamente dispostos. Só o fato de serem a com- Está subentendida aqui uma representação de conjunto, e até
binação das duas figuras de base, Qian e Kun, lhes assegura uma ex- mesmo a mais geral, daquilo que constitui a realidade. Quer se trate
cepcional importância e os faz servir de intermediários para se chegar da natureza ou da sociedade, a lógica de seu funcionamento é seme-
a todos os outros: entre os puro yang e puro yin, com os quais se abre lhante, ela se funda em sua capacidade de troca e de "comunicação(b)"
o livro, e a extrema variedade de sua mistura, apresentada em segui- no interior delas mesmas: o real só existe, como se sabe, enquanto fluxo.
da. Eles se inscrevem, portanto, de um ponto de vista lógico, no pro- Ora, o hexagrama Tai está encarregado de representar essa capacida-
longamento direto dos dois primeiros hexagramas e põem em cena de em seu mais alto grau. Nele, a comunicação é a mais ampla possí-
seu modo de relação. Por isso é neles que poderemos ler do modo mais vel porque se articula diretamente de pólo a pólo (entre um trigrama
claro, porque levada a seu mais alto grau, de que maneira se exerce, inteiramente yin e um trigrama inteiramente yang; e o Céu e a Terra
ou não se exerce, a interação. chegam até a trocar simbolicamente sua posição): a interação é com-
Na primeira dessas duas figuras, Tai, os três traços yang estão pleta e o real caminha então da melhor maneira. Também reencon-
abaixo e os três traços yin estão acima. Isso não quer dizer, certamen- tramos aqui, exercendo-se em sua plenitude, as duas capacidades re-
te, que o céu Iyang) esteja embaixo e a terra (yin) em cima e que o presentadas pelos dois primeiros hexagramas, tanto aquela de perse-
mundo esteja assim de cabeça para baixo, mas que a influência que verar e de ir para a frente, por uma iniciativa contínua (cf. Qian), como
emana do Céu penetra até embaixo e que a disponibilidade da Terra aquela de obedecer e de se conformar (cf. Kun). Quanto à relação do
com relação a ele é tão completa, que não deixa de "se abrir" para o que então "vai" ou "vem", ela pode ser compreendida, diz-nos WFZ,
alto ,00. Como indica WFZ (p. 141), o ponto de vista adotado nessa em razão dos dois pontos de vista complementares que podem ser
troca de posições é o das "energias" desdobradas: a do Céu tende a adotados para todo hexagrama: de um ponto de vista "numérico", o
subir la partir do baixo, portanto), enquanto que a da Terra tende a hexagrama se constitui por "amontoamento sucessivo a partir do bai-
descer (a partir do alto, portanto). Existe passagem a partir de um e xo", e o alto da figura representa, então, o que "vai"; mas, estando
de outro pólo e desse "cruzamento,,(a) nasce a "progressão". O hexa- ela formada, essa figura nos parece "pender" do alto, e o baixo do
grama seguinte, Pi, representa o Caso contrário: o Céu ao alto se isola hexagrama representa então, desse ponto de vista "figurativo", aqui-
em sua altura, a Terra abaixo se dobra sobre sua baixura :==; e, da lo que "vem". Ora, no caso presente, o que vem é encarnado pelos três
ruptura de sua interação, resulta a obstrução do processo. traços yang que representam o pólo positivo do real (cf. o número
A propósito do primeiro desses hexagramas, a fórmula canônica máximo 9, ou, na sociedade, a pessoa do "homem de bem"): eis por
é: "O pequeno se vai, o grande vem: fasto-progressão". É, em segui- que se diz aqui que é o "grande" que "vem"; e o que vai está encarna-
da, assim. desenvolvida: do pelos três traços yin que correspondem ao pólo negativo (cf. 6

82 François Jullien Figuras da Imanência 83


oposto a 9 ou, na sociedade, o "homem sem valia"): por isso o "pe- sa estar ainda tórrida, o estiolamento e o frio que virá já se expandem
queno" é aquele que "vai". Não esqueçamos, finalmente, que, de modo secretamente no interior das plantas. Já se viu também que, de um
geral também, a parte inferior do hexagrama corresponde ao seu "in- ponto de vista moral, o homem de bem deve guardar o rigor do yang
terior", ao passo que sua parte superior é seu "fora". Por isso as duas dentro de si, para se conduzir sem fraqueza, ao mesmo tempo em que
representações se conjugam para chegar a esses movimentos inversos: ostentar a maleabilidade do yin fora de si para se acomodar ao cará-
dentro está o yang que simboliza o "homem de bem" e constitui en- ter de outrem. Ora, é precisamente essa repartição que nos é dada a
tão a força ascendente, ao passo que o yin, que simboliza o "homem ver em Tai; ao passo que o hexagrama seguinte, Pi, ilustra o caso de
sem valia", é colocado para fora e é levado a declinar. quem se mostra cruel fora, mas é fraco em sua alma e "causa danos
Esse "vaivém(c)" é o que assegura prosperidade ao real. Ainda é aos outros para satisfazer seus desejos". Essa relação pode ser lida,
preciso distinguir, para bem compreendê-lo, entre os dois tipos de finalmente, como a precedente, num plano político: o faro de o yang
relação que nele se superpõem: essa relação pode ser lida ao mesmo estar dentro e o yin fora representa o caso em que o homem de bem
tempo, observa-nos WFZ (pp. 141-142), no sentido da reciprocidade "se assenta" com autoridade, ao passo que o homem sem valia está
e no da substituição. Do ponto de vista da reciprocidade, o Céu, como fora empregado por ele; em Pi, ao contrário, o homem de bem é ex-
se sabe, expande sua influência animadora através da Terra para "ati- pulso da corte (o interior do poder), ao passo que os homens sem va-
var" sua materialidade; a Terra, em sentido inverso, se abre para essa lia aí reinam como favoritos.
eficiência, donde decorre a geração regular dos existentes - e "nada Diferentemente da perspectiva precedente, em que é a reciproci-
existe que não se desdobre". No caso contrário, ilustrado pelo hexa- dade que conta, o segundo ponto de vista implica um julgamento de
grama seguinte, Pi, esse fluxo que anima se interrompe e a materia- valor e é fundador de hierarquia: o dentro prepondera sobre o fora, e
lidade, a partir daí, está condenada a "secar,,(d). O que pode ser lido o yang está para o yin do mesmo modo que o "homem de bem" está
também no plano político: o bom governo é aquele em que o príncipe para o "homem de nada". No caso de Tai, o positivo se afirma em
sabe fazer seus os sentimentos dos mais humildes e vela por sua sub- detrimento do negativo, que é progressivamente evacuado; e Pi é o caso
sistência material; ao mesmo tempo em que o povo faz seus os senti- contrário. Por isso, no caso de Tai, do fato de que a substituição, en-
mentos do príncipe e partilha suas alegrias e suas inquietudes. No caso tre um e outro, seja feita no bom sentido e que cada um venha ao seu
contrário, ilustrado por Pi, cada um se afirma em detrimento do ou- lugar, resulta o caráter "fasto(f)" da figura. Tai significará, então, ao
tro e, mesmo que os "rostos" dêem mostras de complacência, os "sen- mesmo tempo, por coincidência dos dois pontos de vista, a "amplidão"
timentos", no fundo do coração, são hostis: nessa falta de troca se da progressão e a "estabilidade" das posições(g). Mas, se, na fórmula
dissolve a sociedade. canônica, esse caráter "fasto" que decorre da estabilidade é mencio-
A lição é, portanto, absolutamente sistemática: é esse vaivém que, nado anteriormente à capacidade de "progressão", é porque, como
por fazer agir a reciprocidade, assegura a "progrcssão(e)" . Ao mesmo analisa precisamente WFZ, convém primeiro que cada um esteja em
tempo em que, entendido corno relação de substituição, permite que seu lugar para que a relação de reciprocidade, depois, possa efetiva-
cada um, de parte e outra, esteja em seu lugar: existe, de um lado, aquilo mente se exercer. As duas perspectivas não só coincidem, mas se en-
que se "vai" e desaparece fora; de outro lado, aquilo que "vem" para caixam, elas nos levam a reconhecer que a prosperidade é sempre a
o interior e cresce. O caso em que o yang está dentro (sob) e o yin fora conseqüência da boa ordem das coisas. Essa boa ordem encarnada por
(sobre) nos é oferecido pela primavera: quando, diz-nos WFZ (p. 142), Tai se verifica, como se viu, de todos os modos: tanto em relação aos
o sopro quente da renovação (que é yang) "se agita" e se propaga no processos naturais como em face de nossa exigência moral ou no pla-
interior das veias da natureza, ao passo que o frio (que é yin) conti- nO político. Esse diagrama possui uma validade geral e chega a servir
nua a planar sobre a paisagem; a eclosão da vegetação fica então as- de modelo da realidade.
segurada. O caso contrário em que o yang está fora e o yin está den- É legítimo, porque Tai representa o real em sua posição mais
tro, i1ustr~do por Pi, nos remete ao outono: embora a atmosfera pos- estável, donde resulta o maior impulso, que o comentário simbólico

84 François Jullien Figuras da Imanência 85


se refira mais particularmente, em seu caso, à posição do soberano. Uma mesma vocação - mas cada um desses traços é chamado
Essa é a posição por excelência no nível da humanidade: ancorada na a vivê-la de modo particular em função de sua situação no trigrama.
ordem da natureza e servindo de ponto central para a hierarquia so- Assim, o primeiro traço, oculto na base da figura, é comparável à raiz
cial; do mesmo modo que, "Filho do Céu" reinando sobre toda a ter- enterrada desses juncos: tal como a raiz que vem com a haste que é
ra, o soberano encarna do melhor modo, aos olhos dos chineses, a arrancada, e com a qual faz corpo, ele só sairá de seu enterramento e
comunicação entre "alto" e "baixo", da qual decorre uma interação só será atraído para cima se for arrastado pelos dois traços seguintes.
dinâmica que assegura aos homens a prosperidade. Como o Céu, o so- Pois enquanto que, no nível do primeiro traço, ela apenas se insinua,
berano "informa"; como a Terra, ele "assiste" e "sustenta". O hexa- essa força ascencional do yang se desenvolve, em compensação, no nível
grama Tai, no qual se realiza a perfeita união das capacidades do Céu do segundo traço (que corresponde, lembremo-nos, à fase de manifes-
e da Terra, é, então, conclui WFZ (p. 143), justamente reservado: na tação da capacidade; cf. o 1° hexagrama, Qian). Esse segundo traço
série dos hexagramas, só Tai totaliza o dinamismo em ação na .reali- "abarca", então, generosamente, até as regiões "fronteiriças" e sua
dade; e, entre oS homens, só o soberano está na posição de abarcar capacidade de comunicação é extensiva (essas regiões "fronteiriças"
esse funcionamento do real em seu pleno regime. são aquelas que, diz-nos WFZ, p. 144, ainda não foram civilizadas por
uma boa ordem política e são, por isso mesmo, simbólicas, enquanto
parceiro distante, do quinto traço, que é yin); quanto a seu ardor de
11 - O TEMPO DA PROSPERIDADE ir para a frente para não "abandonar o que está longe", ela só é com-
parável ao impulso de quem se engaja na "travessia do rio sem ter
Já que essa figura == representa a lógica de base do real, ao mes- necessidade de um barco". O que faz a força desse segundo traço para
mo tempo a mais geral e a mais simples, é normal que os julgamentos ir aO encontro do yin se deve certamente à sua posição: por ser o tra-
concernentes aos seus diferentes traços sirvam para realçar essa mes- ço mediano desse trigrama, ele não cai na "parcialidade", aquela que
ma necessidade: a de uma relação de comunicação e de troca, da qual o levaria a permanecer em companhia dos outrOS dois traços yang, que
decorre a prosperidade. Nenhuma divergência de visão é possível a esse o cercam de um e outro lado, mais do que de se lançar, como o faz,
respeito, portanto nenhuma dispersão de sentido é tolerada pelo co- na direção do yin. Eis por que o texto canônico esclarece que ele sabe
mentário, e os motivos mais diversos serão como que arrastados à força "abandonar seus companheiros" (aqueles que são do mesmo gênero
para esse tema único. que ele, os traços primeiro e terceiro): por isso, embora esteja apenas
Assim, os três primeiros traços, no baixo da figura, que são yang no trigrama inferior, é ele que é de fato, graças à sua capacidade, con-
- (e reconstituem, enquanto trigrama, a figura inicial do livro, a do clui WFZ (p. 144), o traço soberano da figura.
Céu, Qian), possuem a mesma vocação, que é entrar em relação com A alternativa colocada pela figura possui, portanto, um alcance
os três traços superiores, que são yin =: =: e lhes servem de parceiro: essa filosófico e moral que é essencial: ou permanecer com o mesmo, pró~
lógica de uma ligação com o trigrama oposto está inscrita no princí- ximo dele, e se confinar nessa comum pertinência (representada por
pio mesmo da figura, quer dizer, na posição desses traços, porque ela esses três traços yang), ou partir para fora ao encontro do outro (aqui,
os leva necessariamente a subir e, portanto, a encontrar, indo para a o trigrama superior, que é yin). Ora, como sabemos, é à sua capaci-
frente, os três traços seguintes; e do fato de que os três traços yang dade de extroversão que o real deve sua progressão: enquanto a inte-
formem um todo homogêneo, participando do mesmo destino, o texto ração é fecunda, o recuo para si é estéril. Mas uma vez passado o se-
que os introduz nos oferece uma bela imagem, a das hastes de garança gundo traço, o do equilíbrio, e ao passo que o yang se acumula ainda
ou de junco, que são solidárias entre si porque enlaçadas na raiz: quan- e se fortalece, torna-se maior a tentação de ficar no seu lugar. Por 'isso,
do se "puxa" em cima (conforme à lógica desse movimento ascenden- o julgamento consagrado ao terceiro traço conclui com essa advertência
te), elas não quebram, tanto são flexíveis, mas nos vêm juntas entre (é assim, pelo menos, que compreende WFZ, p. 145): "Não ficar pre-
as mãos -=- como um único "tufo". so àqueles em quem se confia: é na nutrição que está a felicidade."

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86 François Jullien Figuras da Imanência
~.

Aquele em quem o terceiro traço assim "confia" é certamente o segundo ele esteja, e, a "tomá-lo pela mão"(i), prefere a disponibilidade genero-
traço yang, que está bem a seu lado no mesmo trigrama; ao passo que sa ao recolhimento friorento e não teme condescender? O que se veri-
a "nutrição" remete simbolicamente à função do yin (que simboliza a fica de um ponto de vista mais propriamente político: o bom soberano
mãe, a Terra, os camponeses) no outro trigrama (o yang asseguran- é aquele cujo modo de se "apoiar nos sábios" não acarreta "afastar-se
do, por seu turno, a função retora: pai, Céu e soberano). A promessa do resto do mundo"(j); pois sabe fazer seus os interesses materiais mais
de felicidade está, então, no "acordo à distância"(h) (aqui com o sex- humildes, em vez de desdenhar deles, e "enriquece seus desejos com sua
to traço), ao passo que esse terceiro traço marca precisamente a fron- moralidade". Que se reflita realmente sobre isso: é só na medida em que
teira entre as duas partes da figura. Ou, como expressa o comentário não deixa de levar em consideração o "exterior" (seja qual for seu valor)
simbólico, ele é o traço de "horizonte" entre o céu e a terra. Ora, ima- e de integrar a diferença (mais do que se comprazer num colóquio com
ginemos o horizonte; ele nos dará uma imagem justa do que deve ser seus iguais) que o homem político pode renovar sua capacidade de dirigir,
a relação com outro: O céu e a terra aí se encontram, até mesmo se permanecendo "eqüitativamente" aberto e, por isso mesmo, pode "con-
penetram, do modo mais íntimo, diz-nos WFZ (p. 145); e, entretan- servar a prosperidade(k)".
to, sem se confundirem o mínimo que seja. Pois encontro (e comuni- Vejamos agora como essa lógica da relação com o outro é vivi-
cação) não é "mistura": cada um preserva sua identidade ao mesmo da pelo parceiro, do lado yin; e, para tanto, passemos ao trigrama
tempo em que entra em contato com o outro. Senão, a polaridade superior, franqueando o "horizonte" do terceiro traço: o quarto tra-
desapareceria e, com ela, aquilo a que está ligado todo o real. ço evoca essa elevação começando pela imagem de um "vôo"; ao mes-
Desconfiemos, entretanto, daquilo que poderia não ser mais que mo tempo, confirma, de seu próprio ponto de vista, o do yin, o desejo
uma generalização abusiva: se a polaridade é necessária na ordem dos de um acordo à distância: ele não conseguiria "enriquecer-se com seus
fenômenos naturais, como entre o "céu" e a "terra", o mesmo se dá próprios vizinhos" (que são os dois outros traços yin) e, se voa e se
forçosamente de um ponto de vista moral e político? Sabemos, com efei- distancia, é contra sua vontade (porque, diz-nos WFZ p. 146, é "se-
to, que será apenas depois da relação de substituição, operando num guir o yang", concordando embaixo com o primeiro traço aquilo a que
sentido favorável, sobre a qual repousa esse hexagrama, que, do mes- ele aspira "no fundo de seu coração", e não a ir para a frente, como o
mo modo que o yang prevalece por princípio sobre o yin, o "homem leva o movimento ascensional de todo hexagrama). Finalmente, esse
de bem" deve triunfar sobre o "homem sem valia". Não seria, então, tema do acordo entre parceiros de natureza oposta culmina no moti-
legítimo ficarmos entre nós, conscientes de nosso valor, e não nos for- vo do "casamento", no quinto traço (que é, como se sabe, o traço do
çarmos a ir ao encontro de pessoas que se sabe de antemão serem infe- apogeu). O caso dessa união que consagra a plenitude da interação em
riores a nós? Não, responde WFZ (pp. 144-145), desdobrando mais am- ação só pode concernir, já se viu por quê, à família do soberano. Res-
plamente o sentido existencial da figura. Pois por um lado, quando se ta ver bem que, segundo a lógica implicada pela figura, é o segundo
fica entre pessoas que se assemelham, esse grupo, por mais bem inten- traço yang que, subindo, vem concertar-se com esse quinto traço yin
cionado que seja, será fatalmente levado a se transformar em clã, em _ o que é contrário ao uso estabelecido em que é a jovem filha que se
bando, de que nascem rivalidades e tensões fatais ao conjunto (essa dirige à família do marido: eis por que, esclarece WFZ, a união evo-
tensão que nasce da rivalidade é exatamente o contrário da tensão ani- cada é projetada em tempos mais antigos (da dinastia dos Shang), an-
madora que decorre da polaridade). Como sublinha WFZ, as maiores teriores à fixação do ritual. O importante, em todo caso, é que esse
infelicidades da China nasceram amiúde ao mesmo tempo que essas "cas<;lmento" se cumpra entre os dois traços centrais da figura que
"súcias", que se tornaram intolerantes e sectárias. Mais essencial ain- encarnam a "retidão". Por isso se diz que esse traço é "fundamental-
da: essa relação satisfeita do mesmo para com o mesmo não é apenas mente fasto" e corresponde ao cúmulo da felicidade.
nociva em seus efeitos sociais, ela contradiz também o desabrochar da Cúmulo, apogeu: chegamos ao estágio extremo. Não esqueçamos
personalidade. O verdadeiro homem de bem não é, efetivamente, aquele que, do mesmo modo que todos os outros hexagramas, este é uma
que tende sempre a ir ao encontro do outro, por mais "distante" que figura em evolução. Não seria possível, portanto, imobilizar esse mo-

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François Juilien
menta, perpetuar essa felicidade - como uma eterna primavera: mes- declínio, em cuja base estão os três traços yin, e portanto também no
mo a estabilidade é transitória, e a progressão chama consigo o declí- "interior", e representam de agora em diante a força ascendente.
nio. Por isso, ao mesmo tempo em que insiste sobre a importância da Assim, esse simples fato de que, no caso de Tai, os signos anun-
relação de comunicação e de troca entre os pólos, de que decorre a ciadores do declínio nos surjam antes mesmo que a progressão tenha
prosperidade, esse comentário nos previne da necessária "derrocada" atingido seu apogeu, nos demonstra do modo mais claro que, ao mesmo
dessa prosperidade e de sua substituição. tempo em que elas se opõem diametralmente uma à outra e se suce-
Pois o declínio não é apenas aquilo que segue a progressão, ele dem ao se substituírem, as fases de progressão e declínio mantêm en-
já está misturado a ela. Por isso, é desde o terceiro traço, antes mes- tre si uma ligação interna que assegura sua continuidade. Eis por que
mo que inicie o segundo tempo da figura, que nos é anunciado que elas não cessam de se encadear e por que o processo pode se desenro-
"não existe terreno plano que não seja seguido de uma escarpa", nem lar sem cesura. A lição a tirar desses dois hexagramas pode ser, além
"ida que não seja seguida de um retorno": ainda não chegamos ao pico disso, mais geral: contrariamente à lógica que nos vem de Aristóteles,
da prosperidade (atingido somente no quinto traço), mas já aparecem os contrários, na China, não se excluem. Do mesmo modo que a pro-
os primeiros sintomas da queda a advir. Essa queda se manifesta aber- gressão e o declínio, eles nascem um do outro e se convertem entre si.
tamente no término da figura, no sexto traço ("respondendo" como
deve, por acordo à distância, ao terceiro traço que o prefigurava no
término do primeiro trigrama). A imagem, nesse intervalo de tempo, III - ESTATUTO DO NEGATIVO
tornou-se fortemente sombria e consagra esse afundamento: passa-se
da simples alternância do relevo, que dá ritmo à paisagem, à visão, Como é o simples inverso de Tai (os três traços yin estão embai-
radical, de um desmoronamento: "a muralha volta ao fosso". E a con- xo e os três traços yang estão em cima), a figura do declínio, Pi ==,
fiança na situação se reduz igualmente. Quando no terceiro traço nos nos é apresentada, primeiramente, de um modo sistemático, como seu
diziam ainda que "se se mantém firme", "não haverá falta", no sexto estrito oposto. Em seu caso, é o "grande" que "vai" e o "pequeno"
a margem de manobra foi reduzida, até mesmo tornada nula: enquanto que "vem". Não existindo mais "cruzamento" e interação entre o Céu
era "fasto" no início da figura (no primeiro traço) "partir em expedi- e a Terra, cada um se retirando em sua esfera, a existência não "se co-
ção", somos convidados, nesse último traço, a "não nos servirmos de munica" mais no interior de si mesma e se estio la; e, do mesmo modo,
nossos grupos"; contentemo-nos em "advertir" os nossos próximos a porque não há mais cruzamento entre "alto" e "baixo", o mundo social
se prepararem face à infelicidade iminente; e, se ainda for o caso de se se desagrega. As duas figuras se revelam, portanto, uma à outra por
"manter firme", essa constância não acontece "sem remorso". contraste, diz-nos WFZ (p. 149), colocando face a face as cenas da
Resta compreender, de um ponto de vista filosófico, que neces- "ordem" e da "desordem".
sidade nos faz passar assim da progressão ao declínio. WFZ trata dis- Mas de onde vem essa desordem? O termo que serve para desig-
so em termos de "tendência lógica", que pretende mostrar que se de- nar essa segunda figura, Pi, significa "obstruir". Segundo o modo pelp
senvolve sponte sua(l). Segundo ele, o terreno "plano", e portanto fá- qual WFZ compreende a fórmula inicial do texto, "aquele que obs-
cil, do terceiro traço, representa o yang; a "escarpa" que é sua conti- trui" é o "homem sem valia(m)", o que significa que, se não existe
nuação simboliza o perigo do yin. Não o yin que é representado pelos "cruzamento", e portanto coesão, na sociedade, não é porque o ho-
três traços superiores desse hexagrama, porque sabemos desde o co- mem de bem seria muito "elevado" para se deixar aproximar, mas
meço que estes "se vão" e serão progressivamente evacuados; mas o porque o homem de nada faz um bloqueio e "rompe" por sua conta
yin que, justo quando eliminado no alto dessa figura, a da progres- "com o Céu". Até aqui, portanto, tudo é simples: é esse homem sem
são, vai necessariamente reaparecer no baixo da figura seguinte (por- valia que é culpado e a responsabilidade humana fica confortada. Mas
que também não pode desaparecer da realidade, da qual é um dos o texto canônico continua: "isso não é benéfico para a integridade do
pólos): chegamos necessariamente à figura seguinte, Pi ==, que é a do homem de bem". Surge então a dúvida: será, então, que, com a che-

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90 François Jullien Figuras da Imanência
gada da desordem, a solidariedade estabelecida no início entre "pro- Por isso, percebida de fora, e por sondagem, a posição chinesa
veito" e "integridade(n)" (cf. as duas últimas das quatro qualidades poderia, creio, ser resumida da seguinte maneira. Primeiramente, os
atribuídas ao primeiro hexagrama, Qian), ou seja, no fundo, entre fe- chineses valorizam demais a analogia estabelecida no início entre os
licidade e virtude, seria repentinamente rompida? O processo do real fenômenos naturais e o mundo humano (cf. aqui entre o Céu e a Ter-
não seria mais confiável? E, indiretamente: será preciso esperar um ra, por um lado, o "alto" e o "baixo" da sociedade, de outro) para
outro mundo para ver essas duas exigências se reconciliarem? poder descer em profundidade na compreensão do mal, encarado sob
O ponto é, percebe-se, tão importante que nos leva a fazer um um ângulo propriamente moral. Os chineses pararam no caminho da
recuo maior, por um instante; creio também que uma das questões mais tentação ou da fascinação que o mal exerce, e também de sua ambi-
delicadas que a reflexão dos chineses nos coloca é precisamente aque- güidade. Poder-se-ia perguntar, então: de onde nos sai esse "homem
la do estatuto que atribuem à "negatividade". Pois a partir do momento sem valia" cuja evocação inicia aqui o texto canônico (se não for re-
em que decidimos não mais ler os textos do pensamento chinês a par- duzido a uma pura designação sociológica)? Por outro lado, os chine-
tir apenas de sua óptica (a tradição servindo apenas, como se sabe, para ses valorizam também demais a coesão do real e do bem confirman-
secretar uma falsa evidência), mas interrogar a seu respeito (portan- do-se no nível mesmO da experiência, aquela que o grande Processo
to, para nós, usando o privilégio de um ponto de vista comparatista), do mundo desdobra e que o Clássico da mutação justifica tão preci-
somos então levados a considerar não só o que esses textos dizem, mas samente, para poder durante muito tempo dar conta da situação de
também o que eles não dizem, não só os aspectos que abordam, mas injustiça em que está o homem de bem que, a despeito de sua razão,
também aqueles que não abordam - de que estão inconscientes, ou se vê maltratado. Após muito escutar esse grito de angústia e de re-
que negligenciam, ou que querem ignorar - , não podemos deixar de volta do justo oprimido, aquele que não cessou de ecoar através dos
ficar impressionados, creio eu, pela importância, em relação a esse tempos no Ocidente (da derrelicção de Jó à profissão do Vigário rous-
ponto, do deslocamento. Uma posição, como se sabe, não é compre- seauniano), poderia ser grande a tentação de apelar para a Transcen-
endida apenas do interior, deve ser encarada também de fora; e a di- dência (com toda a sua aparelhagem adequada: imortalidade da alma,
vergência das concepções, como aqui a propósito da "negatividade", retribuição divina e paraíso). E de abandonar, por conseguinte, a ló-
não se reduz a uma diferença de conteúdo, é assunto de perspectiva e gica de pura imanência que se funda na auto-regulação do Processo.
depende do modo pelo qual a questão é colocada já no seu ponto de Será muito mais interessante, nessas condições, considerar como
partida. Por isso, tudo o que resiste, quando se tenta enquadrar essas o comentário canônico e, em seguida, o de WFZ vão tentar reduzir a
duas posições, a chinesa e a "nossa" (esse nós remetendo aqui global- diferença surgida aqui, no início, entre proveito e integridade. Primeiro,
mente ao ponto de vista judaico-cristão, ultrapassando enormemente esclarece WFZ (p. 148), o fato de que "isso não seja proveitoso à in-
a simples pertinência religiosa), nos faz sondar por reação seu rebai- tegridade do homem de bem" não significa nem que "isso beneficia a
xamento respectivo. Aparece não só aquilo que cada um desses dois não-integridade do homem sem valia" nem que "o homem de bem
pensamentos assume, mas também aquilo que ele não assume. Não poderia, renunciando à sua retidão (sua integridade mora!), tirar pro-
só o que ele esclarece, mas também seus ângulos mortos e seus pon- veito dela". O que quer dizer que, se a integridade pode ser sem pro-
tos cegos: até onde ele vai num certo sentido e onde ele pára, as difi- veito, a recíproca não seria verdadeira e não poderia haver proveito
culdades que transpõe e quando é levado a negociar, os obstáculos que sem integridade. Eis, então, a coesão dos dois termos restabelecida pela
o fazem desviar e os ajustamentos que procede pacientemente em se- metade (pelo menos, no plano dos princípios). Por outro lado, o co-
guida - os caminhos, enfim, que ele não trilha ao mesmo tem po que mentário simbólico considera que, nO caso de Pi, o homem de bem
as lógicas que ele explora ... Em suma, as escolhas que faz, sem se dar "restringe" a manifestação de sua própria "capacidade" e que ele "não
conta, do mesmo modo que as coerências que o sustentam. Isto é, efe- pode conhecer a glória de grandes emolumentos". Não é, então, a
tivamente, todo o proveito (de inte1igibilidade) que encontra (nessas capacidade em si mesma, enquanto poder de "obtenção", que está em

escolhas, ém suas coerências) e também, claro, o preço a pagar. questão (cf. a interpretação tradicional de de por seu homônimo )),

92 François Jullien 93
Figuras da Imanência
mas apenas a oportunidade que o homem tem, ou não tem, de a des- último hexagrama, como a adversidade à qual se é confrontado é le-
dobrar (e é com vistas a determinar essa oportunidade, a única ques- vada por si mesma a se apagar. O exemplo invocado é, no segundo
tão que fica em suspenso, que o Clássico da mutação, precisamente, traço, o do vassalo que guarda em si mesmo seu "brilho" (cf. o trigrama
deve ser consultado). O conselho assim dado é que, no caso de Pi, agora ao mesmo tempo inferior e interior: Li, a luz), sempre continuando a
que são os fatores negativos que prevalecem, é melhor não fazer exi- servir seu tenebroso soberano ("conformando-se" a ele com a flexibi-
bição de sua capacidade, pelo receio de chocar muito abertamente lidade que é a virtude do trigrama superior, Kun, a Terra). Aos olhos
aqueles que estão agora no poder e atrair aborrecimentos para si: o dos chineses, não só é absurdo desafiar o poder, mas também é imo-
mais sábio não é "economizar" na espera de dias melhores, quer di- ral- mesmo que esse poder seja injusto - se revoltar (porque isso é
zer, contando com o retorno - previsível- dos fatores positivos que colocar em questão o princípio hierárquico que serve de fundamento
permitirão intervir de novo e triunfar2 ? Eis, então, que, graças a esse para a ordem das coisas): o Sábio espera, portanto, simplesmente que
rodeio estratégico, o princípio de base continua quase intacto: a ca- os efeitos negativos dessa tirania sejam suficientemente manifestados
pacidade interior, desde que se exerça, é sempre eficaz; os "emolu- para que a ascendência detida pelo mau soberano seja esgotada e que
mentos", diz-nos WFZ (p. 149), estão em pé de igualdade com seu a autoridade caiba então a ele sponte sua, graças ao crédito adquiri-
desdobramento, ela é sempre recompensada de maneira objetiva. Che- do junto aos outros por seu mérito. O exemplo é, no quinto traço, o
gar-se-ia, portanto, à seguinte conclusão: o Mundo não contradiz a do Sábio que vela intencionalmente sua claridade, até simulando a
virtude; e seria inútil procurar imaginar para ela, poder-se-ia continuar, loucura, para se colocar ao abrigo da ferocidade do príncipe, mas nem
um "além" qualquer. por isso preserva menos sua retidão interior. Como nos diz WFZ (p.
Poder-se-á observar ainda mais precisamente como o Clássico da 306), o "obscurecimento" a que dão lugar os maus reinos não pode-
mutação pretende dissipar todo conflito que opõe "proveito" e "inte- ria tocar a personalidade do Sábio (do mesmo modo que o obscu-
gridade" , felicidade e virtude, e, assim, integrar a negatividade na ló- recimento do dia, quando chega a noite, não coloca em causa o bri-
gica reguladora de seu sistema, reportando-nos a um outro par de lho do sol): é só que essa fonte de luz é velada (cf. na figura os três
hexagramas concebido sobre esse modelo, os do Progresso e do Obs- traços yin da terra acumulados no alto e fazendo barreira) e que a
curecimento da luz (nOs 35 e 36). Essas duas figuras são também o influência benéfica do Sábio não pode mais se expandir sobre outrem.
simples inverso uma da outra e sua única modificação, com relação Ora, ao passo que esses exemplos ocupam os dois traços centrais do
ao par Tai-Pi, é a substituição do trigrama do Céu (face à Terra) pelo hexagrama e lhe servem assim de estrutura, o caso do mau soberano
da luz e do sol (trigrama Li =). A primeira dessas figuras (jin ~~) só é evocado no sexto traço (para além, então, de sua posição legíti-
representa o sol que "se ergue sobre a terra" e simboliza o avanço na ma, a quinta): na margem extrema da figura e prestes a ser evacuado.
carreira (num nível inferior ao de Tai: o ponto de vista adotado é o É apenas em seu caso, diz-nos o texto canônico, que as trevas estão
do grande vassalo); a divisa é: "O poderoso marquês se vê gratificado completas; por isso, "depois de ter subido ao céu, ele mergulha na
com grande número de cavalos; num único dia, foi recebido três ve- terra" , e seu reino desmorona: o mundo humano está então pronto, a
zes em audiência". A figura seguinte e inversa (Ming yi = =) represen- exemplo dos ciclos naturais, para uma nova aurora.
ta, portanto, logicamente a luz do sol que "se esconde no seio da ter- Se existe um episódio que, tal como foi posto em cena pela tra-
ra" e simboliza, sempre na perspectiva dos nobres da corte, um período dição posterior, marcou profundamente a visão dos chineses, orien-
de grandes infelicidades devidas ao "obscurecimento" da soberania, tando-a, a partir das antigas crenças religiosas, para uma interpreta-
quer dizer, à tirania do príncipe. A divisa é, então, lacônica: "Nas di- ção cosmológica e "reguladora" da realidade, foi aquele que os diversos
ficuldades, é proveitoso manter-se firme". traços dessa figura evocam: o desmoronamento da dinastia dos Shang
A mesma oposição reaparece, portanto, de um par de figuras a e sua substituição pelos Zhou (no séc. XI a.c.). São, com efeito, os
outro, mas ela se apresenta, com essas duas figuras, sob um ângulo representantes da linhagem ascendente, perseverando em sua integri-
mais particular: não será mais cômodo mostrar, a propósito desse dade, que vemos surgir desde os primeiros traços (segundo WFZ, e na

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ordem: o duque Tai, o rei Wen, o duque de Zhou etc.), ao passo que extinção de toda polaridade e a desintegração do real; do mesmo modo
é o último soberano dos Shang - que desmereceu - que vemos ser que se recusa a pensar um mal que "irrompe de si mesmo" com a or-
expulso no último. A "revolução" que então ocorreu, diz-nos WFZ dem das coisas - diabólico ou perverso.
(p. 311), fazendo eco a toda a historiografia chinesa, não se deveu ao O tratamento simétrico, mas invertido, que se espera no caso de
fato de que o fundador da nova dinastia tenha sabido "pegar no ar" Pi (o declínio) com relação aos traços de Tai (a prosperidade), porque
o "mandato" celeste, mas, segundo uma visão mais "profunda" e mais é apresentado como seu estrito oposto, ressurge, entretanto, no início
"j usta", corresponde ao "desdobramento espontâneo" da "lógica" da figura. Assim, o mesmo motivo do tufo de garança ou de junco rea-
inerente aos "processos naturais", isto é, o jogo do yin e do yang(p). parece de um e outro lado: aqui, são os três traços yin da parte inferior
"Cobrindo com um véu" ele próprio sua "claridade" em seu compor- do trigrama que fazem corpo e nos vêm ao mesmo tempo entre as mãos.
tamento exterior, sempre preservando-a em seu foro interior graças à Do mesmo modo, o estatuto embrionário do primeiro traço é análogo
sua moralidade, o "homem de bem" finalmente teve ganho de causa dos dois lados: no caso de Tai (a "prosperidade"), o primeiro traço ainda
sobre o "homem sem valia", ele o substitui no poder e "proveito" e estava muito "escondido" para ter, por si só, acesso à dinâmica ascen-
"integridade", novamente, estão em pé de igualdade 1q ). Se, portanto, dente de onde resultava a progressão; no caso de Fi (o "declínio"), o
os tempos de adversidade adiam a realização da felicidade graças à traço inicial escapa ainda ao perigo de obstrução de onde procede a ad-
virtude (e eis por que o Sábio deve saber "esperar", perseverando, sem versidade: se se "tem razão", esse traço é "fasto" e permite ainda a
se desencorajar com esse atraso), eles não poderiam colocar em ques- "progressão". E, ao passo que o primeiro traço de Tai, a prosperida-
tão sua solidaridade essencial. E, por conseguinte, é a História que se de, precisava ser arrastado pelos dois seguintes para ser atraído para o
impõe, aos olhos dos chineses, na falta de um outro mundo (ou dis- alto, é ao contrário, no caso de Pi, o declínio, ao se dessolidarizar dos
pensando-o), como o lugar natural dessa reconciliação: a fenda surgida dois traços seguintes, que esse traço inicial pode ir, como ele aspira, ao
no ponto de partida, que ameaçava todo o edifício do moralismo chi- encontro do quarto traço (yang) que é seu "senhor" no outro trigrama.
nês, está cuidadosamente aterrada. No portal mesmo da adversidade, a "lógica de progressão e de comu-
nicação" (WFZ, p. 149) não é entretanto rompida.
É só, portanto, no nível do segundo traço que esse portal da adver-
IV - A INVERSÃO DO DEClÍNIO sidade pode ser franqueado. Ao passo que o segundo traço de Tai, a
prosperidade, estava apto a "abraçar" longe, e até as regiões fron-
Compreende-se a partir de agora facilmente aquilo que teria pa- teiriças ainda não policiadas (o quinto traço yin), esse segundo traço
recido um paradoxo: que os três últimos traços do hexagrama Pi, o de Pi, o declínio, só está apto a "abraçar" o outro (o quinto traço yang
"declínio", sejam consagrados à reabsorção progressiva do negativo no alto) se "se submeter" a ele. O inverso da "comunicação" prece-
e cheguem mesmo, na extremidade superior da figura, à sua comple- dente não seria, então, uma ausência de comunicação, mas uma co-
ta "inversão". Quanto aos três primeiros traços, eles só evocam esse municação que opera em sentido inverso: vê-se como o problema do
tempo de adversidade, a bem dizer, de modo enviesado. Como nota o mal, apenas esboçado, é logo contornado. A relação continua sendo
próprio WFZ (p. 150), que vê uma marca de "sabedoria" da parte do a mesma que na figura adversa, apenas a perspectiva foi mudada: o
autor do Clássico, ao passo que o tema anunciado da figura é a "obs- ponto de vista levado em consideração não é mais, como no caso de
truç-ão" e a ausência d~ comunicação entre os pólos, os julgamentos Tai,,o do superior governando o inferior, mas o do inferior tornan-
concernentes a esses primeiros traços yin encarregados de evocar a ne- do-se dependente do superior. Ora, segundo a ideologia chinesa, essa
gatividade subentendem, entretanto, troca e cruzamento: é que o au- relação de dependência só pode ser benéfica ao inferior que se submete
tor do Clássico, diz-nos WFZ, "não desejava que o yin se endurecesse a ela, e eis por que esse traço é dito "fasro" para o "homem sem va-
no mal a ponto de se romper(r)". O pensamento chinês, como se vê, lia"; para o homem de bem, em compensação, tal como WFZ com-
se recusa' a conceber mais precisamente (isto é, no nível dos traços) a preende a fórmula (p. 150), a submissão do homem sem valia à sua

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atenção não está apta a "modificar O bloqueio" da situação em que te, para os chineses, o mal não oferece nenhum ângulo de visão, não
está e a "fazer-lhe as vezes de progressão". Por isso, ao passo que a abre perspectiva para nada; e eis por que ele se deixa tão facilmente
vocação afirmada no caso do segundo traço de Tai, a prosperidade, reabsorver. Verificar-se-á, ainda, essa maneira de conter todo desdo-
era não se confinar na relação com o mesmo (mas ir generosamente bramento possível, considerando-o sempre de fora, isto é, segundo a
ao encontro do outro), acontece o contrário com os três traços yang perspectiva unívoca do bem, a propósito do traço seguinte, que, en-
de Pi, o declínio, diz-nos o comentário simbólico desse segundo tra- tretanto, corresponderia ao tempo mais forte do declínio. O julgámento
ço, de não deixar "turvar" o bom entendimento entre eles, deixando- a seu respeito é lacônico: "abraçar - vergonha". "Abraçar" testemu-
se curvar por essa relação exterior, e inferior, com o yin, e continua- nha o fato de que, mesmo nesse estágio, a comunicação entre os dois
rem solidários para preservar o "Caminho". pólos, alto e baixo, é mantida; e a "vergonha" é bem aquela que deve
A inversão se opera, então, entre essas duas figuras - mas sem necessariamente experimentar o homem sem valia aos olhos do ho-
realmente as opor. O que só é possível, certamente, trapaceando com mem de bem: essa relação vergonhosa é aquela que, no auge de sua
a simetria e ao preço de uma certa ambigüidade. Como pensar que o potência, o homem sem valia pretende impor ao homem de bem com
homem sem valia, agora que, como diz WFZ (p. 150), "obtém uma suas lisonjas. Mas, como ele ~'não está em seu lugar" (traço yin num
posição" no mundo e "realiza suas ambições", "pode ao mesmo tem- lugar yang, observa o comentário simbólico), seu desejo de se ligar a
po se submeter ao yang", símbolo do homem de bem, e "concordar outro não tem interesse.
com ele" - de sorte que isso seja "fasto" para ele mesmo(s)? Ou, para Aqui termina a manifestação da negatividade do "declínio", mani-
ser mais preciso e colocar o dedo no ponto em que se opera o desliza- festação acima de tudo muito limitada, porque não questiona jamais
mento, o que significa esse "ao mesmo tempo(t)" que liga aqui o su- a lógica de conjunto do processo. Com os três traços superiores da
cesso político e social de que goza o homem sem valia, em tempo de figura, a positividade do yang retoma a iniciativa, o declínio se inver-
adversidade, e sua capacidade de obedecer ao bem e se conformar à te e a ordem é reencontrada. Desde o quarto traço, com efeito, a co-
ordem? É claro, em todo caso, que, segundo a lógica que o comentá- municação entre os pólos, os trigramas, se reestabelece como se deve:
rio impõe logo de início ao livro, o termo "fasto(u)" não significa que o julgamento proferido a seu respeito menciona de novo a "felicida-
isso ~eja favorável ao homem sem valia segundo seu ponto de vista de" de entrar em contato com seu parceiro (sentido de chou, segundo
particular (agora que ele está apto, graças a seu triunfo temporal, a WFZ, p. 151) que é, em seu caso, o primeiro traço; e se pode parecer
oprimir o homem de bem), mas que o que lhe acontece então (subme- moralmente "duvidoso", à primeira vista, que o "homem de bem"
ter-se ao homem sup~rior "ao mesmo tempo em que" obtém uma (representado pelo yang) experimente tão poucos escrúpulos para ir
posição) é favorável ao conjunto e vai no sentido do Processo. Quer assim ao encontro do "homem sem valia", representado pelo yin, esse
dizer que "fasto" deve significar, com efeito, "positivo"; e também que traço não deixa de ser declarado "sem falta". Aquele que o traço se-
o sucesso do mal, do inferior, só é levado em consideração na medida guinte coloca em posição de soberano não age por iniciativa própria
mesma em que é capaz de se orientar para o bem e se integra a ele. É, e para seu prazer, mas, como indica o texto canônico, "sob ordem":
portanto, a perspectiva do bem que, por esse estalar de dedos, englo- sua missão é, como a de um bom ministro, "reduzir a negatividade(v)"
ba e domina. E a idéia daquilo que favoreceria o mal em si mesmo, arrancando esse primeiro traço do "tufo" dos traços yin em que se
isto é, indo em seu sentido, é, em si mesma, completamente abando- encontra, sem querer, envolvido. Lembremo-nos, com efeito, que esse
nada. Como se não se pudesse sequer suspeitá-la... . prim~iro traço yin aspirava a essa aproximação de modo "íntegro", e
É, então, de modo suave e sem aviso, que o negativo é desativado. não viciado, como os dois seguintes. Ele representa, diz-nos WFZ, o
Mas o estalar de dedos que também opera discretamente, ocultado por caso desses jovens que, em épocas de perturbações, "não sabem se sair
uma argumentação particular, representa, na realidade, um verdadei- bem por si mesmos": "se são repelidos, terminarão por se dar mal";
ro golpe de força: a saber, que o mal não seja jamais considerado se- ao passo que, se são atraídos ao bom caminho, saberão depois nele
gundo o ângulo que poderia ser o seu. E bem parece que, efetivamen- progredir. Deve-se meditar sobre essa lição notadamente no plano

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político. A intransigência, com efeito, é terrível, adverte-nos WFZ, a a passagem de um a outro: da progressão ao declínio e do declínio a
despeito de sua bela aparência: pois, talhando com muito rigor entre uma nova progressão. Bem longe, portanto, de poder colocar em ques-
o bem e o mal, ela bloqueia toda oportunidade de evolução, torna o tão a regularidade do processo, a manifestação do negativo serve para
mal inveterado e a situação sem remédio. sua continuidade, permitindo que o processo se renove. Continuida-
O quinto traço é o inverso do segundo: um é "fasto" para o "ho- de, mas não progresso: eSSa representação não é "dialética". E outras
mem sem valia", o outro é "fasto" para o "grande homem". Ao pas- figuras virão se intercalar entre as fases adversas da progressão e do
so que aquele nos fazia entrar num tempo de adversidade, este nos faz declínio para mais facilmente dar conta dessa eterna transição.
sair dele. Embora WFZ não compreenda a expressão inicial concer-
nente a esse traço segundo o sentido, mais correntemente adotado, de
"paralisar" a obstrução (o declínio), mas no sentido de continuar "em NOTAS
repouso", "tranqüilo", no seio da obstrução ou do declínio (xiu sen-
do tomado de modo intransitivo 1wl ), a positividade conferida ao tra- 1 É particularmente a crítica que Hegel, em suas Lições sobre a filosofia da

ço continua a mesma: a·despeito desses tempos de obscuridade, o Sá- história, não deixa de dirigir ao I Ching: se os traços de base, pleno ou partido,
bio é imperturbável em seu foro interior; e mesmo que o perigo o devem figurar a oposição da unidade e da dualidade e, assim, dão acesso a uma
significação abstrata, a diversidade dos hexagramas nos faz passar muito "depressa"
ameace ainda, porque não recuperou o poder (malgrado a posição de
"da abstração à matéria". Assim, "começa-se por pensamentos e depois se diva-
soberania que já ocupa por sua ascendência), sua constância o coloca ga" (Geht's in die Berge). Com efeito, "jamais viria ao espírito de um europeu
ao abrigo. Enquanto que a imagem proposta no começo dessas figu- colocar os objetos sensíveis tão perto da abstração": por isso a "universal abstra-
ras é a do tufo de garança ou de junco que se "arranca", a imagem ção dos chineses" "se estende até ao concreto", "mas só a partir da ordem exte-
com que se fecha é a do bosque de amoreiras, profundamente enrai- rior, de modo que nada podemos aí encontrar de sensato".
zadas, ao qual se "prende". O Sábio, cravado ao real por sua capaci- 2 É melhor recolher-se e "fechar a porta" (como o dragão que se enfurna
dade, é indestrutível. para hibernar). Como se pode constatar ainda hoje, o homem político chinês que
Ao último traço, então, cabe fazer o balanço dessa evolução: o está em dificuldades "se economiza", retirando-se para o campo, dizendo-se "doen-
te" etc.
da "inversão{xl" do negativo. "Primeiro a obstrução, depois a alegria",
indica a fórmula canônica. Nesse estágio, conclui WFZ (pp. 152-153),
o yang está empoleirado alto demais na figura para ainda sujeitar-se,
por menor que seja a ingerência do yin, e os traços precedentes pre-
pararam suficientemente o terreno para que ele possa manifestar sua
"potência" "atacando". Nessa fase, a obstrução que os três yin prati-
cavam "manifestou-se completamente" e, portanto, "não tem mais
força"; e a "vergonha" ligada ao último desses traços yin a partir de
agora está exposta a todos os olhares. Os homens sem valia esgota-
ram todas as pequenas astúcias pelas quais se mantinham no poder:
sua derrocada é "fácil", tanto a situação se presta a isso, e o "conten-
tamento" , a partir de então, é geral.
Essa inversão do negativo no sexto traço de Pi, o declínio, é,
portanto, o exato inverso do desmoronamento da "muralha" que "re-
torna ao fosso" do último traço de Tai, a prosperidade. Ao mesmo
tempo em que correspondem aos dois momentos opostos do desen-
rolar do processo, esses traços-articulações asseguram por si mesmos

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4. ambas e servem para fixar as duas fases contrárias do processo. Ora,
"INCITAÇÃO" - "CONSERVAÇÃO", "DIMINUIÇÃO"- eis que, na segunda parte do livro (do hexagrama 31 ao 64), três novos
"AUMENTO", "COMPLETUDE" - "INCOMPLETUDE" pares de figuras procedem por derivação desse arquétipo, progressãol
ou como pensar a transição? declínio, explorando alternadamente todas as suas possibilidades de
(hexagramas 31 e 32, Xian e Heng, 41 e 42, Sun e Vi, transformação: por permuta dos traços terminais dos dois trigramas (3°
63 e 64, fifi e Wezj'i) e 6° traços), ou de seus traços iniciais (1 ° e 4° traços), ou ainda de seus
traços medianos (2° e 5° traços). E, novamente, os lugares ocupados por
É fácil, em suma, fixar pólos, ou caracterizar estados inversos. esses hexagramas são significativos e servem de balizas (significativos
A lógica adversativa organiza por si mesma o quadro, leva-o numa mes- com relação à ordem de apresentação do livro, mas de modo algum
ma direção. "Ordem" ou "desordem", "felicidade" ou "calamidade": imperativos, porque nenhuma ordem foi interrompida e porque os hexa-
a unidade apresentada por esses estados continua sempre, como se gramas se prestam tanto a múltiplas combinações como às seriações mais
poderá entender, relativamente abstrata. Eles se beneficiam de uma ra- variadas): no início dessa segunda parte, os hexagramas 31 e 32, Xian
dicalização máxima, que opera num sentido ou em outro, e aspiram e Heng, evocam os dois estágios de ultrapassagem da progressão e do
ao limite (e são, portanto, codificados por ele: o melhorlo pior; "Sá- declínio, ou antes do declínio e da progressão, os da "incitação estimu-
bio" ou "homem sem valia"). Mas o entre-dois, aquilo que nos faz ladora" e da "duração conservadora"; dez figuras adiante, os hexa-
passar de um extremo a outro, ele se deixará apreender a partir des- gramas 41 e 42, Sun e Yi (simétricos por sua posição com relação a 11
ses opostos e não seria ele uma inextricávelconfusão? O que nos ocorre e 12, Tai e Pi) dão conta das duas tendências, inversas mas complemen-
perguntar é que luz esses dois estados da progressão e do declínio tares, constitutivas do devir, as da "diminuição" e do "aumento"; na
chegam a projetar para além de si mesmos, quer dizer, ao encontro conclusão ,do livro, finalmente, os hexagramas 63 e 64,jiji e Weiji, opõem
um do outro, para aclarar o curso ordinário dos processos: a luz vem entre si a "completude" (por adequação factícia) e a "incompletude"
das bordas - mas o que ela aclara no centro? Ou, para dizer de ou- - na última figura - que fecha o livro com 'uma suspensão.
tro modo, em que medida a alternativa que resulta da oposição deles Essas derivações, aqui recapituladas, formam um sistema explí-
pode prestar contas ao mesmo tempo do detalhe e da diversidade das cito; ao mesmo tempo em que, distribuídas ao longo do livro, irrigam-
evoluções? Essas evoluções podem nos parecer difusas demais para se no com uma lógica que se renova periodicamente. Por isso servem como
deixarem focalizar, inconsistentes demais também para fornecerem articulações sucessivas, que se revezam no livro e lhe conferem uma
pontos de referência, ou ainda inca ativas demais, e aleatórias demais, armação tanto mais sólida quanto não se deixa imobilizar - e, por-
para deixarem transparecer uma tendência mais geral em que se pos- tanto, esgotar - em função de um único esquema. É verdade que exis-
sa confiar. E, entretanto, são elas, como se sabe, que não cessam de te um modelo, fundado na relação de interação, mas é um modelo aberto
fazer advir o real, constituem-no, portanto, intrinsecamente. Por isso, e que trabalha em todos os sentidos; e é porque respondem a essa du-
só será possível estabelecer uma lógica da imanência, ressaltando-se a pla exigência, de unidade e de variabilidade, que esses diversos pares
coerência dessa constante transição: por um lado, seguindo a conti- de figuras, considerados a seguir, estarão aptos a aclarar o real: ao mesmo
nuidade da evolução, até em sua malha mais fina; e, de outro, desdo- tempo em sua coerência interna e em sua capacidade, de inovação.
brando todo o leque de suas possibilidades.
Recapitulemos o caminho percorrido nesse sentido. À testa do livro,
os dois primeiros hexagramas, Qian e Kun, apresentavam as duas capa- I - A INCITAÇÃO ESTIMULADORA
cidades, opostas e complementares, que servem de "capital" para todo (XIAN, HEXAGRAMA 31)
o real. Dez figuras adiante, os dois hexagramas 11 e 12, Tai e Pi, compos-
tos por ,metade das duas figuras iniciais, puseram à luz, em seu estágio O primeiro hexagrama dessa série, Xian, nO 31, procede da figu-
mais radical, a possibilidade (ou a impossibilidade) de interação entre ra Pi, o declínio, por permuta dos dois traços de acabamento dos dois

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trigramas: o 6° traço yang desce para a 3" posição e o 3 o traço yin sobe tude interior, reage ao Mundo, a incitação que o Sábio daí recebe basta
para a 6 ~==/.• ::. Xian significa "todos", ao mes'mo tempo em que
a
para desencadear em si uma emoção moral que ele não pode conter
"incitar" (cf. seu composto mais corrente, gan(a), "comover"): e os 3° (cf. WFZ, p. 277); e esse transbordamento da moralidade chega por
e 6° traços que são aqui permutados representam a parte mais exte- si mesmo a incitar toda a sociedade por reação em cadeia, numa es-
rior - porque superior - de cada um dos trigramas (diferentemente pécie de contágio do bem. Segundo a visão que é tradicional na Chi-
dos traços 1 e 4, que representam seu fundamento "oculto", ou dos na, o Sábio não "instrui" os outroS com sua "palavra", expondo dog-
traços 2 e 5, que constituem seu "centro"). A figura significa, então, maticamente a verdade e dando lições, mas não cessa de os estimular.
diz-nos WFZ (p. 276), a incitação por contato de fora que não cessa Ele não tem por vocação trazer aos homens uma mensagem, que eles
de se produzir entre todos os existentes!b); e como esse princípio é uni- só precisariam entender, mas, com seu exemplo, os condiciona: não é
versal e constante e porque é dele que decorre a geração do real, com- um sentido que lhes "comunica", para lhes servir de revelação, mas
preende-se que essa figura esteja colocada no início da segunda parte simplesmente (o que é muito mais que uma palavra) uma "incitação".
do livro - a título de novo ponto de partida. Por isso, ness.e nível supremo, o caráter não seletivo, ao mesmo
Mas nem por isso essa figura, cuja importância é manifesta, é des- tempo que imediato, da incitação/reação entra em jogo de modo po-
tituída de toda ambigüidade. Decerto, ela representa o modo de come- sitivo. É até mesmo o que há de mais positivo: é ele que permite que o
çar a sair de Pi, o "declínio", de que ela deriva: por reação à incitação processo de geração do real, do mesmo modo que a conduta do Sá-
vinda de fora, a existência é novamente "posta em movimento"(c), sai bio, se isentem de toda intencionalidade, não sejam restritos por um
de sua estagnação e pode "se comunicar": a interação (re)começa. Tam- objeto particular (que seriam levados a privilegiar), não sejam jamais
bém se atribui a essa figura a capacidade de "progressão"(d) e ela alia levados a penar, para se realizar, mas operam sponte sua. Essa "es-
"proveito" e "integridade". Mas, ao mesmo tempo, observa-nos WFZ, pontaneidade" da incitação/reação é suficiente, em si mesma, para
essa incitação é "superficial": ela opera no nível dos traços 3° e 6°, na tornar o real inteligível: "a entrada em contato acarreta inelutavelmente
superfície dos dois trigramas, e a "comunicação" que daí decorre não uma comunicação de parte a parte,,!f), diz-nos WFZ (p. 278); e "des-
é estendida desde o início, como no caso de Tai, a "progressão", ao de que existe encontro, existe também resposta a partir da detonação
conjunto da figura. Trata-se, então, de uma incitação que se produz por do curso em evolução das coisas(g)". Todos os fenômenos da nature-
reação imediata aos estímulos que recebemos de fora, de maneira pu- za, sejam eles favoráveis ou desfavoráveis, e por mais variados que
ramente adventícia ao mesmo tempo que automática, e sem se acom- sejam, são compreendidos, assim, "logicamente". A espontaneidade
panhar de um fenômeno de consciência, sem exigir "exame" ou "ma- (da incitação/reação) presta contas da realidade até em sua dimensão
turação". Ela não possui, portanto, a riqueza da "emoção(e)", cuja inten- invisível(hl e vem assim a se confundir, rto pensamento chinês, com a
sidade - na reação - procede da profundidade de nossa interiorida- "razão" das coisas.
de. Não só ela não é "seletiva", diz-nos ainda WFZ, p. 277 (todos os Abandonemos agora o estágio ideal de uma espontaneidade da
existentes não cessam de se incitar mutuamente), mas ela continua, além sabedoria, e sua perfeição natural, para chegar àquele, inferior, do
disso, incontrolável, e eis por que se revela sujeita à caução no plano esforço humano. Também aí verificaremos esse princípio: o alcance
moral: é sempre repentina e nem um pouco "progressiva" e não obe- de uma incitação e seu valor moral"são -função da capacidade que te-
dece por si mesma a nenhuma "norma" que sirva à sua regulação. mos de aprofundar essa estimulação superficial, interiorizando-a. O
Tudo depende, portanto, entre quais elementos se produz esse motivo inicial da figura, "tomar uma mulher é fasto", evoca nesse nível
fenômeno da incitação, em si mesmo universal e constante. Quando a incitação por excelência, aquela. entre os sexos, de que decorre a
são as capacidades do Céu e da Terra que, em sua amplidão, entram geração da existência e cuja formalização é o casamento. Basta, com
em relação, como evoca o comentário do julgamento, essa incitação efeito, ler precisamente a figura (c", ",J--> : : ) para perceber que, segundo
não poqe deixar de provocar a "geração" sem fim dos "existentes". a permuta dos traços de que ela procede a partir de Pi, o yang (mas-
Do mesmo modo, quando é a consciência do Sábio que, em sua pleni- culino, no 6" traço) "desce" ao encontro do yin, mas "sem deixar os

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seus" (os traços yang 4° e 5° ao seu lado) como convém, na China, na ção superficial, mas desdobrar essa estimulação de fora em verdadei-
perspectiva do homem que se casa; ao passo que o yin (feminino, no ro sentimento.
3" traço) "sobe" e fica fora (na 6' posição: a família de seu esposo), Na estrutura desse hexagrama, o ponto de partida da incitação
afastando-se, como é desejável para a mulher, de seus pais (represen- se situa, como vimos, na extremidade superior de cada uma de suas
tados pelos dois primeiros traços no baixo da figura). Como explica partes, nos traços 3° e 6°: no nível da "coxa" (para o trigrama inte-
WFZ (pp. 276 e 278), "um belo dia, rapaz e moça se encontram e se rior) que comanda nossa capacidade de avançar, no nível dos "mús-
seduzem sem que essa incitação recíproca forme, por isso, no início, culos da boca" (para o trigrama exterior) que regem nossa faculdade
uma ligação sólida". Entretanto, se se aprofunda a cada dia, essa in- de falar. A leitura do hexagrama nos leva, então, por duas vezes, a
citação, tornando-se sentimento, poderá "uni-los para a toda a vida". voltar novamente do efeito propagado à fonte de onde ele emana:
Ainda seria preciso distinguir entre esse aprofundamento moral assim, para a marcha, da ponta do pé à parte superior da perna onde
da incitação, devido à capacidade interior de quem o experimenta, e se opera a colocação em movimento. O artelho, no 1° traço, e a parte
aquilo que constitui a característica própria de toda incitação, enquanto inferior da perna, no segundo, ilustram, portanto, os tantos modos de
simples estímulo: sua tendência a se propagar. O próprio WFZ, que dependência com relação a essa transmissão do movimento: ao passo
apresenta alternadamente essas perspectivas, não chega, parece-me, a que o 1° traço, no ponto mais baixo da escala, "tem suas aspirações
separá-las suficientemente, preso como está entre essas duas exigên- voltadas para fora" (o 3° traço), diz-nos o comentário simbólico, e
cias contraditórias: por um lado, a necessidade que sente de realçar, representa, portanto, segundo WFZ (p. 279), um constrangimento so-
em nome de uma lógica da imanência, a importância decisiva da inci- frido passivamente e a perda de nossa "capacidade de autonomia", o
tação como movimentação inicial de que tudo decorre, e, por outro, segundo traço, em compensação, aquele que se beneficia, no meio do
a valorização ideológica do repouso da consciência, e de sua estabili- trigrama, de uma posição de equilíbrio, serve para simbolizar uma
dade, sobre a qual a ortodoxia neoconfuciana não cessou de insistir. submissão que é corretamente assumida: do mesmo modo que a per-
Por isso, ao passo que o comentário do julgamento sublinha, de um na obedece ao movimento balanceado que a coxa comanda acima e
ponto de vista global, o caráter eminentemente fecundo da incitação, que permite avançar, o Sábio se submete aos fenômenos de alternân-
é apenas esse fenômeno de propagação, e o risco de desestabilização cia que regem nosso destino; e mesmo se, como indica o texto canô-
que ele acarreta, que o comentário dos diversos traços realça, fazen- nico, "a posição que ele ocupa é nefasta", ele sabe, por seu consenti-
do-nos passar sucessivamente, segundo uma temática unitária, de uma mento a essa lógica de conjunto, torná-la "fasta".
ponta à outra do nosso corpo: do artelho, no 1° traço, à perna (no Cabe novamente, assim, ao traço yin que desce da 6" para a 3"
segundo), à coxa (no 3°), aos músculos das costas (no 5°), aos da boca, posição "desbloquear", pela incitação que ele desencadeia, a situação
finalmente, no 6". Com efeito, quando é desencadeada, diz-nos WFZ de estagnação consagrada por Pi, o "declínio" e, do mesmo modo que
(p. 278), a incitação se expande e a movimentação é geral: mesmo que a coxa comanda no conjunto da perna, permitir de novo avançar. Mas
sejam apenas os traços 3° e 6° que se movam, todo o resto da figura, é aí que verificamos precisamente a ambigüidade dessa incitação esti-
entretanto, está implicado. Mas por que essa ilustração segundo ape- muladora, que poderia continuar sendo superficial. Esse traço, obser-
nas a óptica do corpo? É que uma incitação, diz-nos WFZ, não pode va-nos WFZ (p. 280), ocupa um lugar yang e sua aspiração, enquan-
se produzir senão entre realidades que "já foram atualizadas" e, por to 3° traço, é "ir em frente", e portanto subir para associar-se aos dois
conseguinte, tomaram corpo. E por que nosso corpo? Com certeza traç~s seguintes que são do mesmo gênero que ele e, assim, renunciar
porque o Clássico nos convida a experimentar em nós mesmos, para a aprofundar a incitação (diante do yin) que ele acaba de detonar. Em
melhor verificá-la, essa lógica da propagação: de modo a nos colocar seu nível, com efeito, a incitação ainda é apenas um fenômeno "ad-
em guarda em face do perigo de nos deixarmos levar pela estimula- ventício" e não representa um sentimento verificável. Daí resulta a
ção e não mais sermos nossos próprios senhores(i). Só essa mestria, alternativa que se coloca a ele e caracteriza esse estado inicial: ou ir
parece sugerir WFZ, nos permitirá não ficar no nível de uma excita- até o fim da incitação que nasce no encontro dos dois traços yin abai-

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xo dele, de onde decorrerá a "progressão"; ou não aspirar a uma união que "logo que se é incitado se entra em movimento"), essa segunda
durável com eles e se deixar levar por seus "associados" a um reco- figura designa, em compensação, diz-nos WFZ (p. 282), uma "vonta-
lhimento"egoísta" . de que é (muito) difícil de mover". Assim, de um lado, a "incitação"
Essa excitação superficial, e por conseguinte estéril, será encon- arrisca-se a ser reduzida a uma estimulação superficial; e, de outro, a
trada novamente - acentuada - no nível dos diversos músculos da "duração" corre o risco de chegar à esclerose e à submersão.
boca, no 6° traço (simétrico do 3° e em posição de inversão com ele). Uma das grandes forças do pensamento chinês está na sua capa-
"Falar logo que se é incitado é o cúmulo do desprezível", diz-nos WFZ cidade de correlação e nos efeitos que dela extrai. Pois, como se vê, a
(p. 282), e as palavras que "jorram" então de nossa boca, segundo a questão a que nos leva o ato de colocar essas duas figuras em relação
expressão canônica, mesmo que dêem prazer aos outros (cf. o valor é das mais sugestivas: como a duração conservadora pode ser seme-
simbólico do trigrama superior Dui - -, o contentamento), serão des- lhante à incitação estimuladora e formar par com ela? Ou seja, no fun-
providas, com toda certeza, de todo discernimento. A essa extrema do, o que é que é semelhante, através de sua oposição diametral, e as
mobilidade dos músculos da boca se opunha precisamente a "estabi- torna complementares? No caso de Xian, a incitação estimuladora, diz-
lidade" benéfica dos "músculos da espinha dorsal", no 5" traço, e esse nos WFZ (pp. 282-283), o desejo de "dissolver Pi", a estagnação a que
já era o dilema que víamos expresso, continuando a remontar na fi- leva o declínio, "é (muito) apressada,,(j): "há movimentação superfi-
gura (como é lógico em seu caso: para seguir o fenômeno da propa- cial no alto" (dos dois trigramas) e "sem esperar cálculo e avaliação
gação), no traço precedente. O 4° traço evoca, com efeito, não nomea- no foro interior reage-se logo"; no caso de Heng, a duração conser-
damente, mas no vazio, diz-nos WFZ (p. 280), a sede da vida interior: vadora, o desejo de "preservar Tai", a prosperidade a que leva o im-
ora, ela está o mais distante possível da superficialidade da palavra (no pulso, "é (muito) sólido" (firme, resistente)lk): a evolução já começou
6° traço) e permite um domínio de si que "dissipa" todo "remorso"; (porque um traço yin já apareceu embaixo, um traço yang já surgiu
mas, porque também é o órgão mais sensível, porque o "mínimo pen- no 4° lugar), mas os dois traços centrais, 2° e 5°, "ocupam ainda soli-
sarnento" pode decidir de sua inclinação num sentido ou noutro, moral damente sua posição" e "contêm (reprimem) a evolução". Essas duas
ou viciado, ele é também muito versátil. A lição ligada à incitação figuras representam, então, uma e outra, um "estopim" da transfor-
estimuladora será, então, saber aprofundá-la em vez de nos deixarmos mação li) (WFZ, p. 275), mas esta se opera a partir de estados opostos
"sacudir" por ela: é só com. essa condição que essa incitação é "fasta" (ou a partir da estagnação, ou a partir da prosperidade); por isso seu
e preserva nOssa "integridade". modo de assumir a transformação é inverso: à movimentação na su-
perfície, que é primeiramente superficial e imediatamente perceptível
(caracterizando Xian, a incitação), corresponde, mas no outro extre-
11 - A DURAÇÃOCONSERVADORA mo, um "deslocamento" subterrâneo (na base dos dois trigramas) que
(HENG, HEXAGRAMA 32) mina do interior a duração. A lógica é, nesse último caso, diz-nos WFZ,
a de um "enraizamento em profundidade" e leva a um "endurecimen-
Essa importância determinante da incitação inicial, ao mesmo to", em face da outra, de cada uma das posições: o risco, com querer
tempo que sua ambigüidade moral, se prolonga e se esclarece através "conservar Tai", a prosperidade, é chegar assim apenas à reificação
do hexagrama seguinte, o da "duração conservadora" (Heng, n° 32). dos fenômenos (quando o real, como se sabe, é essencialmente fluido
Ele é duplamente o inverso do anterior: do próprio ponto de vista da e deve continuar em evolução). A ambigüidade que já se havia perce-
figura, ele procede não de Pi, o "declínio", mas de Tai, a "prosperi- bido na figura precedente está novamente instaurada: "conservador"
dade", e os dois traços permutados não são os traços superiores dos não significará apenas aquilo que permite durar, mas também o que
dois trigramas, mas seus traços inferiores, o 1° e o 4°c:; =t. ~ ::; e por tenta (em vão) resistir à mutação.
isso, ao passo que o primeiro dos dois hexagramas, Xian, evoca, como Mas em que, mais precisamente, essa "solidificação" (das posi-
se. viu, uma· "disposição subjetiva (muito) fácil de ser abalada" (por- ções respectivas) constitui um perigo? No caso desse hexagrama, diz-

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nos WFZ (p. 283), há um "acordo" das duas partes da figura (como A fórmula introdutória da figura, portanto, deve ser lida, diz-nos
no caso de Tai), "mas sem sentimento de acordo"; ou, ainda, "esse WFZ, de modo condicional (e é nisso que ela está ainda mais sujeita à
acordo se faz a partir das posições estabelecidas", mas "não existe sen- caução do que pelo hexagrama anterior, cf. p. 276): é só quando existe
timento que contribua para essa união". O distinguo introduzido é, "progressão" que a duração pode ser dita "sem falta"; e é só quando
então, entre "sentimento" e "posição", quer dizer, compreendamos, ela chega a manter "proveito e integridade" que há "interesse", em
entre investimento subjetivo (afetivo) e relação objetiva (estrutural). seu caso, de "ir em frente". Se, a propósito de Xian, a incitação, a
Pelo efeito esclerosante da duração, os dois passam a não mais coin- "facilidade em reagir" pode comprometer a "integridade" (a consciên-
cidir: o que faz que, para retomar os termos de WFZ, o acordo que cia sendo então sacudida ao capricho das estimulações que recebe), no
existia em Tai entre os dois parceiros da figura, e do qual resultava a caso de Heng, a duração, a "dificuldade em evoluir" arrisca compro-
prosperidade, fica então esvaziado de seu "sentimento" e só se man- meter o "proveito" (aquele, do conjunto, do processo, que resulta de
tém no nível das "posições" . Basta, com efeito, considerar a figura para sua interação dinâmica). Mas isso não significa, observa WFZ, que "o
se perceber que, seguindo cada um sua lógica (para o yin a de "des- caminho da dissolução de Pi (a estagnação que resulta do declínio) não
cer", para o yang a de "subir"), cada um dos parceiros desse hexagrama esteja na incitação estimuladora", nem que "o caminho da conserva-
(que é derivado de Tai, a prosperidade, cujo sentido é, recordemos, o ção de Tai (a prosperidade a que leva a progressão) não exija a dura-
"cruzamento" e a "comunicação") começa a voltar à situação inver- ção". Mas, do mesmo modo que, no caso de Xian, a incitação, tudo
sa, a de Pi, o "declínio", cuja característica é que cada um se des- depende do que está sujeito à incitação/reação, no caso de Heng, a du-
solidarize e se retire (o Céu em sua altura, a Terra em sua baixura). É ração, tudo depende do que está sujeito à continuação. Se é a capaci-
assim que, no estado da duração conservadora, diz-nos WFZ, cada um dade inesgotável do grande processo do Céu e da Terra que está em
dos componentes "se apóia em si" e não tem mais "cuidado" com o causa, ou se é o caminho ideal do Sábio que se considera, sabe-se que
outro. Eis que se perdeu (com relação a Tai) essa dimensão generosa, agora toda incitação desdobra de si mesma sua positividade e que a
imparcial e serena, do grande processo do Céu e da Terra; também duração conduz sempre à renovação. Eis por que o texto canônico se
foram perdidas essa circunspecção em face de si e essa disponibilida- apresenta a partir daqui sob a forma de um díptico: primeiro, o co-
de em face de outrem que faziam a grandeza do Sábio. Não nos enga- mentário do julgamento celebra igualmente, a partir do exemplo tan-
nemos: a verdadeira "firmeza" da alma e sua capacidade de não se dei- to da natureza como do do Sábio, o que deve ser a duração; depois, o
xar "abalar" (a araraxia celebrada pelo Mencius) nascem apenas do comentário dos traços nos coloca em guarda, por sua vez, contra as
fato de que a consciência sabe penetrar a grande diversidade das opi- diversas maneiras errôneas de procurar atingi-lo.
niões e abraça por completo a realidade, e não de uma indiferença para Pois pode-se começar a interpretar a figura num sentido favorá-
com o mundo e de um recuo sobre si: é só, então, mantendo essa aber- vel e ela significará então a constante progressão. Ela se deixa ler, nesse
tura, que a "duração" pode ser "entretanto" fonte de "progressão" e caso, como uma acentuação do acordo (com relação a Tai) e não, ao
que ela preserva seu dinamismo - em vez de levar à submersão. Se- contrário, como sua esclerose: o yin, comenta WFZ (p. 284), penetra
não ela se torna negativamente conservadora: nesse caso, cada um dos no yang (no 1° traço) para se unir a ele, e o yang, por sua vez, "sai e
parceiros, diz-nos WFZ, "continua em relação com o outro, mas não sobe" (ao 4° lugar) para "colocar em movimento" seu parceiro. O que
está mais voltado para ele(m),,; ou, ainda, segundo os termos anterio- permite, assim, a duração é que essa é a "ordem constante" inerente
res, o acordo (de onde--nasce a progressão) existe somente no nível das à natureza e que cada um dos fatores segue seu caminho legítimo. Mas
"posições" ocupadas, não mais no nível dos "sentimentos" experimen- o que significa, nesse caso, a "duração"? Simplesmente que, como se
tados. Quer dizer que ele se congela, se cristaliza. A coesão (estrutu- constata a propósito da natureza, o processo em curso "não tem fim".
ral) se mantém ainda, mas não há mais tensão (interior) de um para o E o que é que lhe permite jamais se interromper? É que, como teste-
outro; e essa coesão que "endurece" não é mais "efetiva"(n) (cf. WFZ, munha a alternância cíclica dos astrOS ou das estações, sempre citada
p.275). como exemplo, esse curso não cessa de se renovar: eis, então, que é a

110 François Jullien Figuras da Imanência 111


"modificação", "que intervém quando é preciso", que está no cora- é perigoso partir em busca da duração ... como ficar à espreita de uma
ção da duração e esta se opõe, assim, em seu princípio, à fixidez. Acon- ocasião.
tece o mesmo, observa-nos WFZ (p. 285), a propósito do Sábio: se é O que impede esses dois traços de poderem instaurar uma dura-
devido à duração de sua conduta exemplar que ele pode "transformar" ção verdadeira é, com certeza, o fato de que não estão, nem um nem
progressivamente os outros ao redor de si, essa perseverança na con- outro, em seu lugar (o primeiro é yin num lugar yang, o 4" é yang num
duta não significa que o Sábio não evolui em si mesmo para se adap- lugar yin). Mas a recíproca não é verdadeira: não basta estar em seu
tar às circunstâncias (segundo a expressão comum, o Sábio, na Chi- lugar, e aí se manter, para instaurar a duração. A duração, como se
na, continua "íntegro", mas "sem se obstinar"(o}). Assim, a conclu- pode compreender, é atingida através da modificação e não por imo-
são a tirar desse modelo da duração (natural ou moral) pode ser du- bilização. O que mostram, na outra ponta dos trigramas, os traços 3
pla: por um lado, não é por imobilização e "bloqueio" que se pode e 6, que são os únicos em toda a figura que estão em seu lugar (o 3°
atingir a duração, pois esta só é possível, ao contrário, através de uma traço é yang num lugar yang e o 6" é yin num lugar yin). Como o 3"
evolução; e, por outro lado, só a "retidão" do curso seguido, tal como traço é "duro" (enquanto yang) e aspira "avançar" (como é normal
o ilustram a natureza ou o Sábio (o fato de que não tenha jamais "des- no 3" lugar), ele "se apóia" na adequação atual de sua posição sem
vio" de uma parte ou outra), permite atingir a duração. Em suma, a ver que ela só pode ser temporária: na medida em que não é sua "ca-
única duração verdadeira nasce da regulação: quando o curso segui- pacidade", mas apenas sua "posição", que ele faz "durar", ele "arris-
do se mantém sempre no "centro", em equilíbrio, através das contÍ- ca-se" demais, diz-nos o texto canônico, a ser "humilhado" (essa ver-
nuas variações. Não tanto a despeito destas, como se poderia acredi- gonha vindo então, inopinadamente, do 1° traço). Como acrescenta
tar à primeira vista, mas antes tirando proveito delas. o comentário simbólico, aquilo que só conta com a estabilidade de sua
Forçoso é, efetivamente, reconhecer que existem muitas concep- posição sem evoluir em concerto com o mundo não será mais "tole-
ções errôneas da duração e são elas que os diversos traços enumeram rado" por ele. O exemplo simétrico é fornecido pelo 6" traço. Como
a seguir. Se a figura for percebida num sentido desfavorável e só ser- é "maleável" (enquanto yin) e culmina no alto da figura (e está, por-
vir para caracterizar uma obstinação conservadora, é normal que os tanto, em posição de completude), esse 6° traço se contenta em "co-
dois traços que, por sua permuta a partir de Tai, a prosperidade, ten- lher" e "colocar em ordem" (sentido que WFZ dá aqui a zhen) a si-
dam a promover uma tal duração - os traços 1° e 4° - devam ser tuação a que se chegou: como se esse estado pudesse de fato se perenizar
interpretados como reveladores de uma ilusão. Primeira ilusão, a de e como se fosse suficiente para fundar uma duração verdadeira. É es-
poder atingir de uma vez a duração, no 1° traço (traço yin que se "en- quecer que a verdadeira duração, aquela que o grande processo do
raÍza" sob os traços yang: "escavar fundo a duração", diz a fórmula): mundo nos revela, nasce de uma constante renovação. "Apoiar-se sobre
essa atitude é a dos pseudo letrados, diz-nos WFZ (p. 286), que, per- o que dura", conclui WFZ (p. 289), "acreditando que vai durar para
correndo apressadamente os clássicos, acreditam poder deles tirar re- sempre", não é se expor inevitavelmente às "calamidades"?
gras "imutáveis" com as quais em seguida colocam o mundo em de- Não cedendo às ilusões fáceis (aquelas de atingir a duração ins-
sordem; ou ainda a dos "heterodoxos" que, em nome de uma ilumi- tantaneamente, cf. traço 1, ou por um feliz acaso, cf. traço 4) e des-
nação repentina, fecham depois a consciência humana numa golilha confiando também das falsas seguranças (as da estabilidade de sua
(é mais particularmente a tradição dos budistas da Escola do Sul, "subi- posição, cf. traço 3, ou do aspecto resultativo de toda situação, cf. traço
tista", que é aqui visada). Segundo tipo de ilusão, aquela de poder 6), só os dois traços centrais podem não ser negativos. Justamente
atingir a duração por acaso, como no 4° traço ("não há caça no cam- porque são centrais: a verdadeira duração, já o dissemos, só é obtida
po", indica de modo figurado a fórmula): esse traço yang vem se es- com a condição de se manter um justo equilíbrio através da modifica-
conder aos pés dos traços yin, como um caçador à espreita, mas sem ção - que é contínua, portanto pelo caminho da regulação. Cabe ao
aceder a uma posição e~tável (que o 5° traço representaria). Ora, muitos 2° traço elucidar melhor esse benefício da centralidade: graças a ela,
exemplos" históricos nos provam, acrescenta WFZ (p. 288), o quanto desaparece o "remorso" suscitado pela vizinhança do 1° traço que faz

112 François Jullien Figuras da Imanência 113


intrusão sob ele; de modo complementar, o 5° traço mostra que a de ver seu funcionamento se travar (a incitação permanece superficial,
duração não é uma questão de posição (adquirida), mas de capacida- a duração conduz à esclerose). Surge por isso muito mais claramente,
de (em ação): se é dito ser "fasto" é porque, ao contrário do 3° traço, por tabela, aquilo que a positividade desse novo par de hexagramas
ele faz "durar", não seu lugar, mas sua "virtude" (ilustrada pela cons- pode fazer: a diminuição, enquanto corresponder a uma necessidade
tância da esposa ligada a seu marido; mas o contrário, na óptica do e for gradual, não deve ter temida; e o aumento, que lhe é correlativo,
marido, o 4° traço, não seria verdadeiro ... ). Chega-se à seguinte con- serve de caminho legítimo para o desabrochar.
clusão: a duração não se opõe à evolução, ela consiste, ao contrário, Mas por que falar neste caso, pergunta WFZ (p. 339), de "di-
na possibilidade de sempre evoluir. Mas resta então compreender em minuição" e de "aumento" e não simplesmente, como no caso ante-
que consiste essa "evolução". rior, de "subida" e de "descida", de "ir" e de "vir" (entre as duas
partes do hexagrama)? Dois parâmetros da figura devem ser lembra-
dos nesta ocasião: 1. - O traço yang, que é ímpar, contém três em
III - A DIMINUIÇÃO
NÃO DEVE SER TEMIDA um e leva, assim, por triplicação, ao desdobramento numérico máxi-
(SUN, HEXAGRAMA 41) mo (que o número 9 simboliza), ao passo que o traço yin, que é par,
se reduz a dois e leva, por triplicação, a um desdobramento numéri-
Seguindo o impulso desse par inaugural, "incitação" - "dura- co mínimo (limitando-se ao número 6): assim, o yang é mais e o yin
ção", um novo par de figuras nos faz penetrar em pleno coração do é menos; 2. - Na estrutura do hexagrama, o trigrama inferior (inte-
fenômeno da evolução. Esse par é, com efeito, considerado, como rior) "instaura a base" da figura e o trigrama superior (exterior)
anteriormente (poder-se-ia mesmo dizer: como sempre, segundo a lógi- "adapta-a ao momento"{p) (em termos neoconfucianos, o primeiro
ca chinesa), através de seus dois aspectos opostos e complementares: trigrama representa o "ser constitutivo" da figura, o segundo seu
"diminuição" (Sun, n° 41) e "aumento" (Yi, n° 42). Esses dois hexa- "funcionamento", ti e yong): é, então, na perspectiva do trigrama in-
gramas ocupam o mesmo lugar na segunda parte do livro ocupado por ferior, fundador, que devem ser consideradas as transformações. Ora,
Tai e Pi, progressão/declínio (11 e 12), na primeira; e deles procedem se consideramos aqui essas duas figuras a partir de seu trigrama infe-
igualmente pela simples permutação de dois de seus traços: Sun, a rior, nos damos conta de que, no caso da primeira, em que a base é
diminuição, deriva de Tai, a progressão, por inversão dos traços su- yang e o exterior é yin, a partida do 3° traço yang (que se coloca na
periores dos dois trigramas, 3 e 6: ~====)-+ ===; Yi, o aumento, deriva de 6<1 posição) corresponde a uma "perda" (não só para esse trigrama,
Pi, o declínio, por inversão de seus traços inferiores, 1 e 4: ,= ='-+ == ==. mas também, porque é ele que serve de base, para o conjunto da fi-
Como se vê, esses dois novos hexagramas são estritamente o inverso gura) e essa é a razão pela qual significa globalmente a "diminuição";
dos dois que acabamos de considerar (é a mesma permuta que se ope- ao passo que, no caso do segundo hexagrama, cuja base é yin e o ex-
ra, mas a partir da outra figura). Ou, antes, são o direito (e não o terior é yang, a chegada do 4° traço yang (que vem para a P posi-
avesso) deles: pois, como observa WFZ (p. 275), quer se trate de Sun, ção) corresponde a um "ganho" (igualmente para o conjunto da fi-
a diminuição, ou de Yi, o aumento, os três traços yin estão sempre no gura) e eis porque significa globalmente o "aumento". A "diminui-
centro da figura, ao passo que os três traços yang se repartem no seu ção" é, portanto, a diminuição do yang, conclui WFZ, e o "aumen-
exterior. O que corresponde à lógica das coisas: o yin (a terra) "colhi- to" é o aumento do yin. O que é lógico, porque só o yang, que é mais,
da" no interior, o yang (o céu) se desdobrando fora e cercando a ter- está apto a diminuir, e só o yin, que é menos, está apto a aumentar.
ra por todos os lados. Ao contrário, nos hexagramas que acabamos Sob"retudo, o fato de que não se possa tratar indiferentemente da di-
de considerar, 31 e 32, incitação/duração (;:;: e ::), são os três traços minuição ou do aumento do yang, da diminuição ou do aumento do
yang que estão "incrustados" e sufocam no interior, ao passo que os yin, mas apenas da diminuição do yang à qual corresponde o aumento
três traços yin "se manifestam" na periferia: não é possível compre- do yin, torna essas duas figuras estreitamente correlacionadas: é do
ender melh0r a ambigüidade inerente a essas últimas figuras e o risco mesmo (e único) fenômeno da evolução que elas prestam contas uma

114 François Jullien Figuras da Imanência 115


e outra, colocando à luz, por sua complementaridade, seu funciona- concerne apenas à parte superior, a mais superficial, do que está em
mento compensatório. jogo e não toca naquilo que constitui seu centro ou sua base (repre-
A "diminuição" representada pelo primeiro desses hexagramas sentada pelos traços 1° e 2°), ela incide apenas, por conseguinte, so-
não deve, portanto, ser considerada isoladamente, mas em relação à bre "o que sobra", sobre o "excesso"(s), sem arranhar o essencial.
outra figura; por essa razão, ela não constitui uma perda, mas uma Como começa a notar o texto canônico, os traços 1 e 2, igualmente
adaptação. É isso que WFZ nos permite verificar ao experimentar yang, do mesmo modo que, no trigrama superior, os traços 4 e 5, igual-
sucessivamente todo um leque de valores simbólicos, que formam uma mente yin, continuam "confiantes" um no outro(t) e mantêm a coe-
série, sobre as duas partes constitutivas do hexagrama. O trigrama são em que repousava a figura (a partir de Tai, a prosperidade) e,
inferior, que é sua base, pode ser considerado como o "povo"; e, nes- portanto, sua estabilidade; também essa figura é considerada "funda-
se caso, o trigrama superior representará o "soberano". Ou, ainda, o mentalmente fasta". Retomemos, por exemplo, o caso dos impostos,
trigrama inferior (interior) pode servir para simbolizar o "fundo" ou propõe-nos WFZ: é claro que eles devem incidir apenas sobre o ex-
a "emoção" interior ou a "capacidade" possuída intrinsecamente; e, cesso da produção do povo para preencher o "vazio" (enquanto yin,
nesse caso, o trigrama superior representará a "forma" (com relação na parte superior da figura) do caixa do Estado; e, do mesmo modo,
ao fundo), a "ocupação" no mundo (com relação à emoção do súdi- a "forma" ou as "ocupações" ou as "regulamentações" não devem se
to), a "regulamentação" social (com relação à virtude pessoal)lql. Todas desenvolver em detrimento do "fundo" ou da "emoção" interior ou
essas relações são proporcionais, elas permitem distribuir todo o real da "capacidade" pessoal a ponto de as colocar em questão. É nisso,
segundo uma mesma equivalência e, em cada um dos casos, aquilo que ademais, que a diminuição, Sun, representa um caso de figura prefe-
se tira embaixo acresce, em conseqüência, no alto; a diminuição so- rível a Heng, a duração (comparáveis uma à outra, nesse sentido, por-
bre o que o povo produz servirá assim para "alimentar" o soberano; que ambas derivadas de Tai): em Heng, a diminuição não incide so-
e, do mesmo modo, aquilo que se "corta" do "fundo" servirá para bre o que está a mais, no 3° traço, mas sobre o que serve de base, no
realçar a "forma"; aquilo que se corta de sua "emoção" interior per- 1° traço~ ela consome, então, aquilo que se tenta preservar em vez de
mitirá que melhor se adapte à sua "ocupação" fora; ou, ainda, aquilo reduzir aquilo que se tornaria excessivo (como é o caso de Sun) para
que se corta de sua "virtude" pessoal permitirá deixar a "regulamen- o adaptar à evolução. Por isso o texto canônico insiste sobre o cará-
tação" social funcionar melhor (segundo a velha oposição chinesa que ter não negativo da figura tomando ostensivamente a direção contrá-
decorre do debate entre confucianos e jurisconsultos: a eficácia é in- ria da opinião comum: "não existe falta" (mesmo que haja diminui-
trínseca à pessoa ou é o produto de mecanismos? Deve-se contar mais ção), a "integridade" pode ser preservada (mesmo que se seja levado
com o ascendente moral ou com a força coercitiva dos castigos?). No a abandonar os seus, como o 3° traço, para passar para o outro lado).
caso da outra figura, Vi, a relação funciona no sentido inverso: o alto É, então, injustamente que a diminuição nos causa medo: mesmo dois
corta de si mesmo para favorecer o baixo, assim o soberano reduz suas modestos "cortes" são suficientes, conclui o julgamento, para que o
despesas para permitir o enriquecimento de seus súditos. Essas rela- sacrifício seja "aceito".
ções de diminuição e de aumento, conclui WFZ (p. 340), são "natu-
ralmente lógicas(r j ", o que significa que a lógica que elas encarnam só
procede de si mesma, é puramente imanente; percebida sob esse ân- IV - 56 A DIMINUIÇÃO PERMITE A EVOLUÇÃO,
gulo, a diminuição é tão necessária quanto o aumento, ambos cola- 56 A EVOLUÇÃO PERMITE A DURAÇÃO
boram para o desenrolar dos processos.
Ainda é preciso compreender, reportando-nos à figura, o que Esses dois "cortes" são certamente os dois traços permutados da
caracteriza essa diminuição e a torna positiva. Só é cortado do trigrama figura (a partir de Tai, a prosperidade: traços 3 e 6). E se esse sacrifí-
inferior (o qual, lembremo-nos, serve de perspectiva para todo o hexa- cio, embora mínimo, é suficiente, é porque, explica-nos o comentário
grama) o 3° traço yang, que constitui seu acabamento: a diminuição do julgamento, ele "concorda" com o tempo(u), quer dizer, intervém

116 François Jullien Figuras da Imanência 117


no bom momento. "Quando", COmenta WFZ (p. 342), "o caminho mite a adaptação; ligando um ao outro, permite a transição. E a evo-
do yang está no seu apogeu" (representado pelos três traços yang do lução não é nada mais do que essa relação de diminuição/aumento
trigrama inferior de Tai), "diminuir o que está a mais" (o 3° traço, na "constantemente em operação"(x l.
extremidade superior desse trigrama) não pode "causar tormento"; ou, A comparação entre figuras é esclarecedora e permite levar mais
como nesse momento o caminho do yin "está a ponto de desapare- longe essa idéia. O erro no caso de Heng, a duração conservadora, era
cer" (os três traços yin de Tai, acentuados no trigrama superior, en- o de que, quando a evolução já havia começado (de modo subterrâneo,
tão em curso de evasão), "aumentá-lo em um único (traço) yang" (em na base dos trigramas), se procurava, por um endurecimento das posi-
seu cimo) lhe permite "reencontrar a solidez". O fato de que a dimi- ções, bloqueá-la; daí decorria o risco de esclerose e de submersão. Sun,
nuição que se opera então não prejudique um e possa beneficiar o outro a diminuição, representa a atitude inversa: prestando-se à diminuição
se deve a que essa diminuição intervém no estágio em que (no nível necessária, estamos aptos a constantemente retificar o curso das coisas
dos traços superiores dos dois trigramas), estando um "pleno", é le- (sempre a tempo, portanto sem aflição); a partir de então o processo
vado ao excesso, ao passo que o outro, "esvaziando"-se, arrisca-se a não cessa de se renovar a si mesmo e essa é a duração verdadeira.
ser eliminado: se essa diminuição é positiva é porque, restabelecendo Tomar consciência disso é de importância capital para a condu-
o equilíbrio entre os fatores, ela permite que o processo iniciado não ta. Em face daquilo que lhes parece "vazio", os tolos, diz-nos WFZ
seja levado a um "bloqueio", mas continue a evoluir(v). Essa diminui- (p. 343), vêem aí apenas o resultado de uma "diminuição" sem se
ção, de que tanto se duvida, salva, de fato, a realidade. darem conta daquilo que, na realidade, jamais diminuiu; do mesmo
Consideremos, com efeito, o curso do tempo, propõe-nos WFZ modo que, em face daquilo que lhes parece "pleno", consideram que
(p. 342), aquele do dia e da noite ou das estações. A primavera e o verão isso não pode diminuir, sem se darem conta de que isso, de fato, está
são marcados, sabe-se, pela predominância do yang, o outono e o in- diminuindo. Ao contrário, quem está consciente dessa relação com-
verno, pela do yin (do mesmo modo que o dia está sob a predominância pensatória está sempre apto a "harmonizar" os dois fatores concor-
do yang, a noite, sob a do yin). Ora, "no estágio do apogeu de um ou rentes - sejam eles quais forem - que estão em jogo: ele sabe prever
outro desses fatores", "já está em operação um detonador de movi- o que deve subsistir no vazio do mesmo modo que aquilo que deve se
mento nos dois sentidos"(w) que, se bem se trate aí de "uma evolução esvaziar no pleno; por isso, "reduzindo o que está a mais" para "aju-
ainda muito discreta", permite, entretanto, "suprimindo. aquilo que dar o que está a menos", ele não correrá jamais o risco de ver o cami-
está a mais de um lado", preencher" o déficit do outro". Não se vê nho que segue "ficar obstruído".
"trigo brotar no inverno" e outras plantas, ao contrário, "morrerem O comentário simbólico da figura dá uma ilustração dela no plano
em pleno verão"? Esse detonador tão sutil de uma transformação com- moral: "pela diminuição, o homem de bem está apto a reprimir sua
pensadora deve ser comparado aos modestos "cortes" oferecidos em cólera e colocar obstáculo a seus desejos". Com efeito, a natureza do
sacrifício. Por um lado, não coloca em questão a alternância de base, yang é, como se sabe, ser "duro", a do yin é ser "mole". "Tornando-
a do dia e da noite ou das estações, cujo movimento regular dá ritmo se excessivo", explicita WFZ (p. 343), o yang provoca um endureci-
ao curso do tempo e o renova (essa modificação intervém, como se viu, mento que leva à "cólera"; do mesmo modo que, "sendo levado ao
na extremidade superior, nos traços 3° e 6°, e não atinge a coesão de extremo", o yin produz um amolecimento que nos faz ceder aos "de-
conjunto dos dois trigramas). Mas, por outro lado, ela permite que não sejas". Mas, "se se diminui a manifestação exterior do yang com o
haja separação nítida- entre os dois momentos opostos e que eles se vazic( (cf. o trigrama inferior: substituindo o 3° traço yang pór um
prolonguem um ao outro encadeando-se. Em qualquer ponto da es- traço yin), "disso resulta algum contentamento" (esse trigrama infe-
cala em que se considere o processo das coisas, diz-nos WFZ (pp. 342- rior se torna então Dui, o lago - -, cujo valor afetivo é a alegria) e "a
343), quer se trate do início e do fim de uma era, ou de um ano, ou de cólera se aquieta", sua intensidade afrouxa; do mesmo modo, se "se
um dia, ou mesmo do mínimo instante, é sempre essa diminuição que aumenta o yin - que então está em declínio - com o duro" (cf. o
assegura a continuidade: transformando compassadamente, ela per- trigrama superior: substituindo o 6° traço yin por um traço yang),

118 François Jullien Figuras da Imanência 119


"disso resulta uma parada" (o trigrama superior se torna então Gen, O comentário do 3° traço explicita o fenômeno de diminuição
a montanha ==, cujo valor moral é a imobilidade) e o "desejo é para- que opera em seu nível: "Se três homens caminharem juntos, haverá
lisado", nosso afrouxamento termina. Deixemos então esses valores diminuição de um deles; se ele for sozinho, encontrará companheiros" .
simbólicos dos dois novos trigramas se defrontarem e se combinarem O 3° traço, como se sabe, marca a finalização do trigrama: nesse está-
entre si, eles manifestarão melhor essa operação benéfica: porque "re- gio o ápice é atingido e dos três homens que, como esses três traços
freamos nossos desejos", nossa aspiração moral pode "se elevar tão yang, avançam juntos, um "deve necessariamente" ser apartado. "Não
alto quanto a montanha"; porque "reprimimos" nossa cólera, nossa existe razão", diz-nos WFZ (p. 345), "para que tudo diminua" (isto
"benevolência" é tão "untuosa quanto a água do lago" ... No alto está é, que todos os três se retirem), mas "tampouco existe caminho possí-
a "montanha" (trigrama Gen), em baixo, o "lago" (trigrama Dui; ao vel sem que nada diminua". Querer perseverar no mesmo sentido, uma
contrário de Xian, a incitação): graças à "diminuição" os dois elemen- vez atingido o máximo, não levaria a nada. Ao mesmo tempo, esse 3°
tos - montanha e água - estão em seu lugar e a "paisagem" - a traço que é destacado do estágio da plenitude (o do yang), e se torna
paisagem interior também - é harmoniosa. yin, não fica solitário: continuando a avançar, ele encontra "amigos"
Mas, se essa diminuição é benéfica, permitindo a evolução, cer- nos dois outros traços yin (os traços 4° e 5°) que vêm depois dele. Assim,
tamente ela é progressiva, e é nisso que começa a insistir o comentá- o que é separado não constitui uma perda, mas produz uma outra
rio dos diversos traços. "O que ainda não mudou", diz-nos WFZ (p. coesão - é o detonador de uma nova solidariedade: com efeito, acres-
344), "já mudou em seu fundamento"(YI. Se, do mesmo modo que centando-se aos dois outros traços yin que estão acima dele, esse 3°
anteriormente no caso de Xian (a incitação), a modificação só pare- traço, tornado yin, reconstitui com eles o trigrama da terra == '= e se
ce abertamente na finalização do trigrama, no 3° traço, essa modifi- encontra também, ao mesmo tempo, cercado de um e de outro lado
cação está, entretanto, em operação através do conjunto da figura: é pelo yang (o céu: nas posições 1a, 2 a e 6a == ==). A terra no centro, o céu
porque a "disposição dos traços primeiro e segundo já evoluiu" que em volta: eis reconstituído o "dispositivo" do grande processo da rea-
a ruptura, no nível do 3" traço, pode ser finalmente consumada. No lidade (do mesmo modo que, como vimos anteriormente a propósito
caso de Xian, a incitação, os dois primeiros traços propagavam, de dos trigramas superior e inferior - "montanha" e "águas"- o prin-
um lado a outro, a estimulação produzida; aqui, eles abrem gradual- cípio constitutivo da "paisagem"). Bem longe de ser fonte de pertur-
mente o caminho para a modificação que virá. Esta deve ser efetua- bação, essa diminuição produziu uma (nova) adequação: eis por que
da nem muito rápido nem muito lentamente. O primeiro traço, que é ela representa sozinha a possibilidade de evolução.
"duro" num lugar "duro" (enquanto yang num lugar ímpar), e, além Pode-se, então, logicamente prever o que os três traços do tri-
disso, enterrado no baixo da figura, não está necessariamente incli- grama superior aproveitam da diminuição iniciada. Mesmo que ela se
nado à diminuição. Donde essa advertência: "assim que tiver termi- traduza abertamente em aumento apenas no nível do 6° traço, que se
nado, ir-se rapidamente", isto para "pôr fim" ao risco de "submer- torna yang, ela já beneficia, por antecipação, os dois traços anterio-
são" do yang. O segundo traço, ao contrário, é "duro" num lugar res. Se não tivesse havido diminuição compensatória no 3° traço, nos
"mole", o que o torna menos garantido e pode levá-lo a se deixar le- diz WFZ (p. 346), a relação do yin e do yang teria se tornado antago-
var muito apressadamente para a diminuição (que se aproxima, no nista e o 4° traço, que está na fronteira dos dois trigramas, teria fatal-
3° traço). Ora, como se sabe, a diminuição só deve incidir sobre o que mente sofrido um choque frontal ("o yang rejeitando então o yin", "o
está "a mais", sem colocar em perigo a estabilidade do fundamento yin subindo sobre o yang": desse antagonismo que explode tão perto,
assegurado precisamente por essa posição de central idade do segun- o 4° traço teria sido o primeiro a sair perdendo). "Diminuir o prejuí-
do traço. Donde essa nova advertência: não se mover ("partir em ex- zo", indica seu comentário, o que significa que a diminuição que se
pedição é nefasto"), "nem diminuir nem aumentar". É assim, conclui opera no 3° traço "diminui" o "prejuízo" que, caso contrário, o 4° traço
WFZ, que, "incitando um" e "retendo o outro", advém "o caminho teria de enfrentar: assim, antes mesmo de se transformar em aumen-
da regulação" (zl. to, a diminuição já é positiva. Acontece a mesma coisa no 5° traço:

120 François Jullien Figuras da Imanência 121


que o 6° traço, ao se tornar yang, "paralise" a "dissolução" a que da figura seguinte, Yi, o "aumento" (n° 42). Ao mesmo tempo em que
seriam arrastados os três traços yin na parte superior (externa) da fi- ela é o seu inverso, é também semelhante. É o inverso do hexagrama
gura, não pode senão fortalecer a posição soberana do 5° traço, mes- precedente do ponto de vista de sua estrutura: do mesmo modo que
mo se este não estiver diretamente em relação de parceria com o 3° era lógico que a diminuição só pudesse ser concebida a partir de um
traço que é o objeto da diminuição (donde o "pode ser que ... " que in- estado de plenitude e procedesse, então, de Tai, a prosperidade, é ló-
troduz no comentário do traço a expressão da gratificação em espé- gico que o aumento só possa ser concebido a partir de um estado de
cie - em "tartarugas" - que ele recebe). O 6° traço, finalmente, que déficit e proceda, então, de Pi, o declínio; e, ao passo que, no caso de
de yin se torna yang, cumpre definitivamente a conversão da "dimi- Sun, a diminuição, a transformação incidia nos dois traços superiores
nuição" em seu contrário. O comentário a seu respeito é: "não existe dos dois trigramas, o mesmo tipo de permutação age em Yi, o aumento,
diminuição, mas se recebe o aumento" (essa fórmula deve ser compre- em seus traços inferiores ,= =~_, '" "'. Ao mesmo tempo, o sentido dessa
endida, segundo WFZ, diferentemente do que vale para o segundo segunda figura apenas retoma e prolonga o da anterior. Assim, a fór-
traço). Como o yin não pode diminuir, é justo que ele aumente, eis por mula que servia de conclusão ao julgamento concernente a Sun, a di-
que esse traço é "sem falta"; e, desde que exista aumento, existe tam- minuição, e que reencontrávamos citada em seu último traço, serve de
bém "proveito" em "ir em frente". Uma última imagem retoma de introdução para essa figura: "existe interesse em ir adiante". A terra,
modo interessante a interpretação da diminuição no campo político: yin, está sempre no centro da figura, como deve ser (com apenas um
"obter ministros (ou vassalos) sem família". Na escala do hexagrama traço deslocado), e o céu em volta: o caminho do aumento manifesta
como na da sociedade, o senhor está no alto (no 6° traço), o servidor assim sua legitimidade e, de uma figura para a outra, é a mesma posi-
está embaixo (aqui, no 3° traço que lhe corresponde): a diminuição tividade que se vê reconduzida.
que se opera embaixo para servir o alto é então ilustrada pelo "servi- Entre "diminuição" e "aumento" não existiria, então, como se
dor" que chega a "esquecer sua família" (os dois outros traços yang vê, senão uma diferença de perspectiva. Como começa a notar WFZ
sob o 3° traço) "por preocupação com o reino" ... (p. 348), uma e outra figura consistem igualmente numa diminuição
Essa imagem final, lida até o fim, implicaria um devotamento (por do yang e num aumento do yin. Mas o crescimento que provém do
parte de quem se resolve pela diminuição), poder-se-ia até mesmo per- deslocamento do traço yang é favorável, nesse caso, ao trigrama in-
ceber aí o sentimento de um sacrifício. Escapar-se-ia, finalmente, en- ferior (yin), que serve de ponto de vista do conjunto para a figura: é,
coberta pela imagem, justo antes que o texto se feche, uma vibração até então, nesse caso, a perspectiva do aumento do yin que é preciso re-
agora não percebida - mais pessoal, mais afetiva? E esta, poderia fa- ter. Ora, a essa justificação de princípio WFZ acrescenta uma outra,
zer duvidar, em compensação, daquilo que as análises anteriores ten- mais precisa, que leva a uma interessante reviravolta. No caso de Sun,
taram, com tanta insistência, demonstrar: que a diminuição não é dra- a diminuição, esse traço yang que vem em reforço subia da Y para a
mática? Mas o ponto de vista continua sendo, como confirma o comen- 63 posição e ficava empoleirado no cimo da figura, um traço "dé par-
tário simbólco, o do interesse hierárquico, e ele elimina todo suspiro: a tida" ("enviado para além da posição de apogeu", o 5° traço, e pres-
"diminuição" é definitivamente consolidada - mesmo no plano das tes a ser evacuado); ao contrário, esse traço yang que no caso de Yi,
relações humanas - na perspectiva de conjunto do processo. o aumento, desce da 4 3 para a 13 posição se torna, ao se inscrever no
início da figura, um traço "nascente": o caminho do yang, conclui
WF~, está instaurado na base e "vai crescendo"; por conseguinte, "ao
v- O CAMINHO DO AUMENTO E O DESABROCHAR NATURAL mesmo tempo em que existe aumento do yin, existe também aumen-
(YI, HEXAGRAMA 42) to do yang".
Quer dizer que, nesse caso, a diminuição do yang não joga ape-
Vimos tão detalhadamente como a diminuição leva, efetivamente, nas em favor do yin, que ele vem reforçar, mas joga também em favor
a seu contrário, que não parece ter restado muita coisa a apreender do próprio yang, pois que o remete a uma posição de porvir: eu me

122 François Jullien Figuras da Imanência 123


pergunto se seria possível levar mais longe a idéia de uma positividade um fruto"; ela pode ser reencontrada, de modo análogo, na ordem da
da diminuição. Pois a inversão da idéia mesma de diminuição, que leva cultura: quando "a forma retorna à simplicidade essencial para dar mais
à sua extinção, me parece ter chegado aqui ao seu ponto-limite, sem consistência ao fundo" (a "flor", a "forma", remetem ao trigrama su-
mais nenhuma possibilidade de resíduo ou de probabilidade (resíduo perior [exterior] e o "fruto", o "fundo", ao trigrama interior). É essa
da diminuição, probabilidade do aumento): o que é decisivo, com efei- lógica, finalmente, que, do ponto de vista mais geral, permite a gera-
to, é que saímos da lógica comum da compensação (compensação com ção da realidade: graças a esse acréscimo na base pelo yang, o Céu "atra-
relação ao outro, de um ponto de vista moral de devotamento; mas vessa" de novo a Terra (ao passo que em Pi, o declínio, estavam isola-
seria possível imaginar também compensação com relação a si mes- dos um do outro) e espalha nela sua influência; o yin, por seu turno,
mo, no outro mundo, segundo uma perspectiva religiosa; cf. o precei- avançando até à 4 a posição, "veicula o yang consigo" e faz nascer os
to evangélico segundo o qual os últimos serão os primeiros). Aqui, o existentes. A interação (re)começa e além disso, desta vez, a partir do
benefício da diminuição não procede mais de um efeito de troca ou fundamento: a lógica da progressão, a da "comunicação" entre os pólos,
de reparação, mas se torna imanente à própria diminuição. E esse não é restabelecida "de modo adventício" (cf. WFZ, p. 349) como no
proveito - eu seria tentado a acrescentar: como sempre na China - caso da incitação, mas está destinada ao maior porvir, assegurada por
não é místico, mas estratégico, não depende de um outro plano (como um completo desenvolvimento.
"o além"), mas decorre, de maneira imediata, da situação (cf. as po- O interesse da figura, a partir de então, será sobretudo o de ser-
sições respectivas no hexagrama). Nenhuma construção hipotética é vir para representar o que é mais difícil de cercar precisamente: os
então invocada (justiça divina e paraíso), e também nenhum recurso fenômenos de crescimento natural e do desabrochar. Do mesmo modo
ao paradoxo; esse proveito resulta apenas do jogo próprio à configu- que a diminuição nos era apresentada constantemente em operação
ração: ao me diminuir para acrescentar ao outro, eu me restabeleço (para permitir uma evolução contínua), o caminho do aumento nos é
ao mesmo tempo em posição de iniciativa e me vejo chamado a pro- descrito "acompanhando todos os instantes,,(a'). Insiste-se ainda mais
gredir. Por isso, essa nova figura, Yi, o aumento, não é mais do que em seu caráter progressivo: o aumento é comparável ao "caminho da
uma simples repetição da precedente, mas, continuando-a, desenvol- floresta", que permite "atravessar aS grandes águas" (seguindo a mar-
ve-a; e, através desse aprofundamento do proveito inerente à dimi- gem, o barco pode avançar dia a dia, comenta WFZ, p. 349, e "não
nuição, o ponto de vista do aumento pode servir de perspectiva única existe lugar tão distante que ele não atinja"). Sobretudo, esse aumen-
para todo o processo. to é "sem lugar próprio,,(b'), indica-nos o comentário canônico: esse
Um outro modo de medir a inteira positividade da figura será com- fenômeno é ao mesmo tempo contínuo e difuso, está em operação em
pará-la a Xian, a incitação (n° 31), porque ambas procedem de Pi, o toda parte e a todo momento. Tocamos ao mesmo tempo uma das
declínio, e visam, evoluindo a partir dele, a "dissolver" a "estagnação" preocupações maiores do Clássico da mutação. A idéia de que, por-
à qual ele levava. Ao passo que, no caso de Xian (a incitação), a trans- que opera progressivamente ao mesmo tempo em que em todos os pon-
formação, operando na superfície dos dois trigramas, arriscava-se a não tos, O aumento não é localizável, ainda menos passível de ser isolado,
ser mais do que um estímulo superficial e era, então, suspeita, a trans- nos leva explicitamente a essa questão - que é a questão de fundo:
formação que se opera nesse caso corresponde a um "retorno ao pon- qual estatuto (na ordem da realidade) atribuir a essa transformação
to de partida" (o primeiro traço) que serve de base para o aumento. Já que, porque está presente em toda parte, e continuamente, jamais é
se viu que, no plano político, esse reforço do baixo correspondia, numa vista.em ação, mas só é constatada posteriormente em seu efeito? Ou
perspectiva inversa da dos impostos, às economias praticadas pelo prín- seja, em suma, qual é essa dimensão invisível, ao mesmo tempo emi-
cipe para permitir o enriquecimento de seus súditos (de que decorre, nentemente eficaz, que é inerente aos processos (cf. noção de shen,
no comentário do julgamento, o motivo da "alegria sem fim" do povo). "Grande comentário" A, §4(c'))? De um lado, o crescimento natural
Ora, essa lógica pode ser reencontrada, primeiramente, na ordem da se impõe ostensivamente a nós em seus resultados, porque é ele que
natureza: "·a flor", diz-nos WFZ, "retorna à raiz para em seguida dar nos faz passar, diz-nos WFZ (p. 349), do germe à árvore ou do ovo à

124 François Jullien Figuras da Imanência 125


baleia, mas, ao mesmo tempo, aquele que está sujeito a esse crescimento sição) para colocar em movimento o yin e corrigir seu demasiado imo-
"não se dá conta por si mesmo" e "os outros, de fora, também não o bilismo: cabe assim ao "trovão" (cf. o trigrama inferior a que se che-
percebem". Esse aumento é uma evolução "silenciosa" , conclui WFZ; ga: Zhen) "sacudir" essa inércia. Do mesmo modo, no estágio de Pi,
e a transformação é tanto maior, em definitivo, quanto mais insensi- a estagnação, o yang repousava em sua altura e não vinha ao encon-
velmente ela opera. tro do baixo; eis por que em Yi, o aumento, o yin fica na 4 3 posição
Eis, então, que uma outra visão da "natureza" se abre para nós. para se conformar a essa incitação do yang e fazê-la irradiar plena-
Em sua concepção grega, a natureza é "engenhosa" (mechanôusa), mente: cabe então ao "vento" (cf. o trigrama superior a que se chega:
procurando tirar o melhor partido das condições; ela opera "fabrican- Xun) expandir e "levar à harmonia". Ora, lembremo-nos de que no
do" e "querendo": se a casa fosse o produto de uma geração natural, estágio de Sun, a diminuição, o comentário simbólico nos convidava
diz-nos Aristóteles (Física, lI, 8), sua geração se efetuaria do mesmo a "diminuir" os "excessos de nossa afetividade" (refrear a cólera, li-
modo que pela arte, quer dizer, pelos mesmos meios; e, reciprocamente, mitar os desejos) para permitir sua regulação; no quadro dessa figu-
"se a arte de construir os navios estivesse na madeira, ela agiria como ra, ele nos convida a "aumentar" nossa inclinação natural para o bem:
a natureza". A physis aristotélica não é somente finalista (o que se tem "sacudindo-a", para a incitar (cf. Zhen), e a "desdobrando harmonio-
mais facilmente criticado nela), mas é essencialmente técnica (proce- samente" (cf. Xun). Verifica-se uma vez mais como Yi, o aumento,
dendo sempre a partir da "forma" a realizar), seu modelo é por con- reveza Sun, a diminuição, e promove sua positividade: enquanto a di-
seguinte o da ação (humana), mesmo que ela então se realize não "fo- minuição corrige (as tendências negativas), o aumento desabrocha
ra", mas no próprio "interior" do sujeito. Em sentido inverso, o pen- nossa natureza.
samento chinês da transformação apresenta os fenômenos de geração Acontece o mesmo em relação ao comentário dos diversos tra-
e de crescimento como puros processos; o modelo que o sustenta não ços: a perspectiva positiva abordada em Sun, a diminuição, é aqui não
é, por conseguinte, o de uma ação técnica, mas o de uma incitação que apenas retomada mas reforçada. Com o primeiro traço, que é aquele
se propaga. Basta, para nos convencermos, considerar de novo a fi- que recebe o aumento do yang (que desce, lembremo-nos, da 4 3 para
gura: embaixo, o trigrama Zhen == == (o "trovão") representa a agita- a l' posição), a influência do Céu se expande (novamente) através da
ção inicial que deslancha o processo; depois, na parte superior, o tri- terra, a comunicação é restabelecida na base, e o porvir está em pro-
grama Xun =--::: (o "vento", mas também a "floresta") representa a gressão: "grandes empreendimentos" estão à vista (ainda será preci-
propagação em todos os lugares, contínua, dessa agitação. Desdobra- so ter a capacidade de assumir essa situação de iniciativa e, já que as
mento englobante, ao mesmo tempo invisível, e cujo efeito é "harmo- forças estão ainda reduzidas [no 1° traço], estar pronto para prosse-
nizador". O que o comentário do julgamento chama o ~~caminho da guir nesse caminho, é o que se indica com relação ao consulente). Como
floresta" é uma caminhada insensível, ao mesmo tempo irradiadora, tira proveito desse reforço pelo yang que se efetua na proximidade, o
que realça a eficácia infinita do discreto, do difuso, do incessante, segundo traço é, em si, muito logicamente comentado pela mesma
opondo-o à esterilidade da ação, sempre pontual, ao mesmo tempo es- fórmula de gratificação do 5° traço de Sun, a diminuição (que se en-
petacular e limitada. Esse "caminho da floresta" não é o de um logos contrava numa situação análoga: esse último se beneficiando do re-
organizador, de uma "idéia" criadora (construtora), mas o da comu- forço, na proximidade, do 6° traço), mas ele é ainda mais "fasto",
nicação extensiva, progressiva, de um primeiro abalo. indica-nos WFZ, que esse 5° traço: como é yin num lugar yin (enquanto
Consideremos novamente os valores simbólicos desses dois tri- o outro era yin num lugar yang), seu caráter "fasto" se beneficia, gra-
gramas para ver como essa visão de um desenvolvimento natural ser- ças a essa adequação, de uma estabilidade assegurada; além disso,
ve também para o plano moral (cf. o comentário simbólico da figura, como, enquanto yin, encarna uma virtude de dependência consentida,
WFZ, pp. 349-350). No estágio de Pi, a estagnação, lembra-nos WFZ, ele não se atribui essa vantagem, mas faz homenagem ao "Céu" (cf. o
o yin estava condensado embaixo em vez de ir para o alto; eis por que 5° traço) que o agrega, o que "torna ainda mais favorável sua posi-
em Yi, o aumento, o yang vem no ponto de partida (em primeira po- ção". Os 3° e 4° traços, finalmente, jogam entre si o roteiro do aumen-

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to": o 3° traço inventaria as "infelicidades" sofridas (calamidades, descende em vir "aumentar" os outros, os outros "também não o au-
guerras, mortes, segundo compreende WFZ) e, em nome dos traços mentam" e podem até mesmo chegar a "atacá-lo". Com efeito, como
yin que o cercam e lhe dão "confiança", vai pedir um aumento ao "mi- ele se recusa a reinar através de uma generosa benevolência (confu-
nistro" (o 4° traço): compreende-se que "pedir assim um aumento" ciana), ele não pode "apoiar-se" senão sobre si mesmo e conta con-
não seja muito "correto"!. .. Mas isso se faz aqui respeitando as for- duzir os outros como um fino psicólogo ("avaliando seus sentimen-
mas (o demandante está munido da "insígnia" de seu cargo; donde estar tos") e por uma "técnica política" astuciosa (do tipo da pregada pe-
"sem falta"). E, em resposta a esse pedido, o "ministro", no 4° traço, los jurisconsultos). Ora, a "inconstância" a que se encontra agora
"muda-se" logo em seguida para vir em ajuda ao 1o traço. Ora, se ele necessariamente reduzido (porque evolui ao capricho apenas de seus
age assim de boa vontade é porque isso corresponde à sua "aspiração": interesses) só pode suscitar a aversão de outrem: ele "se corta a si
o yang, explica-nos WFZ, não tem nenhuma razão, seja qual for o mesmo do Céu" e seu poder está condenado.
momento, em não "se espalhar" (em vista de animar); quando não o O último traço permitiu identificar de onde provém o mal: "guar-
faz, é porque o yin o impede e não se pode forçar ninguém a se bene- dar-se de modo egoísta", por complacência em face de si mesmo (e
ficiar da influência favorável que o cerca. O risco de ruptura (da po- "arrogância" em face dos outros), em vez de "aumentar" os existen-
laridade) está, constatemos uma vez mais, apenas de um lado: entre tes(d'). É essa atitude, e não a diminuição, que é oposta ao aumento (a
yin e yang, não haveria como partilhar os danos. diminuição, ao contrário, como já se viu suficientemente, é a condi-
O comentário reservado ao 5° traço, tal como compreende WFZ ção deste). Ora, essa atitude, que caracteriza o 6° traço de Yi, não deixa
(p. 352), apresenta um interesse particular do ponto de vista ideoló- de lembrar, observa WFZ (p. 353) como conclusão, a do 1° traço de
gico. Ele esclarece o ideal do funcionariado chinês, tanto o celeste como Sun, a diminuição (mas ela então estava apenas esboçada, no baixo
o humano. Se o "ministro", no 4° traço, subscreve depressa, ao se da figura, e era acessível à "exortação", ao passo que, nesse caso, é
deslocar, a demanda de aumento do yin (e sem que o soberano, no 5° '''obstinada'' - por estar em posição superior - e definitivamente "ne-
traço, tenha necessidade de a "demandar" a ele), é porque está em fasta"). Assim, o círculo se fecha. O mal foi afastado para as bordas e
relação de "confiança" com esse último, justamente acima dele, e com- não conseguiria persistir: deve ser corrigido (no 1° traço da primeira
partilha sua benevolente "solicitude" diante do mundo; por isso é ele dessas figuras), ou evacuado (no último traço delas como traço "que
que se desgasta (e "diminui", indo reforçar o yin na base), mas o mérito parte"). Entre esses casos extremos, fadado a desaparecer, o caminho
retorna legitimamente ao soberano (o 5° traço). Pois por que seria está livre e a progressão está assegurada.
preciso que este "se esforce pessoalmente" para poder vir em ajuda
aos existentes? Seus funcionários o fazem por ele. Isso se verifica no
plano cósmico: são os sopros sazonais que espalham a influência do VI-A "COMPLETUDE" (MOMENTÂNEA) E O DESLOCAMENTO DA
Céu; ora, observa WFZ, o mérito cabe não às estações, mas ao Céu. TENDÊNCIA (JIJI, HEXAGRAMA 63)
No 5° traço, o "aumento" está no seu auge. Como o Céu, como
o soberano, ele representa, no apogeu da figura (mas sempre perten- As duas figuras da "diminuição" e do "aumento", que vimos que
cendo a ela, notemos isso, portanto integrado no curso da realidade), ocupam uma posição axial na segunda parte do livro (nos lugares 11
a fonte de toda positividade (e é a ele que o 2° traço, em relação de e 12 da segunda parte), análoga à das figuras da progressão e do de-
"correspondência", p-resta homenagem). Por isso, passado esse traço, clínio na primeira parte, esclarecem conjuntamente a lógica que pre-
o caminho do aumento é barrado, e eis por que o 6° traço, na extre- side o· conjunto dessa reflexão: ao passo que as figuras da progressão
midade do hexagrama, está em completa ruptura com os anteriores. e do declínio fixavam os estágios opostos do processo, segundo esti-
Ele fornece até mesmo, do que precede, uma verificação a contrario. vesse este em seu regime mais alto ou mais baixo, as da "diminuição
Seu retrato é o do mau governante. Como ele se bloqueia em sua po- e do "aumento" evocam, encontrando-se a partir desses extremos, o
sição superior (atitude típica do 6° traço, no alto da figura) e não con- caminho legítimo de seu desenrolar. Eis por que se sobrepõem uma à

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outra, e se prolongam - em vez de se oporem. Resta uma terceira trans- procede de um "encontro adventício .. (f') entre o yin e o yang, e é so-
formação possível, a partir desse par arquetípico progressão/declínio, bre a lógica desse encontro que essas diversas figuras nos esclarecem,
aquela que repousa não sobre os dois traços superiores ou inferiores a partir de suas transformações recíprocas. Mas a dimensão de con-
dos dois trigramas de partida, mas sobre seus traços medianos. Ou essa junto, e portanto "insondável", do grande processo das coisas não se
permuta opera a partir de Tai, a progressão, e se obtém então o hexa- esgota em nenhuma delas. Por isso, a alternância regular dos traços
grama 63, jiji, "a completude" ç= =l. ==: a "travessia" chega ao seu fim; yin e dos traços yang que esses dois últimos hexagramas permitem ver
ou ela opera a partir de Pi, o declínio, e se obtém então o hexagrama não pode, em medida alguma, representar a grande alternância regu-
64, Weiji, que significa, ao contrário, a "incompletude" '==~ . ==: eis ladora que está em ação no real (o nível do shen lg')); o que significa
que a "travessia" está diante de nós. Ora, sabe-se que esses dois he- que não é enfileirando assim conscienciosamente, lado a lado, traços
xagramas são os dois últimos do livro. A pergunta então se coloca: yin e traços yang, que se poderá dar conta da profunda coerência da
como o Clássico considera o fim do processo da realidade, ou seja, a realidade nem de sua constante renovação. Em suma, o real não se
possibilidade - ou a impossibilidade - de toda "completude"? limita a eSse modelo mecânico e estereotipado.
Tudo leva a crer, com efeito, à primeira vista, que, com o hexa- O simbolismo das figuras basta para nos dar uma perfeita ilus-
grama 63,jiji, a "completude" está definitivamente alcançada. Repor- tração dessa incomensurabilidade dos dois pontos de vista. Enquanto
temo-nos, efetivamente, à figura: cada traço está em seu lugar (os tra- os dois primeiros hexagramas remetem aos dois pólos constantes da
ços yang 1-3-5 nos lugares ímpares, os traços yin 2-4-6 nos lugares realidade, Céu e Terra, o hexagrama da completude, jiji, é feito dos
pares), o equilíbrio entre os dois centros está bem repartido (o primeiro dois trigramas da "água" e do "fogo", Kan == e Li === (o fogo embai-
é yin, o segundo é yang) e cada um de todos os traços possui um par- xo, a água em cima). Ora, de todas as realidades, faz-nos observar WFZ
ceiro de gênero diferente, no outro trigrama, com o qual concordar (p. 491), a água e o fogo são os mais antagónicos (ao mesmo tempo
(o 1° traço yang com o 4° traço yin, o 2° traço yin com o 5° traço yang, que mantêm entre si uma "lógica sutil" de "penetração recíproca",
o 3° traço yang com o 6° traço yin). Todas as marcas possíveis de aquela que, por exemplo, permite ao fogo fazer ferver a água e, na
adequação estão aqui reunidas e a estabilidade da figura parece defi- seqüência, fazer cozer os alimentos). Ora, quando o fogo está embai-
nitivamente assegurada. Além disso, cada traço é seguido de seu oposto, xo da água, como representado na figura, a água termina por se eva-
o que faz pensar que a alternância reguladora do grande processo das parar e o fogo por se apagar: a "água" e o "fogo" são, assim, o sím-
coisas (segundo a fórmula célebre do "Grande comentário", A, §5: "um bolo de um encontro que é puramente transitório, e não de uma rela-
yin/um yang, eis o que se chama o Caminho", o Tao(e'); cf. infra, capo ção constante.
7, §3) está, no caso desta figura, encarnado do melhor modo possí- Para além do simbolismo da figura, existe uma razão de fundo
vel. Por isso somos obrigados a perguntar: essa figura não deve servir para que a "completude" representada por esse hexagrama não cons-
de modelo ao processo e, por conseqüência, ela o imobilizaria em sua titua uma completude verdadeira. Como, nesse caso, cada traço yin é
perfeição? seguido imediatamente por um traço yang e cada traço yang é segui-
Mas antes de mais nada convém distinguir, observa WFZ (pp. do imediatamente por um traço yin, "nenhuma aspiração dominante
490-491), entre esses dois pontos de vista. Por um lado, aquele que é determinada", diz-nos WFZ (p. 492), e "nenhum caminho pode ser
os dois primeiros hexagramas encarnam e que constitui a perspectiva seguido continuamente"lh·l. Nenhum fator, Com efeito, leva a melhor
de conjunto do processo: por si só eles estabelecem os dois fatores sobre o outro para orientar em seu sentido o processo, e ambos coe-
constantes da realidade (seis traços yin + seis traços yang) que, por sua xistem então face a face, em todos os níveis da figura - em partes
interação, não cessam de gerar o devir (e nada poderia ser exterior, iguais. A questão que se coloca é, por conseguinte, esta: por que essa
sublinha WFZ, a essa interação). Por outro lado, aquele representado coabitação (dos fatores opostos) não é favorável, uma vez que ela
pelos outros 62 hexagramas, que correspondem a tantas outras oca- parece encarnar, em todos os pontos, o justo equilíbrio?" Será preciso,
siões, ou· situações, particulares: cada uma dessas ocasiões-situações para respondê-la, proceder à seguinte distinção capital: é que o equi-

130 François Jullien Figuras da Imanência 131


líbrio que resulta então não é o equilíbrio da regulação, que, proce- aquele dos dois fatores que tende menos à relação recíproca, de onde
dendo por compensação, não cessa de dinamizar o curso do real e nasce a progressão, mas que é suscetível a um recolhimento "egoís-
promove, graças a essa possibilidade de alternância, sua constante ta" . Essa falta de tendência comum que confere sua motivação de con-
renovação (cf. a expressão anteriormente citada: "um yin/um yang, eis junto à realidade não pode senão ser favorável ao interesse individual
o Caminho"); mas é um equilíbrio de inibição, e portanto estéril, pois que daí em diante fará seu caminho. Como constata WFZ, o yang, cuja
cada fator, mal se afirma, logo vê seu caminho obstruído. Tudo é vocação, pela influência que não cessa de espalhar, é incitar e dirigir
apenas meia-medida, nada se faz completamente. Por isso nenhuma a evolução, não tem nada a ganhar com essa contínua partilha e mis-
direção prevalece e, portanto, mais nada se desdobra. Esse travessão tura com o yin; ao passo que o yin, que não colabora nesse processo
da balança que se imobiliza no centro é o contrário da verdadeira senão sob a impulsão do yang, vê reforçar, por esse juste-milieu nive-
centralidade, aquela que permite explorar o real tanto num sentido lador, sua tentação separatista, e é esta, em definitivo, que se vê pro-
como noutro (e sempre até o fim) e recarregar no mesmo ensejo, alter- gredir, de lugar em lugar, através da repetida fragmentação da rela-
nadamente, cada um dos pólos (como o representam os dois centros ção deles. A "completude" da "travessia" que caracteriza a figura
de todo hexagrama 1 ). Por isso, não só essa partilha meio a meio, fifty- concerne, por conseguinte, conclui WFZ, apenas à travessia do yin: é
fifty, torna a realidade "ingovernável", por ausência de autoridade!i'), ele que, "subindo" a cada vez sobre o yang (nas posições 2a, 4 a e 6 a ),
mas a leva ainda mais a seu "esgotamento". chega até a extremidade superior e "completa" assim o hexagrama.
A comparação com os hexagramas anteriores é esclarecedora Certamente, isso não significa que o yin seja em si mesmo nega-
nesse sentido: ao passo que em Tai, a prosperidade == (de onde pro- tivo (como se pudesse ser um princípio do mal), mas ele não é, como
cede esse hexagrama, a "completude"), a interação era global (três vimos, senão relativamente positivo (é preciso, para que sua positivi-
traços yin frente a três traços yang: a Terra frente ao Céu) e levava, dade se atualize, que seja conduzido pelo yang); por isso, o deslocamento
portanto, a capacidade do real ao seu mais alto regime, a interação da tendência que o une ao yang libera sua negatividade potencial e ei-
de que nasce a progressão é aqui completamente fragmentada (um traço lo arrastado a progredir, desde então, de modo cego. Ao mesmo tem-
yang seguido de um traço yin, um traço yin seguido de um traço yang, po, essa figura é em todos os pontos correta, o yin está sempre em seu
e assim por diante): por causa dessa fragmentação sistemática da inte- lugar e se encontra a cada vez, como convém, em relação de parceria
ração, a "progressão" está em migalhas e não pode, portanto, ser com o yang: essa progressão do negativo é, então, tanto mais insidiosa
"conservada". Do mesmo modo, as duas figuras da diminuição e do quanto se apresenta sob as aparências mais favoráveis. Eis por que essa
aumento eram positivas porque a orientação que encarnavam podia figura aparece, como se verá explicitamente na seguinte, sob o emble-
. se desdobrar de ponta a ponta (numa e noutra figura, os três traços ma- falacioso-da "raposa": a raposa, esclarece WFZ (p. 494), é de
da terra estavam agrupados no centro e em Yi, o "aumento" começa- natureza "muito ambígua", ela que, por suas lisonjas, se mistura aos
va no baixo da figura para se desenvolver até o 5° traço). Ora, neste homens e consegue "semear a perturbação entre eles". O fato de que,
caso, 'mal se fragmenta, a tendência (seja ela yin ou yang) é logo inter- nesse caso, o yin se misture muito intimamente ao yang, como a rapo-
rompida: por isso, por causa desse deslocamento reiterado da tendên- sa entre os homens (cf. a imbricação sistemática dos traços), não pre-
cia, nenhum "caminho" é dado a seguir. judica apenas a afirmação da tendência, mas encobre, ademais, a falta
a fato de que a intera,ção seja também fragmentada, que nenhum de tendência, valendo-se das inclinações egoístas do yin, sob a aparên-
caminho seja aberto para dirigir a evolução, não conduz some.nte a um cia da maior cordialidade (do mesmo modo, a raposa "seduz" por suas
travamento do processo. Na ausência de orientação manifesta, desco- "lisonjas"). Eis por que a mistura representada pela figura aparece defi-
brir-se-á sem esforço uma evolução negativa. Poder-se-ia crer, efeti- nitivamente como o inverso fraudulento da relação de polaridade de
vamente, que a falta de tendência afirmada levaria simplesmente à que resulta a progressão (aquela que se exercia plenamente em Tai, en-
neutralização dos fatores em presença, mas, de fato, como analisa WFZ quanto yin e yang estavam cada qual em seu lugar e se viam atribuir
(p. 492), ela favorece um deles em detrimento do outro: precisamente claramente sua respectiva função): a mistura não só embaralha sua opo-

132 François Jullien Figuras da Imanência 133


sição, dissolve sua correlação, mas oferece, além disso, a sua mais per- cf. WFZ p. 493): a ordem chinesa é ao mesmo tempo hierárquica e
feita simulação. Trata-se, numa palavra, da perversão. monista (os chineses não puderam imaginar, como se sabe, outro re-
A fórmula introdutória da figura, a partir de então, pode ser fa- gime político senão a realeza), ela não pode, por conseguinte, ser teci-
cilmente interpretada. Se se trata, a princípio, de uma "pequena pro- da na horizontal, de maneira distributiva e "democrática". É que essa
gressão", não é tanto que a progressão "seja pequena" por conse- ordem, tal como concebida na China e aqui esclarecida pela figura, se
qüência da dispersão da tendência (reduzindo a interação benéfica na funda, de fato, num medo inveterado da "mistura"!!'), de gêneros ou
mesma medida) quanto o fato de que a única progressão em questão de funções. E WFZ, quanto a este ponto, é o mais veemente possível:
seja a "do pequeno", quer dizer, do yin que se aproveita dessa situa- o yin e o yang, no curso de sua relação, devem fIcar "puros" de um
ção de partilha para promover seu próprio interesse. A indicação se- lado e de outro; ora, essa figura representa o inverso extremo e, por
guinte, "proveito - integridade", em aparente contradição com essa conseguinte, o cúmulo da desordem, a confusão(m'). Dito de outro
constatação negativa, visa somente a dar testemunho, em função dos modo, o que se afirmou de pior sobre a figura, entre traços yin e tra-
critérios comumente estabelecidos, da adequação de fachada sobre a ços yang estabelecidos cada vez lado a lado, é a contínua promiscui-
qual é construída a figura (essencialmente, cada traço em seu devido dade assim instaurada.
lugar e possuindo um parceiro). Finalmente, "o começo é fasto, mas, O primeiro e terceiro traços, que são yang, nos fazem ver através
no fim, há desordem": contrariamente ao que se esperava, essa situa- de sua encenação de qual interesse teórico é suscetível a questão da
ção de "completude" não é durável. Essa felicidade inicial, diz-nos tendência e de sua desarticulação. Ao passo que o segundo traço, que
WFZ (pp. 492-493), é o repouso momentâneo e enganador de quem, é yin, "tende a subir", o primeiro traço yang, "imperturbável", o re-
colocando de repente o pé na margem, se alegra por haver completa- tém embaixo (cf. a imagem inicial: "girar a roda"; é preciso compreen-
do a travessia sem tomar cuidado com os perigos que se seguirão; der: para trás): a "cauda que se molha" então é a da raposa (o 2° traço)
quanto a essa "desordem" final, não se deve considerá-la apenas como interrompida em seu impulso. O 3° traço tenta igualmente conter essa
uma etapa posterior do processo uma vez que, como tende a provar progressão negativa do yin, mas a cena se situa, dessa vez, na história
todo o desenvolvimento anterior, ela já existia em "germe" quando (sob Gaozong dos Shang): na época precisamente em que, diz-nos WFZ,
"se procurava atravessar". toda tendência geral foi abolida, em que "ordem e desordem fazem a
A figura se presta, então, a uma dupla leitura - ao mesmo tem- partilha meio a meio", em que a dinastia está a meio caminho, suspensa
po filosófica e ideológica. O interesse propriamente filosófico diz res- entre a progressão e o declínio. Por isso, para suscitar uma renovação,
peito à consideração da tendência: a desarticulação da tendência cria o 3° traço (que representa a tendência positiva que deveria dominar)
uma falsa completude, pois que sob a imobilização, em todo ponto "parte para a ofensiva" contra os fatores negativos que não conseguiu
correta, a que ela leva se trama efetivamente a desintegração do real até então conter (representados pelo "país dos fantasmas", isto é, o país
_ que, como tal, não poderia ser durável. Quanto ao uso ideológico de Chu, segundo WFZ); mas, como não tem ao seu lado (adiante ou
da figura, ele incide principalmente nessas duas engrenagens, cuja ín- atrás, na 2a ou na 43 posições) nenhum outro traço yang que lhe possa
tima conexão pode ser percebida melhor, ademais, através do trata- dar apoio, como sua força se limita então unicamente a seus próprios
mento da figura: tanto a "ordem" como a "pureza"(j'). Não existe recursos (e como, além disso, seu parceiro, na 6a posição, é um traço
"ordem" possível, aos olhos de WFZ (mas também da tradição chi- yin que mergulha em sua cegueira: o "homem sem valia" do qual se diz
nesa, poder-se-ia dizer), não por "acordo" individual e sucessivo, ne- que não se deve "utilizá-lo"), essa expedição punitiva arrasta-se em du-
gociado traço a traço (como nessa figura em que um yin "concorda" ração (durante "três anos") e o yang sai dali "esgotado": sinal de que
com um yang, um outro yin com um outro yang etc.), mas só quando °
a tendência que regia curso do real está esgotada.
um dos fatores em presença domina globalmente o outro e lhe impõe Entre os traços primeiro e terceiro, o segundo, que é yin, se expõe
de ponta a ponta sua vontade (quando todos os yin estão de um lado, ao fantasma ideológico da "pureza", sexual e moral. Justamente por-
todos os yâng, do outro; é preciso xiang zhi e não apenas xiang ying(k'), que é um traço yin (feminino), situado entre dois traços yang (mascu-

François Jullien Figuras da Imanência 135


134
linos), estando, por conseguinte, numa relação muito grande de pro- faz na maior confusão. Se a partilha equânime das forças, entre fato-
miscuidade entre eles. "A esposa perdeu a cortina de seu carro" nos in- res opostos, imobiliza por um instante o processo numa relação de equi-
dica a fórmula canônica. "Essa cortina do carro", comenta WFZ (p. líbrio, leva fatalmente à anarquia. Por isso a inadequação sistemática
495), "esconde o rosto da esposa e preserva seu pudor". Ora, aqui o das posições, que o último hexagrama considera, será ainda melhor
yin-esposa está "misturado" a dois yang (machos) e, além disso, esse que essa adequação factícia. Ela cria pelo menos uma nova distribui-
traço "aspira subir para atravessar", a esposa está então "sem mode- ção de cartas e impedirá que essa evolução negativa chegue ao fim.
ração": eis por que "ela perde a cortina de seu carro" e está "perto de
soçobrar na desordem". Felizmente a posição central desse traço den-
tro do trigrama, marCa de retidão (além disso, esse trigrama Li, o "fogo", VII - A "INCOMPLETUDE" E A SUSPENSÃO FINAL
é também o da "claridade"), a retém à beira do precipício: "em sete dias", (WEIJI, HEXAGRAMA 64)
quer dizer, quando as seis posições desse hexagrama estiverem esgota-
das, a preciosa cortina que a vela "será encontrada por si" (inútil, por- De modo mais preciso ainda (formalmente falando) do que para
tanto, que ela se apresse em sua perseguição, basta que esse período de os pares anteriores de hexagramas, essa figura da "incompletude",
confusão tenha passado completamente). A lição é clara: a mistura entre Weiji, n° 64, dá-nos a pensar o inverso - ao mesmo tempo similar e
os traços, entre os sexos, é o contrário da relação de polaridade (aque- oposto. Isso quer dizer que o vínculo de similaridade restringe-se ain-
la de que decorre uma geração benéfica); e por isso, a separação dos da mais aqui, através mesmo da oposição: se o hexagrama de partida
sexos serve de revelador - e de garantia - para a ordem do mundo. é, como sempre, o contrário do caso anterior, aqui já não mais Tai, a
Todo o desenrolar da figura, finalmente, é dominado pelo tema progressão, mas Pi, o declínio, o mesmo tipo de permutação opera entre
da água (motivo yin por excelência; além disso, o hexagrama superior os dois traços medianos da figura (= =)_. ==. Também a óptica, de uma
Kan simboliza tanto a água como o perigo); mas, em vez de levar à figura a outra, continua sendo a mesma. A travessia, quer esteja "com-
"travessia", leva a um engolimento. Evocamos, desde o 10 traço, a cauda pleta", como no caso do hexagrama 63, ou ao contrário "incomple-
molhada da raposa (o 2° traço), retida em seu impulso. No quarto, que ta", como no 64, concerne sempre apenas ao fator yin. É assim, com
é o segundo traço yin, o barco" faz água" (sentido do xu, segundo WFZ), efeito, indica-nos WFZ (p. 498), que convém ler esse último hexagrama:
mas ainda se dispõe de "trapos" para tapar os buracos: esse traço ocupa, o yin "debuta" na 1~ posição, "sobe" para a Y e "atinge" a Y; em
com efeito, enquanto 4° traço, uma posição de recuo, mesmo que aspi- cada uma delas, é "coberto" por um traço yang que lhe barra a pas-
re a "atravessar", não se aventura levianamente, mas permanece "todo sagem e o impede de atingir a posição que lhe cabe (os lugares pares
o dia" acautelado. Essa vigilância o salva do naufrágio e ela é contra- acima: 2\ 4~ e 6 01 posições). Essa incompletude também nos é ilustra-
posta pelo 5° traço yang, em posição soberana e portanto também de da num plano simbólico. A figura é composta dos mesmos trigramas
árbitro, ao mergulho cego do último traço (segundo WFZ, o modesto que anteriormente, a "água" e o "fogo", mas inversamente dispostos:
sacrifício dos "vizinhos do Oeste" - o preferido - remete ao 4° tra- o fogo (no alto) queima e se dissipa, a água (no baixo) escorre e a ter-
ço, ao passo que o sacrifício dos "vizinhos do Leste", demasiado dis- ra a absorve. Esses dois elementos "seguem cada um sua inclinação"
pendioso, remeteria ao 6°). No último traço, com efeito, o yin chegou sem se encontrarem, não se segue nenhum funcionamento recíproco,
ao cimo de sua corrida e, seguro de seu impulso, ele bate a cabeça na e a transformação natural fica "incompleta".
água: manifesta-se enfão brutalmente a desintegração, ocasionada, sob Entretanto, uma questão se coloca: por que não se poderia falar
a aparência de "balança" mantida constantemente igual(n'l (WFZ, p. também, nesse caso, da "completude" do yang, mais do que da incom-
492; cf. Mencius VII, A, §26), pela subida, impossível de conter de agora pletude do yin, já que () yang ocupa agora os mesmos lugares superiores
em diante, dos fatores negativos. (2-4-6) que o yin ocupava anteriormente (que completava assim sua
Aquilo que se podia tomar como o statu quo ideal da "com- "travessia")? Ou, inversamente, por que não se poderia falar, nesse
pletude" revela-se apenas como um ~'repouso enganador,,(o'l e se des- caso, da "incompletude" do yang tanto quanto do yin, já que, se o yin,

136 François Jullien Figuras da Imanência 137


aqui, não está sempre em seu lugar, acontece exatamente a mesma coisa humano, e a realidade se torna ingerenciável. Por isso, as duas figuras
para o yang (que se encontra sempre nos lugares pares em vez de nos oferecem a imagem da mais extrema confusão (ao mesmo tempo "mis-
lugares ímpares que lhe cabem)? Poder-se-ia achar supérflua essa ques- tura" e "desordem"), de onde resulta uma perspectiva de conjunto que
tão colocada pelo comentarista (WFZ, p. 498), se não estivesse claro esclarece às avessas a organização do livro: no início do Clássico, os
que ela toca de fato num problema de fundo que não cessa de perse- dois primeiros hexagramas encarnavam, por sua "pureza" (ou todo
guir essa reflexão: que estatuto atribuir ao parceiro do yang, sabendo yin, ou todo yang) o summum da "facilidade" e da "simplicidade,,!q')
que está estabelecido desde o começo que o yang é um fator absoluta- segundo as quais podem se desenrolar os processos; no final do livro,
mente positivo? Formalizemos, com efeito, o dilema: se esse estatuto as figuras da "completude" e da "incompletude" representam, ao con-
do parceiro é positivo como o do yang, o yin se confunde então com trário, pela imbricação máxima de seus traços, o estágio mais "com-
ele e toda dualidade se apaga; e se, ao contrário, ele é negativo, o yin plexo" e cuja "dificuldade"(r'l, por conseguinte, é a maior.
não pode mais servir de parceiro para o yang (entrando em relação Entretanto, o caso representado pela "incompletude" é preferí-
de interação benéfica com ele) e se apaga então a correlação. Ora, a vel àquele representado pela completude e constitui um ótimo relati·
dualidade e a correlação são as duas condições de possibilidade da vo. Como observa WFZ (p. 499), se a confusão é levada, nos dois casos,
polaridade. Temos, então, de definir uma diferença relativa entre os ao seu extremo, o ponto de vista que uma e outra figura mantêm em
dois. O yang, nos diz WFZ, expande-se a partir de si mesmo em to- face dela é, entretanto, diferente: a figura da completude a faz ver como
dos os sentidos, para promover o real e animá-lo, e sua operação é uma situação realizada sobre a qual pode-se "basear" -se; ao passo que
sempre eficaz, e por isso é constantemente adequado: por isso não se a da incompletude a representa como irrealizada e, daí, sujeita à cau-
pode falar, em seu caso, nem de "completude" nem de "incompletude", ção. O que pode ser expresso de outro modo: dado que a travessia do
porque se trata de uma alternativa (às vezes consegue, às vezes não) yin é em si funesta, o fato de que, por causa de sua descontinuidade,
que para ele não se coloca (a completude em si supõe ou uma possibi- o yin não esteja apto a terminar sua travessia (como no caso da "incom-
lidade de incompletude ou uma incompletude anterior, enquanto que pletude") é preferível ao fato de que o yang, por causa dessa mesma
o yang está sempre numa relação de perfeita contemporaneidade com descontinuidade, não tenha força para reter o yin em sua travessia
o curso do processo). No caso do yin, em compensação, se o yang não (como no caso da completude). Daí resulta o caráter ambíguo da fi-
o "penetra" para "incitá-lo", ele tende a submergir e "não está mais gura da incompletude (diferente, poder-se-ia dizer, do caráter falacioso
apto a prover" a geração dos existentes. A solução ao dilema anterior da anterior em que, sob a adequação de fachada, se patenteava a pior
é, então, que o yin só é positivo graças ao yang. Ora, com relação a evolução): por um lado, reencontra-se aqui, e logo de cara (desde o
essa figura, o yang "cobre" o yin por cima e "não o agita para elevá- julgamento introdutório), o motivo da raposa, que é de mau augúrio,
lo" (cf. o caso similar de Pi de que deriva essa figura e na qual todo o mas ao mesmo tempo uma alternativa subsiste, uma escolha continua
yang está no alto, todo o yin no baixo), e por isso o yin, nessas condi- aberta: o yin, que ainda não atravessou, pode aceitar ficar em seu lu-
ções, não pode ter êxito em sua "travessia". gar e não atravessar, e nesse caso a figura não tem mais espaço para
Por isso, quer se trate da completude ou da incompletude, a ló- jogar negativamente.
gica de base é a mesma; e a desarticulação da tendência se reencon- Essas duas últimas figuras evocam, então, a mesma situação, a
tra, por conseguinte, d!2: uma figura a outra: na da completude, é o yang da maior confusão, consecutiva à ausência de tendência diretora, mas,
que é fragmentado demais para poder impedir a subida do yin; e na ao passo que a figura da completude estava fechada a todo futuro, a
da incompletude, é o yin que é fragmentado demais para conseguir che- da incompletude permanece aberta e nos surge suspensa em sua reali-
gar ao alto (como indica o comentário do julgamento: "não existe zação. Ora, essa única diferença das perspectivas é o bastante para gerar
continuidade para permitir ir até o fim"(p'l). Nos dois casos, o real está efeitos que, embora secundários, chegam entretanto a transformar as
repartido . . em partes iguais, entre seus fatores opostos, o que é incom- condições de funcionamento da figura, e até se voltam contra seus
patível, sublinha WFZ (p. 499), com a economia de conjunto do mundo critérios mais comuns de interpretação. Isso pode ser verificado no

138 François Jullien Figuras da Imanência 139


ponto seguinte: é apenas a propósito da última dessas figuras que se si mesmo, e por isso ela conduzia, sob as aparências mais favoráveis,
acha mencionado o benefício de uma correspondência à distância (s') a uma completa desintegração; ao contrário, a inadequação desta fi-
(cada traço encontrando seu parceiro do gênero oposto no outro tri- gura faz atuar plenamente as outras solidariedades possíveis, recria uma
grama, o 1° traço yin com o 4° traço yang, e assim por diante). Ora, tensão entre os fatores respectivos e dá matéria à compensação: rein-
como observa WFZ (p. 500), essa relação de parceria existia também, troduz-se ao mesmo tempo, sub-repticiamente, do centro mesmo da
de modo sistemático, no caso da "completude", mas então esse ele- desordem, um funcionamento regulador. Certamente, ele não domi-
mento positivo se encontrava como que anulado por esse outro aspecto, na de imediato a figura - porque ela sofre, como a anterior, da falta
igualmente positivo, o de que cada traço estava em seu lugar: como de tendência diretora - , mas opera, entretanto, de posição em posi-
cada um dos dois fatores em presença, yin e yang, se imobilizava em ção, um endireitamento sucessivo: não se tratará mais da grande Re-
si mesmo e vivia desde então "autocraticamente" seguindo apenas sua gulação universal, em escala cósmica ou régia (como em Tai, a pros-
inclinação (t'), essa relação de parceria entre traços correspondentes (e, peridade), mas da regulação em seu nível mais individual, mais frag-
portanto, fatores opostos) não servia mais para nada. Ao passo que, mentário - no cotidiano.
no caso da "incompletude", ela atua de modo muito mais eficaz por- Por isso os diversos traços vão colocar em cena a dispersão da
que nenhum dos traço. está então em seu devido lugar (todos os tra- tendência através da figura, como no caso da completude, mas orien-
ços yin estão nos lugares ímpares e reciprocamente): ela conduz assim tando-a, agora, num sentido favorável. A encenação é a mesma que a
ao fato de que a tendência individual ("egoísta") liberada, em cada anterior, só que os traços estão invertidos. Os traços 1° e 3°, que são
traço, pela ausência de tendência geral (e diretora), se encontra logo yin, querem avançar na "travessia" e os traços 2° e 4°, que são yang,
contrariada pela situação em que está engajada, o que não pode dei- os detêm em sua progressão: o 2° traço (yang) "gira a roda" (para trás:
xar de levar a uma harmonização contínua dos fatores opostos. Re- como o 1° traço yang da figura anterior), ao passo que, no 1{) traço
tomando os termos da codificação chinesa: o "duro" num lugar "mole" (yin), a raposa "molha sua cauda" (como no 2" traço yin da figura
não é mais tão "altivo", o "mole" num lugar "duro" já não se deixa anterior). O 4° traço yang retoma do mesmo modo o motivo da "ofen-
levar... Um novo modo de interação se apresenta, entre o traço e o lugar siva punitiva" (na direção desse avanço do yin) que era evocada no 3°
adverso que ele ocupa, que, porque ele rompe a autarquia em que se traço yang da "'completude", mas deixa igualmente perceber a inver-
fecharia cada um dos traços, após a desarticulação de toda tendência são de signo que, de uma figura a outra, se operou: não só o comen-
dominante, converte excepcionalmente em vantagem aquilo que não tário acrescenta a propósito desse traço que ele é "íntegro" e "fasto"
era até então, quer dizer, até a última figura do livro, senão um fator e que "'o remorso desaparece"; mas, sobretudo, em vez de essa expe-
negativo. dição que dura "'três anos" chegar, como anteriormente, ao esgota-
Acredito mesmo que se poderia facilmente seguir a reflexão con- mento do yang, seu saldo é vantajoso, pela outorga, como "recompen-
duzida por WFZ até este ponto: ao passo que a sobreposição de di- sa", de "grandes reinos", signo de um incontestável sucesso,
versos tipos de ordem (cada traço está em seu lugar, cada traço tem Por isso o 5" traço não tem nenhuma dificuldade em tirar pro-
seu parceiro etc.) levava, na figura anterior, à neutralização de sua veito da desarticulação da tendência que o impede, enquanto traço yin,
positividade respectiva e, daí, a uma imobilização destrutiva, desco- de chegar ao alto (na 6' posição). Ele está situado entre dois traços yang
bre-se, em compensação, a propósito dessa figura, que um certo tipo no trigrama superior do mesmo modo que seu correspondente no outro
de inadequação (tal coino a dos traços em relação a seu lugar) não só hexagrama, o 2° traço yin da "completude" (mesmo trigrama Li - -);
faz tanto melhor ressaltar uma adequação de um outro tipo (aqui, a mas, em vez de o fato de estar misturado a dois traços yang significar
relação de parceria entre os trigramas), mas, além disso, permite que uma ausência negativa de pudor da parte da "esposa" (que perde a
esta se exerça e se vê em troca atuar através ela. A adequação consta- "cortina" de seu carro, como no hexagrama anterior), essa situação
tada em todos os pontos, em todos os sentidos, no caso da figura an- de "mistura" vem ilustrar, por inversão de seu val?r, a "irradiação"
terior tinha' por efeito necessário que cada fator estava abandonado a do "homem de bem" (essa irradiação é yin em seu centro porque o

140 François Jullien Figuras da Imanência 141


homem de bem influencia tanto mais os outros quanto é "vazio" de tatar a propósito de todas as outras, o fato de que os traços não este-
toda presunção, não se impõe a Outrem nem se atribui méritos). A jam em seu lugar atuava, dessa vez, de modo positivo. Do mesmo
tendência que podia levá-lo a terminar a "travessia" (subindo para a modo, nos dois últimos traços dessa última figura, a relação de "con-
6 a posição) está dispersa, ele "não sai do centro" (do trigrama); e, fiança" na proximidade (de tipo fu oposta à relação de parceria à dis-
porque não sai dessa posição ideal de centralidade, ele se alia com tância, de tipo ying 1v ·)) se estabelece de modo "excepcional" (cf. WFZ,
"confiança"(u') na proximidade não com um outro traço yin, ao seu p. 503) não com o mesmo, mas com o outro: o yin não está mais em
lado (porque não os tem em nenhum dos seus lados, em virtude da relação de coesão com um yin, mas com um yang. Essas exceções,
desarticulação da tendência), mas com o traço yang que está no lugar conclui WFZ, significam que o Clássico da mutação não pode servir
que normalmente lhe cabe, na 6' posição. De modo excepcional, que "de modo cristalizado"(w'). Eis, então, que o livro, ao terminar, reco-
WFZ sublinha (p. 503), essa relação de "confiança" que sempre é locaria em questão seus próprios princípios de interpretação, que o
"fasta" é estabelecida não com o mesmo (o yin com o yin), mas com sistema, ao se completar, se liberaria de si mesmo. Existe sim um mo-
o outro: no próprio interior da confusão, uma nova solidariedade se delo, mas ele, para ser eficaz, não deve se tornar estereotipado; existe
manifesta, um outro tipo de ordem aparece. sim um sistema, mas ele - para evitar funcionar mecanicamente e,
A relação de confiança na proximidade que se estabelece assim portanto, no vazio - deve se renovar. À imagem do real que, ao mes-
de um modo novo, na extremidade do livro, entre fatores opostos, é mo tempo em que continua profundamente coerente, não cessa de
tanto mais sólida quanto mais se confirma ser recíproca: o último traço manifestar seu poder de inovação, o Clássico da mutação libera suas
yang, no alto da figura, começa por evocar, de modo festivo, a "con- regras de funcionamento de toda codificação definitiva e continua
fiança que reina entre pessoas que bebem" (e que, como se acrescen- aberto à ultrapassagem delas.
ta, "não tem erro"). Mas essa reciprocidade não deve fazer esquecer
a assimetria das posições (yin e yang não possuem, como se sabe, a
mesma positividade): por isso, quando é vivida pelo yang e se exerce NOTAS
em face do yin (aqui o 3° traço yin que serve de correspondente ao 6°
traço yang, que não recusa aquele), essa relação de confiança, obser- 1 Cf. supra, capítulo I, §4. Assinalemos, entretanto, que uma expressão la-

va WFZ (p. 504), não deve levar o yang a se deixar arrebatar pelo yin cônica de WFZ pareceria contradizer, além disso, essa crítica da pseudo-comple-
tude (mas talvez porque a reflexão ainda não estava desenvolvida; cf. p. 275).
e se "contaminar" por ele (contaminação tanto mais fácil quanto a
situação é então a da maior mistura). Pois ressurge então logicamente
o risco de engolimento para o qual o yin conduz quando segue sua
própria inclinação: o perigo de "bater a cabeça" (na água), com que
terminava a figura anterior, continua, então, neste último traço, ain-
da atual.
Esse último traço, na última figura, fecha assim o livro com um
quadro ambíguo: alegria da compreensão cordial (entre fatores opos-
tos) - ameaça de transbordamento. O que equivale a dizer que o li-
vro não se fecha, mas' que termina numa suspensão. O porvir perma-
nece aberto: do centro da desordem uma nova solidariedade é posta
em jogo, mas é conveniente continuar prudente.
Essa suspensão com que o livro se interrompe também é uma
suspensão teórica. WFZ nos levou a notar (cf. p. 500) que, no caso
dessas duas últimas figuras e contrariamente àquilo que pudemos cons-

142 François ] ullien Figuras da Imanência 143


5. so que o outro tende a desaparecer (resta apenas um traço yin ou yang
"DESPOJAMENTO" E "RETORNO", no alto da figura); no caso das duas outras figuras, o "retorno" (n"
"ELIMINAÇÃO" E "INSINUAÇÃO" 24) e a "insinuação" (n° 44), o fator que tendia a desaparecer no alto
ou a exploração dos limites da figura reaparece em sua base, ao passo que o outro fator, que ocupa
(hexagramas 23 e 24, Bo e Fu, 43 e 44, Guai e Gou) ainda o maior lugar no hexagrama (por seus cinco traços sucessivos),
começa entretanto a ser eliminado. Cada um desses hexagramas é,
então, ao mesmo tempo, o inverso daquele que o precede ou o segue,
Tal como ordenados no livro, os dois últimos hexagramas, o do ao mesmo tempo em que encontra seu semelhante no outro par de
"após a realização" (nO 63) precede o do "antes da realização" (nO 64). figuras (na perspectiva do outro fator): explorando assim, de modo
Dito de outro modo, o fim precede o começo. Ora, não existe aí nem sistemático, sua dupla relação de oposição e de simetria, ou yin, ou
sombra de um paradoxo, mas, ao contrário, um sentimento de evidên- yang, ou começo ou fim, eles desenham os pontos extremos em que
cia. Na medida mesma em que o real está em constante renovação, não oscila o processo; por isso mesmo, servem de balizas na composição
seria possível encontrar nele um começo primeiro nem um fim defini- do livro (cf. sua repartição estratégica 23- 24 e 43- 44). A partir do
tivo: porque todo começo é sempre a conclusão de um estado prece- desenvolvimento de suas derivações, os hexagramas anteriores tinham
dente, o pensamento chinês não concebe a realidade em termos de explicado a possibilidade do devir por seu caráter de transição; pelo
"criação", mas de processo contínuo (cf. infra, p. 187); e, porque o esquadrinhamento que operam nas duas pontas de seu desenrolar, os
fim nunca é absoluto, mas sempre seguido, por transformação, de uma hexagramas de que tratamos agora esclarecerão os estágios últimos.
renovação, a visão chinesa também não poderia ser "trágica". A tra- Não basta justificar a lógica inerente ao curso das coisas dando conta
gédia só é possível na perspectiva de um "quinto ato", quando o de- de seu curso ordinário e regular; é preciso também experimentá-la em
senlace é completo e o devi r se interrompe. suas extremidades e em suas inversões: seguir o caminho da regula-
Dois outros pares de hexagramas, que ocupam igualmente uma ção até seus confins, explorar seus limites.
posição significativa no livro, correspondendo-se de uma parte a ou-
tra, nos fazem ver o fim antes do começo: fim do yang e começo do
yang (Bo ~ ~ e Fu ~ ~, nOs 23 e 24), fim do yin e começo do yin (Guai I - ATÉ ONDE PODE IR ° "DESP0.lAYlE:.JTO" (DO POSITIVO)?
- - e Gou __ , nOs 43 e 44). Ao mesmo tempo, esses do'is novos pares (Bo, HEXAGRAYlA 23)
de figuras representam, do ponto de vista de sua estrutura, o inverso
dos dois últimos hexagramas que estivemos considerando: ao passo o primeiro caso de figura considerado é aquele em que cinco
que aqueles faziam alternar sistematicamente traços yin e traços yang traços yin se sucedem a partir da base do hexagrama e deixam subsis-
e caracterizavam desse modo uma situação de extrema "modificação", tir apenas um único traço yang no seu cume: ~~ (Bo, n° 23). Segundo
esses são compostos de cinco traços de mesma natureza, ou yin ou yang, o motivo do "despojamento" ou do "esfolamento" que serve para
que se sucedem continuamente, e caracterizam assim o extremo da caracterizar esse hexagrama, esperar-se-ia que o processo de destrui-
"continuação"(a) (porque no caso de os seis traços da figura serem ção aqui iniciado parta de fora e ganhe progressivamente o interior
todos da mesma natureza, ou todos yin, ou todos yang, o que nos le- (como se se arrancasse as camadas uma após outra). Ora, aqui a ero-
varia aos dois primeiros hexagramas, isso não corresponderia mais a são opera a partir do "interior" da figura que sua base constitui: o yin,
uma situação particular no processo, mas à encarnação da polarida- subindo, tende a eliminar o yang impelindo-o para fora. Entretanto,
de de onde·) processo provém; cf. supra, p. 51). No caso das duas pri- trata-se antes de um "despojamento" que procede do exterior, obser-
meiras figuras desses dois pares de hexagramas, o "despojamento" (n° va-nos WFZ (p. 219), porque o conjunto do processo é percebido na
23) e a "eliminação"(n° 43), um dos dois fatores do processo conhece perspectiva do yang que é seu fator ahsolutamente positivo e deve
então seu maior desdobramento (cinco traços consecutivos), ao pas- dirigir sua evolução (é ao yang, como se sabe, que cabe a iniciativa,

144 François Jullien Figuras da Imanência 145


ao passo que o yin encarna a receptividade: o primeiro representa, último estágio nos é dado a considerar por Bo, não desvia em nada
então, normalmente o papel de "convidante" e o segundo o de "con- da necessária obediência do yin em face do yang, tal como está mar-
vidado" (bl): como o yin está aqui no ápice de sua pujança e tende a cada simbolicamente na base da figura, e se, além disso, o yin, che-
expulsar o yang em vez de se submeter à sua influência, essa figura, gando ao seu ápice, sabe "se deter", em vez de ceder à tentação de um
em conseqüência, é "a mais nefasta". Por isso o julgamento a seu res- "transbordamento", essa ascensão do yin coincide então sem nenhum
peito se contenta em dizer laconicamente: "não há interesse em ir para prejuízo com a alternância de "crescimento" e de "decrescimento", de
a frente". Essa situação é, evidentemente, a mais anormal, porque é o "vazio" e de "pleno", que é inerente à "marcha do mundo" e consti-
yang (luminoso) que se retira e entra na sombra, porque é o yin (obs- tui a lei do real. Por isso, mesmo nesse estágio extremo, quando a fi-
curo) que avança para a luz e se impõe, e porque as posições primei- gura é a mais desfavorável, uma adequação seria possível(c).
ra, terceira e quinta, que são yang, estão ocupadas por traços yin: esse Voltamos, então, graças às manipulações do comentário, à visão
tempo do despojamento só pode corresponder à "subida" de todos os reconfortadora da regulação. O despojamento que a figura põe em cena
"homens sem valia" e é desfavorável, conseqüentemente, ao "homem não levará a uma catástrofe. Bastou que esse hexagrama tenha sido
de bem". considerado menos em si mesmo do que à luz de um outro, que tives-
Mas até onde se pode ir não muito longe nesse caminho da eli- se sido lido mais em função dos elementos simbólicos que nele se jus-
minação do fator mais positivo (o yang) rechaçado por aquele que o tapõem do que segundo sua trajetória de conjunto: nada devia ser
é menos (o yin)? Tal como se apresenta, essa figura nos precipitaria desdenhado, com efeito, dentro das virtualidades da figura, para a fazer
num drama; o risco que ela nos faz correr é nada menos que o de nos desviar daquilo que ela implicava na partida, desviar sub-repticiamente
levar ao descarrilamento do real, quer dizer, à sua desintegração. Por sua lógica. Ora, essa estratégia de esquiva é sintomática das possibili-
isso, O cuidado do comentário (e, primeiro, do comentário canônico) dades do expediente. Pois, quando, na reflexão ocidental, a argumen-
vai ser o de fixar um limite para esse desmantelamento e reintegrar esse tação tropeça, dá meia-volta e não pode avançar mais, é tradicional
estágio extremo na lógica de conjunto da regulação (cf. WFZ, p. 220). que o filósofo mude então decididamente de plano, abandone aberta-
Em primeiro lugar, esse apogeu do yin é apenas o resultado de uma mente a demonstração rigorosa para deixar falar a voz comum da
tendência progressiva e se insere, portanto, numa continuidade, aquela crença ou do desejo (há, então, uma passagem ao "mito", um recurso
que podemos seguir a partir de Gou (n° 44) __ , através de Dun (nO aos "postulados"). Ora, surge por contraste que o pensamento chinês
33) ==, depois Pi (nO 12) cc, depois Guan (n° 20) ~~. Ora, essa últi- faz a economia dessa ruptura e não ultrapassa a ordem da "Razão"
ma figura, Guan ("Olhar para o alto"), reverte completamente a pers- pela da "Fé" (essas duas ordens que, no Ocidente clássico, se contra-
pectiva, apresentando essa acumulação do yin não como uma força dizem, mas também não cessam de dinamizar uma à outra). Por isso
ascendente que ameaça cada vez mais o poder do yang, mas como o o pensamento chinês é necessariamente levado a tergiversar em face
reagrupamento de uma multidão cada vez mais numerosa que eleva daquilo que não pode assumir completamente em função dos seus
seus olhares para seu senhor (o yang em posição soberana, no quinto pontos de partida e aos quais não saberia renunciar sem correr o pe-
traço) e se submete a ele: Bo, o "Despojamento", que corresponde, no rigo de se desfazer: todos os tipos de justificativas secundárias são então
fundo, apenas a um grau a mais nessa evolução (com relação a Guan), invocados, revestimentos são mecanicamente feitos, em suma a con-
poderia, então, também ser percebido segundo essa lógica de uma tinuidade do desenvolvimento é mais ou menos artificialmente asse-
sujeição de todos à as'cendência de um único (que seria então o sexto gurada de modo a tapar o buraco escancarado com o qual de outro
traço yang, no alto). Poder-se-ia igualmente lançar mão dos valores modo ele se arriscaria a ser confrontado. Não, em verdade, para "re-
de imagem dos dois trigramas que compõem a figura: "obededer" e solver" a dificuldade, mas antes para a "reabsorver".
"conformar-se" (shun) é a vocação do trigrama inferior, Kun, o da Por isso os traços da figura vão, ao mesmo tempo, realçar esse
terra, ==; "deter-se" e permanecer "estável" é próprio do trigrama su- despojamento e contê-lo. Vão desenvolver sua progressão impecável
perior, Gén, o da montanha, ==. Se, então, a ascensão do yin, cujo até o ponto-limite em que a situação não é mais sustentável e onde a

146 François Jullien Figuras da Imanência 147


perspectiva deve então oscilar. Imagem de estabilidade, a "camada" (que esse único traço yang simboliza) "obtém" de ser levado por to-
sobre a qual repousa serve de motivo para o desmantelamento que ator- dos aqueles que estão abaixo dele (todos os traços yin) como sobre um
menta o yang: no primeiro traço, esse despojamento "atinge" seu pé "carro"; por outro, o desmantelamento em que estão engajados to-
(sentido de yi segundo WFZ, p. 221); no segundo, ele ganha a "arma- dos os "homens sem valia" cuja força ia crescendo, se volta finalmen-
ção" (sentido de bian); no quarto, toca na "pele" (de quem aí repou- te contra eles: é seu próprio "teto", de fato, que eles desmantelam, pois
sa?). O primeiro traço, efetivamente, enterrado sob o acúmulo dos cabia ao yang, acima deles, cobri-los e protegê-los. Certamente, nessa
outros traços yin, não tem a força de despojar diretamente o yang, mas época em que os elementos negativos estão no apogeu de sua pujança,
a aspiração a "derrubar" o yang (cf. pelo pé) é já "profunda"; o se- o homem de bem não encontra emprego no mundo e esse "grande fru-
gundo persevera nesse caminho nefasto e o perigo se aproxima; no to" não é "comido"; mas, cortando-se assim de seu século, ele preser-
quarto, finalmente, cuja posição tradicional de "recuo" leva a se as- va sua própria integridade. No tempo em que a desordem está em seu
sociar aos precedentes, o "desastre" se torna "iminente". auge, em que nada pode ser empreendido de concerto com o mundo,
Produz-se, então, a reviravolta necessária. O terceiro traço já era o letrado escolhe se colocar decididamente à parte 1d ) (e o comentário
em certa medida uma exceção entre os primeiros traços yin: se estava de WFZ, p. 224, visa a definir precisamente de qual exterioridade re-
muito cercado de elementos yin para poder se subtrair à sua tendên- lativa, marginal, se trata então, porque também a visão do processo
cia e correr em socorro do yang, sua posição de parceiro em face do que domina aqui exclui por princípio um puro fora). Mesmo no mo-
yang no sexto lugar (em relação de correspondência à distância, de tipo mento em que ela é mais disseminada, conclui WFZ, a corrupção não
ying) lhe permitia pelo menos ser reconhecido "sem erro". Depois, no conseguiria "finalmente" "colocar uma cortina" diante do "caminho",
quinto traço, o motivo do despojamento é completamente abandona- que, através de seu ensinamento, mantém a moralidade; e, se não chega
do e a situação é percebida de modo quase inverso: todos esses traços a "restabelecer a ordem", o homem de bem permite pelo menos que,
yin que se acumulavam desde a base da figura se descobrem como graças a ele, toda consciência dos "valores" não seja "abolida,,(el.
semelhantes a "peixes" (elemento yin) "enfiados" em série uns após WFZ conclui seu comentário com o seguinte dístico:
os outros no mesmo espeto ... Ou, ainda, essa fileira é a das mulheres
do palácio classificadas por ordem de precedência à passagem do prín- Sob o céu - tudo {está coberto pela] - chuva de outono
cipe (o sexto traço yang) e "dividindo entre si seus favores". Esse quinto Na montanha - só {subSIste] - a luz da tarde.
traço, no cume dos traços yin, que ele também é, pode utilizar sua po-
sição de equilíbrio (no trigrama superior) para reconduzir todos os tra- Os dois versos repousam num puro efeito de paralelismo: a ex-
ços anteriores a sua virtude de obediência e de submissão ao yang (com- tensão indiferenciada do mundo humano ("sob o céu") faz contraste
parável neste sentido ao quarto traço de Guan ~ ~, último traço yin com o coração da montanha que é o lugar privilegiado do retiro; à
antes do 5' traço yang, cf. WFZ, p. 220); a cena de expulsão se trans- abundância das chuvas de outono que cobrem rodo o espaço não se
forma em desfile; a escalada da violência é substituída pela canaliza- opõe mais que um resto de luz - mas ele basta, em si mesmo (ou "por
ção obtida pelos ritos. Se a negatividade é assim bloqueada no nível si mesmo") para aclarar ainda a paisagem. O primeiro verso evoca o
do quarto traço, diz- nos WFZ (p. 223), é porque o "Sábio", autor apogeu do yin (a chuva é, com certeza, um elemento yin), o segundo
do livro, "não podia permitir que o yin usurpasse a posição suprema" mantém presente - mesmo que ela subsista apenas à parte, mesmo
(a quinta, posição soberana) para fazer pesar seu "constrangimento" que esteja então reduzida ao mínimo - a capacidade do yang (a luz é
sobre o "yang tornado só" (no alto da figura); e, desde então, com designada explicitamente nesse verso por seu caráter yang): pois, mes-
certeza, "não existe nada", segundo a expressão canônica, "que não mo no tempo em que o mundo é vítima das trevas mais opacas, a cla-
seja favorável". ridade espalhada pelo Sábio não conseguiria se extinguir. Ela nos per-
A re~iravolta da situação que advém no quinto traço permite ao mite, então, esperar com confiança que, ao término de seu "despo-
sexto concluir com o seguinte díptico: por um lado, o "homem de bem" jamento", o yang seja levado a "voltar".

148 François Jullien Figuras da Im'lnênci'l 149


1I- o ADVENTO É UM RETORNO AO ESTÁGIO PATENTE DAS COISAS eterno retorno) como também, no outro extremo, considerar ingenua-
(FU, HEXAGRAMA 24) mente todo começo como um começo primeiro: esse começo que sur-
ge como uma ocasião repentina deve ser compreendido de fato como
o inverso do despojamento nos é, com efeito, apresentado pelo uma redetonação, de um ponto de vista dinâmico, graças ao qual o
hexagrama seguinte, Pu, o "retorno": um traço yang surge na base da curso da realidade continua a inovar.
figura sob o empilhamento dos traços yin E. Pergunta-se imediata- Resta compreender porque a figura simétrica a essa no outro par
mente: por que esse advento é concebido como um "retorno"? Para de hexagramas (Gou, n° 44: um traço yin que aparece sob cinco traços
responder à pergunta é preciso voltar à estrutura do hexagrama (que yang) não pode ser percebida, ela também, como um "retorno". Para
é também a do real (cf. WFZ, p. 225). Esse "hexagrama" tem dupla dar conta dessa disparidade, WFZ volta à diferença de natureza, e,
face, não possui seis, mas doze posições: além de suas seis posições por conseguinte, também de posição, que separa o yin e o yang. Sabe-
manifestas, aquelas que são vistas na figura, ele contém as seis inver- se que, em virtude de sua clivagem inicial, o yang designa a vertente
sas que são deixadas na sombra (cada hexagrama, que corresponde a da montanha exposta à luz, ao passo que o yin é sua vertente expos-
um momento da totalidade do processo, é composto ao mesmo tem- ta à sombra: a oposição do "latente" e do "patente" coincide, então,
po de seis traços yin e seis traços yang que simbolizam a polaridade com a do yin e do yang. As seis posições manifestas do hexagrama,
de que esse processo provém; cf. p. 55). Os traços que servem são os que constituem sua face visível, correspondem, então, normalmente,
traços visíveis, ao passo que os outros repousam. Por isso a transfor- aos lugares yang: se o yin pode ser conduzido pelo curso das evolu-
mação das figuras é feita apenas da passagem dos traços, por alter- ções a ocupá-los temporariamente, esses lugares, entretanto, não lhe
nância, de um estágio a outro - "latente" e "patente,,(f). E, do mes- pertencem propriamente e eis por que, quando o yin reaparece na face
mo modo, no curso do mundo, nada vem de repente ex nihilo, mas visível da figura, não poderia se tratar, em seu caso, de um "retor-
tudo provém de uma gestação iatente para se tornar manifesto(g); re- no". Essa razão de conjunto pode ser ainda esclarecida a propósito
ciprocamente, aquilo que se acredita ver soçobrar no nada desapare- do primeiro lugar que, na base do hexagrama, corresponde ao está-
ce somente no estágio latente das coisas(h). gio do começo: sabe-se que os lugares primeiro, terceiro e quinto, que
Todo advento, por mais súbito que seja, pode ser compreendi- são ímpares, são lugares yang; também, quando um traço yang rea-
do, portanto, a partir do fundo latente de que emerge e remete à lógi- parece, como aqui, no baixo da figura, ele retorna "ao seu lugar"
ca de conjunto de um processo. Através do surgimento "fortuito" de (ocupando este primeiro lugar que é ímpar) - mas ° mesmo não
uma "ocasião", ou de uma "emoção", ou de um "assunto", diz-nos poderia acontecer com o yin.
WFZ, é de fato o "curso alternado das coisas", o "vaivém das situa- Vejamos a formulação canônica que comenta a figura. Mais o
ções e das existências", a "interação da consciência e do mundo" que julgamento incidente sobre o hexagrama anterior era lacônico, mar-
nesse momento-fronteira (como transição de um estágio a outro) apa- cando apenas um ponto de parada, mais o do presente hexagrama
recem e se desdobram. O que brota assim a título de puro começo, se demanda ser desenvolvido - tão promissor se revela um tal estágio;
integra em realidade na coerência de conjunto de um funcionamento(i) ao passo que aquele se contentava em indicar que não é favorável "ir
e, por isso mesmo, retorna para um lugar que lhe estava previamente em frente", este conclui com a afirmação contrária: quando se com-
atribuído pelo desenrolar que foi iniciado1j). Mas compreendamos bem preende que perigo nos fazia correr o "despojamento" 'do yang, no
de que "retorno" se trata aqui: não se trata de um retorno do mesmo hexagrama anterior, então se percebe facilmente como pode ser van-
(em que o mesmo "ser" retornaria ao mesmo lugar), mas do fato de tajoso seu "retorno", na base do presente hexagrama, como primeira
que o processo é conduzido por seu curso regulador a passar nova- etapa de uma renovação, Por isso o comentário da figura começa por
mente por um certo estágio, a reocupar uma certa "casa", um certo indicar sua capacidade de "progressão" (heng): nada "pode mais fa-
escaninhQ(k): não para se repetir, mas, ao contrário, para se renovar. zer obstáculo" ao retorno do yang ao lugar que é seu, diz-nos WFZ
Assim o pensamento chinês evita se fechar numa visão cíclica (a do (p. 225), e o yin que encontra nele "um mestre para o dirigir" fica feliz

150 François Jullien Figuras da Imanência 151


em "receber" sua influência e ser "transformado" por ele. Eis por que de vir é apenas sua simples "continuação"; o progresso, a partir daí,
a "saída" e a "entrada" que ocorrem neste momento, no limiar da pode ser sem fim. Por conseguinte, a única preocupação que o Sábio
figura, são declarados "sem prejuízo": saindo da latência, o yang que deve ter, conclui WFZ (p. 227) por seu turno, é que se produza efeti-
começa a surgir possui então uma capacidade que é "concentrada e vamente, a partir dele, essa colocação em movimento inicial, ele não
sem mistura" (e lhe permite não penar); e, entrando sob a acumula- tem que se inquietar com que os outros, em seguida, não estejam sub-
ção dos yin, é por eles bem-vindo porque serve para os incitar (do que metidos a ela.
depende a capacidade de geração deles): por isso esses yin "descem" Mas esse momento do retorno não é determinante apenas pela
ao encontro dele, não para "incomodá-lo", mas porque "tendem" para evolução a que dá início, enquanto "detonador"; ele o é também por-
ele, e, embora o "clã" que seu reagrupamento então forma (sentido que revela a lógica que está em ação no processo - e que, por um lado,
aqui de peng) esteja no ápice de sua pujança, atitude deles é "isenta permanece enterrada na latência dos fenômenos- enquanto "indício".
de erro". Coordenemos, com efeito, esses dois sentidos (como estão precisamente
WFZ ilustra num plano moral e político a relação harmoniosa coordenados na noção de ji(l)). O fato de que esse detonador, enquan-
que se estabelece então entre uma coletividade qualquer (representa- to impulso do movimento, seja levado a se produzir de novo(m) é o indício
da aqui pelos traços yin) e a capacidade de "iniciativa" que vem de mesmo do fato de que a realidade não está destinada a um curso caó-
fora estimulá-Ia (e que esse primeiro traço yang simboliza, cf. hexa- tico (e, portanto, que nos escapa), mas regulado (e, portanto, que se pode
grama Qian). Pois a verdadeira iniciativa em face dos outros não con- conhecer): indício do fato de que, quando atinge seu ponto-limite (como
siste em os submeter à sua norma, ou em lhes impor seu plano, mas na figura anterior), o "despojamento" não pode prosseguir para além,
em lhes permitir desenvolver, ao seu contato, suas próprias virtua- mas deve "voltar" em sentido inverso e se transformar numa nova pro-
lidades. Assim, um bom soberano não procura "mudar seu povo" para gressão. "Passados sete dias vem o retorno", conclui com uma imagem
bem governá-lo; e, do mesmo modo, um verdadeiro Mestre está dis- a fórmula canônica (o "sete" simbolizando mais precisamente, segun-
posto a receber discípulos que venham dos horizontes mais diferentes do WFZ, o "jovem yang", o n° 7, que sucede o "velho yin", o n° 6: a
e se mostrar acolhedor quanto à sua diversidade: não visa ditar-lhes série volta a ser progressiva). Façamos uma dedução, num plano lógi-
um ensinamento, mas se interessa em que, em sua companhia, suas co: esse movimento de retorno do advento basta para nos fazer desco-
"dúvidas" progressivamente "se apaguem". Ou, ainda, o homem de brir uma necessidade interna, e ela traduz uma coerência.
bem não procura "romper" com seus desejos - para viver em paz; Essa função indiciai do retorno pode ser melhor compreendida
mas, sob o discreto impulso que seu sentimento moral produz, seus se voltarmos à separação de partida que opõe os estágios "latente" e
sentidos se exercem sem mais o perturbar. "patente" das coisas. Esse "advento" é uma emergência, ele esclarece
Os valores próprios aos dois trigramas que compõem a figura o que o precedeu. É quando o sol reaparece acima do horizonte que
fornecem uma confirmação simbólica para a capacidade que essa in- se compreende, diz-nos WFZ (p. 227), que ele não desapareceu para
citação possui de desencadear uma evolução favorável ao se desdobrar sempre após ter cumprido seu curso através do céu, mas que ele segue
através de um ambiente receptivo. O trigrama inferior, Zhen, o tro- um curso que, ora visível e ora invisível, não é menos regular. Esse
vão =- = evoca uma sacudida inicial, o trigrama superior, Kun, a terra retorno nos assegura, portanto, que a realidade possui uma "autenti-
== == exprime a capacidade de receber uma influência e de se conformar
cidade" essencial, absolutamente fiável, e que sua "plenitude" - la-
a ela: basta que um tal abalo se produza na partida para que ele se tente e patente ao mesmo tempo - não incorre jamais em erro (no-
propague em seguida continuamente, a despeito de toda a "comple- ção de cheng 1n ); cf. WFZ, p. 225). Eis por que esse estágio do retorno
xidade" concreta do que há para atravessar, porque esta é levada a se nos faz "perceber" o "coração" da realidade(o), como conclui o co-
conformar com sua iniciativa em vez de procurar se opor a ela. Como mentário do julgamento. E, de fato, à falta de uma transcendência que
indica o comentário do julgamento, o "crescimento" posterior já está escolhesse revelar ao homem o que permanece invisível a ele, a reali-
compreendido nesse advento único e repentino. Todo o bem que há dade só pode ser descoberta a partir de seu próprio desenrolar. Ora,

François JuJlien Figuras da Imanência 153


152
esse estágio da emergência, compreendido como retorno, é precisamen- dê-lo a partir de nossa experiência(P). Minha conduta revela, em seu
te esse momento crucial em que o invisível se liga ao visível, em que curso, o mesmo princípio de incitação e de colocação em movimento
aquilo que podíamos tomar como uma ruptura definitiva, para além que o grande processo das coisas (ela provém da mesma capacidade):
da qual ignoraríamos tudo, se decifra retroativamente como uma sim- quando, surpreendido por uma cena intolerável, experimento de repente
ples transição (do patente para o latente): o "desaparecimento" é, en- uma poderosa emoção, que, como tal, se eleva espontaneamente em mim
tão, apenas uma fase dos fenômenos, que é elucidada a partir da fase mesmo (por exemplo, um sentimento de piedade), o que reaparece tam-
inversa, a do reaparecimento diante de nossos olhos. Por isso, esse bém em meu foro interior (cf. o sentido de Pu: o "advento" como "re-
estágio da emergência é aquele em que a lógica que está em ação não torno"), e me "põe em movimento" para agir, é precisamente aquilo
é percebida só de modo pontual, limitando-se ao momento em ques- que não cessa de fazer reagir o grande processo do mundo e lhe permi-
tão, mas se deixa apreender globalmente. Aquele em que o processo te exercer sua positividade. O pensamento chinês fez do gênero de epi-
se explicita por inteiro: não se está mais no nível de seus aspectos, su- sódios relatados no Mencius, de interesse puramente psicológico ou ético
cessivos e diversos, acede-se àquele que é seu "coração". Eis por que (em aparência), a ocasião de uma tomada de consciência fundadora:
a tradição do comentário, sobretudo depois da progressão do "neo- se vejo uma criança prestes a cair num poço, a capacidade de emoção
confucionismo" (a partir do século XI), lhe dá uma particular impor- moral que estava enterrada em mim ressurge logo (enquanto "emoção"),
tância 1: mais que qualquer outro na série dos hexagramas, ele ofere- sem que intervenha a consideração de um interesse particular (do gê-
ce um viés para chegar ao invisível; ele nos abre uma brecha para o nero: vou ganhar alguma coisa salvando essa criança?); e essa como-
mistério da imanência. ção repentina me faz descobrir uma solidariedade essencial entre exis-
tências (porque me faz sair da perspectiva individual de minha própria
existência) em função de um princípio de incitação que, como tal, é
III - É NO ESTAGIO DA EMERGÊNCIA QUE SE REVELA O CORAÇAO sempre experimentado como novo e não poderia se esgotar. Vê-se aflorar
DA REALIDADE numa tal experiência aquilo que, por seu turno, o hexagrama Pu tam-
bém representa: esse detonador de reação moral é o indício de nossa
Por isso convém voltar a essa figura para avaliar até o fim sua comum pertinência ao grande Processo do mundo; produz-se uma emer-
importância; e, agora, ressituando-a na perspectiva que os pensado- gência repentina (aqui, no nível do sentimento) que nos faz apreender
res neoconfucianos elaboraram. Essa perspectiva é mais fácil de ser sempre, de modo imediato, independentemente da particularidade das
seguida do ponto de vista de suas conseqüências: perceber o que é o pessoas ou das ocasiões, uma lógica de conjunto (também, a solidarie-
"coração" da realidade, como nos demonstra WFZ (pp. 227-228) sem dade das existências individuais) que permanece ordinariamente implí-
problemas, é o que nos faz chegar à sabedoria. Com efeito, o "cora- cita e da qual, de outro modo, poderíamos duvidar. •
ção" da realidade, isto é, do grande Processo do mundo ("do Céu e Mas referir-se assim ao "coração" do Céu e da Terra não nos
da Terra") é "aquilo pelo qual o homem foi gerado", aquilo de onde levaria a personificá-los? Cairíamos, então, novamente, sob o pretex-
ele tira sua existência: quando conhece de onde procede, o homem to de interpretar o curso do real a partir de nossa experiência, nas vi-
conhece sua "natureza", e, quando conhece sua natureza, ele sabe como sões ingênuas do antropomorfismo? WFZ não está inconsciente, por
gerir sua afetividade, do mesmo modo que "pôr em movimento", a seu turno, dos perigos que essa aproximação faz correr (cf. p. 228).
partir dele, todos os outros existentes. Se, então, o mérito do Sábio se Como se sabe, pelo menos desde Xunzi (a outra fonte do moralismo
traduz pela atenção que ele não cessa de dedicar à sua conduta, num chinês, no séc. IH a.C.), o Céu e a Terra são "sem coração"(q), quer
plano prático, essa capacidade não tem menos a "percepção do cora- dizer, seguem seu curso natural insensíveis tanto aos temores quanto
ção da realidade" como primeira condição. aos desejos dos homens (sem desviar da constância de seu curso para
Mas, acredita-se, esse "coração da realidade" "não é fácil de ser evitar, por exemplo, que o homem "tenha frio"). Por isso convém
percebido" (WFZ, p. 228); também nos é aconselhado procurar apreen- distinguir os dois sentidos que estão em causa: com efeito, traindo uma

154 François Jullien Figuras da Imanência 155


"ausência de coração", a insensibilidade de que aqui se trata corres- Mas seria possível perguntar com razão se não existe no homem
ponde precisamente, pela indiferença que manifesta face aos interes- um outro princípio de incitação de sua vitalidade diferente da emo-
ses particulares (que levariam a favorecer mais um do que outro e, desse ção moral (tal como os sentimentos de vergonha, de indignação, de
modo, ao desvio da regularidade dos processos), ao caráter espontâ- piedade etc., nos fazem experimentá-la): em especial se os desejos, que
neo da emoção moral tal como ela surge em nós (como no caso, evo- tanto nos "arrebatam"(v), não seriam seu equivalente. Mas, efetiva-
cado anteriormente, da criança que vai cair num poço: reage-se ime- mente, observa WFZ (p. 229), esses desejos apenas produzem uma
diatamente, como que por reflexo e sob o golpe de uma necessidade excitação superficial diante do fora, e se nos levam a nos "precipitar",
imperiosa, sem sonhar em se perguntar quem ficará grato por esse eles em seguida se "retiram" e nos levam à "inércia": não poderiam,
gesto). É, portanto, na medida em que, em seu processo de geração assim, constituir uma verdadeira "incitação" (noção de xing(w); esse
das existências, o Céu e a Terra "são tomados por essa necessidade", termo é também um dos mais antigos da reflexão poética na China,
"não tolerando nenhuma parada"(r) que, "por comparação com o onde serve para designar o motivo emocional sobre o qual começa um
homem", se pode então falar de "coração". poema, por incitação da consciência que se abre para o Mundo, e que
Uma outra objeção viria, segundo WFZ (p. 228), dos "heterodo- suscita o desenvolvimento posterior do texto). A incitação verdadei-
xos" (taoístas e budistas confundidos no mesmo rótulo), para os quais ra, esclarece-nos WFZ, é aquela cuja "sutileza", "ao se desdobrar na
o coração da realidade seria o "repouso(s)". Eles permanecem "presos", presteza do instante"(x), através "de todo o amontoamento em nós dos
diz-nos WFZ, ao ser "imóvel", completamente "inerte", do céu e da afetos e das coisas", nos faz apreender a relação essencial que nos une
terra, tal como os vêem diante de seus olhos, e procurariam "imitá-lo": ao mundo, "sem que se possa distinguir perfeitamente sua coerência"
por isso mesmo, perdem o princípio invisível pelo qual o curso do real e "sem que a ação dos sentidos sobre a consciência possa, por menos
não cessa de operar repentinas "incitações" e "reuniões", graças a que que seja, velá-Ia ou reduzi-la". O que se detona então em nós é irre-
a "eficiência invisível" e a "atualização concreta" se suscitam conti- sistível, porque é indiferente a tudo o que é da ordem das paixões ou
nuamente uma à outra e de onde procede a geração sem fim das exis- dos interesses, e é levado por si mesmo a empreender sua progressão:
tências. Uma antiga noção chinesa serve para designar esse "recurso in- voltando às duas noções neoconfucianas que já tanto utilizamos, di-
terno", constantemente "alerta" ("em alerta", também), e que não cessa remos que seu "ser constitutivo" é "ínfimo", mas seu "funcionamen-
de reagir (noção de ii1r )). Mas, porque sua apreensão do real continua to" é "imenso"(Y). Toda conduta moral é apenas a conseqüência e o
"embaraçada" pela obstrução dos sentidos, esses heterodoxos não "acre- prolongamento disso. De modo análogo, é não cessando de desdobrar
ditam" naquilo de onde provém esse "funcionamento maravilhoso". esse tipo de incitação que o curso do real prossegue seu caminho sem
Por isso escolhem valorizar o repouso, tomando por pretexto o fato de se desviar e pode gerar existentes infinitamente.
que o movimento, quando é precipitado, leva ao desvio. Mas o "repou- Na figura que constitui o hexagrama Fu, é então o primeiro tra-
so" é a "morte", diz-nos WFZ (p. 229), tanto no caso da consciência ço yang, que aparece sob o amontoamento de traços yin, que é deter-
como no da sociedade: se nossos órgãos dos sentidos e os objetos exte- minante: todos os traços seguintes serão julgados segundo a acolhida
riores ficassem "cada um de seu lado", "sem se atraírem"; e se, do mesmo que puderem dar a essa incitação benéfica que se propaga através deles.
modo, superior e inferior (pai/filho, esposo/esposa etc.) se bastassem a Eis por que ele é declarado "originalmente" fasto: é rico de todas as
si mesmos e não pudessem mais se incitar mutuamente, toda vida se "lógicas" que devem reger o real, avolumado de todo o desdobramento
desagregaria bem depressa. O coração da realidade não é, portanto, o que há de vir. Como, nesse estágio inicial, o "retorno" (que corrige o
"repouso"; mas também não é seu mero contrário, o "movimento" (pois desvio) não tarda (ele não opera "de longe", começa por notar o jul-
então essas duas concepções se voltariam as costas e se tornariam igual- gamento que incide sobre o traço), jamais se chega a provar, em seu
mente suspeitas): é, como revela o hexagrama Fu, o "começo do movi- nível, nenhum "remorso". Com relação ao curso da realidade, esse pri-
mento"(u), seu estágio inicial, a colocação em marcha que não cessa de meiro traço yang simboliza a progressão da capacidade de iniciativa
se renovar e de onde tudo decorre. própria a Qian (cf. hexagrama 1). No plano mais particular da con-

156 François Jullien Figuras da Imanência 157


duta humana, ele representa diante do que está "o menos distante de que é o próprio curso da realidade, são "calamidades naturais" que o
nós", a saber nossa "personalidade" moral, a comoção repentina que punem; e, se ele se lança num enfrentamento armado (ao encontro do
abre o caminho para a moralidade e nos permite voltar mais depressa primeiro traço yang), isso, para ele, só levará ao "desastre".
de nossos erros ou de nossas faltas. Pois só a reação mais imediata, A última fórmula do comentário canônico traz, entretanto, uma
sublinha WFZ (p. 231), porque ela é a expressão direta de nossa cons- sombra ao quadro. Enquanto tudo concordava até aqui para instau-
ciência original e não está entravada pelo cálculo e pela "conjectura" rar a visão de uma positividade que, quando desencadeada, é levada
(levando em consideração o "elogio" ou a "censura"), torna nossa a se desdobrar infinitamente, in extremis somos tomados por uma
conduta completamente adequada (porque essa adequação opera en- inquietude: para além do "desastre" que lhe vai acontecer de imedia-
tão sponte sua); quem, ao contrário, "procura" fazer o bem, de modo to, será que essa dissidência (com relação à lógica da regulação) po-
minucioso e "aplicado", não sente mais essa necessidade imperiosa que derá ser completamente afastada? O texto conclui com uma notação
espontaneamente nos guia, e arrisca sempre se desviar. que pode servir de advertência: "ao fim de dez anos, não se pode che-
O impacto desse primeiro traço é tão forte no conjunto da figu- gar ao fim". A história nos mostra várias vezes, de fato, que não bas-
ra que se tem dificuldade em diferenciar, na continuação, os diversos ta que seu chefe seja morto para que uma rebelião seja apaziguada.
traços yin: pois uns e outros se alegram com essa volta do yang, abrem- Acontece o mesmo na ordem ética, sublinha ainda WFZ (p. 234): se,
se igualmente à sua incitação benéfica e tendem, por conseqüência, a sob a incitação do sentimento moral, nossos desejos se dobram à ra-
se confundir numa mesma aspiração. Entre eles, a variação é mínima: zão (do mesmo modo que os traços yin anteriores em face do primei-
do segundo traço, sublinhe-se o caráter "favorável", porque ele pode ro traço yang), mesmo assim permanece o risco de que, no nível de
"repousar" sobre a capacidade moral do primeiro (que aparece como nosso comportamento, subsistam hábitos que, por Ínfimos que pos-
a encarnação do ren confuciano) que está justamente sob ele; o ter- sam parecer, acabam por se mostrar muito difíceis de banir. Alguma
ceiro, que ainda está próximo desse traço yang, mas não está mais em coisa se mantém, da ordem das seqüelas, que resiste à "eliminação".
contato com ele (sentido de pin segundo WFZ, p. 232), deve reagir mais
particularmente à influência negativa do sexto que é seu correspon-
dente no outro trigrama, e eis por que é julgado unicamente, dada a IV - IR ATÉ O FIM DA ELIMINAÇÃO DO NEGATIVO
"gravidade" da situação, como sendo "sem falta"; o quarto se bene- (GUAI, HEXAGRAMA 43)
ficia de uma posição de centralidade entre os cinco traços yin mas, em
vez de se fazer levar ao poder dentro dessa corte, ele abandona seus o terceiro hexagrama da série, Guai (nO 43), representa essa di-
companheiros e se dirige "sozinho" para junto do primeiro traço (como ficuldade da eliminação: cinco traços yang se sucedem a partir do baixo
a isso o convida em especial sua posição de "recuo") para acolher seu da figura e tentam expulsar o último traço yin que resta no seu cume
"retorno"; o quinto, finalmente, não tira vantagem de sua posição de - -. Ao mesmo tempo em que é o inverso da anterior, a do retorno do
soberania para fazer obstáculo a esse retorno, mas "examinando suas yang, essa nova figura continua diretamente a seqüência do último
próprias insuficiências", esclarece-nos WFZ (p. 234), se submete de traço daquela, que nos advertia sobre a resistência tenaz dos fatores
bom grado à direção do yang. Nesse caso, como se compreende, a ver- dissidentes. Por outro lado, essa figura da "eliminação" é entendida
dadeira eficácia não se manifesta na quinta, mas na primeira posição: por contraste com a figura que lhe é, entretanto, análoga no outro par
não no estágio do apogeu, mas no do desencadear. de hexagramas, a do "Despojamento" (Bo, n° 23): no primeiro caso,
Na outra extremidade, no final desse desdobramento, o sexto traço tudo era feito para brecar a expulsão do yang que, como fator regen-
é uma exceção. Não partilha essa bela unanimidade. É o traço dissidente. te do processo, é absolutamente positivo; nesse caso, ao contrário, todo
Pode aproveitar do fato de que é o mais distanciado da incitação ini- nosso esforço é exigido para ir até o fim da erradicação do yin que,
cial para procurar fazer obstáculo a esse retorno. Por isso mesmo, ele quando não é mais conduzido pelo yang, se confirma como um fator
se "extravia" e é evidentemente "nefasto". Como ele tenta se opor ao negativo.

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Mas em que medida, deve-se perguntar, uma eliminação é efeti- Porque se confirma ser muito difícil chegar a uma eliminação
vamente possível? "Eliminar", diz-nos WFZ (p. 354), é "cortar e jo- 'verdadeira, o melhor seria seguir uma estratégia inversa, aconselha-
gar fora": como quando, em vez de conter a água num lugar, abrimos nos WFZ (pp. 354-355), a da integração reguladora: é melhor fazer
uma brecha para seu escoamento e a deixamos partir para onde qui- participar o inferior submetendo-o a seu controle do que procurar em
ser, com o único cuidado de não sermos inundados por ela. Se nos vão expulsá-lo. WFZ não encontra nenhuma dificuldade em identifi-
referirmos à figura, vê-se aí que o yang chegou a seu apogeu porque car esse inferior, em função de seus critérios ideológicos: é o "homem
atingiu a quinta posição, a posição soberana, e que os traços que es- sem valia" com relação ao letrado, a "mulher" com relação ao homem,
tão sob ela, igualmente yang, simbolizam um assentimento geral: tudo o "bárbaro" (dos confins) com relação ao chinês; num plano moral, é
deve, portanto, permitir ao yang de provar a "dureza" que o caracte- o "interesse" e o "desejo". Ora, se se trata da mulher no quadro da
riza (oposta à "moleza" do yin) para lançar o yin para fora (WFZ diz família, ou do "homem sem valia" no plano político, a sabedoria é
precisamente: num "local sem realidade"(z). Mas, justamente, em que guardá-los "no interior", mantendo-os sob "ferrolhos" e lhes impon-
medida esse alhures poderia ser sem consistência? E, por mais "corta- do limites(d'); do mesmo modo, sabedoria é não abandonar os bárba-
da" que ela seja, como essa ruptura poderia deixar indiferentes os dois ros a si mesmos, mas mantê-los sob sua dependência exercendo sobre
parceiros e apagar todo traço de sua relação passada? O yin, constata eles um protetorado: pois querer "bloquear" o outro do lado de fora
WFZ, não poderia "esquecer" o que o prendia ao yang e o próprio só faz aumentar seu" ressentimento" e constitui inevitavelmente para
yang, consumando o divórcio, não pode ficar "imperturbável". nós mesmos uma "fonte de preocupações" no futuro. De modo aná-
Eis-nos, então, de novo levados a pensar o estatuto ambíguo de logo, no plano moral, a sabedoria é que "a justiça governe o interes-
um alhures que, segundo a lógica da pura imanência aqui desenvolvi- se", que '''a razão governe os desejos": pois então nossos apetites se
da, não poderia constituir um alhures verdadeiro e não tem outra pos- submetem às exigências morais e são "corretos"; ao passo que, se,
sibilidade senão se esconder no interior mesmo do processo, a título de "apoiando-nos na firmeza de nossa natureza moral" (cf. aqui todos
resíduo. Vimos seu lado bom no caso do último traço da figura do "des- os traços yang), procuramos "romper" com a parte afetiva de nós
pojamento": esse último traço yang expulso pelos traços yin nos fazia mesmos e queremos lhe "fazer obstrução,,(e'), à menor fraqueza de
ver como, mesmo na época em que os homens sem valia estão no po- nossa parte, nossa consciência é perturbada, e nossas paixões então
der e fazem triunfar o vício, se mantém, entretanto, uma certa consciência se aproveitam disso para reaparecer. A eliminação exige, com efeito,
dos "valores". O letrado virtuoso é posto à prova, mas sua exempla- que prossigamos sempre mais longe, e não pode sofrer um "recuo";
ridade permanece. É o contrário que agora nos é mostrado: é verdade por isso mesmo, a "obstrução" a que tende jamais é conseguida defi-
que esse último traço yin que todos os traços yang rejeitam não pode nitivamente, conclui WFZ, e permanecemos na inquietude.
intervir diretamente no decorrer do processo; mas ele continua, entre- Toda essa argumentação liga-se visivelmente a um velho motivo
tanto, a freqüentear o processo "mantendo um olho" sobre ele. Dito do repertório chinês. Os homens aprenderam a controlar com diques
de outro modo, sua marginalização nem por isso o neutralizou. O yin aquela turbulência dos grandes rios que não cessaram de ameaçar as
se "aproveita" do fato de que está alojado no alto da figura (e a tem planícies do centro da China. Do mesmo modo, os funcionamentos
toda sob seu olhar) para, diz-nos WFZ, "espiar" o yang(a'). O que sig- rituais instauram uma disciplina que permite às tendências inferiores
nifica, segundo o modo pelo qual WFZ analisa a figura em seguida (cf. ou rebeldes, respeitando a regularidade dos processos, cooperar har-
p. 355), que aquilo que, "cheio de sua potência", se pretendia "elimi- moniosamente: para estar em paz com elas, não é preciso contar com
nar" ("considerando que não valia a pena geri-lo"), da posição "reti- sua eliminação abrindo-lhes uma "brecha", como propõe esse hexa-
rada" em que está(b'), não é menos que um "sentinela" atento a tudo o grama, mas aplicar-se a canalizá-las. O ideal, uma vez mais (porque
que nos acontece, fracasso e sucesso(c') - com o objetivo claro de se sempre se está relacionado a um curso), não pode ser senão a regulação.
aproveitar disso; e esse olhar emboscado, a que se reduz então a posi- Uma eliminação radical arrisca constituir, em si mesma, uma ilu-
ção do yin, deixa pairar sua ameaça sobre a evolução que virá. são. E WFZ sente-se à vontade para provar esse perigo a partir do tes-

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temunho da História. Certamente, é a História que nos permite melhor o fim terminou por se voltar contra eles. Outro exemplo, que WFZ
analisar como aquilo que se acreditava ter sido eliminado, de fato, não toma de empréstimo, desta vez, da história contemporânea: nos últi-
o foi completamente e manifesta sua virulência de repente. Por isso, de mos decênios, muito perturbados, da dinastia dos Ming (no começo
uma figura a outra, esses dois tipos de ilustração se opõem: no caso do séc. XVII), um certo Feng Quan chegou a abrir seu caminho para
anterior, era a experiência da espontaneidade de nossa emoção moral a corte graças aos favores do eunuco Wei Zhongxian, que então rei-
que nos fazia intuitivamente compreender qual pode ser o alcance da nava pelo terror, e se dedica, entre outras atrocidades, à fabricação de
incitação positiva que não cessa de colocar em marcha o mundo e cons- uma calúnia (o Sanchao yaodian) com que visava a desacreditar o par-
titui o "coração" da realidade; nesse caso, é a dificuldade política em tido letrado (o Donglin); quando, com a morte do imperador, a fac-
pôr fim às invasões de fora e às usurpações, de dentro, que vai nos per- ção dos letrados chega ao poder, não deixa de queimar todos os pre-
mitir medir a tendência ao enraizamento própria dos fatores negativos. tensos arquivos, mas o antídoto usado não atinge Feng Quan que era,
Desde a Antigüidade, diz-nos WFZ (p. 355), floresce a teoria segundo entretanto, o principal responsável pela mistificação; ela o atinge mes-
a qual quem exerce sobre a China uma realeza digna desse nome não mo tão pouco, nota com uma amarga ironia WFZ, que Feng Quan,
tem de se ocupar dos bárbaros dos confins ("como se a superioridade como bom oportunista, voltará mais tarde a ter um cargo colaboran-
moral fosse suficiente para garantir a segurança"). Ora, justamente, por- do com os invasores manchus: ele prova sozinho a dificuldade de se
que podem se apoiar em sua posição fronteiriça, que lhes permite vigi- levar a bom termo uma depuração.
ar a China permanecendo na retaguarda (simbolizada aqui pelo últi- Por isso convém ler o julgamento que incide sobre a figura como
mo traço yin), e que, por seu lado, os chineses do centro tenham ten- a encenação de um antagonismo que é tanto mais perigoso por estar
dência a negligenciá-los, julgando-os marginais, esses bárbaros dos con- mascarado. Tal como compreende WFZ (de modo bem diferente dos
fins se revelam muito mais perigosos. Como prova o fato de que quan- tradutores ocidentais - cf. Wilhelm, p. 200; Legge, p. 151; Philastre,
do, no começo do séc. IV d.C., começaram a invadir a China, o mal só §761 - mas conforme ao comentário canônico desse julgamento), a
fez piorar levando à invasão da China do Norte (em 1127), depois à fórmula inicial começa por designar o "ar satisfeito e tranqüilo"!f') do
dominação completa dos mongóis (em 1279). A eliminação, cada vez, último traço yin do topo da figura, essa última posição representan-
nunca pôde ser completa e o "fogo" que estava "mal extinto" não teve do então a parte "traseira" (e, portanto, também, imagino, a mais
nenhuma dificuldade em se expandir sempre cada vez mais para longe: secreta, a mais favorável às intrigas) do "palácio" (porque faz seqüência
WFZ sabe avaliar muito bem como esse mal se tornou impossível de ao quinto traço que corresponde à posição soberana): como ele é yin
ser desarraigado por ter vivido a invasão manchu (em 1644). num lugar yin, esse sexto traço está "em seu lugar" e, embora seja
A erradicação do mal também é difícil em política interna. Quan- mantido à parte, pode, entretanto, dos bastidores que ocupa, espiar
do, em 705, cinco ministros se uniram, como os cinco traços do yang Com toda tranqüilidade o que se passa na corte ... Por isso, face à "gra-
da figura, para tirar do poder a antiga concubina que havia chegado vidade" da situação, todos os traços yang, solidários entre si, não
a se impor como imperatriz, Wu Zetian, pode-se acreditar que uma deixam de se "chamar". Não têm Outra possibilidade, com efeito, se-
página de história fora definitivamente virada; ora, efetivamente, o so- não a de se "advertirem" mutuamente a continuar vigilantes sobre "seu
brinho da imperatriz deposta, W u Sansi, não só se mantém na corte, próprio território". Não lhes seria "favorável" chegar logo ao "en-
mas aí torna sua posição mais confortável, tornando-se amante da nova frentamento" (contra esse adversário representado pelo traço yin iso-
imperatriz: casando seu filho com a filha dela, tende em seguida a fa- lado no topo); mas, como no caso de figura anterior (hexagrama Pu),
zer designar sua nora como "príncipe herdeiro" para poder reinar é proveitoso a esses traços yang continuar a "ir em frente": se o yang
através dela; e, como os grandes dignitários da corte fazem obstáculo segue seu caminho, o da retidão, e não cessa de se reforçar, certamen-
a seu projeto, incrimina os "cinco ministros" que haviam deposto a te chegará o dia em que a perversidade do yin (não o yin em si mes-
antiga i~peratriz e gozavam do maior prestígio e os faz banir e des- mo, é claro, mas seu extravio fora do controle do yang) terminará por
graçar. A eliminação que esses ministros não souberam conduzir até ser "interrompida" e "destruída".

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Esperando esse desmoronamento, todos os cinco primeiros tra- "quanto a essa figura da 'eliminação', a eliminação, de fato, não che-
ços da figura colocam em cena a dificuldade da eliminação, decom- ga a acontecer".
pondo, como que através de um prisma, seus diversos aspectos. Essa Os traços quarto e quinto, eles também, não levam muito longe
dificuldade diz respeito, tanto no nível do primeiro como no do ter- a eliminação desejada - mas por uma outra razão: sua tentação, ao
ceiro traço, à posição ocupada. No caso do primeiro traço, no baixo se aproximar do último traço yin, é deixar sua determinação se enfra-
da figura, a "força" adquirida ainda é muito fraca (ela ainda se mani- quecer, ou melhor, se deixar seduzir por ele (cf. com relação ao valor
festa apenas no nível do "artelho", segundo o julgamento), mas, por- simbólico dos trigramas: passamos então do trigrama inferior Qian
que esse traço é yang num lugar yang e conta também com a acumu- - , que encarna a perseverança em ir adiante, ao trigrama superior
lação do yang acima dele, ele se apressa para exercer sua pressão con- Dui =, o do acordo cordial e do prazer). Por isso a marcha para a
tra o yin, para eliminá-lo: ele não só não o consegue, mas além disso, frente se confirma "hesitante e penosa" no quarto traço (como se não
"o gume do yang é partido", observa WFZ (p. 357), ao passo que a se tivesse mais "pele nas nádegas") e se corre ainda o risco de ver fal-
posição do yin, no topo, sai reforçada. O que não deixará de aconte- tar a determinação necessária ao quinto (como um "carneiro" -sÍm-
cer cada vez que se deseja enfrentar pessoas nocivas quando nossa bolo do trigrama Dui - prestes a pastar a erva do "planalto" e que,
própria posição social não for muito elevada ou que nosso ascenden- estando bem onde está, não se apressa, a despeito das exprobrações,
te moral for insuficiente; do mesmo modo, quando os seguidores do em avançar). Esse último traço, com efeito, porque é o que está mais
Buda ou de Laozi, continua WFZ (p. 358), querem barrar a estrada perto do yin, é "responsável" por sua eliminação; ora, se ele pode per-
aos desejos humanos, embora sua capacidade ainda seja limitada e sua manecer "sem erro" porque consegue, graças à sua posição de cen-
sabedoria "grosseira", isso só pode levar a "desordens". Quanto ao tralidade no trigrama, não se deixar "amolecer" pelo yin, ele carece,
terceiro traço, sua posição não o leva a uma presunção, mas, como entretanto, da verdadeira resolução que o fará "irradiar".
ela faz recear uma complacência de sua parte em face do traço yin (no Chega finalmente o desmoronamento que se opera "sem grito"
sexto lugar de que ele é correspondente), ele deve reagir muito mais no sexto traço. WFZ o ilustra novamente com um exemplo histórico
manifestamente para dissipar toda desconfiança (de comprometimen- (p. 360), O de Xu Da que, após numerosas campanhas, chega, à fren-
to): a "força" se mostra então no nível do "maxilar", indica o julga- te dos exércitos chineses, a um bairro de Pequim (em 1368): os chefes
mento, e está arriscada a provocar o ressentimento dos "homens sem mongóis se aproveitam da noite para fugir para O Norte e a China se
valia" que ela ofende, o que não deixará de ser "nefasto". WFZ ilus- vê liberada. A sabedoria, numa perspectiva de eliminação, é, assim,
tra esse caso com a história de Zhou Yi (começo do séc. IV), que, arrastar todas as suas forças consigo ao mesmo tempo em que se "es-
porque estava ligado à família de Wang Oun (foi antes protegido por pera" que a fortuna de que goza o adversário tenha se "esgotado".
Wang Oun e ele próprio salvou seu parente Wang Oao), julga dever Senão, teremos sempre que temer que o outro consiga novamente, por
testemunhar uma grande intransigência quando Wang Dun entra em baixo, "se insinuar".
rebelião contra a corte, e termina por ser morto (cf. as histórias rela-
tivas à personagem no Shishuo xinyu, principalmente capo V, §31 e
33). Entre essas duas bordas, o segundo traço encarna o equilíbrio e, V - PREVENIR-SE, DESDE O PRIMEIRO ENCONTRO, DO RISCO DE
porque está "vigilante" em face de si mesmo e porque, além disso, "cha- INSINUAÇÃO (Gou, HEXAGRAMA 44)
ma" os outros para os alertar, não tem de se "inquietar" com os "ata-
ques" que o yin pode conduzir de surpresa contra ele (como um ban- o último hexagrama dessa série, Gou (n° 44), é composto de um
dido "no cair da noite": uma vez que ele não é seu correspondente traço yin que aparece sob uma acumulação de traços yang __ : ele re-
regular). Entretanto, conclui WFZ, esse traço, que é o único na série presenta o risco de que, maio yang encontre o yin, este comece a se
"a conseguir um sucesso", "contenta-se em se manter bem e não pode insinuar sob ele. Esse perigo de uma insinuação, surgindo no baixo da
se preocupar com a não-eliminação do yin": donde se verifica que, figura, constitui por isso mesmo o inverso da necessidade da elimina-

François Jullien Figuras da Imanência 165


164
ção que se manifestava no cume da figura anterior (Guai, n° 43): quanto da pior "imprecação", de seus "presentes" como de um "veneno": se
mais fácil é para a insinuação começar, tão mais difícil é alcançar em ficamos absolutamente "firmes" e "inabaláveis" (a virtude do yang),
seguida a eliminação do que se insinua deste modo, como vimos. Ao o outro nada conseguirá de nós. Mas porque, quando se produz o en-
mesmo tempo, essa figura da insinuação, a última dos dois pares de contro, gozamos então da plenitude de nossas forças (cf. sobre a figu-
hexagramas considerados, nos fornece o ponto de partida daquilo do ra, o yang está em seu apogeu e os traços segundo e quinto "não per-
qual a primeira dessas quatro figuras, Bo, o "despojamento" (n° 22), deram seu equilíbrio"), podemos ser tentados a não nos inquietarmos
nos dava a ver o termo: insinuando-se assim discretamente no baixo com esse encontro, até mesmo sentirmos prazer nele; e o outro, então,
da figura, o yin entabula uma carreira ascendente que vai levá-lo a "des- que não tem respeito nem vergonha, penetrará até nossas "entranhas"
pojar" progressivamente o yang. Percebe-se, por conseguinte, muito e "corroerá" nosso coração.
melhor em que essa figura da insinuação contrasta com o caso, entre- Isso é fácil de compreender: o comentarista nos levou a abando-
tanto análogo, que representava, no outro par de hexagramas, o "re- nar a definição filosófica de um perigo da insinuação, tal como a ope-
torno" do yang (Pu, n° 23): ao passo que, nesse último caso, a apari- ravam as próprias figuras (por um lado, por oposição à dificuldade
ção do yang no baixo da figura constituía o abalo incitativo a que o da eliminação, na outra pont~l do processo - cf. o hexagrama Guai
processo do real (ou da consciência moral) devia em seguida todo seu - e, por outro, por contraste com a fecundidade da incitação, como
desdobramento, a aparição do yin no baixo dessa figura representa a outro tipo de início, cf. o hexagrama Pu), para colocar à frente uma
primeira etapa de uma infiltração cujo efeito perverso vai-se propa- encarnação dos papéis, que opera num plano ideológico. A incitação
gar em seguida, subindo, até ameaçar o conjunto. que promove o real é yang, a insinuação que o ameaça é yin: a insi-
Mas por que o fato de o yin vir ao encontro do yang é nesse caso nuação seria, então, um expediente próprio à feminilidade. Ou, ain-
negativo, quando se sabe muito bem que é sempre do encontro e da da, num outro registro, ela é um expediente próprio dos bárbaros que
interação do yin"e do yang que o real tira sua progressão? O perigo não não cessam de se insinuar a partir dos confins e de ameaçar a China.
pode, então, provir, logicamente, senão do modo como o encontro se Por isso WFZ faz servirem novamente e de modo natural os exemplos
dá. Gou, começa por esclarecer WFZ (p. 361), representa um encon- históricos que desenvolveu a propósito do hexagrama anterior, mas
tro que se produz "sem que se espere", imprevistamente(g'): como quando dos quais vai mostrar, desta vez, não o resultado final, mas o ponto
uma jovem encontra _por acaso um jovem, sem ter sido apresentada a de partida. Quando, sob a dinastia dos Song, os chineses entraram em
ele. Esse encontro possui, portanto, de início, alguma coisa de "prema- contato com as tribos de Jürchen, acreditaram poder se apoiar nelas
turo';, ou de "negligenciado,,(h'), que poderia estragar o desenvolvimento para se desembaraçarem dos Liao que os atacavam: enquanto "'esta-
posterior das relações. Quando "o yin faz irrupção sob o grupo dos vam inconscientes" do perigo que se preparava, os chefes Jürchen, que
yang", esclarece WFZ comentando a figura, ele já possui o desejo de se penetravam em terra chinesa sob o pretexto de lhes dar ajuda, "sabiam
"imiscuir à força" e de "se impor a eles,,(i'), mas, "como sua potência bem o que faziam" e a dinastia dos Song finalmente pereceu. Do mes-
não é então suficiente para enfrentá-los", ele "se insinua suavemente(i')", mo modo, antes de se impor como soberana e de confiscar o poder, a
de modo a "ganhar o coração deles", e se manifestam então seus maus terrível Wu Zetian (fim séc. VII - começo séc. VIII) debutou como
desígnios. Sob "seu ar de fragilidade", sua ambição interior é "forte", simples concubina; mas soube se insinuar nas boas graças do impera-
e o perigo é tão maior quanto mais se é tentado a se deixar comover dor e aumentou progressivamente sua autoridade sobre ele até poder
pela "fraqueza" e pela "solitude" de quem aparece assim "modestamen- um dia derrubá-lo.
te" a nOssos pés ... Eis por que o julgamento que incide sobre a figura Mas, poder-se-ia perguntar, um encontro inesperado, tal como
consiste apenas na advertência (com relação ao yang): "A jovem é for- representa a figura, é necessariamente negativo? Não, tudo depende
te: não se deve desposá-la". Se, por infelicidade, nos acontece um en- de como ele é assumido. O comentário do julgamento não tem, por
contro desses, exagera WFZ, é preciso desconfiar de "seus ares afáveis" seu turno, nenhuma dificuldade em mostrar como esse tipo de encon-
como se desconfia dos golpes de "lança", de suas "palavras doces" como tro que não cessa de se produzir entre o Céu e a Terra está na origem

166 François Jullien Figuras da Imanência 167


de uma geração sem fim das existências que não permanece menos "or- comprazendo-se em pastar a erva do planalto, não se apressava em
denada". A sabedoria será, então, a exemplo do Céu, saber acolher o avançar no caminho da eliminação, no penúltimo traço da figura an-
inferior (como é a Terra com relação ao Céu), fazendo-o aceder à sua terior, é oposta aqui a imagem da "porca" que, embora "débil" (sím-
regulação: assim, o bárbaro será tornado "dócil", o homem sem va- bolo dessa posição solitária na base da figura), continua a avançar
lia será tornado "obediente" e a mulher será "submissa". Será errô- mesmo assim "sem se afastar de seu caminho" (sentido de fu, segun-
neo acreditar que é apenas quando estamos a salvo de tais encontros do WFZ, p. 363) e vai semear a desordem. Por isso cabe ao segundo
que podemos desenvolver nossa moralidade (pois ao mesmo tempo se traço prevenir o mal, interrompendo o mais rapidamente esse avan-
colocaria em questão, vê-se bem, a lógica bipolar sobre a qual repou- ço: se se sabe nesse estágio "rodear" o "peixe" (elemento yin, o pri-
sa toda essa visão das coisas): mesmo a propósito dos apetites mais meiro traço; cf. no 5° traço de Bo, os "peixes espetados"), "não há
elementares que surgem em nós, sublinha WFZ, como "o alimento ou erro", indica o julgamento (a notar, além disso, que essa imagem do
o sexo" , um controle ético (da ordem do "rito") pode ser exercido(k'). "rodear" denota menos a hostilidade do que a solicitude). Esse pri-
Poder-se-ia até mesmo conceber uma insinuação cujos efeitos meiro traço yang que tem a "infelicidade" de ver um traço yin surgir
fossem favoráveis, como propõe o comentário simbólico da figura sob ele imprevistamente deve "assumir" bem depressa a situação, sen-
explorando os valores próprios aos trigramas [mas desviando-se en- tindo-se "responsável" em face de seus "hóspedes" (os traços superio-
tão, previne-nos WFZ (p. 363), da significação de conjunto, à função res) e encarregar-se de quem chega sem se preocupar em saber se é
de "advertência", que é própria da figura}; no alto, o trigrama Qian verdadeiramente a ele que cabe intervir: com efeito, o parceiro nor-
=, figurando o Céu; no baixo, o trigrama Xun =-=, figurando o ven- mal do primeiro traço é o quarto (relação de correspondência à dis-
to. Assim, o vento permite que a influência benéfica do Céu se espa- tância, de tipo ying), mas, se se esperar, por respeito às çonveniências
lhe, infundindo-se, através da natureza. Do mesmo modo o vento serve como também por medo das críticas (e para "se conseguir" uma re-
de imagem para o modo pelo qual as "ordens" soberanas, porque putação de escrupulosa neutralidade, prossegue ironicamente WFZ),
emitidas de uma consciência cuja "autenticidade" interior atinge O que a insinuação seja desenvolvida até esse estágio para começar a
absoluto(l'l, chegam a impregnar a alma dos súditos e os influenciam. reagir, o mal já terá progredido muito e se tornará irreprimível.
Diferentemente do discurso habitual que só pode contar com efeitos Os traços seguintes da figura traem, por seu turno, uma certa ten-
"retóricos" e cujo poder de incitação permanece superficial(m') (só se tação de ceder à insinuação do yin. O julgamento sobre o terceiro traço
manifestando, segundo um velho motivo chinês, no nível dos "ra- retoma em seu proveito o motivo da marcha "hesitante" e das "náde-
mos"{n')), essa insinuação permite à palavra "penetrar suavemente", gas sem pele" que havia servido para caracterizar a insuficiente deter-
até nas dobras mais "escondidas" e mais "sutis" do foro interior(ü'), minação do quarto traço na figura anterior, mesmo quando esse ter-
e emocionar o homem em seu recôndito. ceiro traço se mostra capaz de compensar essa falta de segurança pela
Voltemos à função de advertência da figura, que corresponde à posição yang (e portanto firme) que agora é sua no hexagrama e con-
experiência humana mais comum. Como no caso simétrico do retor- segue, assim, evitar "grandes erros". Quanto ao quarto traço, ele é,
no do yang (Fu, n° 24), o primeiro traço é o elemento determinante como se sabe, o correspondente normal do primeiro traço; mas, como
da figura; mas, ao passo que, naquele caso, tudo é levado a desdobrar o segundo traço já teve de se ocupar dele, esse quarto traço não tem
a incitação generosa que se desencadeia, nesse caso tudo deve condu- mais "peixes" a "rodear". Ora, como ele ocupa uma posição yin (e,
zir, ao contrário, a brecar o mais rapidamente a insinuação perigosa portanto, "mole") e como, além disso, sua posição é uma posição de
que se inicia aqui. Também não deve espantar o fato de que o motivo "recuo" (que o conduz para o baixo), ele é tentado a procurar con-
posto à frente pelo julgamento incidente sobre esse primeiro traço seja cordar à força com o primeiro traço surgido no baixo da figura: como
o do "freio" que permite parar o carro. Se o yin se interrompe nesse o mau soberano que quer forçar a concordância do povo (de nature-
estágio, a "integridade" é preservada; se, ao contrário, ele "vai em fren- za yin) com relação a ele e não faz, ao contrário, senão aumentar seu
te", ver-se-ão os efeitos "nefastos": ao motivo do "carneiro", que, "distanciamento" .

168 François Jullien Figuras da Imanência 169


Os dois últimos traços, finalmente, apresentam, de modo contraS- 6.
tado, o modo pelo qual convém abordar o "inferior" que vem ao nos- "O CÉU ESTÁ NO ALTO, A TERRA ESTÁ EMBAIXO"
so encontro. Por ser ele o traço soberano e sua posição de equilíbrio ou o dispositivo da realidade
(no trigrama) lhe assegurar sua "retidão", o quinto traço pode "rodear" ("Grande comentário", A, §1)
o yin (o primeiro traço), como se embala um "melão" com os talos tran-
çados de um "salgueiro": o melão é um fruto que se deteriora depres-
sa, esclarece WFZ (p. 366), mas, se for bem embalado, não se estraga-
rá. Do mesmo modo, se é regulado pelo yang, o yin serve à geração das Sob o título "Grande comentário" ou "Fórmulas anexas" (Xici,
existências, de modo sempre "ordenado", e acede ele também à reti- cf. Philastre, § 1132; Wilhelm, p. 319), o Clássico da mutação nos apre-
dão; mas, é claro, essa capacidade não lhe provém senão de si mesmo, senta uma reflexão que não é mais fragmentada pela análise particular
mas é uma chance que lhe vem do yang como se ela "caísse do céu". da série dos hexagramas. Atribuído pela tradição a Confúcio (mas com-
Em compensação, porque, depois do quinto traço, o yang não possui posto certamente numa época um pouco mais tardia, nos últimos sé-
mais completamente essa capacidade soberana e porque, também, o culos da antigüidade chinesa, nos meios que se inspiraram em seu en-
último lugar da figura se considera muito afastado do yin que aparecia sinamento), esse texto nos esclarece de modo global sobre a lógica do
na sua base, o sexto traço yang não está apto a tomar a seu cargo tão devir e seu fundamento; por essa razão, forneceu suas concepções de
generosamente o yin e "se poupa no encontro" (sentido aqui de lin{p')). base para a representação chinesa da realidade. Páginas capitais, por-
Segundo o julgamento incidente sobre ele, o encontro já não opera senão tanto, em que o esforço de síntese e o espírito de sistema são levados
de modo superficial, no nível dos "chifres". Não existe "erro", mas a ao seu ponto máximo, em que o pensamento que rege o livro chegou
progressão do real está, entretanto, reduzida e a fecundidade se esgo- ao seu pleno desabrochar, e cujas formulações, constantemente reto-
ta: encontra-se então em retirada com relação à lógica de um funcio- madas, serão julgadas definitivas: na continuação, e durante mais de
namento bipolar e regulado tal comO nos dá a ver, através do empare- dois milênios, o pensamento letrado poderá propor inumeráveis varia-
lhamento do Céu e da Terra, o grande dispositivo da realidade. ções a partir desses temas, mas não dirá nada de radicalmente novo.

NOTAS I- COLOCANDO EM SEU LUGAR: "CÉU" E "TERRA", ALTO


E BAIXO
1 Sobre a importância desse hexagrama sob os Song, reportar-se aos diver-
sos comentários apresentados em Sung Dynasty Uses of the I Ching, Princeton A frase inicial desse "Grande comentário", assim, já dá conta,
University Press, 1990, p. 237. sozinha, do que constitui a opção chinesa em face do real. Quatro
expressões de quatro caracteres bastam para desdobrar o mundo, equi-
librando tensão e simetria:

o Céu está elevado, a Terra está embaixo:


assim são determinados o iniciador e o receptivo;
através dessa disposição de baixo para cima,
o que tem mais e menos valor estão no seu lugar.

A constatação parece das mais banais e beira a insignificância: o


céu está no alto e a terra está embaixo ... E, entretanto, tudo já está

170 François Jullien Figuras da Imanência 171


dito; as grandes escolhas "teóricas" já estão feitas. Essa fórmula nos sobre o outro para que a lógica da imanência que rege o mundo não
adverte, em primeiro lugar, de que o real sempre deve ser concebido a leve a um desenrolar que seja vão (com relação à nossa aspiração), mas
partir de uma dualidade de instâncias (o Céu e a Terra; ou, no Clássi- justifique o esforço humano. Apenas uma solução, se se recusa a co-
co da mutação, Qian e Kun, o "iniciador" e o "receptivo") e jamais a locar Deus como autor transcendente e Fim supremo como, na outra
partir de um termo único (Deus, ser absoluto, primeiro motor ... ), e de ponta, a reduzir o mundo a seu funcionamento mecanicista: o pensa-
que é dessa polaridade (simbolizada pelo yin e pelo yang) que decor- mento chinês deve pensar ao mesmo tempo a correlação (funcional) e
re, constantemente, o grande processo das coisas: assim, é a relação a hierarquização (como condição apriorística da moral). Ora, essa
que é primeira, aqui entre o alto e o baixo, e é ela que determina des- simples fórmula: "o céu no alto / a terra embaixo" nos fornece como-
de o início a realidade. Mas essa fórmula de abertura não evoca ape- damente um e outro: ela nos dá, numa única intuição, na mesma arti-
nas o que serve de quadro para a geração do real, ela nos diz, além culação teórica, ao mesmo tempo aquilo de onde procede esponta-
disso, que nesse quadro natural está implicada a moralidade: essa re- neamente todo o real (a relação de "geração" a partir do Céu e da Ter-
lação que é primeira é também orientada, e o alto e o baixo estabele- ra) e aquilo que serve de horizonte, entre Céu e Terra, para nossa con-
cem uma diferença de níveis. A relação que funda o processo do real duta (e permite nossa ele~ação). Ao mesmo tempo uma explicação na-
possui em si mesma uma dimensão axiológica, a polaridade é objeto turalista da origem das coisas e o princípio absoluto do bem.
de hierarquia. Por isso a vocação moral do homem pode ser lida já na Já se viu, a propósito dos hexagramas Qian e Kun, aquilo em que
ordem das coisas (assim como, em sua sombra, a ideologia chinesa de a polaridade que está na origem de todo real é eminentemente positi-
um mundo social e político não-igualitário e que repousa na subordi- va. O desdobramento da energia yang, que caracteriza Qian, é, diz-
nação): bem longe de depender de uma determinação posterior, ou de nos WFZ Ip. 507), aquilo por que o Céu prossegue seu curso; a con-
proceder de uma injunção exterior, lei social ou mandamento divino, densação de energia yin, que caracteriza Kun, "é aquilo pelo qual a
a moral está inscrita na estrutura do real, é a expressão de sua lógica. Terra recolhe e recebe". Por isso Céu e Terra se caracterizam pela
Nosso comentarista insiste, com efeito, novamente sobre esse mesma capacidade absoluta de serem constantemente fiéis à sua na-
duplo aspecto (WFZ, pp. 506-507): por um lado, Céu e Terra devem tureza (perfeitamente "autênticos") e, portanto, "não se desviam ja-
ser considerados juntos e no mesmo plano, do mesmo modo que Qian mais"(c); e, como tais, "regem todo o processo de advento-transfor-
e Kun, as duas primeiras figuras do Clássico da mutação, são "esta- mação"; o Céu "seguindo seu curso sem interrupção" no interior do
belecidos ao mesmo tempo,,(a); por outro lado, eles definem por si invisível, a Terra "acolhendo sem limite" (a influência que emana do
próprios um eixo de valores. Se eles existem simetricamente um dian- Céu) e fornecendo a vida sem parar. Por sua capacidade de "perseve-
te do outro e são indissociáveis, não resta dúvida de que um está no rar em frente", o Céu "contém a Terra em sua imensidade indiferen-
alto ("elevado") ao passo que o outro está "embaixo". E o fato de que ciada e sem fronteiras" e "a comanda": a despeito de sua perfeita
o termo "elevado" ("honrado")lb l seja preferido, no início da frase, "limpidez" e de sua total "vacuidade", ele "emprega a seu serviço"
ao simples "alto", que seria neutro, basta para nos revelar essa inten- tudo aquilo que se atualiza e se torna concreto; eis por que é "honra-
ção de carregar desde o começo um dos pólos e orientar do início a do" por sua elevação e "nada lhe é superior". Por sua capacidade em
relação. "se conformar", a Terra não se arroga o mérito da transformação:
Compreendamos, com efeito, que o pensamento chinês está co- embora seja sólida e resistente, ela "obedece pacificamente à modela-
locado diante de uma dupla necessidade (e é do modo com que con- gem harmoniosa que emana do que não é atualizado"; por isso ela está
segue sair dessa contradição que decorre, parece-me, uma grande parte "embaixo" - e "não se opõe nunca".
de seu interesse): ele deve estabelecer juntos e em paridade Céu e Ter- Mas compreendamos bem que essa baixura da Terra, ao mesmo
ra, Qian e Kun, enquanto pólos, de modo a poder dar conta da gera- tempo em que faz contraste com a elevação do Céu, constitui por si
ção do real por simples efeito de interação e sobre um modo imanente; mesma uma qualidade. É uma virtude tanto do inferior como do supe-
mas deve também e ao mesmo tempo estabelecer esses dois pólos um rior, e o que é menos honorável não é por isso mesmo rejeitado. O dis-

172 François Jullien Figuras da Imanência 173


tinguo, aqui, é essencial e é nisso que a moral chinesa se opõe mais capaz de nos confiar todo o mistério e que o discurso pudesse se limi-
radicalmente, parece-me, àquilo que serviu de fundamento ao idealis- tar a estabelecer seu inventário. Pois essa reflexão pretende fazer eco-
mo ocidental: pois se o Céu, em seu curso invisível, representa bem a nomia tanto de toda demonstração como de toda projeção, ela tam-
dimensão de elevação que recobre a moralidade (e permite assim fun- bém não relata, assim como não deduz, sua operação' é mínima (e é
dar verticalmente um eixo dos valores), a terra, com toda sua mate- nisso que reside seu efeito mais forte): ela se reduz a colocar no lugar.
rialidade concreta e sua opacidade, é também meritória (ao se subme- E é a partir desse posicionamento das coisas, recíproco, funcional, que
ter de seu próprio grado): essa "baixura", em si mesma, não é negati- tudo se torna inteligível.
va, e todo o real, terra e Céu, está justificado. Assim se vê, numa pas-
sagem posterior (A, §7, Philastre, §1167; WFZ, p. 534), essa "baixura"
da terra servir de modelo para a escrupulosa atenção do comportamento 11 - A COLOCAÇÃO EM MOVIMENTO: A TRANSFORMAÇÃO
ritual que esposa a ordem inerente às coisas(d); e essa "humildade" do NASCE DE UMA INTERAÇÃO
ritual parece tão necessária quanto a libertação do "saber" (da cons-
ciência) - em relação ao "entrave" das "idéias" e dos "desejos" pes- Do mundo ao livro: no mundo, Céu e Terra (como polaridade),
soais -, cujo caráter "eminente" está associado ao Céu. ou yin e yang (como energias), constituem as duas capacidades, opos-
Percebe-se então o que faz a originalidade desse início. Primei- tas mas complementares, e como tal absolutamente suficientes, das
ro, o paralelismo das fórmulas basta para colocar em evidência a ade- quais decorre, por variação interna, todo o processo da realidade; no
quação estabelecida entre a ordem do real (o céu e a terra, alto e bai- livro, as duas primeiras figuras, Qian e Kun, possuem a totalidade dos
xo) e o dispositivo que é instaurado pelo livro (os dois hexagramas, traços - yin e yang, pares e ímpares, contínuos e descontínuos - dos
Qian e Kun, estabelecidos à frente de todos os outros bem como as quais procedem, por inversão desses traços, todos os Outros hexa-
posições superior e inferior em cada hexagrama particular). Longe de gramas. A imagem do Céu e da Terra, essas duas primeiras figuras
ser um puro ornamento retórico, essa disposição paralela do texto será representam, portanto, todo o capital da realidade; e, a partir 6.e~sa
decisiva, porque é ela que fornece sua garantia ao discurso: o êxito do "colocação de fundo(e)", se esclarece, por um jogo incessante de inte-
emparelhamento funciona como prova, ele é mais eficaz do que toda ração, a transformação.
argumentação (ele está em ação e não é apenas formal). Tudo "se en- A seqüência seguinte desse primeiro parágrafo do "Grande co-
quadra" , efetivamente, por si mesmo, encontrando seu correspondente, mentário" mostra-nos precisamente em que consiste essa interação; e
e a pertinência nasce do face-a-face: inútil, portanto, apelar para as essa explicação é tão mais importante quanto é ela que permite com-
subordinações sintáticas, introduzir uma relação causal, inventar ca- preender que o processo da realidade não depende de nenhuma causa
vilhas. Acima de tudo, esse início é revelador por seu expediente: di- externa, mas se desdobra por imanência. O caso considerado é aque-
zendo que o céu está no alto e a terra está embaixo, não constrói nada, le oferecido em miniatura pela série dos seis trigramas gerados a par-
não inventa nada, mas se contenta em enunciar a evidência. Nenhum tir das duas figuras iniciais, Qian e Kun, compostas exclusivamente
relato, com efeito, é invocado aqui para servir de partida para a re- de três traços yin ou yang -"duros" ou "maleáveis":
presentação do mundo - nenhum mito das origens, nenhum grande
drama cosmogônico,nenhuma hipótese são propostos para servir de Por isso, o duro e o maleável [traços contínuo e des-
suporte à sua interpretação, e é apenas da elucidação da evidência- contínuo, pleno e partido J se esfregam um contra o outro,
a mais flagrante, a mais banal - que se espera uma explicação sufi- os oito trigramas se incitam mutuamente.
ciente da realidade. Basta erguer e baixar os olhos. A reflexão não se
afasta da simples constatação, nem a verdade do truísmo, e eis por que Da polaridade inicial decorre um funcionamento recíproco: a pri-
o probleIT?-a da própria "verdade" em si não é colocado, nem chega a meira expressão indica que as duas realidades em questão estão em
ser um problema. Como se essa simples marcação das posições fosse contato uma Com a outra ("se massageiam" ou "se esfregam"), que essa

174 François Jullien Figuras da Imanência 175


relação é "seguida" e se exerce "nos dois sentidos"(f); a segunda fór- cipais manifestações da natureza. É por eles que se organiza, a partir
mula anuncia o resultado dessa interdependência: os oito trigramas que do quadro inicial que o Céu e a Terra constituem, a renovação sem
resumem todos os casos de figura possíveis nesse estágio de desenvol- fim da vida, que se escreve a grande poética do mundo. A primeira das
vimento das coisas (no caso de figuras de três traços) "se colocam em fórmulas que acabamos de citar continua do seguinte modo:
movimento" e "se agitam" mutuamente(g). Os traços contínuos e des-
contínuos, plenos e partidos, "duros" e "maleáveis", "vão e vêm" pelas Agitando pelo trovão e pelo raio,
posições determinadas, diz-nos WFZ (p. 509), "invertem-se um ao outro acalmando pelo vento e pela chuva;
de modo a avançar ou recuar"; e cada um dos dois parceiros tira par- o sol e a lua seguem seu curso:
tido disso, porque tanto "o duro se beneficia da acolhida do maleável" faça frio ou faça calor;
como o maleável pode "se apoiar no duro para aí encontrar sua esta- o caminho de Qian faz advir o masculino,
bilidade". O processo que daí resulta, conclui nosso comentarista, "se o de Kun, o feminino.
produz sponte sua" e está "necessariamente implicado"(h).
Uma outra fórmula, no parágrafo seguinte (cf. WFZ, p. 514), Pode-se ler na relação variante dos traços nessas figuras o jogo
permite compreender ainda mais precisamente a regularidade do pro- das forças, renovando-se sem cessar, que estão em ação na natureza.
cesso que foi iniciado: o "duro" e o "maleável", traços plenos e par- Essas três expressões em duplas remetem, com efeito, aos três pares
tidos, "se empurram mutuamente", e daí resulta a "transformação,,(i): de trigramas: não de modo cifrado e um tanto cabalístico, ou em vir-
tude de valores emblemáticos, mas porque esses trigramas reprodu-
zem do modo mais simples a lógica inerente aos fenômenos. Retoman-
yang crescente e yin crescente e do essas seis figuras duas a duas e relendo conjuntamente esses três
yin decrescente yang decrescente dísticos (seguindo WFZ, p. 509) temos:
- que um traço contínuo yang aparece sob dois traços descon-
Como dá a perceber o esquema, existe evolução progressiva de tínuos yin (trigrama Zhen ,,-,,): o yang surge para ativar o yin: o tro-
uma figura à outra, ao mesmo tempo em que é rpantido o volume glo- vão "agita"; e, inversamente, que um traço descontínuo yin aparece
bal da transformação; formando um sistema contínuo, ess.as duas sé- sob dois traços contínuos yang (trigrama Xun =--=): o yin, invadindo o
ries homogêneas dão conta de toda variação por alternância: um tra- yang, dispersa sua inflexibilidade e o embebe de uma doce harmonia:
ço expulsa um outro, depois é por ele expulso; quando o yin vai cres- o vento se ergue, trazendo a chuva, e "acalma" a natureza;
cendo, o yang vai decrescendo, e assim reciprocamente. A partir das - ou ainda que dois traços descontínuos yin encaixam um tra-
duas figuras iniciais, exclusivamente yin ou yang, que fornecem o ca- ço contínuo yang (trigrama Kan = =) e, inversamente, que dois traços
pital dos traços e servem de "pai" e "mãe" para o processo, as seis contínuos yang encaixam um traço descontínuo yin (trigrama Li ==):
figuras derivadas - os "três filhos" e as "três filhas" - constituem yin e yang se refletem e se contêm um ao outro de modo a se encadea-
outros tantos casos intermediários: traços yin e yang aí se "misturam" rem ciclicamente: o frio e o calor se sucedem sobre a terra, o sol e a
de todos os modos possíveis, mas as figuras também sempre funcio- lua alternam no céu (e essas duas séries de fenômenos são conexas:
nam em pares. quando o sol está no Sul faz frio, quando está no Norte faz calor, e é
Esses seis trigraÍnas derivados das duas figuras iniciais, Qian e o inverso para a lua);
Kun, que representam o Céu e a Terra, também têm seu correspon- - ou, finalmente, que um traço contínuo yang aparece sobre dois
dente na ordem dos fenômenos: num estágio intermediário entre a traços descontínuos yin (trigrama Gen '" =) e, inversamente, que um
polaridade inicial e a infinita diversidade do concreto (de que se en- traço descontínuo yin aparece sobre dois traços contínuos yang (tri-
carregam as 56 outras figuras desdobradas em hexagramas), eles sim- grama Dui =-=): existe penetração recíproca entre Qian e Kun, o duro
bolizam, c'omo instâncias secundárias que se tornam atuantes, as prin- e o maleável, o par e o ímpar: o masculino e o feminino "advêm" (um

176 François Jullien Figuras da Imanência 177


outro valor usual dos mesmos trigramas - montanhas e baixio - re- rogar, em compensação, sobre a ligação que associa aqui, no caso de
produz essa diferença dos sexos: o pico é macho, o vale é fêmea). Qian, "conhecer" e "começar"? Eis por que inúmeros comentaristas
chineses, entre os mais autorizados, decidiram riscar essa idéia de co-
"Agitação" ou "parada", "curso" e "advento": derivando da nhecimentol, Entre os tradutores ocidentais, este também é o cami-
polaridade inicial, a ronda dos trigramas daí desdobra sua lógica. Céu nho seguido por Philastre (bem como por Legge), que traduz a primeira
e Terra colocavam em lugar a dualidade, os trigramas representam o fórmula (§1136) por: "A atividade enérgica [Qian] preside ao come-
movimento que daí decorre: entre os seis, esboçam o sistema das inte- ço da grandeza" (mesmo que pareça se retratar, mas sem se justificar,
rações e simbolizam o mundo em agitação, arrastado em seus amplos indicando laconicamente em nota que "preside" significa "sabe, co-
movimentos de oscilação (o "mais velho" entre suas "crianças", Zhen, nhece"). Quanto a Wilhelm (p. 324), se tem o mérito de conservar para
evocado aqui à testa e associado ao "trovão", à "primavera", simbo- "conhecer" seu sentido próprio ("O criador conhece os grandes co-
liza ele mesmo mais precisamente a colocação em movimento). O que meços"), vê-se bem também para qual risco de interpretação ociden-
era percebido no começo como a oposição complementar do Céu e da talizada pode levar uma tal tradução 2 : Qian deveria, então, ser pro-
Terra se manifesta, no nível dos fenômenos, como uma alternância vido, por essa presciência, de um estatuto metafísico-divino (mas que
compensatória. "Trovão" ou "vento", o curso do dia e da noite, o ciclo contradiz, como se viu, seu emparelhamento funcional com a Terra)?
das estações, o gênero dos seres e das coisas: eis que o balizamento do E se trataria de uma faculdade de conhecimento tal como a concebeu
alto e do baixo se abre por si para a diversidade da existência, eis que nossa própria tradição filosófica (quando a tradição chinesa, como se
entre Céu e Terra a cena espontaneamente se anima, o quadro se pre- sabe, não desenvolveu nenhuma teoria das faculdades)?
enche. O emparelhamento colocado ao início continua - mas reve- O problema é demasiado crucial, sua incidência demasiado con-
lando-se como o princípio de todo dinamismo, siderável (pelo menos em relação ao campo filosófico ocidental) para
que se possa querer contorná-lo. Mas hesitamos entre o pesar de ver-
mos o texto se apagar e não irmos até o fim de seu sentido e o temor,
III - SABER E REALIZAÇÃO: O CONHECIMENTO "PROCESSIVO" ao contrário, de sermos levados a aplicar sobre ele todo o sistema de
representações de uma outra cultura: associando-se tão estreitamente
Embora dê continuidade, do modo mais claro, a essa lógica do ao tema do começo, não estaria fadada a se dissolver toda idéia de
emparelhamento, a passagem que, fazendo imediatamente seqüência conhecimento, poderia essa noção guardar ainda sua consistência? Ou
ao desenvolvimento anterior, visa a determinar as capacidades em então essa frase nos faria efetivamente descobrir uma relação de co-
ação dentro do real, está, em si mesma, muito mais sujeita a caução, nhecimento da qual até agora não tínhamos idéia, ou que, em todo
Eis por que é prudente traduzir primeiro essas duas expressões pala- caso, não havíamos teorizado? Voltemos, então, ao texto, tentando
vra por palavra: lê-lo mais de perto 3 , E, primeiramente, deixemos atuar livremente o
efeito de paralelismo sobre o qual essas formulações repousam e que,
Qian [o iniciador] - conhecer - grande - começo, longe de ser um ornamento retórico, é o fator determinante do senti-
Kun [o receptivo] - fazer - realizar - os existentes. do: a ligação que une o "conhecimento" próprio a Qian, o iniciador,
à sua capacidade de começar é similar àquela que une a atividade pró-
Eis que, apesar d'a ordem trazida pela simetria, as relações espe- pria a Kun, o receptivo, à sua capacidade de completar; e, de ambos
radas não se estabelecem - ou só se estabelecem parcialmente, o sen- os lados, a expressão é a mais geral: assim como Kun realiza ao mes-
tido está turvado. Pois se se pode ver bem qual paralelismo pode unir, mo tempo todos os existentes, Qian procede a esse começo de modo
por um lado, o "conhecer" e, por outro, o "fazer", do mesmo modo contínu0 4 , Depois, convém interpretar essas duas representações, "co-
que, no caso de Kun, qual encadeamento pode ligar a atividade posta nhecer" e "fazer", não como duas categorias abstratas e gerais, mas
em ação e à realização concreta que dela resulta, como não se inter- em função da rede particular de associações de que emergem e que esse

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livro não cessa de tecer: "conhecer" deve ser compreendido em rela- em frente", seu saber das situações abordadas é sempre completo: ele
ção à capacidade de Qian, que é "continuar a ir em frente"; "fazer" lhe permite estar constantemente aberto à renovação da vida, à frente
deve ser compreendido em relação à capacidade de Kun, que é "se con- do curso das coisas, e portanto de detonar sem cessar sua transforma-
formar". Assim, é porque continua sempre a ir em frente que Qian, o ção. E eis por que, segundo WFZ, "na medida em que existe o saber
iniciador, não cessa de aclarar o curso que virá e pode fazer continua- próprio a Qian, tudo está apto a começar".
mente iniciar; e é porque ela se conforma sempre à "lógica inerente a Acontece o mesmo para Kun. Pois" o que nossa vontade põe em
esse processo que a atividade de Kun, o receptivo, está constantemen- ação", nos diz WFZ, é inferior àquilo que "a razão das coisas desdo-
te apta a tudo fazer advir e tornar completo. bra de si mesma" lao passo que aquilo que a razão das coisas desdo-
WFZ, que resolveu guardar aqui para "conhecer" seu pleno valor bra de si mesma é sempre aquilo a que nossa vontade se pode confor-
de conhecimento, interpreta em que ele consiste, remetendo à nossa mar). Com efeito, nesse estágio superior de realização em que é a ra-
experiência (p. 510): o conhecimento sensível, ele nos diz, é inferior zão das coisas que se desdobra, "a energia se põe, em conseqüência,
àquele que a consciência percebe diretamente, mas esse conhecimento em movimento" e "o efeito se segue", nada faz obstrução e jamais o
intelectual é em si mesmo inferior àquele "cuja experiência adquirimos processo se bloqueia nem submerge: por isso, "seguindo o que con-
pessoalmente(l)" . Pois é graças a esse conhecimento Íntimo que adquiri- vém ao curso das coisas", "vai-se até ao fim daquilo que as situações
mos ao longo do tempo que, face ao caráter "desigual" das situações e os existentes pedem". Fórmulas sutis, e cujo paradoxo só é aparen-
em constante mutação nas quais estamos engajados, ao caráter mutável te, servem para nos dar conta desse caminho da realização por ima-
das tendências, alternadamente "favoráveis" e "desfavoráveis", às nência: "se se aplica, mas sem que seja preciso fazer esforços", "age-
quais somos confrontados, podemos pelo menos não nos sentirmos "as- se, mas sem que isto seja por determinação própria". Tal é a ativida-
sustados" por essas "modificações" contínuas; ao contrário, seguros de "incansável" da Terra, dentro do processo, e que lhe permite ir sem-
com a familiaridade obtida, com o preparo alcançado, podemos an- pre "até o fim" de seus efeitos.
tecipar as mudallças a vir e estamos prontos a reagir: graças a esse co- Proporia portanto que se releia essa dupla fórmula do seguinte
nhecimento por experiência do desenrolar em curso, não somos des- modo:
viados pela renovação desse curso(m) e podemos ir mais longe.
É preciso, então, com efeito, fazer uma pergunta: como é, já que o conhecimento próprio a Qian {o iniciador] permi-
nada se repete jamais de modo e"xatamente igual e já que o real está te um começo contínuo,
fadado a uma constante inovação, que possamos contudo não nos a atividade própria a Kun {o receptivo] permite a rea-
sentir apanhados de surpresa por sua evolução? É que, devemos com- lização das existências.
preender, a experiência do desenrolar se transforma a partir de si mes-
ma em presciência de seu funcionamento e permite então que, longe Trata-se mesmo de conhecimento, mas concebido de outro modo.
de nos deixarmos surpreender e paralisar pelo curso inovador das Se nossa tradição filosófica pensou o conhecimento numa relação de
coisas, possamos estar abertos a ele e permanecer numa disposição de sujeito a objeto e segundo uma mira teórica (ao mesmo tempo descri-
iniciativa em relação a ele. Pois a experiência adquirida não nos for- tiva e desinteressada), a concepção do conhecimento que aparece aqui
ma apenas para o retorno do mesmo, cíclico e estéril, ela nos prepara corresponde a um projeto completamente diferente. Eu proporia es-
também para a esperado outro, para a acolhida previsível da diferen- quematizar assim a diferença: por um lado, esse outro tipo de conhe-
ça. Assim, a adaptação se realiza antecipadamente e a intuição das cimento não se exerce sobre um objeto (a ser identificado), mas sobre
mudanças a vir permite abrir-lhes o caminhoS. um curso (a seguir), sua moldura não é o espaço aberto pelo olhar, o
Este é, portanto, também o saber que Qian simboliza com rela- da res extensa, mas um desenrolar temporal; por outro lado, não en-
ção ao grande processo do mundo, em seu estágio absoluto: na medi- contra sua fonte num sujeito detentor de faculdades Iclassificadas hi-
da em que" não cessa jamais de exercer sua virtude própria, que é "ir erarquicamente por nossa teoria do conhecimento}, mas na aptidão a

180 François Jullien Figuras da Imanência 181


continuar de um processo (cujo ideal, em conseqüência, é jamais se platônica 6 . Pois aqui não existe relação de modelo com sua cópia (en-
deixar bloquear ou submergir) e eis por que Qian, que possui essa quanto realidades distintas uma da outra, e a segunda em diminuição
capacidade num estágio absoluto, não poderia, entretanto, ser confun- ontológica com relação à primeira), mas desdobramento, de uma fase
dido.com Deus. Por isso esse conhecimento não procede por abstra- a outra, da mesma lógica imanente, e como tal intransitiva, permitin-
ção (que define "formas", Idéias), mas por "familiarização" (adqui- do a realização do processo em curso (ou da conduta encetada). As
rida através da experiência íntima de um desenrolar); ela não visa à capacidades do "conhecer" e do "fazer" cooperam (WFZ insiste nes-
determinação atem parai de uma verdade, com um objetivo especu- te ponto) nesse desenrolar comum: uma, aclarando-o por antecipação,
lativo, mas à apreensão antecipada de uma evolução, de modo a po- permite-lhe advir sem cessar, e a outra, esposando constantemente a
der tanto melhor detoná -la. Seu ideal, em conseqüência, não é a feli- lógica esboçada, o atualiza até o seu termo.
cidade (grega) obtida pela contemplação de um ser eterno inteligível, A repercussão de uma tal colaboração, com relação a nossos
mas a aptidão a não se deixar jamais desconcertar pela transforma- esquemas, é que ela esfuma a oposição tradicional do "conhecer" e
ção, de poder, ao contrário, continuamente antecipá-Ia e favorecer seu do "fazer", religa mais intimamente entre si o saber e a conduta. Con-
advento. sidere-se, a título de exemplo, essas práticas culturais às quais está
Poder-se-ia chamar processivo esse conhecimento, porque ele sempre ligada, nos dias de hoje, a civilização chinesa, tais como a arte
auxilia o processo (o termo sendo oposto nesse sentido a recessivo; cf. da escrita ou o tazji quan (o "boxe chinês"): tenho a impressão de que
o inglês "processive") de modo a opô-lo ao conhecimento "objetivo", se perceberá muito melhor o princípio que os anima se forem consi-
tal como o concebemos a partir da herança da filosofia grega. Uma derados sob o ângulo do conhecimento processivo que acabamos de
outra expressão paralela encontrada adiante no "Grande comentário" evocar. Quem faz o aprendizado do traço contínuo do pincel em cali-
(A, §5, WFZ, p. 530) permite analisar mais precisamente ainda em que grafia, ou do encadeamento dos movimentos no "boxe chinês" (cuja
consiste essa capacidade. No advento do real, ao nível que a capaci- primeira exigência é também a de não deixar romper a continuidade
dade de Qian simboliza, corresponde a configuração lógica, que per- iniciada), compreende facilmente o que representa esse conhecimento
manece ainda implícita, do processo encetado (cheng xiang) , ao pas- adquirido através da familiaridade de um desenrolar e que permite estar
so que àquele que a capacidade de Kun simboliza corresponde a ma- sempre pronto a iniciar o elemento seguinte (o próximo traço ou ges-
nifestação atualiZadora dessa configuração lógica, que se exerce de to). Seria preciso, então, refletir, de modo mais geral, sobre essa for-
modo normativo (xiao fa)(n). Retornemos, com efeito, ao testemunho ma de saber que está ligada ao devir e o torna possível. Pois se a refle-
de nossa experiência, como nos convida a fazê-lo WFZ (p. 530): no xão ocidental nos confiou o conhecimento objetivo do mundo, num
caso da natureza humana, diz-nos ele, "aquilo a que alcança nosso plano ao mesmo tempo científico e técnico, ela é tentada a abando-
conhecimento" é, "antes que o efeito próprio à situação tenha apare- nar a conduta a partir do momento em que esta já não depende da pres-
cido", uma "configuração-representação (xiang) que advém e se rea- crição moral, à ordem, desconsiderada, da incerta prudência ou do
liza do começo ao fim" do processo" de modo a permitir fazer face às mero hábito. Num caso, o que se considera é instável demais, e alea-
dificuldades encontradas e a não estar na ignorância da lógica do de- tório demais, para constituir um saber; no outro, inverso, o condicio-
senrolar em curso"; paralelamente a essa capacidade de Qian, a ca- namento a que nos submetemos é maquinal demais, ou animal, para
pacidade de Kun está apta, "conformando-se à lógica que assim é dele ser digno. Entre ambos, deixa-se uma lacuna. Ora, o mérito do
apreendida", bem como "manifestando completamente a função nor- Clássico da mutação poderia ser, precisamente, de um ponto de vista
mativa que daí decorre", a "atravessar de ponta a ponta os obstáculos filosófico, o de nos levar a reconsiderar esse desinteresse, a voltar a
encontrados e a não se desviar Com relação ao ponto de partida". A esse lugar deixado vazio pela teoria: a melhor compreender essa lógi-
relação que essa configuração lógica, em seu estágio implícito, man- ca processiva, em nós como fora de nós, que conduz, aclarando-a, a
tém com sua manifestação atualizadora em função normativa não é, realidade.
portanto~ aquela que Wilhelm imagina, sob a influência da metafísica

182 François Jullien Figuras da Imanência 183


IV - FACILIDADE E SIMPLICIDADE: O CAMINHO DA IMANÊNCIA efeito de paralelismo que estruturava o emparelhamento, convém aqui
se deixar levar pelo efeito de encadeamento do discurso, sua dobagem
A cada uma dessas capacidades o seu critério: o ideal da capaci- regular: através desse escoamento progressivo das fórmulas que, como
dade de conhecimento é a "facilidade", o da capacidade de realização tantas vagas sucessivas, se expandem mais e mais longe - em "dura-
é a "simplicidade"{o), Como exprime a fórmula que faz seqüência ção", em "amplidão" - a partir desse termo primeiro que lhes serve
àquela que acabamos de ler: de centro: yi, a "facilidade". Única marca sintática, uma mesma con-
junção (ze 1q ): "donde", "disso resulta"), que reconduz a cada vez a
É pela facilidade que Qian [o iniciador] conhece, consecução, transmite a evidência passo a passo, assegura sua propa-
é pela simplicidade que Kun [o receptivo] é capaz. gação contínua. Assim o real se desdobra de si mesmo, sem desperdí-
cio nem refreamento; sua capacidade processiva se comunica de par-
Esses dois critérios se correspondem, um mesmo valor se reflete te a parte até na mínima manifestação de atividade. É apenas da in-
através das duas operações. Pois ambos remetem a uma mesma con- teração do Céu e da Terra que decorre, lembra-nos o comentarista,
dição, indica-nos WFZ (p. 511), que é a "pureza" da capacidade em toda a variedade dos fenômenos, a alternância "do trovão e do ven-
ação - do fato de ela ser ao mesmo tempo "integral", "unitária" e to", "do frio e do quente", "das montanhas e dos vales" (cf. os seis
"sem mistura"(p): à imagem dessas duas figuras iniciais do Clássico da trigramas evocados anteriormente). Variações das estações (no céu),
mutação, Qian e Kun, composta uma de seis traços yin, a outra de seis ou do relevo (na terra): "por diferentes que sejam entre si", os fenô-
traços yang. menos "possuem cada um sua constância", e esta lhes confere uma
Mas como essas duas únicas capacidades estão aptas, pergunta- realidade que se impõe a nós e da qual não se conseguiria "se despren-
se WFZ (p. 511), a assumir a totalidade do real- que se sabe, entre- der" (o que com certeza é dito contra o ponto de vista búdico, para o
tanto, ser "complexo"? E como se pode, a partir apenas delas, dar conta qual todo o "real" é apenas fantasmagoria ... ); do mesmo modo, to-
de todas as suas mutações - que, entretanto, são muito diversas e dos os seres do mundo manifestam suas capacidades particulares se-
"difíceis de sondar"? Mas, justamente, porque essas duas capacida- guindo sua natureza própria. Tal é, portanto, o caminho da imanên-
des complementares se exercem então de modo integral e sem mistu- cia natural que se manifesta assim, em sua "pureza", "desde sempre" ,
ra, o grande processo da realidade pode se desenrolar sem jamais "pe- "sem conhecer a mínima exceção". E, do mesmo modo, quando o Sábio
nar" nem "encontrar obstáculo", a conduta do Sábio pode se desdo- encarna de modo completo e sem mistura essas duas capacidades, "o
brar "seguindo sempre a mesma linha e sem jamais se bifurcar". Por mundo inteiro volta à sua humanidade" e "de todas as partes se ma-
isso, conclui nosso comentarista, "mesmo que os dois primeiros hexa- nifesta a submissão ao seu exemplo". Por simples fenômeno de influên-
gramas, Qian e Kun, não cubram todas as mutações representadas cia, a moralidade se expande.
pelos outros 62, eles já possuem, entretanto, sua lógica" . Voltemos a uma observação anterior de nosso comentarista: "o
O texto canônico prossegue: que nossa vontade aciona", dizia ele, "é inferior àquilo que a razão
das coisas desdobra (de por si)" (p. 510). A expressão merece ser guar-
Fácil, donde fácil de conhecer, dada, parece-me, tanto é própria para caracterizar _a sabedoria chine-
simples, donde fácil de seguir; sa por oposição à tendência, ativista ou heróica, como se queira, que
da facilidade de conhecer resulta a familiaridade, uma certa tradição ocidental cultivou: a de uma ingerência do sujeito
da facilidade de seguir resulta a eficácia: no curso do mundo, até mesmo um enfrentamento com ele. Com efeito,
da primeira resulta a duração, o que assegura o sucesso do Sábio e torna sua obra eficaz é que ele
da segunda resulta a amplidão. "não força a natureza das coisas" (jiao wu: é revelador nesse sentido
que o mesmo termo chinês signifique ao mesmo tempo "endireitar",
Do mesmo modo que anteriormente era preciso estar atento ao "corrigir" e "fingir", "contrafazer": assim, quem aspira corrigir só con-

184 François Jullien Figuras da Imanência 185


segue contrafazer. .. ). Quem pretende refazer o mundo "impondo sua abstrações, não vendo nelas mais do que "poeira e lixo", "papel de
idéia" a ele vê então "se esgotar a tendência sobre a qual podia se embrulho e refugo", "ocultando" o assim verdadeiro. Não, a facili-
apoiar" e "os embaraços começam,,(r). Por espetacular que seja, sua dade própria à imanência não nos remete à "vacuidade" búdica. Pois
ação é logo contrariada; uma tal intervenção com certeza se imporia os budistas não compreenderam que a facilidade com que se desdo-
à atenção de todos e seria marcante, não deixará de suscitar reações bra o grande processo do mundo, que opera sponte sua, diz respeito,
em cadeia, de se comprometer em complicações sem fim e, finalmen- ao contrário, ao caráter absolutamente real, porque integral e sem mis-
te, de submergir: os mais belos projetos revolucionários, como as gran- tura, das duas capacidades complementares que ele enCarna. E, do
des façanhas épicas, também já aprendemos, estão condenados a se mesmo modo, a não-ingerência do Sábio não se confunde com a re-
anularem ... Ao contrário, se ela pode operar em profundidade e trans- núncia e a passividade; nem com o descuido e a preguiça: se ele opera
forma efetivamente, é porque a conduta do Sábio se conforma à mar- com facilidade, é porque, longe de se afastar do mundo ou agir à sua
cha das coisas e continua exposta à eficácia que tal marcha desdobra maneira, ele respeita, ao contrário, do modo mais escrupuloso, no mun-
de si mesma - silenciosa e discreta: está conectada à mesma lógica do como em si mesmo, essas virtudes processivas.
da imanência, ao mesmo tempo "simples" e "fácil", que o grande Esse único parágrafo, à testa do "Grande comentário", é suficien-
processo do real. te, assim, para nos apresentar uma interpretação global e rigorosa do
Fomos freqüentemente sensíveis a essa ambigüidade, mas sem advento da realidade. Para tratar do início, para esclarecer as origens,
avaliar talvez todo seu interesse filosófico; é a mesma palavra chinesa ele não inventa uma narrativa da gênese, e, para suas fases sucessivas,
yi que significa a mutação e, como tal, serve de título a esse livro (o não recorre a uma representação simbólica (a da Bíblia ou do Timeu 7 ):
Yi-king (jing): Clássico da mutação) ao mesmo tempo em que a faci- mais que imaginar atores, ele determina fatores constitutivos; e, mais
lidade de que aqui se fala e que é proposta como valor. Pelo menos é que procurar a verdade através de uma fabulação, ele nos dá conta de
tradicional, na China, considerar que é esse modo "fácil" com que o um dispositivo. Desse dispositivo, descreveu primeiramente sua dispo-
Clássico da mutação chega a dar conta do mistério do mundo, até seu sição de base: a polaridade do Céu e da Terra (das energias yin e yang),
fundo mais absconso, que faz a originalidade do livro, e seu mérito, a relação funcional do "alto" e do "baixo"; mostrou em seguida a inte-
com relação aos manuais que o precederam (nas dinastias anteriores: ração que daí decorre: a transformação dos trigramas, o desdobramen-
Lianshan, Guizang). Mas talvez convenha tirar mais vantagem dessa to dos fenômenos; ressaltou, finalmente, a eficácia em ação e a auto ma-
ambivalência e levar mais longe a assimilação dos sentidos que esse ticidade do funcionamento. Pois o que caracteriza um dispositivo é que
título poderia dar a subentender: não só o Yi (king) é o que nos torna ele caminha por si mesmo, está sempre pronto a funcionar. Diferente-
a "mutação" "fácil" de conhecer, mas também o princípio da muta- mente da criação que implica um sujeito que transcende sua obra, uma
ção, que é a realidade do mundo, é esposar essa facilidade (da ima- ação pessoal e transitiva, o dispositivo possui em si sua capacidade:
nência). Poder-se-ia mesmo dizer nesse sentido: o real só advém na pro- não depende de uma causalidade externa ("motor" ou "intenção"),
porção de sua facilidade de advir (quanto menos encontra obstáculo, não implica nenhum investimento subjetivo (nem sofrimento nem des-
menos ele pena). Ainda, não se deve confundir essa facilidade (sim- pesa). Eis por que a sabedoria, tal Como concebida pelos chineses, é
plicidade) que caracteriza o caminho da imanência, e se manifesta pela simplesmente reparar como ele caminha, e se conformar à sua lógica.
força de sua propensão, com seu inverso negativo: a ausência de rigor
e de exigência, a colocação entre parênteses das regras de .funciona-
mento das coisas, o deixar-ir. Pois isso seria então cair na armadilha, NOTAS
diz-nos WFZ (p. 513), que nos armaram os budistas: sabe-se muito
bem que eles, não querendo se enredar com as obrigações sociais como 1 Assim, Han Kangbo, no século I1I, contenta-se em glosar: "o caminho do
constrangimentos do real, as declararam, para não terem que se preo- Céu e da Terra, sem agir, está apto a começar; sem sofrer, está apto a concluir"; e
cupar com elas, ilusórias e factícias. Por isso conseguiram fazer delas Zhu Xi, o grande comentarisra do século XII, estimando que zhi "conhecer" equi-

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vale a zhu "reger", "dirigir"(J) interpreta então: "Qian dirige o começo dos exis- 7.
tentes e Kun os conclui". "UM YIN - UM YANG", EIS O "TAO"
2 Basta, além disso, para ser convencido de um tal perigo, ler o comentário ou O Caminho da regulação
de Wilhem para sua tradução, bem como a nota que lhe acrescenta Perrot, que ("Grande comentário", A, §4-5)
considera esses princípios chineses "muitos próximos dos princípios gregos do logos
e do eras".
3 Quer dizer, segundo seus próprios efeitos: deixando operar o mais lon-
gamente possível a lógica interna da frase de modo a subtraí-la às codificações Uma filosofia se anuncia, e se revela, desde o primeiro distinguo
estabelecidas previamente que fracassam, como se pode ver, em dar conta de sua
que opera. Ela se manifesta toda inteira nesse gesto inaugural. Primei-
coerência.
ra dobra, primeira divisão: da dobra que se esboça logo resultam duas
4 Sentido aqui de da "grande" com valor adverbial correspondendo à glo-
vertentes de onde nascerão as oposições que fazem sentido; a diva-
balidade do wu; cf. a expressão similar da sheng(k), Xiâ, A, §6: não se trata aqui
nem de "grandes começos", cf. Wilhelm, nem do "começo da grandeza", cf. gem introduzida recorta planos e níveis a partir dos quais será estru-
Philastre. turado o pensamento. É um dos méritos do platonismo, como se sabe,
ter explicitado para nosso proveito, isto é, o da filosofia ocidental, essa
5 Para uma análise do amadurecimento progressivo do pensamento de WFZ
na compreensão dessa passagem, ver o estudo de Alison H. Black, Men and Nature demarcação inicial (e, mesmo quando ela for mais criticada, não dei-
in the Philosophical Thought of Wang Fu-chih, University of Washington Press, xará de servir como ponto de referência). "É preciso, a meu juízo, co-
1989, pp. 84 ss. Mas me parece que esse estudo não interpreta suficientemente o meçar por distinguir isto", diz-nos o filósofo grego, de maneira re-
conhecimento de que aqui se trata com relação ao desenrolar do processo (sobre corrente, nos grandes momentos fundadores da obra (República, VI,
o qual insiste WFZ: "prever as inúmeras modificações", "ter experiência delas e 507b; Política, 269d; Timeu, 28a): por um lado, o ser eterno e "que
não ser assustado por elas"); de onde resulta uma certa dificuldade, no final da
análise, de dar conta precisamente desse tipo de conhecimento (aproximado final-
não nasce jamais", do outro, aquele que "nasce sempre e não existe
mente da imaginação ctiadota). jamais"; o primeiro, que só é apreendido pela intelecção e pelo racio-
cínio, é invisível, ao passo que o segundo, "que não existe jamais real-
6 Entre as "imagens primeiras" ideais e "suas cópias no mundo corporal,
que são precisamente as coisas reais" (pp. 338-339, cf. a nota de Perrot, que lem-
mente", se oferece à sensação. Aí será, então, a partida (segundo os
bra a esse respeito o mito da caverna). Ainda uma vez, o modelo criacionista oci- dois sentidos do termo: como ponto de partida, mas também como
dental, no modo demiúrgico e implicando uma ação transitiva (cf. Wilhelm: "lá, °
aquilo que "faz a partida" no real e separa internamente): o visível
a força, aqui, a matéria; lá, o criador, aqui o receptivo"), falseia radicalmente a efêmero só é aparência, oposto à verdade do eterno; é apenas um tea-
perspectiva. tro de sombras, a caverna onde, virando as costas para a luz, estão
7 Remeto, a propósito dessa oposição, a meu ensaio Procês ou création, Une sentados os prisioneiros.
introduction à la pensée des lettrés chinois. Paris, Seuil, "Des travaux", 1989, es-
pecialmente capo V, "Ni créateur ni création".
I - O VIsíVEL E O INVISíVEL

Ora, eis como uma passagem seguinte do "Grande comentário"


(primeira parte, §4: Philastre, §1152; Wilhelm, p. 332) estabelece por
seu turno esse próton diaireteon, "o que é preciso distinguir em pri-
meiro lugar", opondo também o visível e o invisível:

Erguendo os olhos, contempla-se a ordem dos fenô-


menos celestes,

188 François Jullien Figuras da Imanência 189


abaixando-os, observa-se a regularidade dos fenôme- se ergue quando a lua se deita, seres nascem enquanto outros morrem.
nos terrestres: Cada uma das fases, tanto a do visível como a do invisível, leva à outra
daí se conhece o fundamento do latente e do patente. ao mesmo tempo em que por ela é condicionada.
Basta transladar-se agora à estrutura do hexagrama para poder
Voltamos, então, a esse ponto de partida - que a evidência nos verificar essa correlação do visível e do invisível que constitui a reali-
facilitava: o céu no alto, a terra embaixo (cf. as duas primeiras figu- dade. Do mesmo modo que o real é composto ao mesmo tempo do
ras, Qian e Kun). Ora, no alto como no baixo, sobre a terra como no Céu e da Terra, do yin e do yang, dispomos sempre, no curso das
céu, fazemos a experiência de um mesmo encadeamento contínuo de manipulações, pela parte do capital constante que as duas figuras ini-
"aparição" e de "desaparição": no céu, o sol e a lua (cf. respectiva- ciais Qian e Kun fornecem juntas, de seis traços yang e de seis traços
mente os dois trigramas Li e Kan) alternadamente se mostram e se yin, seis traços contínuos e seis traços descontínuos, plenos ou parti-
escondem; na superfície da terra, constituída de montanhas e vales (cf. dos. Ora, cada figura do livro não é composta de doze, mas de seis
respectivamente os dois trigramas Gen e Dui), os seres e as plantas posições. É que, ao passo que os seis traços que aparecem em cada
alternadamente prosperam e se estiolam [e os dois trigramas restan- hexagrama constituem seu aspecto atualizado e patente, os seis tra-
tes, Zhen e Xun, o "trovão" e o "vento", "se intercalam" entre os ços restantes, que são os traços inversos, estão "escondidos" nele: não
precedentes - diz-nos nosso comentarista (p. 519) - "para gerar a estão de modo algum perdidos, mesmo que desapareçam da nossa
transformação": os seis trigramas derivados das duas figuras estabe- visão, mas constituem seus fundos'~ latentes. Os traços repousam no
lecidas no início desdobram, portanto, completamente a alternância fundo da figura e formam a reserva de que pode dispor a seqüência
implicada na polaridade inicial]. Não existe, então, de um lado, o Céu do processo: são eles que, refrescados e dispostos, suscitarão, saindo
eterno - invisível - e, do outro, a terra, lugar do sensível, e conde- de sua reserva, a transformação que há de vir. O fato de que cada
nada ao devir: essa oposição de partida, visível/invisível, atravessa o hexagrama possua através de suas seis "posições", não seis, mas doze
real inteiro, e o visível é apenas uma vã aparência a que 'conviria opor "traços" (os seis traços visíveis que o caracterizam e os seis inversos
a verdade. que permanecem "enterrados" nele), permite, portanto, compreender
Pois devemos compreender muito bem o que representam aqui, duas coisas: 1. - que os hexagramas sejam necessariamente levados
tomados nessa relação de alternância, o "visível" e o "invisível": o que a se transformar um no outro (uma vez que doze traços estão em ação
aparece (no céu) ou desabrocha (sobre a terra) constitui, dizem-nos, na figura e não apenas os seis que podem ser vistos: se o hexagrama
o que existe de "patente" (ming); o que desaparece (no céu) ou se estiola se limitasse a seus seis traços visíveis, ele se imobilizaria neles); 2. -
(sobre a terra) constitui, ao contrário, o que se torna "latente" (you)(a). que cada hexagrama oferece uma figura completa da realidade por-
Segundo esse emparelhamento, o visível e o invisível não se opõem entre que representa ao mesmo tempo sua face visível e sua face oculta. Essas
si (como em Platão) como dois tipos distintos de realidade, dois graus duas faces são as duas fases de todo o processo.
de ser (um sendo mais "real" que o outro: ele, até mesmo, é o único Avaliemos então a incidência desse encadeamento do latente e
que é verdadeiramente), mas como as duas fases de um mesmo pro- do patente na concepção do evento. O caráter marcante deste - que
cesso: são a mesma (e única) realidade apreendida em dois momentos tanto nos afeta - é levado a se dissolver, já não existe verdadeiramente
diferentes. Sendo assir;n, o visível e o invisível se revelam interdepen- ruptura no desenrolar temporal. Todo evento é apenas o devir paten-
dentes (ao passo que o Invisível platônico é, por princípio, como se te de uma maturação enterrada; e o real está em constante passagem
sabe, indiferente à sua "cópia" no sensível). Eis por que, segundo o de uma fase à outra. O texto prossegue:
comentário de WFZ que seguimos aqui (pp. 519-520), o patente é dito
"conduzir ao latente" e essa latência é "aquilo pelo qual é alimenta- Retornando àquilo que serve de início,
do" aquilo que vai se atualizar e se tornar patente. Por isso, o patente voltando àquilo que é o fim:
jamais faz ·"irrupção de fora" e o latente "não repousa sempre": o sol daí se conhece a interpretação da vida e da morte.

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o começo nunca é um puro começo, comenta WFZ (p. 520), vir toda individuação concreta, Como "existência"l, Assim se com-
porque já está lá o que lhe serve de "raiz"; do mesmo modo, o fim preende a "animação" de que trata a expressão seguinte: esse estágio
jamais é um verdadeiro fim, mas um "retorno" que servirá de "fun- mais sutil da condensação do yin, entrando em relação com a energia
damento". Eis por que o processo pode continuamente "prover o co- do yang, torna-se "alerta" e "leve" (ling: "espiritual")(b) ao mesmo
meço" "sem se esgotar" e por que todo "retorno" é o prelúdio de uma tempo em que essa energia, "agitando" a condensação do yin, "colo-
nova progressão. Ainda aí a estrutura do hexagrama é eloqüente: vê- ca-a em movimento"(c); desse processo, ao qual sempre está presa a
se aí que o traço que aparece na base da figura "vem" sempre de al- realidade, decorre uma "modificação" contínua que permite a reno-
guma parte, isto é, procede por transformação da figura anterior, do vação da vida 2 . Com efeito, não se deve falar aqui propriamente de
mesmo modo que aquele que desaparece no alto da figura "vai" sem- "alma", mas de "animação" (do mesmo modo que o yin não signifi-
pre também para alguma parte, isto é, é levado por transformação à ca a matéria, mas a materialização). "Alma "/"animação": dois termos
figura seguinte (o que se verificou anteriormente a propósito dos hexa- que, certamente, derivam um do outro, mas não traem menos, por sua
gramas do início e do fim - ou antes, do fim e do começo: Bo •• e defasagem, uma diferença de conjunto das perspectivas (diferença que
Fu •• , nOs 23 e 24, e Guai - - e Gou __ , nOs 43 e 44; cf. WFZ, p. 567). reconduz, a propósito de nossa compreensão do curso do mundo, a
Existe, portanto, uma seqüência contínua de "idas" e "vindas" e jamais distinção que víamos se esboçar no começo): pois não existe alma
"nascimento" e "desaparição". Ora, essa diferença é essencial para a possível senão numa visão do mundo em que o visível e o invisível se
compreensão de nosso destino: todo nascimento "decorre sempre da opõem como dois níveis do real e em que o que "nasce" se vê confron-
transformação de duas energias em ação, yin e yang, que, como tal, tado ao "eterno" (e a alma, então, provindo do invisível, é considera-
são absolutamente suficientes"; toda morte é apenas uma reabsorção da imortal). Mas, numa visão em que o visível e o invisível, comple-
"na latência, continuamente harmoniosa", "à espera da ocasião de um mentares um do outro, são as duas fases do mesmo curso, em que a
novo início". Assim, "o nascimento não é criação, nem a morte ani- transformação de um no outro se opera constantemente pela "ida" e
qui lamento"; e só a transição é efetiva. "vinda", já não existe "alma" (num sujeito humano), porquanto não
Desdobremos ainda a perspectiva: essa alternância do latente e existe verdadeira "criação" (que remete a um autor divino de quem a
do patente é capaz de explicar o curso do mundo para além mesmo alma individual seria parte ou reflexo); mas, na junção do visível e do
dessa parede ilusória erigida, numa e noutra ponta, pelo nascimento invisível, na transição constante de um a outro, quando a condensa-
e pela morte dos existentes. Dando-se conta disso sob o ângulo mais ção (materializante) é suficientemente decantada, depurada (sentido
geral, ela penetra ao mesmo tempo em seu princípio mais íntimo: es- de jing), de modo a ser atravessada pela ativação (invisível), se dá uma
clarece de onde vem a vida. Mas a fórmula é aqui das mais delicadas constante "animação". "Alma" ou "animação": verifica-se novamente
e exige que comecemos por traduzi-la, seguindo de perto as indicações a separação notada anteriormente a propósito do conhecimento, con-
do comentarista (pp. 520-521): forme o primado é atribuído à categoria do sujeito ou do processo.
A partir dessa outra compreensão da relação do visível e do in-
Quintessência e energia dão lugar aos existentes, visível, somos levados a mudar completamente o quadro de representa-
a animação, em seu curso, dá lugar à modificação: ção. Nem "alma" nem "Deus" - pois os dois caminham paralelamen-
daí se conhece a disposição dos espíritos que se des- te: basta supor a alma para propor Deus. Por isso as concepções reli-
dobram ou se retiram. giosas do invisível que a China antiga conheceu foram progressivamen-
te transformadas à medida que tomava forma, e se impunha, essa ló-
A "quintessência", dizem-nos, designa "o começo da condensa- gica da alternância: as duas palavras que designam tradicionalmente
ção do yin", quando ela é mais sutil; a "energia" remete à aptidão do o espírito dos mortos e as potências do além (gui e shen(e)) se vêem
yang em "colocar em movimento". Ora, é essa relação de uma con- reinterpretadas aqui a partir de dois termos homônimos que signifi-
densação 'que começa e de uma energia que a movimenta que faz ad- cam um o "desdobramento" (shen), o outro o "recolhimento" (gui)(f),

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o desdobramento designa o movimento de progressão do invisível que cias". Ora, todos os elementos dessa definição se revelam aqui pertinen-
chega a uma atualização sensível, o recolhimento designa em sentido tes: primeiramente, a idéia de processo, que se desenrola no tempo;
inverso o movimento de reabsorção da individuação visível na indi- em seguida, a idéia de equilíbrio por compensação, que permite que o
ferenciação invisível. Todo o real é feito apenas dessas passagens con- funcionamento conserve seu regime e se mantenha constante; finalmen-
tínuas que operam num sentido e no noutro, levando sem cessar de te, a idéia de modificação, que torna possível a adaptação à diferença
um ao outro e se compensando mutuamente. dos momentos. Entretanto, talvez se devesse ser reticente em fazer esse
Por isso as três frases que acabamos de ler dizem a mesma coisa termo servir num sentido filosófico (e, de fato, a língua filosófica o
(a única real, segundo a óptica chinesa: a transformação por alternân- ignora), argumentando com o fato de que o "funcionamento" de que
cia), mas sob três ângulos diferentes: do ponto de vista da realidade ele trata é apenas aquele de um "mecanismo" ou de um "organismo"
do mundo (o "Céu" e a "Terra"), a oposição não é aquela, exclusiva num sentido técnico, utilitário, em ruptura, por conseguinte, com as
e teórica, do ser e do não-ser (ser ou não ser, segundo o dilema), mas categorias do sujeito ou da consciência, e restrito demais, em seu uso,
aquela, cuja relação é funcional, do latente e do patente; também do para que valha a pena conceptualizá-lo. Mas, precisamente, vimos de
ponto de vista do destino individual, "vida" e "morte", a oposição não modo exaustivo, nas páginas anteriores, a propósito da questão tan-
é aquela, radical e trágica, de um começo absoluto e de um fim defi- to do conhecimento como do estatuto da "alma", o quanto a óptica
nitivo, mas a passagem, por "concentração", da indiferenciação invi- que o Clássico da mutação desenvolve não passa por essa clivagem,
sível à sua manifestação concreta, depois sua "dissolução" e seu re- para nós fundadora, do subjetivo e do objetivo, do curso do mundo e
torno ao invisível (tornando possíveis novas "concentrações" que hão da vida interior -leis "físicas" e leis "morais". É próprio do Clássi-
de vir). Do ponto de vista do funcionamento em ação, finalmente (o co da mutação, e sua força, ignorar essa ruptura e investir na conti-
"espírito dos vivos"/o "espírito dos mortos": shen/gui), a oposição não nuidade do interior e do exterior, pensar toda realidade como um flu-
é aquela, mítica e sublime, da criação, nascida de um bom querer, e xo (quer se trate do curso da consciência como do curso do mundo) e
de sua aniquilação, sempre possível, mas a de uma "progressão" e de querer balizar uma lógica comum a todo "funcionamento"; o próprio
. um "recolhimento" (que se efetuam sponte sua mantendo a "constân- da filosofia clássica, no Ocidente, e sua força, diríamos, é, ao contrá-
cia" e sem trair a "intenção"; cf. WFZ, p. 521). Quer dizer, no fundo, rio, ter escavado o mais profundamente a diferença em questão e dei-
que a oposição do visível e do invisível, no pensamento chinês, nunca xado agir plenamente a oposição possível: descobrindo ao mesmo tem-
é isolada, não é senão a outra face da complementaridade de ambos; po a infinidade da consciência, a transcendência e a liberdade.
e, reportando-se ao devir, e não ao ser, ela nunca chega a uma alter- Imagino que concordarão de bom grado comigo aqui - ao mes-
nativa, mas permite a substituição (por alternância). Seu papel é o de mo tempo como condição de partida e linha de trabalho: não se pode
assegurar a recondução. E por isso nos dizem que quem estuda o Clás- entrar no mesmo nível em outro pensamento com "nossas" palavras
sico da mutação não poderia ser "inquieto": ele confia na regulação. (sobretudo quando esse pensamento, como o chinês, se desenvolveu
sem manter relações históricas com nossa tradição cultural). Por isso
somos levados aqui a tergiversar com nossa língua, a fazer desviar o
11 - CONFIANÇA NA REGULAÇÃO idioma. Não dispomos de outras palavras (os "neologismos" em si
mesmos nada têm de novo; nascem acuados pelo uso e seu lugar, bem
Para começar;detenhamo-nos nesse termO a que já recorri nos COJIlO sua virtualidade semântica, estão marcados por antecipação).

capítulos anteriores e que gostaria de justificar aqui, de modo mais Única saída, portanto, ou única esquiva: explorar os confins dessa lín-
geral, para que possa servir de noção. A regulação, diz-nos o dicioná- gua, apoiar-se não em suas linhas de força, mas em suas linhas de
rio, designa "o processo pelo qual um mecanismo ou um organismo tangência e fazer trabalhar no centro um certo sentido habitualmente
se mantém num certo equilíbrio, conserva um regime determinado ou mais marginal ou particular. Explorando nossa língua até seu limite,
modifica seu funcionamento de maneira a se adaptar às circunstân- fazendo o sentido servir obliquamente, podemos esperar reduzir pro-

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gressivamente o desvio de prumo inicial; e, de fato, o transtorno que baldando também a contradição: "existe evolução de um lado ou de
experimentamos ao ver dotar de um valor filosófico, e geral, o termo outro" (num sentido ou em outro), mas sem que ela "se deixe levar"
"regulação" que iremos procurar em seu emprego técnico, às margens (de um ou outro lado) pela "corrente". Cabe, com efeito, à regulação
da língua usual, me parece representar muito exatamente a acomoda- conciliar essas duas exigências: por um lado, a evolução não poderia
ção necessária para entrar na óptica do pensamento chinês. Acredito ser uniforme ou estereotipada (pois ela destruiria então a interação di-
que o final do mesmo parágrafo do "Grande comentário" nos levará nâmica da qual procede, e já não seria mais adaptada); mas, por ou-
a adotá-lo progressivamente. trO lado, essa inclinação de uma parte ou de outra não deve jamais levar
Na medida em que existe "coincidência perfeita com a realida- à "parcialidade", de onde decorreria a desordem, mas chama a com-
de" (em que se é "semelhante ao Céu e à Terra"), diz-nos, com efeito, pensação. Com efeito, quer se mantenha num centro único e fixo, ou
a frase seguinte desse parágrafo, não existe "oposição que venha se quer se precipite definitivamente para um lado ou outro, levaria ine-
manifestarem sentido inverso" (cf. para uma tradução diferente, mas vitavelmente ao mesmo resultado: o de deixar o funcionamento se
não justificada, Philastre, §1153; cf. também Wilhelm, p. 334). WFZ travar, o processo se interromper. O que podemos verificar, diz-nos
compreende, por seu turno Ip. 521), que é o Céu que não intervém em WFZ, no modo de transformação dos hexagramas que, se encarnam
sentido inverso: pois "aquilo pelo qual o Céu e a Terra regem todos as situações mais diferentes, não restabelecem menos constantemente
os existentes" é "a lógica interna ao processo em curso, e isso é tudo(g)". o equilíbrio ao proceder por "inversão" sistemática - traço a traço,
Eis-nos, portanto, o mais distante possível de uma concepção trans- ou por reviravolta Ih).
cendente do "Céu", a racionalização da antiga representação religio- Já que o processo que é auto-regulado não se bloqueia jamais
sa foi levada até o fim: o "Céu" está despojado, ao término da refle- numa posição qualquer (nem no centro nem nos extremos); porque,
xão neoconfuciana, de toda personalidade (nem arbitrário divino nem evoluindo de um pólo a outro, ele contém todos os estágios transitó-
Providência), ele se confunde, então, com um princípio (Li), o da re- rios de sua evolução numa mesma lógica de conjunto, e os religa en-
gulação. E eis por que, na medida em que "está constantemente de tre si, não existe posição ou momento dessa evolução que deva ser re-
acordo com a lógica interna ao desenrolar em curso (tal como lhe jeitado. Percebe-se sem esforço qual é a implicação moral dessa con-
convém estar em cada momento e em cada posição)", "de modo a cepção e sua tradução no plano humano: não existe situação para o
colocar à luz o que será fonte de sucesso ou fracasso" , o Clássico da homem que, em si mesma, seja negativa, mas todas reclamam nosso
mutação não poderia ser contradito pelo Céu, nem contraposto a ele. assentimento, todas são justificadas. O texto canônico prossegue, com
Se o "Céu" tende a se confundir com a Regulação, o Clássico é pre- efeito: "Encontrar sua alegria no Céu (a Regulação) e compreender o
conizado, por seu turno, como o dispositivo que permite apreendê-la destino: eis por que não se é inquieto". O caminho está aberto, assim,
sem erro. para o otimismo estóico. WFZ comenta: '''ocupar, no momento que
A regulação significa, em si mesma, que o processo em curso se convier, a posição que nos chega, eis o caminho". Pois desde que se
desenrola sempre de modo fiável, e sem jamais se desviar. A expres- dá conta de que o que nos advém, e "se expande" sobre nós como
são seguinte, no texto canônico, o confirma: na medida em que "o saber "destino", não resulta de uma escolha "intencional", hostil ou favo-
abraça a totalidade dos existentes" e em que" o caminho seguido é vir rável, mas procede de um funcionamento regulador, "o que é lógico
sem cessar em auxílio do mundo" (pois se trata aí de um saber não no nível do processo do mundo está correto no nível de nosso próprio
desinteressado, desengajado, mas diretamente eficaz: não de-uma des- destino". Toda infelicidade pessoal se dissolve na consciência de uma
crição abstrata, mas do saber da regulação), "não existe separação ou ordem mais geral, imanente, que deve passar por fases adversas para
desvio" . Mas pensar assim a regulação como um constante equilíbrio poder continuar a se manter: compreendendo a lógica da regulação,
não deve nos levar a concebê-la, por isso mesmo, como um juste milieu o Sábio está sereno.
imóvel. 'Como afirma a fórmula que segue, administrando da melhor Essa confiança na regulação pode ser lida na figura do hexagrama:
maneira"a tensão (aquela mesma que anima e conduz a regulação), mas da base ao cume da figura, as seis posições diferem, em classe e valor,

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diz-nos WFZ, mas nenhuma delas é má; e a transformação em ação e portanto em função apenas da lógica da interação. Por isso, do pon-
as percorre todas, sem escolher sempre a mais "fácil" nem privilegiar to de vista do homem, esse "amor" a que nos convida a regulação deve
qualquer uma delas. Ela pode ser lida também no plano ideológico: ser compreendido, o mais longe possível de toda preocupação egoísta,
não existe posição, na escala social, na qual não nos devêssemos aco- como uma participação assídua na boa marcha do mundo. Mas não
modar: pois "não existe lugar ocupado", explica-nos WFZ, "em que pode em nenhum caso ser confundido com a "sublimidade" (idéia que
a lógica da regulação não seja necessariamente levada a se cumprir até não desagrada a Wilhelm, p. 335) dessa abertura total ao outro, e efusão
o fim". A regulação, poder-se-ia dizer, é o contrário da revolução. O completa de si, como absoluto ao mesmo tempo do sentir e do Bem,
ideal que ela enaltece é a harmonia do consenso; sua moral implícita cujo ideal, Como se sabe, a tradição ocidental cultivou: o Amor (com
é o conformismo. um A maiúsculo) que culmina no amor de Deus, cuja infinidade ele par-
Mas voltemos ao efeito de paralelismo que estrutura a passagem. tilha, e se revela como a realização do mundo, o sentido da vida. So-
Cada uma das três fórmulas que acabamos de ler conclui com a posi- mos novamente conduzidos a voltar à diferença das perspectivas esbo-
tividade da regulação por eliminação de um aspecto negativo: "eis por çada anteriormente: um amor como esse (tal como concebido pelo "Oci-
que não existe oposição (que venha a se manifestar) em sentido inver- dente") só é passível de ser considerado em sua aspiração transcenden-
so"; "eis por que não existe desvio (ou falta)"; "eis por que não exis- te, em ruptura com o curso objetivo do mundo e por diferença do seu
te inquietude". A quarta fórmula, em compensação, conclui com um processo regulado; só é concebível a partir de uma "alma" que se co-
aspecto diretamente positivo: "Permanecer estavelmente (pacificamen- loca como sujeito. E a "monopolização" que ele implica, imaginado
te) lá onde se está e aprofundar em si seu sentido da solidariedade: eis como eterno, contradiz a economia de uma variação por alternância
por que se pode amá-la". Mas de que "amor" pode se tratar aqui como (puramente funcional) cujo princípio é o equilíbrio.
conseqüência da regulação? Pois essa palavra amor, se à primeira vis-
ta parece a mais simples, a menos construída (portanto, a que se co-
munica mais facilmente de uma cultura a outra), pode se prestar en- III - DE ONDE PROVÉM A REALIDADE?
tretanto a um contra-senso quando não se a concebe segundo a ópti-
ca geral dessa reflexão. A declaração do tradutor, além disso, é elo- Uma única expressão, encabeçando o parágrafo seguinte do
qüente quanto a esse ponto: o texto só é compreendido, confia-nos in- "Grande comentário", é suficiente para resumir o pensamento do
genuamente Philastre em nota, "com a condição de ser estendido e Clássico da mutação (e de uma grande parte do pensamento chinês,
desnaturado" ... De fato, o conteúdo desse "amor" (aiO)), explica-nos segundo me parece). Isso ao identificar regulação e realidade. A fór-
por sua vez WFZ, apoiando-se no desenvolvimento que precede, não mula é: "um yin - um yang ("um yin mais um yang" ou então "ou
é outro senão o de saber permanecer em seu lugar: "Pois aquilo que, um yin ou um yang", "ora um yin ora um yang"), eis o que se cha-
no homem, faz obstáculo ao amor e aborrece os outros é apenas o fato ma de caminho". Esse caminho (o Tao) é o "caminho do Céu", diz-
de querer sair de sua posição, para saciar ambições e desejos, na bus- nos WFZ (p. 524), o grande processo do real.
ca apenas de seu interesse e sem consideração para com o que é favo- Como uma fórmula tão simples, tão lacônica, pode bastar para
rável ou prejudicial aos outros". E "se o Clássico da mutação atribui dizer a realidade? De fato, o que aprendemos com ela, em primeiro
tanta importância à posição", prossegue ele, "é para nos mostrar que lugar, é que a polaridade do yin e do yang coincide com a totalidade
não existe lugar em que não se possa ficar em paz sem esperar favores d9 real (cf. o que dissemos no capítulo anterior sobre o quadro inicial
nem prejudicar ninguém", e nisso consiste nosso "sentido da solida- do Céu e da Terra) e que nada existe fora dela. A fórmula é, então, a
riedade" (o "sentido do humano": o ren confuciano). mais geral, não apresenta nenhuma exceção, diz-nos WFZ (pp. 524-
No estágio mais geral, "o amor universal do Céu e da Terra para 525), e vale de modo permanente: em qualquer escala que seja, dos
todos os existentes" consiste, diz-nos WFZ, em que eles expandam sua mais vastos fenômenos, aqueles que os trigramas evocavam, até as
capacidade ·de geração sem fim, "segundo ao que se ligam o yin e o yang", manifestações de existência mais ínfimas, as do "broto" ou do "inse-

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to"; em qualquer estágio que seja, tanto o da atualização particular nância de movimento/repouso. Com efeito, a propensão própria ao yang,
como o da indiferenciação original, como fundos latentes, em "gesta- tal como está implicada em sua natureza ("ligeira", "límpida"; cf. sua
ção", de que provém toda atualização e para a qual ela retorna, '~tudo virtude de "ir sempre em frente"), é "ter sempre a iniciativa do movi-
é preenchido pela energia do yin e do yang", "sem que subsista o mÍ- mento": ela se exerce, por conseguinte, sobre o yin e este se põe tam-
nimo interstício". Ao mesmo tempo, existe "um" yin "um" yang. Cada bém em movimento; em sentido inverso, a propensão própria ao yin,
uma dessas duas energias universais, cujas combinações por interação considerada sua natureza ("pesada", "opaca"; cf. sua virtude de "se
fazem advir todo o real, possui sua capacidade própria: "do ponto de conformar"), é "não se colocar em movimento se não receber incita-
vista tanto de sua natureza como de seu efeito", "não se poderia assi- ção" e, portanto, "continuar normalmente em repouso": por isso, "quan-
milar forçosamente uma à outra". A alteridade permanece, e é essen- do o yang se prende ao yin, o yang também se imobiliza". "No repou-
cial, porque dela depende a interação. so, é, portanto, a natureza do yin que se manifesta, mas isso não signi-
Para pensar a origem do real, não se pôde deixar de perguntar, fica que o yang não esteja presente": "em movimento, é a função do
na China como em qualquer outro lugar, sobre o ponto de partida do yang que se revela, mas isso não significa que o yin não esteja implica-
movimento: essa relação do movimento e do repouso está implicada, do". A conclusão que se deve tirar é dupla: 1. - o yin e o yang jamais
diz-nos WFZ, na relação do yin e do yang, mas ainda é preciso ver como. estão separados, seja no estágio do repouso seja no do movimento (tudo
Pois nosso modo de falar não deveria levar a nenhuma indução errô- permanecendo sempre diferente entre eles): eles são, portanto, indis-
nea. Quando se diz que "o movimento pertence ao yang" e que "o re- sociáveis, sua interação é permanente; 2. - temos que propor de iní-
pouso pertence ao yin", queremos dizer que "nos situamos do ponto cio apenas a relação do yin e do yang, pois ela basta para explicar o
de vista daquilo que favorece a natureza respectiva deles assim como real num ou noutro de seus estados: ao mesmo tempo seu dinamismo
daquilo que seu funcionamento revela". Isso não significa que "fora do (pelo impulso do yang) e em seu estatismo (pela inércia do yin).
movimento não existe realidade que seja yang" ou que "fora do repouso Atribuir, assim, a prioridade ao yin/yang leva, portanto, a pen-
não existe realidade que seja yin", e que é "a partir da alternância mo- sar num deslocamento de conjunto de nossas representações: isso nos
vimento/repouso que se começa a ter yin e yang" . Não, o movimento faz passar de uma interpretação causal, que supõe um motor, a uma
e o repouso, longe de gerarem a realidade do yin/yang, decorrem deles: lógica da tendência, que repousa apenas na imanência. E eis por que,
mais precisamente, eles representam "o estágio inicial da interação do na formulação canônica, essa relação yin/yang basta em si mesma para
yin e do yang(il". Por isso, todo movimento é o movimento do yin e do definir o "caminho", o processo do real.
yang juntos, e a mesma coisa acontece com o repouso. Falta ainda compreender o que significa, no início da fórmula,
Simples nuança na expressão, poder-se-ia dizer, mas sua incidên- esse "um-um" ("um yin - um yang"). Nada permite fazer a distin-
cia é capital: sob essa aparente argúcia se dissimula um desafio filosófico ção, na própria expressão, entre um sentido distributivo ou coletivo:
maior. Se se permite pensar que é a relação movimento/repouso que está um ou outro, um e outro. Ora, justamente nossa conclusão anterior
na partida do real e que ele condiciona a aparição do yin e do yang (o nos leva a pensar que se pode ler essa expressão (é mesmo preciso lê-
yin procedendo então do repouso, o yang do movimento), restará ain- la) em qualquer um dos dois sentidos: ao mesmo tempo yin e yang
da descobrir de onde provém essa colocação em movimento inicial de (porque o yin e o yang são indissociáveis) e ora yin ora yang (porque
que tudo decorre em s.eguida tão facilmente: argumento tanto mais forte o real é levado ou ao movimento ou ao repouso, e um sucede sem
se lido de um ponto de vista comparatista, tanto se sabe quanto cus- .cessar ao outro). A locução significa, portanto, ao mesmo tempo a
tou, na tradição filosófica ocidental, essa hipótese necessária do "pi- interdependência e a alternância. Ora, do fato de que esses dois sen-
parote" inicial, do Primeiro motor. .. Ora, precisamente, o mérito, aqui, tidos não se contradizem, mas, ao contrário, se ligam no fundo da
da formulação canônica que se funda na relação do yin e do yang é nos mesma expressão, nasce o efeito de profundidade desta (sua capaci-
dispensar: de semelhante hipótese: o yin e o yang são "sem começo", dade de ir precisamente "ao fundo" das coisas): sua ambivalência, ao
diz-nos WFZ, e é por eles - e apenas por eles - que se explica a alter- se tornar legítima, apreende o real para aquém das oposições exclu-

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sivas pelas quais ele se deixa esquematicamente figurar (as dicotomias Através da idéia da regulação, são o real e o Bem que, longe de serem
que o congelam, as antíteses que o mascaram ... ); ela nos permite re- opostos dramaticamente um ao outro, se descobrem in dissociados.
montar a esse estágio, inicial mas sempre atuante, em que as oposi- Decerto, o real e o Bem também se confundem em Deus _ mas
ções se incluem e, particularmente, em que coexistência e sucessão se num modo transcendente; ao passo que se, na regulação, o real e o Bem
comunicam: por seu "jogo" próprio, ela nos faz aceder a esse jogo coinCidem, é num modo imanente. Poder-se-ia desenvolver, a partir
que é interno ao processo do real (como quando se diz: "abrir o daí, o paralelo. Pois como Deus, a Regulação se presta ao maior dos
jogo"), de que decorre sua constante "facilidade" (lembremo-nos des- elogios (a um elogio infinito). Eterna, universal: o Tao, o "caminho"
se outro sentido de yi, "fácil", no título do livro), donde se explicam da regulação, dura desde sempre, lembra-nos WFZ, ele "comanda ao
também sua auto-suficiência e o princípio de sua espontaneidade. Ela mesmo tempo o Céu e o homem", contém ao mesmo tempo o homem
nos confia, assim, melhor que qualquer definição, o que é a condição e todos os seres; "não é visto agindo", mas nenhum fazer, por mais
de possibilidade da imanência. "hábil" que seja, "conseguiria superá-lo" ... Outras tantas expressões,
Pois de fato se tem um e outro ao mesmo tempo. A interdepen- devidas a WFZ, que dizem novamente aquilo que é a visão chinesa mais
dência (o sentido dado por Philastre, § 1155: "Uma negatividade e uma comum atravessam a diversidade das escolas. "Um yin - um yang":
positividade são o que se chama de caminho racional"): "não existe essa simples fórmula contém ao mesmo tempo "a totalidade daquilo
yin sem yang", diz-nos WFZ, "nem yang sem yin", "eles se apóiam que constitui a mutação" (ou: o Clássico da mutação) e "a amplitude
um sobre o outro e não podem se abandonar"; assim, "a opacidade de seu funcionamento". O Tao da regulação se impôs mais, por sua
(do yin) se beneficia da limpidez (do yang) para se animar" (ela se torna evidência, ao pensamento chinês do que, em nossa filosofia clássica,
alerta e leve: ling) e, no sentido inverso, "a limpidez (do yang) se be- a idéia de Deus. Ela ocupa efetivamente seu lugar, ela é o seu inverso.
neficia da opacidade (do yin) para se determinar" (o yang é estabili-
zado por ela: ding)lkl. A alternância (o sentido dado por Wilhelm, p.
335: "ora o obscuro e ora o luminoso"): yin e yang estão alternada- IV - O BEM DEVE SER CONCEBIDO NO PROLONGAMENTO DA
mente escondidos e manifestos, não cessam de ir e vir sucessivamen- REGULAÇÃO NATURAL
te. Ora, o que foi dito anteriormente sobre a relação entre o visível e
o invisível nos permite compreender como essas duas exigências se con- É à expressão seguinte, no texto canônico, que convém ligar ex-
ciliam: o yin e o yang podem estar entre si numa relação "desigual" plicitamente o real e o bem. Impossível ler a fórmula de outro modo:
(um mais, o outro menos), eles não coexistem menos completamente "O que continua aquilo [o caminho do yin e do yang], eis o bem 3." O
um com o outro (mas um é patente, o outro é latente). E é dessa du- sentido é, parece-me, o mais claro possível: o bem deve ser concebido
pla exigência que decorre a compensação que restabelece o equilíbrio: no prolongamento da regulação natural.
esse um/um, ao conjugar um e outro sentido, exprime, então, a cons- Da separação do real e do bem concebemos o "ideal"\ do mes-
tância da regulação; segundo WFZ, ele significa que a relação de "se- mo modo, para pensar uma ação que transcende o curso da nature-
paração-combinação" (donde decorre o advento do real) é sempre za, propusemos Deus (e "Deus", o "ideal" abrem para uma mesma
"controlada,,(1), perIY!-anece necessariamente" harmoniosa" . exterioridade). Ora, é próprio dessa fórmula canônica, que prolonga
A harmonia: eis, portanto, que essa relação regulada do yin e do a anterior, suprimir toda irrupção possível de um Exterior - que o
yang de que decorre tódo o advento do real - e graças ao qual ele hiato permitiria, de desdobrar um plano a partir do outro, asseguran-
tem condições de continuar a advir - nos oferece por si mesma, atra- do firmemente a transição: fechar nossa reflexão nesse encaixe do real
vés do desenrolar dos processos naturais, aquilo que é para nós o ideal. e do bem, juntar, numa mesma articulação, a natureza e a moral. De
A moral não nos virá, portanto, de um comando externo, que trans- fato, essa articulação é dupla. Ela pode ser lida num plano histórico
cende a ordem das coisas, ou de uma aspiração interna, que transbor- ao mesmo tempo que teórico. A primeira frase, que trata do yin e do
da a limitação destas, mas emana simplesmente do desdobrar delas. °
yang, é eco da reflexão cosmológica da China antiga; a segunda,

202 François Jullien Figuras da Imanência 203


que trata do "bem" (e, em seguida, da "natureza humana "), situa-se entre a ação humana, por um lado, e o funcionamento natural, do
diretamente na linha do ensinamento dos Mestres de sabedoria, Con- outro: um e outro são concebidos como um curso, em processo (cur-
fúcio depois Mêncio (ora, nem nas Conversações de Confúcio, nem so do Céu/curso da conduta: tianxing, renxing 1nl ), chegam ambos a
no Mencius, nem numa obra proveniente da mesma linha de pensa- uma "transformação" geradora (de vida, de moralidade: hua-yu 1ol ).
mento, como o Zhongyong, se trata do yin e do yang). Ao se ligar Entre o processo regulado da natureza e a conduta moral do homem,
diretamente à anterior, essa segunda fórmula faz, portanto, conver- a analogia se presta mesmo, como nesse comentário, a uma leitura bem
gir em si duas tradições de pensamento que partem de horizontes di- de perto: do mesmo modo que o processo do yin e do yang não cessa
ferentes; ela efetua, assim, a sutura entre a especulação sobre o mun- de operar por "separações" e "combinações"(p) de modo "controla-
do (sua origem, seu "funcionamento") e a reflexão sobre o homem do", para fazer advir a realidade, a moralidade humana procede tam-
(sua conduta, suas aspirações). bém por "separações" (que são "lógicas", porque coincidem com as
Conhecemos uma virada semelhante de reflexão na filosofia gre- diferenças hierárquicas que são fundadas, cf. os "ritos") ao mesmo
ga: por um lado, e para começar, os que especularam sobre a origem tempo em que por "reuniões" (cf. as cinco relações de base do confu-
do mundo e seus princípios constitutivos - os teóricos da natureza, cionismo: pai/filho, suserano/vassalo, esposo/esposa etc.). E, também,
os physi%goi; depois, a reação socrática que reconduz a reflexão do são essas mesmas capacidades que estão no nível do processo de ge-
homem ao "Conhece-te a ti mesmo" e à exigência interna. Mas, jus- ração do real e no nível humano: a capacidade yang, que é o conheci-
tamente, para operar em seguida a junção entre essas duas orientações, mento processivo, e a capacidade yin, que é a faculdade de poder fa-
aquela que pensa a natureza do mundo e aquela que pensa o bem- zer suceder concretamente (completamente). Donde, também, a tese
o que começa com Platão - foi preciso recorrer à mediação da meta- célebre de Mêncio segundo a qual "o homem nada tem em si que não
física (cujo "custo" de construção é imenso, como se sabe, até mesmo seja bom" nada possuir de insólito (ela nem seria mesmo uma tese).
máximo, desde o início: foi preciso nada menos que um corte separador Ela significa apenas, diz-nos WFZ, uma relação de "continuação": que
entre a realidade inteligível e a aparência sensível, e a teoria platônica o homem é chamado a continuar, por sua própria natureza, aquilo que
das Idéias: a Idéia do Bem domina e esclarece o eterno invisível como se revela a ele como a grande lógica da natureza.
o solo nosso mundo sensível, República VI 508c). A sutura entre o Eis-nos, portanto, levados, de modo conseqüente, a esse segun-
pensamento sobre o real e a reflexão moral não pôde, portanto, ser do termo: a "natureza humana", concebida por simples projeção a
feita de modo imediato, como nessa frase: foi necessária toda a mon- partir do "bem" (a noção de "natureza humana", xing 1q ), é aquela que
tagem de nossa ontologia. Mêncio desenvolve para explicitar o ensinamento moral de Confúcio).
Vê-se, portanto, o que essa formulação canônica contém impli- O texto canônico prossegue, assim, com uma fórmula paraiela·à an-
citamente (ou, ao contrário: o que ela dispensa de pensar): "aquilo que terior: "o que faz advir concretamente aquilo [o caminho da regula-
continua isso (a regulação natural), eis o bem". Ela não tem em si ção: mesma construção que a anterior] é a natureza humana". O que
mesma nenhum problema em nos situar no ponto preciso em que "se significa, segundo WFZ (p. 528), que o caminho da regulação do yin
juntam e se revezam", como diz WFZ (p. 526), "o Céu e o homem". e do yang está "concentrado", ou "condensado"(r), em cada ser hu-
Dizer que o bem é o prolongamento, no nível humano, do processo mano particular - essa capacidade reguladora do grande processo do
regulador de que decorre a realidade, significa que a marcha do mun- real que se encarna gradativamente segundo suas individuações suces-
do, a geração sem fim- das existências, fornecem por si mesmos uma sivas (à medida que os homens nascem), constituindo sempre no ho-
normatividade, a da regulação, que é, para o homem, absolutamente mem sua "natureza" própria. Cada um está, portanto, prov·ido da
suficiente - e da qual ele nem conseguiria sair; o que supõe uma ana- mesma natureza, e ela se mantém como princípio de nossa existência
logia de base, sobre a qual a reflexão chinesa se funda constantemen- ao longo do curso de nossa vida: mesmo no caso do Sábio que a des-
te (e primeiro em suas construções paralelas) sem jamais, entretanto, dobra o mais completamente em si, ela "não cresce de fora" (isto é,
esclarecê-la totalmente (sem dúvida porque lhe parece ser evidente) ela procede sempre apenas desse único investimento inicial) e, mesmo

204 François Jullien Figuras da Imanência 205


no pior dos criminosos, "ela ainda subsiste". Essa natureza em nós é, ral são homogêneos, mas o primeiro reflete a segunda num plano par-
então, aquilo que nos faz "nos comunicarmos" diretamente - e "até ticular; e se, por sua natureza, o homem "se comunica" diretamente
°
o fim" - com o Caminho da regulação, Tao, como fundamento do com o Céu, ele não está situado de cara em seu nível, ele se reveza çom
real. De fato, o "Caminho" da regulação do yin e do yang é o que existe ele. Na ausência de representações de tipo religioso que separam por
de mais "amplo", ao passo que nossa natureza é "reduzida", mas ela princípio as diferentes ordens constitutivas da criação, uma tal distin-
não "veicula" menoS em si toda a amplidão do Caminho "sem nada ção de planos deve ser estabelecida minuciosamente: no nível do Céu,
dele omitir"; do mesmo modo, se o Caminho está "oculto" ao passo diz-nos WFZ, a regulação se identifica ao "princípio interno" deste e
que nossa natureza é "manifesta", "aquilo pelo qual nossa natureza o Céu não é, portanto, "constrangido" pelo caráter apropriado das
manifesta pode ser assim, finalmente, está oculto". Assim, "fora do "separações/combinações" graças às quais ele faz advir o real (eu com-
Caminho (da regulação) não existe natureza humana" e essa nature- preendo: quanto a ele, essa adequação não pesa como uma necessida-
za em nós é o "conteúdo do Caminho". de); quanto aos outros seres diferentes do homem, eles "se beneficiam
O bem, dissemos desde o início, é aquilo que "continua" no ní- da grande transformação que decorre da regulação" de um modo pu-
vel humano o Caminho da regulação natural, sem fazer intervir ne- ramente "adventício" e não estão aptos, então, a "encontrar" o cará-
nhum outro plano senão o dessa lógica processiva; e a natureza hu- ter apropriado dessas operações. Por um lado, a capacidade em ação
mana aparece agora como aquilo que nos liga constitutiva mente a esse é natural demais para aparecer como uma obrigação; por outro, ela é
Caminho (aquilo pelo qual permanecemos "apegados" a ele). A vo- por demais inconscientemente vivida para deixar transparecer sua jus-
cação moral do homem (que procede, como qualquer outra manifes- tificação. Apenas o nível intermediário (em que o ser tem acesso a um
tação de existência, do grande processo regulado do real) está, então, dever) é o da moral.
implicada inicialmente em nós; seu conteúdo se define também por si WFZ é levado a voltar a este ponto (pp. 528-529) quando co-
mesmo: consiste apenas em continuar a fazer "existir", através de nossa menta a fórmula segundo a qual se diz, algumas linhas depois, que o
conduta, aquilo mesmo pelo qual existimos e de que nos encontramos caminho da regulação não "partilha" a "inquietude" do Sábio. Esse
investidos como aquilo de que procede nossa vida. Quer dizer que con- cuidado do Sábio confirma o sentimento fundador da moralidadeS; e
siste apenas em manter ativa em nós nossa natureza - em vez de a é apenas no nível do homem que a noção de bem (e, portanto, tam-
deixar perder ou se estiolar (cf. a expressão do §7: "não cessar de fa- bém a de não-bem) adquire sentido (seria, por exemplo, absurdo -
zer existir o que existe em nós como nossa natureza constitutiva, essa ou antes desprovido de toda significação - dizer que o processo na-
é a porta da moralidade"). Compreende-se, também, por que, num tural é "bom "). Reconsideremos, com efeito, essa relação de continua-
plano não mais apenas moral, mas antropológico, a "piedade filial" ção, mas em sentido inverso, esclarecendo o plano de partida, o da
pareceu tão importante aos olhos dos chineses: ela é precisamente a natureza, a partir - e na perspectiva - do plano humano que dele
virtude que encarna, do ponto de vista das relações humanas, esse decorre. No estágio de "antes da continuação" (o do Céu: da nature-
sentido da continuação. za), a perspectiva se confirma por demais global para dar lugar a uma
Resta compreender o que significa precisamente esse termo: "con- discriminação possível entre "positivo" e "negativo": a natureza "ex-
tinuar". Quando se diz: o bem moral continua o caminho da regula- pande" indiferentemente "o bom tempo ou a chuva", ela o faz em
ção natural, isso não significa que se possa assimilar um ao outro. virtude apenas de sua lógica processiva; ao passo que, no estágio da
Trata-se, certamente, da mesma coisa - a positividade no real-, mas "continuação" da regulação, no nível humano, "quando o homem se
considerada em dois níveis diferentes. Eis, portanto, que reencontra- afàsta por pouco que seja do bem, eis o não-bem". O que justifica o
mos o que acreditávamos ter perdido, no curso do caminho, seguin- "cuidado" (do Sábio) cujo reconhecimento, aqui, não contradiz em
do a lógica generalizante da regulação: a especificidade do plano hu- nada a afirmação anterior segundo a qual o Sábio, confiando na re-
mano. Pois ela está precisamente contida nesse apartamento que a gulação, "não está inquieto": pois a relação em causa não é aqui a que
continuação supõe ao recobri-Io: o bem moral e a positividade natu- liga o Sábio a seu destino - ao qual adere alegremente, porque com-

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preende sua lógica, mas aquela que o Sábio mantém frente aos outros, Aqueles que são levados ao sentimento de humanida-
engajado como está no mundo, procurando promover sua regulação de, ao ver isso, chamam-no "'sentimento de humanidade",
e ainda não tendo chegado totalmente a ela. Entre o plano da nature- aqueles que privilegIam a relação de conhecimento, ao
za e o do homem, a continuidade se afirma, então, em definitivo, diz- ver isso, chamam-no "conhecimento";
nos WFZ, pois que uma mesma noção atravessa um e outro plano, se quanto ao comum dos homens, eles fazem uso disso
confirma pertinente dos dois lados: a de "caminho" (da regulação) diariamente mas não se dão conta:
precisamente, o Tao (diz-se também: o "caminho do Céu", o "cami- eis por que o caminho do homem de bem é tão raro!
nho do homem"). Mas o caminho do Céu "não escolhe", ao passo que
° caminho do homem implica "distinguir"(s). Por um lado, só existe Nossa inconsciência em face da capacidade processiva - que não
o caminho seguido (e é o real), ao passo que, do outro, esse caminho cessamos, entretanto, de usar - está estabelecida em dois níveis: in-
deve ser seguido - e é a moralidade. consciência completa Ou relativa; esta última é uma consciência par-
cial: percebe-se essa capacidade em função daquilo a que se está incli-
nado; quer dizer, quando se a "vê" de seu ponto de vista particular
v- QUE CONSCIÊNCIA TEMOS DOS FUNDOS DE IMANÊNCIA? - ou yin, ou yang, ou como "sentimento de humanidade", a virtude
do yin (que conduz ao repouso), diz-nos WFZ (p. 527), ou como ca-
o que encarna, do modo mais geral, o caminho da regulação do pacidade de "conhecimento", a virtude do yang (que conduz ao mo-
yin e do yang, o que põe em ação também, em seu nível, a conduta moral vimento). Por isso já não se está apto a "nomeá-la" o "caminho", o
do homem, é aquilo que já chamamos de capacidade "processiva" do Tao (cf. a fórmula do parágrafo: "um yin - um yang, eis o que se cha-
real: a capacidade de esposar sponte sua o curso que a natureza nos ma o caminho"), mas a chamamos por um ou outro desses nomes par~
chama a seguir, sem jamais desviar dessa lógica constitutiva - por ticulares que a cindem e fragmentam: "conhecimento" ou "sentimen-
conseguinte, sem jamais deixar que a virtualidade que aí está em ação to de humanidade". Um vale tanto quanto o outro; mas um nos des-
se perca nem se arriscar a submergir nesse caminho - e, portanto, de via tanto quanto o outro. Pois deixamos escapar, então, aquilo que
estar apta a prosseguir nesse curso sempre mais longe ("processivo" se era tão significativo na fórmula inicial: o "um/um", ao mesmo tempo
opõe, assim, a "recessivo", cf. o que dissemos acima sobre o conheci- yin e yang; perdemos aquilo que está no fundo dessa capacidade pro-
mento processivo). Seu outro nome, para nos expressarmos segundo cessiva: a oposição que não é exclusiva, a correlação.
nossas categorias, a que já recorremos abundantemente, é "imanência". A questão se coloca então: como tomar globalmente consciên-
A partir daí, uma nova perspectivação é possível. Se, de seu lado, cia dessa capacidade processiva - e, primeiro, isso é possível? - para
a tradição filosófica ocidental cuidou pouco de referenciar a imanên- ultrapassar esse estágio da parcialidade? O texto canônico prossegue,
cia, sabe-se, em compensação, o quanto meditou sobre nosso cami- por seu turno, com essas duas expressões difíceis: "Ele [o caminho da
nho de acesso à transcendência - por "ciência" (já Platão: a "dialéti- regulaçã01 se manifesta no nível do sentimento moral, mas se escon-
ca") ou por "revelação". A pergunta pode ser devolvida, portanto, ao de no nível de seu funcionamento" (tomado num outro paralelismo,
pensamento chinês: que consciência podemos ter dessa "capacidade" com relação a yong, ren, o "sentimento de humanidade" me parece
que não cessa de reger desde o interior o grande processo do mundo e recobrir um sentido um pouco mais amplo que na ocorrência anterior:
deve conduzir nossa 'vida? donde minha tradução por "sentimento moral"). Essa fórmula, ao
À primeira vista a constatação é paradoxal: essa virtude da ima- tomar as duas primeiras, nos leva um passo adiante: com efeito, a ex-
nência está em ação por toda parte; ora, muito poucos se dão conta pressão à testa do parágrafo nos dizia, de um ponto de vista absolu-
disso. Segundo a frase seguinte do mesmo parágrafo (que continua a tamente geral, de onde procede o real; a segunda deduzia a partir daí,
ter por objeto o processo regulado do yin e do yang que o bem huma- de um ponto de vista mais especificamente moral, em que consiste o
no, em seu nível, prolonga): "bem", depois nos levava a definir essa ancoragem que nossa "natu-

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reza" individual constitui no processo do real; esta, finalmente, nos se controlar e raciocinar. Ora, o que traduz esse sentimento de com-
leva a conceber a moralidade em termos de "consciência", a natureza paixão que assim surge no fundo de nós mesmos a ponto de faltar-
humana através de suas "faculdades", e ela desemboca numa reflexão mos com aquilo que nos parecia, afinal, o mais razoável? É simples-
psicológica. mente a realização intuitiva e imediata de uma solidariedade radical
Vimos anteriormente segundo qual lógica éramos levados a con- das existências (o ren confuciano), vivida de existência em existência
siderar que o bem é inato em nós; mas que intuição temos diretamente, - até mesmo animal: é este sentimento que, forçando-nos momenta-
e por nós mesmos, dessa bondade natural? Do mesmo modo, determi- neamente a ultrapassar a visão estreita ("egoísta") em que se deixa
namos que capacidades estavam constantemente em ação no real; mas fechar, e submergir, nossa existência individual, nos faz retomar cons-
que experiência temos, em nós próprios, de seu exercício espontâneo? ciência de que somos essencialmente parte integrante do grande pro-
O comentário que WFZ consagra à difícil fórmula que acabamos de cesso do Mundo - nos faz reexperimentar nossa ancoragem natural
ler nos obriga a voltar primeiramente ao Mencius. Pois quando Mêncio nele, nos chama novamente à lógica comunitária do Caminho.
quer converter seu príncipe à benevolência (que ele deve preferir às Esse sentimento de uma solidariedade radical das existências (ra-
demonstrações de poder), não procura convencê-lo com argumentos dical porque se liga à raiz dos seres: sua "natureza") que traduz, de
teóricos, mas o leva simplesmente a reencontrar as raízes da moralida- um ponto de vista afetivo, a dimensão comunitária (interativa) do
de que estão nele. A historieta é célebre (cap. I, A, §7): vendo um boi "Caminho" universal e funda no homem sua aptidão natural à mora-
trazido à sua frente para ser conduzido ao sacrifício, o príncipe Xuan lidade, não é objeto aqui de uma demonstração: é constatado na ex-
de Qi ordena inopinadamente que o animal seja solto (depois, para periência. Passemos agora da historieta a seu paradigma 6: todo homem
prover as necessidades da cerimônia, lembradas pelos oficiantes, orde- que vê uma criança a ponto de cair num poço, diz-nos ainda Mêncio,
na que seja sacrificado em seu lugar um carneiro). Lembrado diante do fará imediatamente um gesto para a socorrer: a reação possui um ca-
príncipe, esse episódio o coloca em desconforto: sabe que o comporta- ráter instintivo que coloca a nu a tendência para o bem inerente a nosso
mento que então tivera pareceu aos outros - e é lógico - como um ser (sem que, na urgência do evento, considerações secundárias, rela-
rasgo de avareza, ou, pelo menos, uma marca inegável de inconse- tivas, que levam em conta nosso interesse pessoal, tenham podido su-
qüência. Mas Mêncio, enquanto psicólogo requintado, convida o prín- focar o abalo que Se produz então espontaneamente em nós). Com-
cipe a observar-se melhor: se ordenou de repente que o boi fosse solto, preende-se, portanto, à luz desse exemplo que, segundo a expressão
foi porque não suportou o olhar "amedrontado" do animal, enquanto canônica, o Caminho da regulação "se manifesta" a nós "no nível do
o via passar à sua frente a caminho do sacrifício; e se pôde aceitar, em sentimento moral". Resta apenas determinar a partir daí, de um pon-
seguida, que ele fosse substituído por um carneiro, foi porque não se to de vista teórico, como opera essa manifestação. Segundo WFZ,
tratava mais, então, do que uma ordem dada (portanto, de uma repre- fazendo servir, para interpretar essa fórmula, o aparato conceptual do
sentação que continuava abstrata) que não implicava que ele tivesse de neoconfucionismo (p. 528), a "natureza" do homem está "contida"
realizar, no caso do carneiro, aquilo que acabava de experimentar com em sua consciência moral (xin(t)). Enquanto ela está em repouso, o que
relação ao boi: o face-a-face com o medo e o sofrimento do outro (mesmo é seu estado ordinário, a aptidão moral que está nela não transpare-
um animal). A conclusão dessa história é fácil de tirar: a moralidade ce, mas continua enterrada em seu fundo: mesmo que se possa "nessa
não é algo a adquirir, a ensinar, o príncipe já a possui, evidentemente, ocasião" tomar dela um conhecimento "exterior", ainda não foi feita
em seu foro íntimo; bastará, portanto, que tome consciência dela - para uma "experiência pessoal". Mas, se uma reação repentina, tal como
desenvolvê-la em sua conduta. a piedade (cf. os exemplos anteriores), nos abala interiormente, temos
Se ele agiu de um modo tão inconseqüente, em aparência, foi então a intuição direta de que possuímos efetivamente essa propen-
porque esse príncipe se encontrou presa de um sentimento de piedade são para o bem e ela aponta então de modo manifesto (como expres-
que irrompeu em sua consciência sem que ele tivesse tido oportunida- são dessa coerência inerente a nosso foro íntimo) "tanto diante de
de de exercer nenhum controle a seu respeito, sem que tenha podido nossos olhos quanto diante de nossa consciência". Além disso, esse

210 François Jullien Figuras da Imanência 211


abalo que se produz em nós mesmos por reação espontânea face ao transição do visível e do invisível, a segunda nos faz experimentar sua
"intolerável" (a noção é do Mencius) e atualiza assim como conduta permanente correlação.
moral a tendência que estava contida implicitamente (virtualmente) em Funcionamento sintomático, por um lado; transformação dos fun-
nossa consciência se confirma ser análogo à colocação em movimen- dos "enterrados" em manifestações visíveis, do Outro: eis que uma apro-
to do yin e do yang, tal como inscrita na lógica de interação deles e ximação termina por se operar lá onde talvez menos se esperava. So-
leva à atualização sem fim dos existentes: vemos verificada a homo- mos surpreendidos, com efeito, por uma certa analogia entre as arti-
geneidade que deduzimos no início entre a positividade inerente ao culações que aqui são postas em ação e o procedimento da psicanálise:
grande processo do mundo e o bem humano. descobre-se, de uma parte e outra, em relação à consciência, uma rela-
Mesma constatação de homogeneidade entre nossas faculdades ção entre o latente e o patente que não é mais exclusiva, mas que impli-
naturais e a capacidade processiva do real- mesmo se o esquema for ca a coexistência e a passagem de um ao outro. Ao mesmo tempo em
inverso. Porque, quando nossas faculdades naturais, tais como "ver" que a diferença do que está em jogo, certamente, é gritante (porque o
ou "ouvir", "falar" ou "mover-se", se exercem concretamente, elas pensamento chinês nada estabelece aqui a partir do desejo). Se ele está,
se manifestam objetivamente aos nossos sentidos; porém escapa-nos, então, destinado a permanecer em suspensão, esse efeito de analogia
no fim das contas, "aquilo pelo qual elas assim devem se exercer". Que vale ao menos num ponto: a possibilidade que descobrimos, a partir
se reflita de fato sobre isso: quando essas faculdades se aplicam a al- de nossa própria experiência, de aceder a uma economia de conj unto,
guma coisa, é sua aplicação que se percebe e não a capacidade que lhes ao funcionamento enterrado de um processo. Com relação ao que a
permite operar (que continua sempre "em reserva", "enterrada"(u) e reflexão chinesa coloca em jogo, essa possibilidade é a de nosso acesso
não se "esgota" em seu objeto (em termos neoconfucianos, só se apre- imediato - tanto através de nossas reações morais como do exercício
ende sempre seu "ser realizado", como ti, e não o que lhes permite de nossas faculdades - à capacidade processiva, infinita, que consti-
"operar" assim, como yong(v l ). Assim se pode compreender a segun- tui os Fundos da realidad~: pois, diz-nos WFZ, esse generoso sentimento
da parte da fórmula canônica: se ela se "manifesta" a nós "no nível que se trai ocasionalmente em nós quando somos presa de piedade é
do sentimento moral", a capacidade processiva, tal como a experimen- aquele mesmo que não cessa de "incitar" a imanência; esses fundos
tamos através de nossas diversas faculdades, "se enterra" e se esquiva inesgotáveis que o uso de nossas faculdades implica normalmente em
(à nossa apreensão) no que concerne ao seu "funcionamento". As nós são aqueles mesmos que lhes permitem jamais estar em estado de
manipulações a que nos convida o Clássico da mutação nos dão, além "faltar"(x). Por isso a "revelação" se realiza a partir de nós mesmos,
disso, desse segundo ponto, a confirmação imaginada: as transforma- diz-nos de algum modo () pensamento chinês. Não se necessita de uma
ções que se operam, de uma figura à outra, por "inversão/reversão" Palavra inspirada que nos ofereça a "mensagem"; nem, também, de um
(enquanto "funcionamento"), são em si mesmas invisíveis e só apare- Mediador que nos venha mostrar o "Caminho"7: porque o Caminho
ce o resultado a que elas levam a cada vez em um ou outro hexagrama. de onde decorre a realidade, nós o encarnamos (no sentido chinês de
WFZ propõe resumir assim o modo pelo qual podemos tomar ti(yl) da maneira mais comum, em toda experiência espontânea.
consciência, em nós mesmos, dessa capacidade processiva do real: por
um lado, no caso do sentimento moral, ela é "manifesta", mas de modo
"sutil", quer dizer, ela se revela a nós a título de indício (esses "indí- VI - O CAMINHO DA REGULAÇÃO ESTÁ EM PERPÉTUA INOVAÇÃO
cios" de moralidade que descobrimos em nós por ocasião de nossas
reações morais); por outro, no caso do exercício de nossas faculdades Evitemos, contudo, chegar, porque arrastados por uma compre-
naturais, ela é "visível" ao mesmo tempo em que se "enterra" (visível ensão muito estreita da regulação, a uma visão redutora da realida-
em sua aplicação, enterrada em seu princípio)(w l . Fórmulas finamente de. Vemos a transformação por toda parte em ação nos fenômenos e
cruzadas que nos levam àquele que era nosso ponto de partida, a dis- constatamos que ela é globalmente regular e justificada; mas o que é
tinção do "·latente" e do "patente": a primeira expressão nos situa na que torna possível que seja assim globalmente e como conceber o fun-

212 François Jullien Figuras da ImanênCia 213


do do processo? Pois esse "fundo", como sabemos, é "sem fundo", e do da realidade do mundo existe necessariamente como um "outro"
eis por que pode existir constantemente como fundos de imanência mundo?
(fundo como fundos: os dois homônimos são aqui levados a se reu- De fato, a perspectiva puramente operatória do dispositivo ins-
nir). A capacidade processiva inerente ao Mundo, nós a apreendemos taurado pelo Clássico da mutação é suficiente para nos mostrar que esse
em nós mesmos indicialmente (através de nossas reações morais) ou invisível só existe através das operações postas em ação por esse dispo-
em seus efeitos (pela aplicação de nossas faculdades), mas ela possui sitivo e, portanto, somente como dimensão do processo (eis por que,
uma dimensão - na escala de toda a realidade - que, como tal, não querendo evitar a ruptura idealista à qual nos acuam nossos conceitos,
se pode "sondar". É com essa dimensão de insondável que conclui a preferi traduzir shen, aqui, por "dimensão" de invisível ou de espíri-
última frase do parágrafo: "que [a relação do] yin/yang não [possa] to). A explicação desse estatuto do invisível, além disso, não nos falta,
ser sondada, eis o que se chama de dimensão de invisível [ou de espí- ela nos foi dada acima no "Grande comentário". Segundo a fórmula
rito]". Correspondendo à fórmula inicial do mesmo parágrafo, que com que terminava o parágrafo anterior e que preparava o terreno para
era, lembremo-nos: "um yin - um yang, eis o que se chama o Cami- este: "a dimensão de invisível não tem lugar próprio; e [do mesmo modo}
nho [da regulação]", essa última fórmula mantém a representação a mutação não tem ser constitutivo que lhe seja próprio(a')". WFZ com-
aberta, desdobra-a em profundidade: preserva a imanência em sua ca- preende a fórmula do seguinte modo (p. 523): para a dimensão de in-
pacidade de constante progressão; faz-nos compreender que o cami- visível, "não existe lugar particular que não seja seu próprio lugar"; para
nho da regulação, para valer efetivamente como tal, deve se exercer a mutação, "não existe ser (constitutivo) particular que não seja seu
numa perpétua inovação. próprio ser". Quer dizer que a "dimensão de invisível" e a "mutação"
O dispositivo instaurado pelo Clássico da mutação torna fácil "não se apropriam" de um lugar particular, de um ser individual. Com
o balizamento, a partir de suas marcas tangíveis, dessa dimensão de efeito, toda realidade particular ocupa um dado lugar, constitui um ser
invisível: no curso de suas operações, existem, diz-nos WFZ (p. 531), determinado; mas a dimensão de eficaz invisível está através de todos
tanto o que é da ordem do "figurável" (as representações que os os lugares dados sem se interromper em nenhum deles, a mutação está
hexagramas constituem) como o do "numerável" (as diversas cifras através de todos os seres constituídos sem privilegiar nenhum. Ao mesmo
simbólicas do yin e do yang: 6-7-8-9); mas "o que se estabelece a tempo em que estão presentes por toda parte, jamais estão separados:
montante da oposição do fasto e do nefasto", "o que é sem intenção confundem-se com a totalidade do processo do real, mas não existem
no momento em que se opera a dissociação" (entre yin e yang, pari fora desse processo. Concluamos: a dimensão de invisível ou de espíri-
ímpar), "que não pode, então, atingir diretamente o cômputo do ho- to é (e: é apenas) a dimensão global daquilo que se efetua cada vez lo-
mem", cuja "alternância de fases de movimento e de repouso não tem calmente. Porque ela se estende para a totalidade do real e constitui,
fim" e que, finalmente, "opera sem ter de agir" (a se investir) - essa assim, seus fundos latentes, o homem não a pode "sondar"; mas, ao
é a dimensão de "eficaz invisível" (ou de "espírito": shen(z)). Mas se mesmo tempo, a transcendência dessa dimensão de invisível, com rela-
coloca então a seguinte questão: reintroduzir-se-ia aí, no final do per- ção ao plano humano, corresponde apenas ao caráter total (e, portan-
curso, aquilo que acreditávamos ter expulsado no início - uma con- to, absoluto) dessa pura imanência S,
cepção autônoma do invisível que se constitui em "ser" próprio para É porque essa dimensão de invisível está presente por toda parte,
aquém (ou para além) dos fenômenos, e, portanto, independentemen- em operação por toda parte, no processo do real, que esse processo, que
te deles? E o desafio ,da questão se revela mais considerável ainda se é c0!lstantemente regulado, não chega jamais a um funcionamento este-
se toma um ponto de vista comparatista: o pressuposto ontoteológico reotipado. WFZ está bastante atento a esse ponto (p. 531): se a relação
(o do Invisível como "ser", de um Espírito hipostasiado) confirmaria yin/yang possuísse "uma norma estabelecida de uma vez por todas", se
ser incontornável quando se aborda a realidade em seu fundo, em seu suas variações "estivessem ordenadas de modo progressivo", se "sua ade-
mistério? O que equivale a perguntar: a posição ocupada pela meta- quação fosse uniforme", o homem poderia facilmente sondar esse cur-
física seria, no fim das contas, inexpugnável? E esse fundo sem fun- so a partir de seu próprio ponto de vista (isto é, sem ter de consultar o

214 François Jullien Figuras da Imanência 215


Clássico da mutação) - mas teria perdido, então, justamente, toda di- novo do encontro individual: é porque a transformação está em obra
mensão de eficaz invisível ou de espírito. Pois seria trair a idéia da regula- em toda parte que ele pode não se repetir nunca em nenhum ponto.
ção imaginar que ela poderia obedecer a um modelo preestabelecido{b'); Eis por que esta dimensão é celebrada como o valor do real: como sua
e seria enganar-se completamente sobre o sentido da fórmula inicial desse dimensão "espiritual" (mas sem por isso ser isolada como entidade).
parágrafo: "um yin - um yang, eis o que se chama o Caminho (da regu- Posta em paralelo com a noção de "Caminho" (da regulação), o Tao,
lação)" acreditar que ela pudesse significar "um yin depois um yang, um que designa "o grande funcionamento" que, em seu curso, não cessa
yin depois um yang", de modo mecânico: como dois fios que fossem de "transformar e promover" e "de onde provêm necessariamente ao
incessantemente alternados numa trama para "tecer" uma tela. Não, a mesmo tempo o homem e todos os existentes" (WFZ, p. 519), ela
grande tecelagem do real não é estampada com essa monotonia, seus evoca, de modo complementar, a capacidade própria a esse curso de
motivos são infinitamente mais variados. Eis por que também WFZ reage jamais se limitar à "recondução" do modelo passado!"), ultrapassa-
com vigor contra todos aqueles (e eles são legião na história do comen- do portanto, e assim jamais submergir. Graças a essa constante im-
tário!) que procuraram interpretar o Clássico da mutação em função de provisação, a existência individual não procede jamais daquilo que não
uma ordem determinada (em particular, procuraram colocar em série passaria de um simples molde. O que WFZ resume com uma fórmula
os hexagramas), acreditando que a cada vez tivessem encontrado a solu- ao mesmo tempo excessivamente simples e difícil (mas esse caráter
ção. Decerto, com tais arranjos, tudo parece no lugar, de modo defini- improvisador do real é, podemos compreender, o que mais escapa ao
tivo, tudo está absolutamente claro, não há mais nada de "insondável"; discurso, sempre relativamente normativo e cristalizado): essa dimensão
mas desaparece ao mesmo tempo desse conjunto aquilo que lhe permi- de invisível é, diz-nos ele correntemente, aquilo que "torna" infinita-
te esposar as variações sem fim do devir. Se o dispositivo estabelecido mente "sutis" os existentes(f'). Graças a ela, com efeito, a existência
pelo Clássico da mutação forma um sistema, como já observamos a pro- escapa a toda codificação (servindo "grosseiramente" ao balizamento)
pósito das figuras (cf. supra capo IV, p. 103), trata-se aí de um sistema e não poderia ser reificada.
aberto, cujas operações levam a resultados sempre diferentes, e que por A alternância, tal como concebida pelo pensamento chinês, não
conseguinte não pára de improvisar. Eis por que esse dispositivo pode é, então, repetitiva, ela não se deixa fechar na idéia de ciclo. Pode-se
ser encarregado de apreender a vida. Pois a vida, o mundo, são, como vê-la representada na marcha da lagarta que, por sucessão de contra-
repete \XfFZ, '"'novos todos os dias". ções e descontrações, não pára de avançar (cf. "Grande comentário",
Voltemos, efetivamente, ao fenômeno de interação de que decorre B, §5); simbolizada também pelo corpo móvel do dragão que, não dei-
toda geração (cf. WFZ, p. 509): se ele repousa num funcionamento xando de compensar a tensão de sua corcova, respira vitalidade por
bipolar (o do Céu e da Terra, do yin e do yang etc.), cuja lógica se todas as partes. Regulado não significa apenas "regular": o termo
conhece bem, entretanto o "encontro" de onde procede essa interação exprime que a regularidade em questão não é dada'de antemão, que
se produz a cada vez de modo "repentino", "inopinado" (zha(c'): sem ela deve ser constantemente promovida: regularidade em ação, dinâ-
que se espere por ele). Pois ele se produz a cada vez pela primeira vez: mica - donde, portanto, o "caminho" ser sempre inédito. Ao mes-
porque é cada vez "em função dessa ocasião", diz-nos WFZ, e não em . mo tempo, processivo não equivale a "progressivo": a marcha para a
função de um "esquema clássico", preestabelecido, que o processo frente não é guiada por um futuro melhor, ela não tende a se aproxi-
"desdobra sua positividade" (cf. WFZ, p. 529)ld·). Ou, ainda, o reco- mar de um termo ideal- fixado como telas: nem o da Forma na qual
meço é perpétuo - jamais existe criação ou desaparição verdadeiros, . se realizaria definitivamente a pujança, nem o de um Reino que en-
como se sabe - , mas este nunca ocorre como antes, a alternância com- cerraria o tempo. Todo o bem possível está totalmente presente em cada
pensatória que o rege se exerce de modo sempre modificado (o que etapa do processo, ele se confunde com seu desenvolvimento: a regu-
distingue utilmente essa concepção do samsâra búdico; cf. WFZ, p. lação é essa harmonia que não se imobiliza em nenhum estado, mas
520). A noção de dimensão de invisível ou de espírito designa, assim, se renova a cada instante.
precisamente, num modo global, o caráter sempre inesgotavelmente

216 François Jullien Figuras da Imanência 217


NOTAS 8.
"MODIFICAÇÃO" E "CONTINUAÇÃO",
1 Tradução incorreta em Philasrre, que apaga a complementarieclacle em ação:
"ESTOPIM" E "LIMITE SUPREMO"
"o éter puro (incorpóreo) constitui o ser"; tradução mais justa, mas muito parti·
cuia r, porque muito exclusivamente biológica, em Wilhelm: "a união da semente
ou O devir é a única eternidade
e da potência opera as coisas". ("Grande comentário", A, §10-11-12)
2 Donde o sentido do you(d), "em curso", "em viagem", que exprime esse
deslocamento da vitalidade; tradução tão pouco satisfatória em Philasrre ("a alma
positiva que daí resulta constitui a modificação") quanto pouco compreensível em A filosofia grega ensinou-nos a decupar o ser. Forneceu-nos con-
Wilhe1m ("o amolecimento da alma opera a mutação"). ceitos que permitem separar o sensível e o inteligível, opor o eterno
3 "Continuar" (ji seguido de zhi 1m )), que remete ao termo anterior, o Tao, o
ao efêmero, o modelo à sua cópia: através desses graus, o ser (to on)
"caminho", é necessariamente transitivo, disso não se aperceberam nem Philastre, só revela sua identidade por oposição ao devir. Depois, reassociando
§1156 ("O que sucede imediatamente é o bem"), nem Wilhelm, p. 336 ("Enquanto entre si esses diversos planos (sempre a partir da perspectiva única da
ele [o caminho] continua, ele é bom"); ao mesmo tempo, acredito, eles perderam ousia), muniu-nos de conceitos que servem para declinar os diversos
a força da expressão. tipos de relação, para pensar a predicação (distinguindo entre subs-
4 Ora, essa última noção não está no pensamento da China clássica e o com- tância e acidentes), para fazer o devir depender da forma e da finali-
posto que a traduz, a partir do termo ocidental, na língua chinesa do século XX, dade. Mas o próprio devir escapa a esses arsenais: é considerado in-
lixiang, trai de modo gritante o sentido tradicional do termo que ele implica: li: a consistente demais para poder possuir em si mesmo seu princípio de
coerência interna e a razão das coisas.
determinação e só recebe coerência de fora: das Idéias inteligíveis, das
5 Esse cuidado foi considerado até mesmo pelos pensadores chineses de hoje, essências eternas. O reino do Mesmo o encerrou na natureza rebelde
e diferenciada de outras formas elementares da consciência, geradoras de visão reli-
do outro, a dominação do Ser o condenou à aparência; portanto, não
giosa, como o temor (da morte) ou o sentimento do pecado, como a forma de cons-
ciência mais apta a caracterizar o "confucionismo"; cf. Mou Zongsan, L'Essence de é suscetível de nenhuma ciência e só existe a título residual- irracio-
la philosophie chinoise, Zhongguo zhexue de tezhi, Taiwan, Xuesheng shuju, p. 18. nal- como fonte de irregularidade e de desordem.
O Clássico da mutação nos propõe, em compensação, conceitos
6 Sobre essa revelação da imanência, cf. supra, capo V §3, "É no estado da
emergência que o coração da realidade se revela", pp. 154 ss. que servem para pensar o devir: um devir concebido em função de suas
articulações próprias, segundo sua lógica de transformação e de en-
7 Talvez fosse conveniente radicalizar a oposição até figurá-Ia do seguinte
modo: as práticas culturais que encarnam a capacidade processiva, como aquelas
cadeamento. E, como se poderá observar com a leitura dos últimos
que já citamos ("caligrafia", artes do sopro e taiji quan), não têm aí o lugar, por parágrafos da primeira parte do "Grande comentário", esses concei-
sua aptidão em fazer experimentar a imanência, que tem em outra instância a prece tos se mantêm puramente operatórios (ligados como estão à manipu-
como via de acesso à transcendência? lação do dispositivo dos hexagramas) e não servem em nada para a
8 Sobre essa questão, que me parece essencial, de uma transcendência que representação de essências: eles não se decupam à luz do Ser, não erigem
deveria ser concebida como a absolutização da imanência, cf. meu ensaio anterior, nenhuma construção frágil que vise a nos fazer aceder a um além ab-
La Propension des choses, Seuil, 1992, pp. 233 ss. soluto; por isso, mantendo toda coerência de seu próprio sistema,
* O francês fonds será traduzido como fundos, no plural, para não confun- barram resolutamente o caminho do desdobramento da metafísica.
dir com fond, fundo. Fonds pode ser traduzido como propriedade em terras, capi-
tal, fundo de reserva. (N. da R.)
I- O CURSO DAS COISAS: "MODIFICAÇÃO" E "CONTINUAÇÃO"

Com efeito, a polaridade que o pensamento chinês institui no


início contém o princípio, e a necessidade, de uma evolução; e a for-

218 François Jullien Figuras da Imanência 219


ma desse devir está determinada não em função de uma ordem exter- claridade". Ora, essas duas capacidades representadas em estado puro,
na imutável, mas a partir de si mesma: dessa polaridade inicial decor- e de modo completo, nos dois primeiros hexagramas (Qian _ Kun)
re, como vimos, a regulação por alternância. Portanto, no quadro cons- se reencontram, de modo fragmentário, em todos os outros: estes, com-
titutivo do real (que podemos denominar como quisermos: "Céu" e postos sempre ao mesmo tempo de traços yin e yang (de fechamento
"Terra", Qian e Kun, yang e yin ... ) já está implicado seu curso, cuja ou fechado, de abertura ou aberto), dão assim conta das variações do
lógica é inerente - imanente. Duas noções servem para concebê-la, devir. Entre eles, os dois últimos hexagramas, que são Jiji e Weiji == e
formando um novo acoplamento que desdobra no tempo a relação opo- ::::, simbolizam uma situação de modificação sistemática (cf. supra,
sição/complementariedade que é a estrutura do real: por um lado, a capo IV), porque cada traço aí é seguido de seu inverso: assim, as ope-
"modificação" (bian), que é o tornar-se outro (quando do yang se passa rações de "fechamento" e de "abertura" se sucedem sem interrupção;
ao yin, ou do "duro" ao "maleável", do quente ao frio, e inversamente); quatro outros, que simbolizam, ao contrário, uma situação de conti-
por outro lado, a "continuação" (tong)(a), que é o desdobramento do nuação máxima, são (cf. supra, capo V) os hexagramas-axiais 23 e 24,
mesmo ou, mais precisamente, pois essas duas noções não cessam de Bo e Fu ;;;; e ;;;;, e 43 e 44, Guai e Gou - - e __ , porque cinco traços
se revezar uma com a outra, o desdobramento desse outro enquanto de mesma natureza aí se sucedem encadeando-se: neles, o estado de
mesmo (quando o yin se desdobra enquanto yin, o yang enquanto yang, "fechado" ou de "aberto" dura o maior tempo.
quando o duro se torna cada vez mais duro, o quente cada vez mais Mas como compreender que o real, em seu curso, não possa es-
quente: prefiro traduzir mais por "continuação" do que por continui- capar à modificação (pois apesar da perfeita simetria que dispõe lado
dade para conservar no termo seu sentido, não resultativo, mas dinâ- a lado as duas noções, é esse tornar-se outro que constitui um pro-
mico; cf. tong: "propagar", "comunicar"). As duas noções se impli- blema - ao passo que a continuação do mesmo não poderia nos cho-
cam mutuamente e o curso das coisas, sejam elas quais forem, é feito car)?É que se, entre o yin e o yang, diz-nos WFZ (p. 560), pode exis-
apenas de seu encadeamento: lê-se isso na estrutura do hexagrama tir '''triunfo'' momentâneo de um sobre o outro (um se impondo, por-
quando um traço yin sucede um traço yang (e inversamente), figuran- tanto, majoritariamente sobre a vertente descoberta do hexagrama),
do assim a "modificação", ou quando um traço yin sucede um traço não poderia haver "eliminação" completa de um pelo outro: todo
yin, um traço yang a um traço yang, figurando assim a "continuação"; triunfo é temporário, já se viu isso suficientemente, e chama uma com-
lê-se isso também no curso do mundo e, primeiramente, em seu para- pensação. Mas essa modificação não é apenas inelutável (com rela-
digma natural fornecido pelo curso das estações: nos equinócios ope- ção ao desenrolar interno de um processo que continua sendo bi-
ra a modificação, nos solstícios, a continuação: o outono "modifica" polar), sua necessidade deve ser entendida também de modo positivo
o verão (invertendo a tendência do calor ao frio) e a primavera "mo- - e é aí que a idéia é a mais forte - pois ela se justifica com relação
difica" o inverno (invertendo a tendência do frio para o quente); ao ao ideal da regulação. A modificação é benéfica, com efeito, na me-
passo que o inverno "continua" o outono (cada vez mais frio) e o verão dida em que permite "cortar" e tirar (sentido de cai1b ) segundo WFZ,
"continua" a primavera (cada vez mais quente; cf., para o comentá- p. 569) o que não teria deixado de se tornar excessivo, se a evolução
rio dessas fórmulas, WFZ, pp. 533 e 563). tivesse continuado a prosseguir no mesmo sentido: o outono "modi-
Outra imagem proposta como ilustração fácil para essa alternân- fica" o verão corrigindo o que, senão, teria levado a um calor tórri-
cia (cf. "Grande comentário" A, §11; WFZ, pp. 559-560): uma porta do, a primavera "modifica" o inverno corrigindo o que teria levado,
é aberta ou fechada. Quando se abre ou se fecha a porta, dá-se a "mo- senão, a um frio muito rigoroso. A modificação é, portanto, uma
dificação"; quando ela fica aberta ou fechada, dá-se a "continuação". transformação que restabelece a "harmonia". Quanto à continuação
O fechamento encarna a tendência própria ao yin que, "recolhendo o que com ela se reveza, é igualmente benéfica: ao favorecer o desdo-
que o yang expande nele", faz advir a realidade concreta; a abertura bramento do mesmo, ela permite que cada fator vá, ao progredir, até
encarna, em compensação, a tendência própria ao yang que, "desdo- o fim de suas capacidades, e preencha assim completamente seu uso.
brando sua ação através do yin", "agita" esse último e "o abre à sua Num caso como no outro, o que parecia inevitável revela-se também

220 François Jullien Figuras da Imanência 221


ótimo: reencontramos, nos dois momentos do devir, a mesma conjun- deixar aparecer seu fundo comum. Pois o mais interessante, em defi-
ção do real e do bem. nitivo, nesse jogo de oposições e de simetrias tão bem azeitado, é ver
Por isso, se não servem para pensar o ser, essas duas noções são, como o antagonismo das duas noções chega a se dissolver através de
em compensação, ricas de implicação moral (cf. WFZ, p. 570). A mo- sua relação; mais ainda, como os dois termos são levados a trocar entre
dificação, ao corrigir o excesso, torna -se virtude de moderação: ao si seu conteúdo - até mesmo a ponto de se inverterem: ao passo que
modificar o "duro" pelo "maleável", corrijo a inflexibilidade de mi- a continuação, ao continuar, se condena a si mesma, é de fato a mo-
nha conduta do mesmo modo que, ao modificar o "maleável" pelo dificação que assegura a "duração"2. Com efeito, cada um dos dois
"duro", corrijo-me de minha moleza. Assim, posso continuamente me termos significa também logicamente seu contrário e contém o outro
adaptar àquilo que a situação exige e o caminho seguido não "é obs- ao contrário num modo implícito ou latente: a continuação, que leva
truído". Paralelamente, ao promover duravelmente no mesmo senti- a seu oposto (a modificação), implicava-o desde o início e estava mi-
do, a continuação torna-se virtude de perseverança: ao reforçar o "du- nada por ele; e bem longe de marCar uma simples ruptura, a modifi-
ro" com o "duro", estou apto a não me "dobrar"; ao reforçar o "ma- cação assegura - tanto como a continuação - a continuidade: por-
leável" com o "maleável", estou apto a não "me opor". Assim, posso que é ela que, fazendo servir a diferença, permite ao processo não se
"persistir em minha resolução" sendo capaz de resistência e sem te- bloquear e faz com que o real, a partir daí, continue a "passar" (tong,
mor de ver "esgotar" minha capacidade. ("Reforçar o maleável com a "continuação" deve ser tomada, enquanto conseqüência da modifi-
o maleável": pode-se resistir a uma leitura ideológica dessa expressão? cação, em seu sentido próprio: "passar livremente", "expandir-se",
Como os chineses souberam levar longe, ao que parece, o ideal políti- "propagar-se"). Nova ocasião de verificar que, no pensamento chinês,
co da submissão!) os contrários não se excluem; e é precisamente à sua inclusão que a
O que vale para a moral pode ser verificado também com rela- lógica da imanência deve sua possibilidade.
ção à História. Na apresentação das origens da civilização, no come- Essa relação, em conseqüência, pode ser lida do modo mais ge-
ço da segunda parte do "Grande comentário" , a fórmula é: "do esgo- ral - do ponto de vista da existência e do destino: o tornar-se outro
tamento resulta a modificação, da modificação resulta a continuação, é a condição da sobrevivência. O que "sobrevive" assim, certamente,
da continuação resulta a duração 1cl " (cf. A, §2; WFZ, p. 582). Como não é mais o "mesmo" e, entretanto, "procede" dele. Esse tornar-se
é freqüente no pensamento chinês, a profundidade da frase refere-se outro não é, portanto, a marca de uma inconsistência, que se reconhece
à unicidade da consecução que, simplesmente reconduzida de um ter- no efêmero, como ausência de "ser" e, portanto, falta de realidade,
mo a outro, nos dá o sentimento de que não somos mais constrangi- assim como o denunciou a ontologia (ou, na própria tradição chine-
dos por uma lógica particular e complexa (esses dois caráteres cami- sa, mas posterior, o budismo), mas ao contrário, o que conserva no
nham em paralelo), mas que somos levados por uma homogeneidade real a sua consistência. Como o mostra em toda ocasião o Clássico da
contínua e que esposamos a evidência: todo regime, como toda polí- mutação, é bem porque não cessa de tornar-se outro que o mundo con~
tica, é levado a "se esgotar"; donde ser ao mesmo tempo inevitável e tinua a existir. Assim, o "eterno" não deve ser concebido fora do devir,
benéfico que intervenha uma "modificação"; mas a virada que se pro- oposto a ele, mas se confunde com ele: esse devir é a única eternidade.
duz então no curso da história "não pode durar" de por si como vira-
da, e decorre uma "continuação" que se faz, diz-nos WFZ analisan-
do mais precisamente à ligação em causa, "por adaptação"(d)l. 11 - PREVER O FUTURO: O "ESTOPIM fNFIMO" DA MUTAÇÃO
Eis, portanto, que, na insipidez da evidência (a história da civili-
zação é feita, como qualquer outro processo, ao mesmo tempo de Porque parece que o curso das coisas é feito apenas de um enca-
"modificação" e de "continuação", de renovação e de tradição), se deamento de modificação/continuação que assegura sua continuida-
revela um sentido forte que faz esses conceitos trabalharem em pro- de, só possuímos o domínio do processo em curso se percebemos muito
fundidade até os descercar completamente um em relação ao outro e cedo a modificação a vir. Intervém nesse ponto uma noção original e

222 François Jullien Figuras da Imanência 223


das mais fecundas: a de um "detonador ínfimo" da mutação (noção número também: os 64 hexagramas são formados por 384 traços), é
de ;i1fl: "começo inicial" segundo Philastre, "germe" segundo Wilhelm). nela que acontece e que advém a transformação de um hexagrama a
Remontando à origem da modificação, ela permite aclarar logicamente partir de um outro, é por ela que uma figura se converte em uma ou-
sua progressão e assegura, assim, de uma a outra fase, uma perfeita tra: é, portanto, em seu nível que pode ser lido precisamente o deta-
transição. O final da primeira parte do "Grande comentário" não deixa lhe das evoluções e que opera a indicação, eminentemente sutil, das
de realçá-la: "O Clássico da mutação é aquilo que permite ao Sábio ir modificações que advirão.
até o fim do que está enterrado em profundidade e perscrutar o esto- Mas então se coloca inevitavelmente uma questão: como o homem
pim ínfimo da mutação" (§10; WFZ, p. 555). Como não se trataria, (o Sábio) pode estar apto a apreender tão "sutilmente" (sentido de ;ing1hl
com efeito, de uma peça-mestre desse dispositivo (mesmo que, inter- no mesmo parágrafo) uma evolução em curso a ponto de poder desco-
vindo no estágio embrionário das coisas, ela opere de modo necessa- brir o estopim, ainda "ínfimo", de Sua modificação(i)? Voltemos, para
riamente discreto), uma vez que a função do Clássico é, como se sabe, respondê-la, ao que o pensamento chinês concebeu como "espírito".
chegar a prever a evolução em que estamos engajados e nos indicar, O que define o Sábio, com efeito, é que ele possui no fundo de si, en-
em conseqüência, a conduta a seguir? quanto aptidão espiritual, aquilo que reconhecemos anteriormente como
Mas, como conceber distintamente esse momento original, e, a dimensão de "invisível" ou de "espírito" (shen 1j )), que é o fundo sem
portanto, ainda relativamente confuso, do "estopim"? Ele nos situa fundo do real e permite que o caminho da regulação sempre se renove
no ponto preciso em que a evolução se limita a iniciar e ainda não é (cf. "Grande comentário", B, §5; WFZ, p. 596): sua capacidade de cons-
vista. O abalo é sutil demais para ser detectável de fora, está enterra- ciência não se limita, portanto, à face visível e grosseira dos fenôme-
do demais para transparecer na superfície. Seria demais dizer, já, que nos, ela está aberta a seus fundos latentes e "coincide" por isso com a
a modificação aponta: ela vai apontar, ela mal aponta. O mais cômo- lógica que rege o curso das coisas não cessando de as transformar (cf.
do, para conceber esse estágio do "ínfimo", será, então, opô-lo ao do WFZ, p. 555). Com efeito, porque soube desistir de todo ponto de vis-
"efeito" (cf. WFZ, p. 521): por contraste com o que "já adveio con- ta egoísta e interessado(k), se libertar de todo pensamento de caráter
eretamente", foi completamente atualizado e se torna para nós um individual e particular(l), ele está apto a se reunir à dimensão comuni-
objeto de constatação, somos levados a conceber esse momento in- tária do processo; e porque sabe não ter necessidade de agir pontual-
verso em que ~~aquilo ainda não adviera concretamente", apenas co- mente (ostensivamente)(m) para expandir sua influência e "transformar"
meçava a se atualizar, não oferecia ainda nada de manifesto. Com- o mundo, está apto a comunicar com a capacidade processiva, ao mesmo
preende-se, então, como a concepção do visível e do invisível, tal como tempo "simples" e "fácil", de onde a realidade não pára de emanar. A
foi estabelecida no início, pôde contribuir para fazer tomar consciên- retidão moral e sua imparcialidade são, portanto, a condição dessa inte-
cia desse estágio puramente incoativo: esse momento da próxima ligência. Pois, livre de toda disposição que o imobiliza, de todo condi-
emergência é simplesmente o de uma passagem, aquele em que o real cionamento que o congela, o espírito do Sábio está apto a registrar todos
começa a sair do fundo, em gestação, da latência e está destinado a os "estímulos" que lhe vêm do curso das coisas e a lhes "conferir", de
se tornar patente. uma só vez e sem esforço, a "extensão" e a "propagação" que reque-
Um momento tão crucial, porque servindo de limiar de uma fase rem; ou ainda, porque não presume nada (por hipótese ou por opinião),
a outra, não poderia deixar de ser representado no dispositivo mani- porque não projeta nada (sob a influência de seus desejos ou de suas
pulatório do livro: é seu elemento mais tratado, o mais móvel: O traço idéias), está apto a recolher as mínimas sugestões que o real emite e que
_ qualquer um dos seis - na figura. Ao passo que a figura do hexa- desdobram, nele, toda sua ressonância (segundo a muito bela mas di-
grama tomada em bloco, o gua, representa o "ser determinado" e, por- fícil expressão gan-tong 1nl ; cf. WFZ, pp. 554-555). A consciência do
tanto, estável, "das situações e dos existentes", cada um dos traços, Sábio, tal como encarnada pelo dispositivo do livro, é, portanto, um
yaolgl, representa "o estopim de uma ocasião/situação" (WFZ, p. 537). instrumento perfeitamente sensível que reage ao mínimo indício, e sem
A mais fi~a, a mais sensível também, das peças do aparelho (em maior o trair: por estar constantemente disponível, continua sempre "alerta" ,

224 François Jullien Figuras da Imanência 225


sempre "a ir" (o sentido de shen), porque ela não deixa jamais seu campo "obstrução" (aquela a que teria inelutavelmente levado a continuação
se restringir, não conhece também nem fixação nem bloqueio interio- do yin)lt). Consideremos agora globalmente os dois trigramas, inferior
res, corresponde naturalmente àquilo mesmo que, em seu princípio invi- e superior, que compõem o hexagrama: o trigrama inferior é Kun == ==,
sível, constitui o dinamismo do real. a "Terra", que encarna a imobilidade; o trigrama superior é Zhen =-=,
Essa dimensão da consciência que o Sábio desdobra em si, que o "trovão", que simboliza o abalo inicial (associado à primavera). As-
o livro também encarna, mesmo nós temos acesso a ela desde que não sim, "quando o repouso chegou a seu termo" (desenvolveu-se até o
deixemos nossa consciência se estreitar, por inércia, e se "reificar", fim: no final dos três traços yin), "daí resulta o movimento", que ad-
quando a mantemos ativa, em progressão e pronta para reagir: o diag- vém de modo lógico: o trigrama superior, que começa por um traço
nóstico da evolução que virá opera por simples elucidação da mar- yang, simboliza o estopim ainda ínfimo de uma modificação que vem
cha das coisas, diz-nos WFZ (p. 556) - o espírito dirigindo sempre substituir a continuação que estava se esgotando. Ou, ainda, Kun, na
sua atenção para o ponto de articulação, ou mais precisamente de parte de baixo, "serve para estabelecer a base do movimento"; Zhen;·
"conexão", das "coisas" e de sua "marcha" (em termos neoconfu- acima, "serve para colocar em marcha esse movimento": é que, como
cianos, do "ser constitutivo" e de seu "funcionamento", ti e yong(o)). é "lógico" (num pensamento em que os contrários se implicam em vez
Mas não seria preciso, entretanto, confundir essa capacidade espiri- de se excluírem), "o repouso contém em si o princípio do movimen-
tual com um desígnio contemplativo, e até uma pura intuição místi- to" e que, portanto, o movimento é sempre, nessas condições, "aqui-
ca. Essa detecção do estopim da modificação é concebida como dire- lo que se pode prever do centro do repouso"(u). Esse movimento, que
tamente eficaz, permite responder logo à situação que se anuncia, per- está solidamente ancorado no repouso de que deriva, é legítimo. Por
mite estar apto a reorientar sempre a tempo - quer dizer, no início isso, longe de figurar uma irrupção infeliz da desordem, esse hexagrama
_ nossa conduta 3 . (Isso vale particularmente diante de tudo que se pode denotar ao mesmo tempo o "impulso" alegre e sua "previsão".
esboça, como tendência, em nosso foro íntimo e com relação ao qual Pode-se analisar ainda mais precisamente do ponto de vista dos
essa detecção do ínfimo se traduz em escrúpulo; cf. WFZ, p. 517). sentidos simbólicos dos dois trigramas postos em relação a razão pela
Uma vez mais, não se deve distinguir entre a especulação e a ação, qual esse abalo inicial que a parte superior do hexagrama simboliza
essa noção é essencialmente prática, e seu alcance é moral. Segundo não constitui um "tropeço" (WFZ, p. 176) do ponto de vista do cur-
a fórmula seguinte do mesmo parágrafo (WFZ, pp. 555-556), "de por so do processo - um "obstáculo" com relação à sua normalidade-
si só, o estopim ínfimo da mutação torna possível realizar nesse mun- nem, tampouco, uma surpresa aos olhos do Sábio. Basta voltarmos ao
do o que aí convém fazer advir" (cf. também, "Grande comentário", valor encarnado pela parte inferior da figura, Kun, que constitui sua
B, §5: "O homem de bem, percebendo esse estopim da modificação, base: a virtude própria ao yin, à Terra, é, como se sabe, "se confor-
também logo se põe em ação 1p )"; WFZ, p. 596). Esse discreto esboço mar". É porque o processo "se conforma" a isso que constitui sua
que o Sábio percebe nas coisas é da ordem do "móvel" e da impulsão "constância" que essa irrupção repentina não permanece menos re-
(cf. o composto dongji lq )4): ao nos introduzir no estágio inicial da gy.lar; é porque o Sábio "se conforma" a essa "lógica" da regulação
modificação, ele nos põe diretamente em contato com o devir. que ele sabe prever a modificação que vai seguir e não se espanta lv ).
Dois hexagramas, na série das figuras, fazem uma leitura mais Porque ele sabe que os contrários "se contêm" um ao outro, que o
precisa do que é esse estopim ínfimo da mutação: Fu, o 24°, que já repouso não conseguiria, portanto, eliminar a virtude do movimento,
consideramos, e também yu ls ) o 16° ~~ (cf. comentário emWFZ, pp. mas, ao contrário, conduz a ele: quando, por conseguinte, "o movi-
175 ss). Nessa última figura, um traço yang, o quarto, eleva-se acima mento repentino surge", ele não está "na ignorância de seu estopim(w)".
de três traços yin "acumulados" um sobre o outro e figurando a "con- Pois de que se compõe essa capacidade de se conformar que é própria
tinuação" (não nos esqueçamos de que um hexagrama deve ser lido ao yin, cuja acumulação pode ser lida nos três primeiros traços da fi-
de baixo para cima): ele simboliza a "emergência" fora da "latência" gura (e que o Sábio soube atualizar completamente em si)? Ela con-
(de que ele se destaca assim para se tornar patente) assim como da siste, como vimos, no "repouso" (essa estabilidade do yin concordando

François Jullien Figuras da Imanência 227


226
com o movimento do yang) e se opõe assim à "perturbação" dos "de- mente em nós é também, lembra-nos WFZ, perfeitamente "racional"(z).
sejos" e das "paixões"; ao mesmo tempo em que no "vácuo" (face à Pois o Sábio chinês, como se compreendeu bem, não tem necessidade
plenitude do yang, cuja influência o yin acolhe em si) e se traduz as- de ser habitado por um poder sobrenatural que o inspira a se comu-
sim por uma libertação diante de todo "ponto de vista pessoal" e ex- nicar de modo imediato com O "Invisível", reencontrar o "Espírito":
clusivo. É, então, à sua serenidade interior, portanto, apenas à sua vir- ele deve ser concebido mesmo o mais distante possível da figura tra-
tude moral, que o Sábio deve essa dimensão da consciência que lhe dicional do adivinho que, presa do delírio repentino do vaticínio e
permite estar aberto à dimensão de invisível do real e perceber, desde profetizando com voz exaltada diante da multidão, entra em relação,
o começo, a mínima de suas modificações. por êxtase e por transporte, com um mundo do além. Mas sua cons-
Poderíamos ficar espantados com o fato de que o primeiro traço ciência, tornada coextensiva a todo o real, portanto contemporânea
do hexagrama nos seja apresentado como completamente negativo. também de todo novo ponto de partida, está sempre pronta, como o
Tanto mais que, como primeiro traço do trigrama inferior, tem como dispositivo do livro, a descobrir os esboços do curso das coisas como
parceiro o primeiro traço do trigrama superior, o quarto da figura, que esboços de sua vida interior - melhor detectá-los em silêncio. Seu saber
é o traço (yang) do abalo e da alegre progressão. Mas é justamente porque do devir não provém do fato de que sua consciência poderia ultrapas-
representa, sob O pretexto de melhor valorizá-lo e promovê-lo (cf. a fór- sar o tempo, atravessar alegremente seus limites, mas, ao contrário,
mula que o comenta: "o yu que retumba"), o contrário daquilo que a do fato de que ela chega a coincidir perfeitamente com o desenvolvi-
figura tende a recomendar: a justa previsão da mutação por conformi- mento dos fenômenos; nasce da estreita conivência que mantém com
dade interior e discreta à lógica inerente ao curso das coisas: tendo em seu desenrolar. Procede, portanto, inteiramente de sua virtude cons-
vista sua posição (bem no baixo do hexagrama, portanto na situação tante - a única - que é esposar simplesmente a imanência.
de maior fraqueza), ele simboliza por sua animação excessiva (a ir ao
encontro do quarto traço, o da progressão) a precipitação de quem,
antecipando a mutação - imaginando-o de antemão ou desejando seu III - O "LIMITE SUPREMO" DO PROCESSO: A UNIDADE
acontecimento, portanto bem distante da vacuidade e da serenidade NÃO TRANSCENDE A DUALIDADE
necessárias - não sabe respeitar o "momento justo" das coisas(x). A
isso se opõe precisamente o traço que lhe faz seqüência, citado como As duas noções acopladas de "modificação" e de "continuação"
modelo (cf. "Grande comentário", B, §5; cf. WFZ, p. 596) e do qual se aclaram a continuidade do processo; a de "estopim" da modificação,
diz: "Firme (estável) como uma rocha. Não [há necessidade de espe- intercalando-se entre as duas, torna perceptível a transição de uma à
rar] o fim do dia. Constância-fasto". Esse segundo traço, no centro do outra. Resta dar conta da dimensão de conjunto que assegura ao pro-
trigrama Kun, encarna o equilíbrio e a retidão à imagem da rocha que cesso sua coerência e sua unidade. É esse o objetivo de uma fórmula
permanece estável e não se deixa arrebatar por nenhum lado. Para quem do final da primeira parte do "Grande comentário": como que pre-
sabe permanecer assim, não há necessidade de esperar o ~'fim do dia": parando o inventário, ela nos dá a medida dessa globalidade (§1l; cf.
ele reage logo às transformações que se esboçam, no mundo como em WFZ, p. 561):
si mesmo, e nenhuma delas "escapa" à consciência da regulação que
suas disposições interiores encarnam. Por isso o Clássico da mutação contém o limite supremo,
Inútil ao homem, portanto, procurar calcular, esgotar-se em "es- daí procedem os dois pólos,
pecular", para prever a evolução que virá: ele pode ter dela uma apre- dos dois pólos procedem os quatro casos,
ensãodireta, diz-nos WFZ (p. 596), como quando sentimos chegar a dos quatro casos procedem os oito trigramas,
fome ou a sede(Y). Quando nossa consciência se liberta da agitação e os oito trigramas determinam o que é fasto e nefasto,
da parcialidade, a evidência dessa evolução se impõe a nós como uma do fasto e do nefasto [finalmente] procede a vasta operação.
íntima necessidade. Mas essa intuição que se manifesta espontanea-

228 François Jullien Figuras da Imanência 229


É sobretudo o primeiro termo dessa enumeração que, na medi- "limite supremo" designa apenas essa mesma dualidade, mas ele a
da em que pode servir para representar a origem, reteve a atenção dos evoca sob o ângulo de sua unidade. Quando digo yin e yang, digo um
filósofos posteriores: o "limite supremo" (taiji 1a ')). Com efeito, influen- e outro, eu dissocio. O "limite supremo" é o termo que serve para fa-
ciados pela exigência metafísica nova que o budismo, vindo da índia, zer o contrário: designa com uma palavra o todo que eles formam,
introduziu na China, os pensadores neoconfucianos foram levados a coloca à luz a dimensão inversa (e complementar) de sua dissociação;
ver nesse termo a chave de todo o sistema: considera-se, fazendo-o exprime sua correlação: eis por que é chamado também (desde Zhang
servir de termo primeiro, que forneça seu conceito ao absoluto, esta- Zai, séc. XI) de "suprema harmonia".
beleça o fundamento da realidade. É fácil então dar o passo que leva Além disso, para eliminar a ilusão que consistiria em conferir uma
a erigir a noção em entidade metafísica. Por isso, reagindo contra o realidade própria a esses motivos da origem e do limite, basta lembrar
que julga ser um desvio do comentário, WFZ nos convida a reconsi- que essa expressão se refere, antes de qualquer outra coisa, ao próprio
derar atentamente a passagem sem nada ler nela além do que ela diz. livro: não pode designar nada mais, em seu caso, senão a totalidade
Primeiramente, se esse termo aí aparece pela primeira vez, é também do dispositivo que ele instaura e que em seguida é decomposto para
sua única ocorrência em todo o livro: difícil, em conseqüência, fazer nós (não nos é dito: "existe o limite supremo", mas "a mutação [ou,
dele a noção-chave, esse conceito que estaria necessariamente sempre mais precisamente ainda, o Clássico da mutação] contém em si o li-
em causa, se todos os outros devessem depender dele. Em seguida, mite supremo"). Ela evoca a dimensão global dele- sobre esses di-
convém interpretar rigorosamente as duas palavras que o compõem: versos planos: tanto o fato de que Qian e Kun sejam instaurados em
"supremo" significa o extremo da grandeza "sem que nada exista conjunto (cf. o que se disse sobre a dimensão comunitária do yin e do
acima"; "limite" significa o fato de ir até o fim, isto é, que o caminho yang) com a totalidade que as seis posições formam entre si, ou entre
(da regulação) "vai até lá" e "chega ao fim". Assim, o limite supremo si os 64 hexagramas; ou ainda, o acordo que existe, do ponto de vista
designa simplesmente o que concebemos anteriormente como o fun- da manipulação, entre a "redondeza" da aquilégia e o "quadrado" do
do sem fundo do real: o fato de que, com relação ao grande processo hexagrama, entre a "flexibilidade" operacional de um e a "estabili-
do mundo, "não acontece de ele não chegar ao fim" e, ao mesmo tem- dade" direcional do outro. O fato de que a mutação (ou o Clássico
po, ao fato de que "não acontece que tenha um fim,,(b'). "É somente da mutação) "contém o limite supremo" significa, portanto, que ele
porque não tem fim que pode sempre ir até o fim". Por isso, segundo "possui em totalidade essa lógica": a da unidade pela complemen-
uma expressão posterior (a de Zhou Dunyi, do séc. XI), é esse "sem tariedade do real em todos os seus níveis. A noção de limite supremo
limite" que é, ao mesmo tempo, o "limite supremo"(c'). A noção que designa, então, com relação· ao Clássico da mutação, essa capacidade
serve para dizer a totalidade do real serve, portanto, para dizer tam- do livro de formar um sistema - com a condição de que ele seja, como
bém sua ultrapassagem. Se, na perspectiva chinesa, o curso do mun- se pode compreender, um sistema aberto.
do não abre para uma Exterioridade absoluta - que seria Deus, esse Na linha seguinte, os dois "pólos" ou as duas "instâncias,,(d')
processo do real, que é a única realidade, não se deixa encerrar por remetem bastante evidentemente ao yin e ao yang, que constituem entre
uma determinação particular, e portanto limitadora, seja ela qual for: si a totalidade do real. O que traduzimos aqui por "pólos" (cf. Philastre:
continua sempre aberto à sua renovação. os "dois equivalentes, ou regras"; Wilhelm: as ~'duas potências fun-
Que estatuto atribuir, então, a esse limite supremo que constitui damentais") significa aO mesmo tempo, segundo WFZ, que ambos
o fundo sem fundo do 1'eal? O termo designa a dimensão de conjunto "realizam por si mesmos sua constância", "dão-se â si mesmos sua pró-
do grande processo da realidade cujo desdobramento, damo-nos conta, pria norma" e "se manifestam para fora de modo regular". Quanto
é infinito, mas, ao mesmo tempo, não designa nada mais além desse ao "dois", ele diz ao mesmo tempo a oposição e a complementariedade.
processo. Ele não é, portanto, conclui WFZ, senão a outra designa- Assim, do ponto de vista de seu "ser constitutivo": um (o yang) é vetor
ção do yin e do yang. Yin e yang designam a oposição!complemen- de "energia", o outro é fator de "materialização", um é "animador",
tariedade que constitui todo o real e a partir de que tudo é gerado; o o outro é "animado"; do ponto de vista de seu "funcionamento": um

230 François Jullien Figuras da Imanência 231


(o yang) é "límpido", o outro é "opaco", um é "claro", o outro é "som- os dois fatores que o constituem (enquanto "pólos"). Essa recusa, como
brio", um é fator de "vida" , o outro é fator de "morte"; do ponto de se pode ver, é a de deixar a unidade se constituir em entidade metafí-
vista do "número", também: um é "mais" (yang: 7-9), o outro é "me- sica, à parte dos fenômenos: como ~'Ser"; de deixar hipostasiar o li-
nos" (8-6), um é "ímpar", o outro é ~'par". A lista de suas determina- mite supremo - que é sem limite: como "Deus". Na visão chinesa,
ções é, como se pode ver, fácil de ser preparada, "yin" e "yang" ser- na qual a realidade não é considerada senão sob o ângulo do devir, a
vem de rubricas para todos os contrários. Um único princípio, atra- unidade não transcende a dualidade, apesar do caráter sempre valo-
vés deles, torna o real inteligível: o de que seja mantida, sob qualquer rizador do termo que aponta para essa unicidade (aqui, tai: "supre-
ângulo, uma relação correlativa - de onde decorrem a possibilidade mo") e, "elevando-se" acima dos outros, deixa assim persistir no uso
de interação e o devir. a tentação de a idealizar; ela não se constitui, portanto, em terceiro
A questão residiria sobretudo no modo pelo qual esses três ter- termo que serviria para a reconciliação dos contrários, descobrindo
mos se ligam entre si, os dois "pólos" e o "limite". O que traduzimos para eles um além que lhes fosse externo: ela é apenas a unidade im,
por "proceder" significa literalmente "aquele [o limite] gera" (os dois plicada pela coerência interna ao processo, e toda reconciliação está
pólos), Mas essa "geração", observa WFZ (p, 562), e sua advertência compreendida desde o início somente no jogo da interação,
é decisiva, deve Ser compreendida de um ponto de vista estritamente
operatório: do ponto de vista da manipulação que nos faz passar dos
números obtidos pela aquilégia ao traço par ou ímpar (yin ou yang) IV - "A MONTANTE" E" A JUSANTE" DA ATUALIZAÇÃO:
que daí decorre, depois do traço ao trigrama, do trigrama ao hexa- NÃO EXISTE CORTE METAFíSICO
grama. Então se explica o sentido de ~~proceder de(e')". Pois isso não
significa absolutamente, esclarece WFZ, que o limite supremo assu- Uma outra fórmula da mesma passagem do "Grande comentá-
miria a função de "pai" (que gera), ao passo que os dois pólos seriam rio" permite explicitar ainda melhor o que parece, por comparação,
seus "filhos", Tudo "descende" apenas, de fato, da totalidade "abso- a recusa de toda opção metafísica na concepção do Clássico da muta-
lutamente suficiente" do yin/yang; e eles, como se sabe, são "sem iní- ção. A expressão coloca em relação os dois níveis do processo do real
cio", existem desde toda a eternidade. Nosso comentarista vai até - invisível e visível, normativo e concreto:
mesmo mais longe na determinação do erro que julga importante evi-
tar: isso não significa, conclui ele no termo desse desenvolvimento, que Por isso, o que está acima [a montante] da atualiza-
"o limite supremo se ergue sozinho acima do yin e do yang{f')". ção é o que se chama o caminho,
Ora, esse risco constituído, aos olhos de uma lógica que se quer o que está abaL'Co [a jusante] da atualização é o que
puramente processiva, por aquilo que não deixará de parecer então, se chama seu recipiente.
por contraste, uma deriva idealista, podemos analisá-lo ainda mais de
perto e lhe dar um conteúdo positivo, apoiando-nos na experiência da Um termo liga as duas noções assim definidas e serve de pivô para
filosofia ocidental (que WFZ, evidentemente, ignora em sua época): a a fórmula (xing lg')): escolhi traduzi-lo por "atualização" (diferentemen-
concepç'ão puramente operatória da "geração" à qual se mostra tão te dos intérpretes anteriores, que o traduzem por "forma": "o que está
ligado nosso comentarista se opõe tanto ao ponto de vista hierarqui- acima da forma" cf. Wilhelm, p. 360; "o que é anterior à forma", cf.
zante (que distingue degraus de ser) da ontologia como àquele, cria- Philastre, § 1209), porque esse termo é em si mesmo tanto verbal como
cionista, da mitoteologia. Ora, essa dupla recusa se funda numa mes- nominal e porque significa, portanto, aqui, segundo a lógica do devir
ma justificativa teórica que pode ser aqui enunciada com perfeita cla- contínuo que o Clássico da mutação desenvolve, "tomar" forma, tor-
reza: a saber, que a unidade não deve ultrapassar a dualidade, que o nar-se concreto. Ao mesmo tempo, o "acima" e o "abaixo" devem ser
limite supremo não deve "se elevar acima", como diz WFZ, do yin e concebidos também como um "antes" e um "depois", quer dizer, desig-
do ya'ng. Dito de outro modo, o todo (o "limite") não é nada mais que nam o a montante e o a jusante do mesmo processo. Mas esse a mon-

232 François Jullien Figuras da Imanência 233


tante da atualização, em si mesmo, não é simples e reveste duas mo- de qi(l')): na visão funcional que o Clássico da mutação desenvolve, o
dalidades diferentes que WFZ (p. 568) analisa com precisão: por um estatuto do concreto é servir de "instrumento".
lado, no estágio em que "a atualização ainda não está realizada", ele Pode-se, então, distinguir dois níveis diferentes num processo, mas
evoca a "norma natural", "invisível", que o curso do processo "não ao mesmo tempo, chama-nos a atenção WFZ, esses dois níveis não po-
poderia transgredir"lh') e de onde decorre a atualização: esse "cami- dem ser definidos senão por referência a um mesmo termo, o único de
nho" (da regulação) é aquele que a natureza segue para "transformar" alcance global, que é a "atualização" desse processo. A observação se
e fazer advir, que também o homem encarna por sua capacidade mo- reveste de uma importância particular no que concerne a esse "cami-
ral (uma vez que, como vimos no capítulo anterior, a moralidade só nho" invisível (da regulação) que está "a montante" da atualização:
"continua" a regulação natural); por outro lado, no estágio em que a assim, é a atualização, e só ela, que permite, "no estágio anterior" à
atualização está realizada e se tornou manifesta, esse a montante da atualização (isto é, num a montante temporal), que "a capacidade natural
atualização evoca "aquilo que pode usar o que foi atualizado de modo a que se deve seu advento seja manifesta" e que, "em seu estágio pos-
a manifestar a capacidade que lhe é natural(i'),,: assim, no mundo, é terior" (uma vez advinda a atualização e, portanto, segundo uma an-
isso que permite tanto ao "carro" "veicular" como ao "recipiente" terioridade de princípio que se exerce no interior da atualização), "a
"conter"; e, no homem, são os sentimentos morais particulares que eficácia que permite seu uso" (ou seu exerdcio) "seja determinada",
ele comprova segundo a diversidade das situações - "piedade" filial "Manifestação" ao mesmo tempo que "determinação": o "caminho"
ou "benevolência" paterna, "lealdade" para com seu senhor ou "po- invisível que leva à atualização, e a rege, o "Tao", é, em todos os ca-
lidez" do soberano com relação a seus súditos. Num e noutro caso, o sos, indissociável dela, só pode ser concebido, portanto, na dependên-
"caminho" da regulação, o "Tao", não poderia ser visível: ou porque, cia daquilo que, enquanto atualização, é da ordem do fenômeno,
precedendo a atualização, ele ainda é "latente"; ou porque, quando a Essa complementariedade do invisível e do visível, do "caminho"
atualização se realizou, ele está "contido" em seu interior. regulador e do concreto instrumental (dao e qi), nos é, além disso,
Ele não é, portanto, apenas anterior à atualização, ele lhe é tam- mostrada por WFZ no dispositivo instaurado pelo Clássico da muta-
bém interior. Contra aquilo a que nos levaria pensar uma concepção ção: por um lado, os "hexagramas", as "fórmulas" que os comentam,
demasiado figurativa, e portanto ingênua, desse "a montante", o aquém os "símbolos" que os representam, são a parte manifesta do livro, o
da atualização pode ser pensado do mesmo modo: sua anterioridade que lhe serve de utensílio; de outro lado, o curso que, "procedendo
(com relação à atualização) se traduz em seguida em princípio de efi- por modificação/continuação", culmina nesses objetos e os faz servir
cácia (ou de "funcionamento") de que essa atualização depende. Esse é seu "caminho" invisível. O modelo assim conseguido se presta tam-
caminho da imanência que o processo do real segue é ao mesmo tem- bém, sem esforço, a uma leitura ideológica (o social e o natural são
po aquilo que precede a atualização e a faz advir como ela deve advir considerados homogêneos na China) e WFZ chega a nos mostrar essa
e aquilo que, dentro da atualização então advinda, permite que ela se complementaridade dos papéis que estrutura a sociedade: aquilo de
exerça e se desdobre como deve. Ele é, portanto, a função normativa que "o povo se serve" é a "instrumentalidade" das coisas; ao passo
do real que é ao mesmo tempo sua função natural: encontramos aqui que aquilo que o pensamento do Sábio introduz ocultam-ente nela, e
novamente a mesma assimilação anterior - que é característica do que permite incitar e promover a marcha das coisas, é o "caminho".
pensamento chinês - entre o "racional" ou o "lógico", como dever Ora, contrariamente àquilo que poderia levar a pensar à primeira vista
ser, e o que advém, ou se exerce, sponte sua (cf. o sentido de dangran(j') a comparação, o mais notável, nessa ilustração da relação, não é tan-
que é conceptualizado aqui e significa ao mesmo tempo "como con- to a posição eminentemente superior do Sábio com relação aos outros
vém" e "isso é evidente"). O que está "a jusante" da atualização é, homens - que esse contraste estabelecido entre eles supõe - , quan-
em si, simples de ser definido: é "a realização concreta dessa atualiza- to o fato de que o a montante invisível do "caminho" possa conseguir
ção", ao mesmo tempo "visível" e "tangível,,(k'); contém em si o "ca- se encarnar totalmente, através do Sábio, exclusivamente no plano hu-
minho" da imanência, como um "recipiente" (cf. o sentido primeiro mano: o que mostra a que ponto o a montante e o a jusante do pro-

234 François Jullien Figuras da Imanência 235


..
"

cesso, o invisível e o concreto, são considerados como parte integran- tura no seio do real. O gesto inicial da metafísica é, como se sabe, cindir
te da mesma realidade. dentro da continuidade das coisas: como condição prévia ao advento
Como não atribuir uma importância decisiva a essa interdepen- da ontologia, uma "linha" é "cortada em dois" (gramme dicha tet-
dência que nos é mostrada entre o aspecto atualizado do real e, por meméne: voltamos sempre a esse texto fundador: República VI 509d),
outro lado, o "caminho" que conduz a essa atualização e que lhe per- separando assim o visível e o inteligível, os orata dos noeta. Ora, vi-
mite exercer sua função como deve, já que é ela que torna possível que mos como WFZ insiste, ao contrário, em seu comentário da fórmula
nós apreendamos o caminho através do instrumental e que apreenda- canônica, na impossibilidade de toda dissociação: o a montante invi-
mos o visível através do invisível? Só a experiência do concreto, diz- sível do Caminho só é concebível na dependência da atualização feno-
nos com efeito WFZ seguindo a exegese da fórmula (p. 569), nos co- mênica, e estou sempre apto, a partir do concreto, a remontar a seu
loca diretamente em relação com a dupla dimensão, ao mesmo tem- fundamento legítimo, à fonte de sua eficácia.
po anterior e interior, do caminho da regulação. Pois, ao considerar o
aspecto "específico" que caracteriza cada atualização, posso apreen-
der a lógica de modificação/continuação que leva a seu advento: as-
sim é "possível", "através do concreto", "perceber" o caminho{m'); do
mesmo modo, ao tirar "proveito" de cada atualização segundo o "uso"
que ela desdobra, posso apreender a lógica que lhe é inerente: nesse
caso, é "possível" "no contato com o concreto" "encontrar" o ca-
minho{n'). Dito de outro modo, basta que um carro me sirva para trans-
portar, ou que um recipiente me sirva para conter, para que eu expe-
rimente logo a dimensão invisível do processo do real, que é também
sua função normativa, o "caminho" da imanência, o "Tao". Como
poderia, então, existir, nessas condições, conclui WFZ, um "mistério"
do invisível?
Toda "forma" é uma atualização do invisível, todo concreto é
uma concreção mais ou menos durável do invisível (que dele procede
e está destinada a se reabsorver novamente nele): quer me proponha
justificar a existência atual desse concreto ou, simplesmente, faça uso
dele; quer contemple o processo do real através dessa ou daquela de
suas lógicas particulares, quer vá ativamente ao seu "encontro" por
minha conduta, o sensível me dá diretamente acesso ao invisível, o "a
jusante" da atualização me esclarece seu "a montante". Para dar conta
da totalidade do real, para remontar até seu fundo oculto, a visão que
o pensamento chinês tem do processo e a que o Clássico da mutação
dá forma não precisa de nenhuma Revelação religiosa em que o divi-
no se entregue por sua Palavra, de nenhuma aparição maravilhosa em
que o mistério consinta em se desvelar. O caminho da imanência se
aclara por si mesmo, apenas pela experiência, e sem ter necessidade
de uma mediação. Ele não só nos dispensa de todo recurso à exterio-
ridade de um absoluto divino, mas faz ainda a economia de toda rup-

236 François Jullien Figuras da Imanência 237


EPíLOGO em que condições de possibilidade, de ordem teórica, temos devido
pensar o Ser, postular Deus. Se, até nossos dias, a filosofia ocidental
não conseguiu sair da questão do "ser" - apesar de sua espantosa re-
novação, ela continua obcecada, até mesmo em seu" Deus está mor-
to", pela idéia de Deus - , o Clássico da mutação basta, de por si, para
nos fazer reconhecer que um pensamento coerente sobre o real se de-
senvolveu paralelamente, na China, sem ter necessidade de se interro-
Terão sido suficientes essas poucas figuras e, em seguida, essas gar sobre o ser, e que nele o pensamento de Deus, que teria podido
poucas fórmulas, para nos conduzirem para uma interrogação de fun- eclodir da religiosidade primitiva, logo perdeu sua consistência - e,
do. Pois esta ultrapassa, por sua amplitude, o objeto mesmo do Clás- a partir daí, enquanto idéia, sua pertinência. Essas questões que nos
sico. Ela chega a nada menos que colocar em questão nossa represen- colocamos (que não podemos deixar de nos colocar no quadro da tra-
tação de um texto reflexivo. (Não digo "teórico" porque, antes de mais dição ocidental) não se colocam nesse outro contexto: elas não devem
nada, estamos envolvidos aqui com manipulações; nem "especulativo", ser colocadas aí. A invenção da metafísica, com a qual a história de
porque uma pesquisa abstrata não é aqui o primeiro objetivo visado.) nossa filosofia tão amplamente se confundiu, percebida sob esse ân-
Ao mesmo tempo, o I Ching é o contrário de uma obra dogmática. gulo, não representa mais do que uma aventura muito particular no
Essa interrogação está ligada, portanto, à própria natureza desse tex- esforço do espírito para aceder ao real. O que não implica, de minha
to: qual pode ser a legibilidade de uma obra do pensamento, como o parte, nenhum julgamento crítico, ainda menos cético, pois me torno
I Ching, que, como constatamos, não repousa nem na exploração de ao contrário tanto mais sensível ao que pode haver de fascinante nes-
uma história nem na formalização de um raciocínio? Pois não fomos sa aventura, que não mais considero como um desenvolvimento ne-
levados, na leitura do texto canônico, nem pela tensão de um drama cessário (do "progresso" do "espírito humano") e cuja originalidade
nem pelo progresso de um argumento. Em outros termos, um texto avalio: ao reconsiderá-la assim de fora, ao desfamiliarizar-nos com ela,
como esse não provém nem do mythos nem do logos, nem mesmo se ao trazer à luz os partis pris escondidos que a fundaram (e fecunda-
desenvolve entre os dois, mas se desdobra num outro plano. Não so- ram), gozaremos mais plenamente de sua criatividade teórica. Ao mes-
nha com a ficção nem com o desejo, nem faz apelo, em nós, para eles: mo tempo em que descobrimos no pensamento chinês, tal como for-
os motivos imaginados que servem para colocar em cena os diversos malizado pelo Clássico da mutação, não um pensamento que perma-
traços limitam-se a seu valor de emblema, não se ligam entre si para neceu em sua infância (como Hegel gostava tanto de acreditar), cujo
nos convidar a uma construção simbólica. Ora, esse texto nem ao desenvolvimento seria interrompido no estágio "cosmológico" (sem,
menos demonstra: ocorre um desfiar de fórmulas, correlações entram portanto, se elevar aos estágios, considerados superiores, que seriam
em jogo, sem que nenhuma outra ligação formal seja exigida para a "onto" e a "teo"-logia), mas uma reflexão que não parou de se de-
assegurar seu encadeamento. senvolver, favorecendo uma compreensão processiva da realidade, e
Ele não inventa nem prova. Que inteligibilidade, então, é a sua, que culminou numa lógica de um outro tipo: a da imanência.
que inteligibilidade pode ele produzir? Não abre para nenhum alhu- Uma lógica da qual se pôde constatar que chegou à sua maturi-
res nem nos descobre, em nós, a infinitude da alma e de sua aspira- dade, desde o "Grande comentário", no final da antigüidade chinesa
ção. Nem procura fof'mular uma verdade. Mas esquematiza coerên- (sécs. IV-I1I a.c.). Ela possui, com efeito, seus próprios modos de con-
cias, elucida funcionamentos. Dá conta da lógica segundo a qual evo- ceptualização que não procedem de saída por abstração e construção
luem os processos, torna-nos atentos à sua regulação. de noções, mas provêm de figuras com valor de diagrama: traç0s con-
Por isso somos levados a melhor tomar consciência, voltando ao tínuo ou descontínuo que oferecem a representação mais geral para
pacto "ontoteológico" que descobrimos em todas partes no embasa- toda alteridade, trigramas e hexagramas que fornecem uma tipologia
mento da reflexão "ocidental" - nascida na Grécia: a melhor avaliar completa, seja reduzida ou desenvolvida, das variações possíveis; e,

Figuras da Imanência 239


238 François Jullien
também, as posições que, de um a seis, no hexagrama, servem de mo- duas tradições culturais - a "chinesa", a "ocidental" - que nenhum
delização para a trajetória do desenvolvimento das coisas (do traço elo histórico une). São essas linhas de demarcação possível, que ser-
"oculto", na base da figura, ao traço superior que evoca a ameaça de vem para a clivagem, que tentei esboçar anteriormente: conhecimen-
um bloqueio e a necessidade da transformação). Ela possui também to objetivo ou processivo, alma ou animação, estatuto do ser ou do
sua própria aptidão para formalizar o enunciado, que, como se viu, devir, transcendência de Deus ou imanência da regulação ... Tantas al-
está menos ligado aos diversos modos de subordinação do discurso ternativas que, para serem fecundas, devem proceder de um enfren-
(estes por sua vez ligados à diferença gramatical dos casos e ao tecido tamento mútuo, do trabalho recíproco de um campo sobre o outro,
conjuntivo que caracterizam as línguas indo-européias) quanto aos e não provir de um simples efeito de projeção: ao servir de articulação
recursos da oposição e da correlação (que a estrutura da língua chi- para a diferença - ou melhor ainda: ao elaborá-la como alteridade
nesa, monossilábica e isolante, favorece e que o paralelismo, como ve- - , elas deverão permitir erigir essas representações culturais em ver-
rificamos, realça). Ela possui também sua técnica própria: essa técni- dadeiro confronto. E, a partir daí, torna-se possível uma interroga-
ca repousa menos sobre uma arte da demonstração que opera por ção de uma à outra.
dedução e visa a provar uma verdade atemporal do que sobre uma Pois quando a comparação se reduz a uma demão de verniz, uma
relação de conversão - entre figuras - que visa a realçar a coerência cultura surge apenas como o reflexo da outra - e como um reflexo
da mutação. Ela possui, finalmente, sua própria sistematicidade: esse invertido ou deformado ou empalidecido. Haveria uma lição a se de-
conjunto, ao mesmo tempo completo e articulado de modo necessá- duzir, nesse sentido, da sorte que foi reservada à última fórmula ca-
rio, que o dispositivo do livro forma em todos os seus níveis e que nônica que comentamos. O paradoxo, com efeito, é que os chineses,
designa seu "limite supremo" como absoluto do processo. Temos pela quando entraram em contato com o pensamento ocidental, no final
frente, então, um pensamento forte, solidamente equipado, muito fina- do último século, não souberam traduzir de outro modo a noção de
mente elaborado, cuja maneira particular de operação é preciso co- metafísica, que aí descobriam pela primeira vez, senão recorrendo a
meçar a reconhecer. Com o risco, se isso não for feito, de que o diálo- essa fórmula do "Grande comentário": esse "acima da forma" (da atua-
go entabulado com ele fique, desde o início, completamente falseado. lização) recobriria palavra por palavra o nosso termo "metafísica".
Não é preciso considerar, segundo me parece, nem que as con- Uma preposição análoga ("acima" - "além") comanda, realmente,
dições de um encontro entre culturas nos sejam dadas de antemão cada um dos termos, até seria possível acreditar que um foi calcado
(como se elas estivessem inscritas inicialmente em uma delas - que no outro. Além disso, esse uso foi o que se impôs na China depois
fosse então se instaurando como norma e critério: o preconceito de (xingshangxue(a) = "metafísica "). Ora, assim procedendo, os chineses
etnocentrismo), nem que essas culturas se encontrem numa impossi- traíam de todos os lados a fórmula original: primeiro, como vimos, o
bilidade irremediável de se comunicarem (cada uma se fechando en- termo que serve de pivô à expressão chinesa não é a "forma" como
tão em seu "Mundo" e na sua "mentalidade"). A propósito da com- noção estática, mas o fato de "tomar forma", de se atualizar: perdia-
paração, como de outros tópicos, o esforço da reflexão é ultrapassar se de um só golpe, na representação chinesa, a originalidade (com re-
as posições antagônicas, igualmente estéreis, de um dogmatismo in- lação a "nós") de uma abordagem processiva da realidade, diferente
gênuo e de um ceticismo preguiçoso: essas condições do encontro en- da determinação imóvel e atem parai dos níveis de ser - que é pró-
tre culturas devem ser elaboradas pacientemente, por esclarecimen- pria ao pensamento grego; depois, a expressão do Clássico da muta-
tos sucessivos, a partir 'dos pontos de referência mais simples: que co- ção que evoca o "acima" ou o "a montante" da atualização não é
meçamos a constituir para nós de um lado e de outro; porque estes, isolável, mas deve ser lida em paralelo com a expressão, oposta e com-
ao se unirem e se articularem entre si, determinam progressivamente plementar, que lhe faz seqüência ("abaixo - a jusante - da atuali-
eixos que conseguirão focalizar a diferença (e permitem, assim, se al- zação"): esses dois estágios são indissociáveis um do outro na expres-
çarem fora da indiferença primeira, anterior à distinção operatória do são chinesa considerada em seu conjunto, e o efeito de paralelismo (que
mesmo e do outro, na qual se encontram, uma diante da outra, essas implica a correlação) proíbe todo corte dualista no seio do real- ao

240 François Jullien Figuras da Imanência 241


qual a metafísica deve seu advento; finalmente, o uso formalizado dessa dros e os utensílios da representação se tornaram estandardizados, só
expressão chinesa requisitada para servir de dublê ao termo metafísi- poderemos sempre encontrar mais ou menos a mesma coisa, de uma
ca deixou cair da locução, porque era incomodamente excessiva e tida cultura a outra, e mesmo naquela que estiver mais "distante" de nós,
como quantidade negligenciável, a "palavra vazia" er 1b ) que conferia mesmo na China: essa uniformização das categorias (essa koiné con-
aos dois membros da fórmula sua vocação dinâmica (palavra por pa- ceptual), sem que percebamos, funciona como uma cortina; recobrindo
lavra: "atualização-er-acima"/"atualização-er-abaixo"). Ora, essa pala- a tradição chinesa, ela a torna irreconhecível e nos impede de extrair
vra "vazia" não só introduzia uma aspiração comum às duas expres- o que ela pode possuir de mais original.
sões paralelas e criava um efeito de retorno, de uma e outra parte, Nietzsche já alimentava a suspeita: a "atividade filosófica" não
graças ao qual o termo atualização podia servir de pivô e a fórmula passaria talvez de uma espécie de "atavismo" (eine Art von Atavismus),
canônica podia oscilar entre uma ou outra direção, mas cabe ainda a mas certamente de "alta classe", tanto uma tradição filosófica apre-
essa palavra exprimir precisamente, enquanto utensílio sintático, a senta um certo" ar de família" que se fundaria de início no parentes-
transição (er: isso "se torna", "chega a"). Se, portanto, essa palavra co lingüístico (para nós, o do indo-europeu). Não existiria, portanto,
não "significa" nada de um ponto de vista das essências, ela exprime, uma chance, para a filosofia contemporânea, de poder sair da falsa
em compensação, nessa expressão canônica, o caráter constantemen- evidência de seus próprios recortes - sendo esta simplesmente her-
te em curso da realidade. Sozinha, ela faz experimentar a dimensão dada - ao encontrar um outro pensamento, como aqui o do [Ching,
do devir, evoca o desenrolar da transformação. É ela que, enquanto quer dizer, ao fazer a experiência de uma outra inteligibilidade (outra
palavra "vazia" (e porque é uma palavra vazia) serve de representa- não tanto por seus conteúdos, mas por seus modos de elaboração)?
ção - porém oca - para o desdobramento da imanência, nos diz o Uma que poderia não mais se interrogar apenas de dentro, a partir de
funcionamento processivo da realidade. sua própria história, mas considerar-se também de fora. Quer dizer,
Esse exemplo bastaria para nos mostrar que o risco de projeção, encontrar finalmente um fora de si mesma (e que já não seria mais
de uma cultura a outra, não é o único obstáculo para a validade da projetado por ela), sair de si. Uma ocasião, para ela, de remontar a
comparação e que é preciso tomar cuidado também com as aproxima- suas escolhas implícitas, seus partis pris enterrados; e, por aí, ao de-
ções. Como acabamos de ver, o que nos parece equivalente entre cul- salojar seu próprio impensado, renovar com mais audácia, porque de
turas (quer dizer, aquilo que "corresponde a", que "ocupa o lugar de") modo mais radical, seu questionamento.
pode se revelar, no fundo, ser o mais diferente. E esse risco é tanto maior
hoje, quando vivemos a uniformização das culturas e quando o apa-
rato conceptual produzido no Ocidente termina por invadir o mun-
do, via ciência e técnica. Decerto, é forçoso reconhecer que existe uma NOTAS
comodidade própria ao conceito e a seu modo de aparelhamento: gra-
1 A título de exemplo, e aplicando esses conceitos no terreno de nossa pró-
ças à nitidez de seu recorte, portanto ao caráter explícito das relações
pria história: a França do século XVIII representava um "esgotamento" da conti-
que mantém no interior do arsenal teórico, o conceito é o veículo do nuidade anterior, a do Antigo Regime; a Revolução de 1789 operou uma "modi-
pensamento que menos se embaraça com as referências textuais, por- ficação" necessária, mas que não podia durar como tal, e o século XIX é a histó-
tanto aquele cuja circulação, através dessa independência, é a mais eco- ria da "continuação" que se desdobra a partir dessa mutação segundo uma lógica
nômica e a mais fácil (mais cômoda sem dúvida que o jogo das corre- de "adaptação" (cf. os diversos regimes constitucionais que se sucedem para che-
lações chinesas, com seu funcionamento em rede e suas associações gar à III República, regime mais durável que consagra o triunfo político da bur-
guesia que havia operado a transformação revolucionária um século antes).
implícitas - aquelas mesmas que exigiam uma formação "letrada").
Por isso, o recorte conceptual produzido pela filosofia ocidental, e que 2 A expressão resumida da fórmula canônica é, com efeito: "da modifica-

as ciências humanas desdobram, tende a se impor por toda parte, de ção decorre a duração"; cf. por exemplo a conclusão do capítulo "Modificação/
Continuação" da grande obra de teoria literária dos séculos V-VI, o Wenxin diao-
modo utilitário, no trabalho do pensamento; mas, desde que os qua-
long: "a modificação permite a duração, a continuação permite não faltar!")".

242 François Jullien Figuras da Imanência 243


3 Essa intervenção é tanto mais fácil quanto mais cedo ela ocorrer: a ten- GLOSSÁRIO
dência que se esboça resiste tanto menos à nossa iniciativa quando ainda não atua-
lizada, quando é ainda relativamente flexível e maleável e não nos constrange por
seu caráter concreto.

4 Eis por que preferi traduzir a noção de ji pelo termo "estopim" [em fran-
cês, amorce], privilegiando a óptica do movimento e do funcionamento, no senti-
do em que se diz "amorcer une pompe", "amorcer un tournant"; cf. a expressão
canônica: "o estopim é o ínfimo do movimenro'*).
CAPiTULO 1
a) Tui xingming zhi yuan .#.. t!. 4f'- ~ llt..
b I Si sheng tong kui "" -1l' li).tl!-
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gl Ru shen ... .", qiong shen :i '-t
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il Quan xiao qi ti, gu qu jin qi yong -t- ~ .:k 1*-. ~"1:.:k J/l
iI Fan e wei -f!.. ' iIl
kl Zhi ze .f. iIk
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ml Qu er zhong .. .., t
nl Si er yin .. t.;jI 1t
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pl Gua e xiang 41, , ~
ql Yi gua quan ti zhi cheng xiang -l~ 4-il "'-S<.I-
ri Yao you deng 1..1" f
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ti Yi xing qi dianli ,.{ iT ~ J!. ;;.{
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vi Jing -#
'* . til.

w) Xiao no sentido de cheng xiao a... .! jt,.


xl Ci lf
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244 François Jullien Figuras da Imanência 245


a') Zhan J; k) Yuan JL
b') Xi li yu hao fa zhi iian ,H;:r. l' ,h1/:- <:. '.li 1) Xingqi shuchang zhi qi, wei qi chu ii ~>I!.4t"ó:.."", .!l..Ah~
c') Yi yuan tianli zhi ziran ..;, J.t../....."t .ã:.. a!! m) Ming ren wei xing +A-;' +!
d') San cai, san ji .=:. :t , y-:#!! n) Ren 1':"
e') Zhen e hui Á, .t,t o) fue .f.
f') Jiang ying tian xia jie yi, wu tei zhong yi ;tt ~ 1... í- .,. - , ~,i~ .;-* p) Qing ti
g') fiang ying tian xia iie dao, bu iian zhong yi ~f 1. ~ " 'f J., ,.,~" +~ g) Hua ,l:-

h') Yi zhong zhe bu yi, liang zhong zhe yi - "''' Ã, ~, iIli <f:f J r) Heng l'
i') Ying A, s) Pin 1d
j') Fu ..,. t) Li .,f,)

k') Cuo .fi- u) Zhen Á

1') Zong ~t.


m') Sui you da cheng zhi xu, er shi wu xu
n') Bu ke wei dian yao ;;r- .,. Ih-f/l;-t-
'fi. 'ií J;.1!i,. ,', A-, .li> 'f.""" v) Zheng er gu j!, ~ til

w) Ze ,t-] ; xing 'J'.!, ; ming


x) Qi ming zhe, wu fei cheng ye
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o') Dang - bu dang 'J:, ;;;-t y) Kang ;t.

p') Cheng e cheng ,j{, ;t,. z) Li shi Ir. "*'


g') fi e xiong ã, :t. a') Tiandao ~il ,tianyun "-.il..
r') Shan -J. xingt4 b') Zhi yi yi qiang guan hu wan iL-'·J.~i1' -t J,
s')fie 11- c') Bu ke wei shou ;r-.,. II.-t
r') Xing e ming -t , 4"- d') Tian wu li ti 1...'@! 11 11

u') Shi e de *, i'" e') Wu ti bu yong, wu yong fei qi ti


f') Shi - sheng --ià, j:..
-!!:ft-r-M,..ff,J111J1;Jt.tt

CAPÍTULO 2 g') Xing - xing .e. '11-


a) Qian - Kun ..fê.. I if h') Shang :t ' yi .t<.
b) Bu ke yi ;j, '!f-l; i') Wen zai zhong :J..A. 'i'
c) Zi; zhi zu 'A: ; .!. ,'t
d) Yi zhi ti; yi zhi yong -I; ,;,."Jt) 1;,;",1iJ CAPÍTULO 3
e) Gang - rou .,.j..f.. ; e também queran - tuiran 4 ,If.:.~ ~!t; a) fia0Jt.
4t. ti
f) Shu e iie b) Tong .i...
g)jian - 1it, 11
shun c) Wang-lai -li. • *-
h) Zhai chu tili;i;. d) Ruo pi ze shen qi bu liuxing yu xingzhi, er zhi qie gao

i) Zhuan 4P.c -,ll- -t- '-J '·U" ,'1{'H' .JIHt. -~ ~.tiI.


j) De ..:t,
e) Heng l'

246 François Jullien Figuras da Imanência 247


fi fi 1; jl Xian zhi yu xiao pi ye po .i( i<.~i/I"{;.t.a.
gl Tai, da ye, an ye J.-, A.~. 41:-.4.- kl Heng zhi yu bao tai ye iian ·ti ,z".lt.fl:.....c. Jf-
hl Yi wai ying wei ii ,:1,91- .t-Jo T li Yin yang zhi dong ii I'i'1ti<.#J~
i) Huai yuan zhao xie il4..~'" ml Xiang chi er bu xiang iiu :úI.ttJ!>;r-:úliL
j) Wu shi xian yi jue wu !8 it 't "J.. u.. .. nl Xiang chi er zhong bu zu yi wei gong il.tt.li>~;:J:Â".I.j, s,./J
kl Bao tai ,-f.!: j.. o I funá bu liang er zhen 'ft ~ ;:J: 1i.li> I

li Ziran zhi lishi • !f. i<.~ #- pl Li ben qu shi ~ -*'-:Il!-t


ml fi zhi zhe nai fei ren ye ~:t.:f)3 li\A-.t, q) Min e jun "-/~ ,zhi e wen l. ~ , qing e shi ti- j ,de e xing -li:,-flJ
nl Li e zhen "-'l. A r) Ziran zhi li • ~~ ...

oi De e de -i!- , -If si Sun qi yu .iA.JI,.t.-


p) Yi jian zhou zhi ge shang, nai yin yang lishi zhi ziran ti Xiang (u a,J-
, .. ,t, ~ "'-,.. iIi. A ~ 1! i'- 8 ~; ui Ying you shi .t-ffllt
ql fi zi hui er dao zi ming. shi yi/i zhen il. a ~ J!>.i1.1J !!li, ""v.l.-ó') J. vi Shi yi bu zhi .If ...q; i-f
ri Bu yu yin zhi hu wu yi zi iue ;r- .>.iUt;-i:. U...-t .1. a N.. wl Yu zhi sheng zhi zhong zao you hu dong zhi ii -f ..t. j.-":.</'..f>li j,1/I.oI:.A
s) Xiao ren de wei xing zhi, er neng cheng shun hu yang er ying zhi, ji yi xl Yu shi iie xing ~ot'f~T
'1- Á... . . i./>.-i-j'.t, .li> '\t;f~>lJ. -t 1t .lP1.t.é.." 1;-9< y) Bi yi jian wei tui yi, er wei bian zhe yi zao bian qi gu
ti Er .li> ~ vÁ,:foi j, .1It~}, .li> ,t.>t::t e..f~";' 'li..
ulfi ~
z) Yi ze quan qi wuang, yi ze zhi qi zheng, cai cheng zhi dao ye
vi Xiao qi pi i~':;'~­ -.1M""'~:t., - A-) -"'..Jf,.u.. t\ .iIí. õ:..J!...e..
wl Xiu pi #..{; a'l Fan yi zhi dao, yu shi iie xing A..A. i<.ll.,~tt'fAt
xl Qing -foA b'l Yi wu (ang .A..íJ.-:Ii
c'l Shen wu (ang :i-f ~ -;I;'
CAPíTULO 4
d') fia0 !in er wu yi wu zhi xin lIt.$..h.il."':k...,s
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e'l Yi yin yi yang zhi wei dao - r.t-- ,. i<.1f 4..
b) Wu zhi xiang yu jie zhe, bi qi xiang gan zhe ye
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g'l Yi bu ce wei shen ".I..;f- lll» J,:t-t
cl Yi cheng hu pi, ze bu de bu dong yi gan e.. Si. -t -li, .fJ;f. *;;r- -f/l ,,,-A
h'l Zhi wu ding zhu ,-!,.J)!,;t:t. , dao wu shi cong JWt-llt
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k'l Xiang zhi "ti - xiang ying JI~
g) Fu you suo yu, ji yi qi liu xing zhi ji ying zhi
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hl Shen-hua A-t, ~I:.. m'l Zhi za er bu chun, wei da luan zhi shi .l. ... "';:J:~t • ."J.. at. "'- ti:
il Kong yi chu er bu neng zi chi ye !fi - • .li> Jf.~ • .tt ..... n'l Zhi zhong er wu quan -t:l-t ~.$:.ft

248 François Jullien Figuras da Imanência 249


o') Cou an aj~ u) Dong zhi duan nai tiandi zhi xin 1:b::2:..~)l J....~~j.y~
p') Bu xu zhong ;r:.~ ~ v) Liu yu li yu iA, -t ,\>, ~
q') Qian kun zhi yi jian .JtJt~-J 1Ij w) Xing -li!
r') Xian zu zhi ii zhi i't'liLL-ttr J.., x) Yang zhi dong ye, yi nian zhi ji wei fa yu e qing
s') Cang rou ying 1IJi-*'4, 1j- "'-"*,4,-, - -11- "'-4t -lit>lfd ~ -A-
r') Ce shan qi suo li er zi qi qing zhi suo an ,.r"..Jt ~ ~""J .li> 'i,$.. ~.!:,.~ y) Wei ti wei er wei yong zhi da í.1i""~';' JO.i.Á.

u') You fu "i.$o z) fue yin yu wu shi zhi di Mlt-f-&'f"'-~

v') Ying com relação a fu . . . .$- a') Yin zhong cheng qi shang er bi ni zhi tt-~4t..$...t. JjJ ~ J1(..iL.

w') Yi zhi bu ke wei dian yao -t~;r:. 'f ;f,~.. b') Fang yi iu yu iu wai ,,:t liJó--t iZI ~I·
c') Yi xia kui wo zhi de shi v<" ;li.iI;~ Jl
CAPíTULO 5 d') Zhi zhi yu zhong er xian zhi J, o<.-'t -l' .li> fo1 ""-
a) Bian e tong 'l ' l!.. e') Ge qi ren qing yi du sai zhi -*'1* Á.~""J_#.:t.Ji:....
b) Zhu yang er ke yin .í. 11; .lb.i.ft- f') Yang ,:IJ no senrido de yang yang er zi de .ti; :4J .., 81f

c) Fei wu ke he zhi yi JjI. 4& "f 4- "'-li.: g') Bu qi er hui yue yu, gou zhi xiang ye ;r:..ilI,1i> i"Q;,!. ~ ~ :.....t,..
d) funzi fang chaoran zhuo li yu qi wai ;t ~ -::t~ ~ ... .iL f,$.. tI- h') Caoá ... ,,,-

e) Ming yi bu wang yu ren xin J;.l, Ã~-t: -J .A...~' i') Ben yu gan yang .i.:6it..f-ft
f) You e ming ,!I!., '!li j') Xun yi xiang ru -'-" .·I.:fi >o".
g) fian zhe wei ming er fei hu you l-:t j,o» .lb~~ 1I>:>Ir k') fi shi se er li zai 'r ~ l.. "'~~
h) Yin zhe wei you er fei iing wu i!t-,t j,,!lI. ,~~~-t.~. I') Zhi cheng .t.1Ii(

i) Yong qi guyou zhi li /Il";'1il "'" Ô(..jf m') Fei shi á erren sui dong ~i,,,.lbA.il.-tb

i) Xing qi guran zhi su wei -iT-A IJJ .f:'i "'--t/~ n') Yi yan gan ren, ze yi mo yi '~'1' "'A., "J'li:;f:J::
A..Jt.1't4- o') Xun ru yu ren zhi yin wei ..J.. )o",.~ A..:t..lt ....
k) Fan qi gu iu
l)fi. p') Lin yu yu .$..-t *
m) fi zhi suo bi dong .it '"-"í~1fI
n) Cheng; cf. ti zhi chong shi, suowei cheng ye CAPÍ1ULO 6
~, ,It~ t-t,
~1f~<!!" a) Bing iian J..Il
o) Fu qi jian tiandi zhi xin hu .fi....$.. L ~ ~*-I""". b) Zun :f:
p) Tiandi zhi xin bu yi jian J yu wu xin zhi fu ji jian zhi er c) Yi cheng wu wang zhi zhi de -1Ii41-l- ~ J.-l.t-
.lU~"'-'«Ã-.,t" -f",G~1UULL. d) Li bi ;fi .. com relação a zhi chong ~ f:
q) Tiandi wu xin er cheng hua  j~..f: I~.fp S{...t..
e) Chu yong . . lO
r) Ruo you suo biran er bu rong yi zhe -* I,j "'í",t' ,~: .Iír;r:. ,$"l,;f f) Mozhe, liang xiang xun ye Jt,t, illiAi".t.
s) fing -tt i1,t, ~:I8"*,.c..
r) fi ~ ; cf. qiling iing yingii -A"'"" A--lI\; g) Dang zhe, iiao xiang dong ye

h) fie ziran biyou zhi hua 't • !t. ,""" ,"-~t.

250 François Jullien Figuras da Imanência 251


i) Gang rou xiang tui er sheng bianhua "'1'" :Ia#..J'P 1..'t,-4t... ui Cang zhu yong .ili.1t li!
jl Zhi you zhu ye ~ • .i.~ vi Ti e yong 1t, 111
kl Da sheng A. i. w) Xian er wei, cang er zhu 1."".> A.;p:f
li Shen zhi suo qin .A .e.. ~JL xl Ceran er xing, bu kui yu yong itI ~ ~. )f, 11-'1" iIl
m)]ie shu chang zhi er bu jing qi bian '1 '" 't ~ ... ;:r. ~ -li; tIt y I Ti dao ,ti il...
oi Cheng xiang $i. ~ - xiao fa 'ÍI:. n. zl Shen :if
oi Yi - jian -t, 111 a'l Shen wu fangeryi wu ti :Of;'!!,~Ji>-J~1t
pl Chun yi er bu jian za ~t- .. ~rJJ# b'l Yi cheng zhi ze - s.:. %... ~.,
ql Ze .., c') Zha ~ cf. zharan you he er xiang modang "1 .11·: 1"...t-..~ ;fIJ Jf !1
ri Wei jiao wu li yi, ze shi qiong er zu 1t-l'lJ-:IIIA-;Í, ,." -f- ti .~ i1 d') Wu you dianyao er sui 5hi yi zhi qi mei shan ye
$;""
e'l Bu zhu gu chang
~ ~ /lttt·~ It.j., ll-l- .......
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CAPíTULO 7
ai Ming - .JI ....
you fi Shen zhe, dao zhi mia0 wan wu zhe ye -'1'"*, .J.:"-~-'dt*~

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CAPíTULO 8
cl Qi dang jing er dong .ll '4~ ...-t6
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252 François Jullien Figuras da Imanência 253


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w) Dong ke hu sheng er bu mei qi;i ye 16'1".11: j . . $J;l.1.• .c..
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i') Dangran ,t !!
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EPíLOGO
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