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TEORIA

FERNANDO PESSOA - POESIA DOS HETERÓNIMOS

A QUESTÃO DA HETERONÍMIA

Pessoa tem consciência de que, dentro de si, existem outros «eus» que sentem e pensam de maneira dife-
rente. Mas não só sentem e pensam, como também escrevem de maneira diferente da do ortónimo. Para
explicar tudo isto. Fernando Pessoa decide escrever uma carta a um seu amigo, Adolfo Casais Monteiro
(janeiro de 1935), na qual descreve a origem, o aspeto físico, a personalidade e a maneira de escrever de
cada um dos seus três heterónimos (poetas): Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Todos eles são fruto da imaginação de Pessoa; no entanto, por serem tão diferentes, em termos literários, o
poeta optou por «imaginá-los» como se fossem reais, daí que tenham «existências» específicas e individuais.
«Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (...), no Porto, é
médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em
Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro
de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 {...). Este, como sabe, é engenheiro naval {...),
mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
baixo, mais forte, mas seco. ÁIVB ro de Campos é alto (...), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara
rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e
moreno, tipo vagamente de judeu português (...), monóculo.»

Carta de Fernanda Pessoa a Adolfa Casais Monteiro. 13 dejaneiro de 1935. Lisboa.

A POESIA HETERONÍMICA

• Não gosta de estar no meio das pessoas; Exemplo:


Alberto Caeiro, «0 guardador
• Aprecia a solitude e o silêncio dos ambientes rurais;
o poeta de rebanhos»
•Aprecia a Natureza e a profissão diretamente
«bucólico»
ligada a ela - pastor/guardador de rebanhos.

•Apóstrofe a uma amada, Lídia {como os autores Exemplos:


clássicos, Petrarca, Camões); «Segue o teu destino».
Ricardo Reis,
• Referências a entidades da Mitologia Greco-latina «Ponho na altiva
o poeta «clássico» mente o fixo esforço»
(Adónis. Minos, Átropos. «barqueiro sombrio»);
• Arte poética clássica.

•Futurismo (louvor dos resultados do progresso Exemplos:


Álvaro de científico e tecnológico - as máquinas, automó- «Ode triunfal». «Ode
Campos. □ poeta veis, entre outros). marítima», «Passagem
da modernidade das horas»

Casta Pinheiro,
Fernando Pessoa - Heterónimos,
1978

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NEMUII EXAME NttlINAL

* Caminho, deambulação pela Natureza: sente apenas o


que lhe é dado sentir por meio dos cinco sentidos, nada Exemplos:
Alberto Caeiro: mais; «0 guardador de
o primado das
* Ausência total de pensamentos; rebanhos» e «Poemas
sensações
* Ausência de filosofia; - Inconjuntos -18»
* Sensações vividas como se fossem as primeiras.
Raf laxào axiattncial

* Epicurismo / carpe diem; Exemplos:


* Estoicismo. «Vem sentar-te
Ricardo Reis:
comigo. Lídia»,
a consciência
«Não tenhas nada nas
e a encenação
mãos». «Nada fica de
da mortalidade
nada». «Mestre, são
plácidas»

* Sujeito entediado com a vida; Exemplos:


Álvaro de Campos:
* Sofrimento pela consciência do que o rodeia sobre- «Passagem
sujeito, consciência
tudo em se tratando de pessoas; das horas»,
e tempo; nostalgia
«Aniversário»,
da infância * Saudades da infância, que surge distante, portanto
«Trapo»
inalcançáveis e distantes as boas memórias.
0 imaginário épico

Álvaro de Campos: • Louvor aos progressos da ciência, como fundamen-


•matéria épica: tais na mudança do Passado para o Futuro; Exemplos:
a exaltação do • Escrita desenfreada e permeada de exageros moti- «Ode triunfal*.
Moderno vados pelas sensações novas e vibrantes de um «Ode marítima»
•o arrebatamento mundo novo, com novas máquinas, navios, automó-
do canto veis, engrenagens.

Almada-Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa, 1959

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NKTKIÊS u? ANI

TEORIA

CONCEITOS IMPORTANTES DA FILOSOFIA DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA


(• na poMia da Ricardo Reis qua estes conceitos ganham vida, modelando genericamente a sua escrita)

Epicurismo:

• Filosofia ensinada pelo ateniense Epicuro de Samos, no século IV a.C.. e continuada pelos seus discípulos,
designados epicuristas

Princípios fundamentais:

-para alcançar a felicidade plena e absoluta, é necessário vencer os nossos medos e desejos intensos de
maneira a conseguir estabilidade e equilíbrio interiores;

-tudo aquilo que a vida nos oferecer como prazer deve ser observado com cautela, para que daí não adve-
nham sofrimentos e perturbação do corpo, do espírito, da alma;

-o essencial é manter um corpo saudável e livre das contingências dos desejos, num espírito esclarecido,
tranquilo e sereno;

-em conclusão. Epicuro procurava conseguir, na prática da vida de cada ser humano, a felicidade plena por
meio do controlo dos exageros corporais e espirituais, dos medos relativamente ao Destino e aos deuses,
e por meio do alcance diário da serenidade.

Carpe díem:
-Expressão oriunda do Latim, que, à letra, significa «Aproveita o momento», «Goza o dia», extensível ao
conselho de aproveitar e degustar totalmente o tempo presente, correspondendo a um apelo à vivência
plena do agora, do imediato, pois ninguém sabe o que acontecerá num momento seguinte, num futuro
próximo ou distante.

Estoicismo:

* Filosofia ensinada pelo ateniense Zenão de Cítio. no século III a. C.

Princípios fundamentais;

-é necessário desenvolver no ser humano uma lógica e racionalidade tais que o impeçam de sucumbir a
sentimentos destrutivos, negando-os e vencendo-os;

-só uma pessoa pensadora e esclarecida consegue perceber a lógica e as regras do mundo para as cumprir
e assegurar a ética e o bem-estar pessoal e interpessoal;

-relações humanas: evitar sentimentos de raiva, inveja, vingança, ciúme e exploração ou escravização do
outro, mesmo que para isso tenha de sofrer humilhações e rebaixamentos;

-o prazer e a satisfação de desejos físicos são inimigos do homem sábio, por isso devem ser combatidos;

-a virtude e o Bem são os únicos caminhos que levam o ser humano à felicidade plena.

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NEMUII EXAME NACIINAL

Alberto Caeiro
Formas poéticas (estrofe, verso, rima)
-«Não me importo comas rimas. Raras vezes/Há árvores iguais, uma ao lado da outra.»
Primado das sensações
-«Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la /E comer um fruto é saber-lhe o sentido.»;
-«Eu não tenho filosofia, tenho sentidos».
Seleçào de vocábulos ao serviço do bucolismo
-«rebanhos», «pastor», «vento», «sol», «Natureza», «pôr do sol», «planície», «borboletas», «flores»,
«cordeirinho», «nuvem», «erva», «atalhos», «girassol», «estrada», «chuva», «árvore», «mãos», «pés»,
«nariz», «boca», «olhar»...;
-formas verbais no pretérito imperfeito do indicativo ou no gerúndio, as quais contribuem para o
reforço da ideia de movimentação pelo campo.
Enumeração, gradação, polissíndeto, personificação, metáfora
- «Sou um guardador de rebanhos. / 0 rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos
são todos sensações.»;
- «Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca.»

Ricardo Reis
Seleçào de vocábulos eruditos associados à Antiguidade Clássica
- «óbolo», «Ãtropos», «perene». «Fado», «grégio».
Linguagem, astilo e estrutura

Anástrofe, apóstrofe, gradação


-«Qualquer pequena cousa de onde pode/Brotar uma ordem nova em minha vida./Lídia, me
aterra.»;
- «Neera. passeemos juntos (...) / Lembremo-nos. Neera»;
- «trocar beijos, abraços e carícias».
Epicurismo
-«Amemo-nos tranquilamente (...) mais vale estarmos sentados ao pé um do outro»;
-«Abdica/E sê rei de ti próprio».
Estoicismo
-«Cada um cumpre o destino que lhe cumpre (...)/O Fado nos dispõe, e ali ficamos.»;
-«E deseja o destino que deseja».
Carpe diem
-«Colhe /o dia, porque és ele.»;
-«A vida /passa e não fica, nada deixa e nunca regressa» (consciência e encenação da mortalidade).

Álvaro de Campos

Seleçào de vocábulos ao serviço do arrebatamento do canto


- «Forte espasmo», «maquinismos em fúria», «grandes ruídos modernos», «Ó minhas contempo-
râneas*
Apóstrofes, onomatopéias, gradação, anáfora
- «Mas. oh! minha Ode Triunfal,»;
- «Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! / Hup-lá. hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!»;
- «Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia»;
- «Caiu pelas escadas / Caiu das mãos /Caiu».
Irregularidade estrófica, métrica e rimática (ao serviço do arrebatamento do canto e da exaltação do
Moderno).

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