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CAPOEIRA

Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354
Vol. 2 | Nº. 2 | Ano 2016

Susana de Castro
UFRJ
O DISCURSO DE DILMA NO SENADO
__________________________________
RESUMO
Nesta edição a revista Capoeira - Humanidades e Letras publica,
na secção de artigos, textos que são crônicas sobre do processo de
impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Palavras-chave: impeachment; crônicas; Brasil; Dilma Roussef.
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ABSTRACT
In this special edition, Capoeira – Humanidades e Letras
publishes in its section of articles texts that are chronicles on the
impeachment process of President Dilma Rousseff.

Keywords: impeachment process; chronicles; Brazil


impeachment; Dilma Rousseff.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
capoeira.revista@gmail.com

Editores deste número:


Marcos Carvalho Lopes
marcosclopes@unilab.edu.br

Túlio Muniz
túlio@unilab.edu.br
Susana de Castro

O DISCURSO DE DILMA NO SENADO


Susana de Castro 1

Em seu discurso de defesa no Senado Federal, proferido no dia 29 de agosto de 2016, a


presidenta Dilma Roussef enfrentou as questões centrais, aquelas que lhe diziam respeito
diretamente, e aquelas que se referiam ao seu governo. Explicou, em pormenores, a trama urdida
para derrubá-la. Nas linhas seguintes me apoiarei na narrativa deste pronunciamento, que já é
reconhecido como um documento de nossa história contemporânea, para refazer os passos que
culminaram no golpe de 2016.
Nas palavras de Dilma, recepcionando a análise consensual, entre juristas,
constitucionalistas, políticos e comentaristas, o golpe de Estado configura a espécie dos golpes
‘atípicos’, pois não mais se efetivou, contrariando a tradição latino-americana, com a intervenção
militar, mas sim com o auxílio da retórica jurídica. Seja com tanques, seja com retórica jurídica,
o fato é que sempre que as elites econômicas e políticas latino-americanas têm seus interesses
ameaçados elas não hesitam em derrubar governos legitimamente eleitos. Após 20 anos de
ditadura militar (1964-1984), quando os direitos e as liberdades individuais foram suprimidos,
acreditávamos que a Democracia não mais sofreria rupturas. Ledo engano, como ela afirma: “A
ruptura democrática se dá [hoje] por meio da violência moral e de pretextos constitucionais,
para que empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas.”
No curso da República de 1946 (1946-1964), governos de base popular foram sistematicamente
alvo de conspirações ou golpes de Estado (Getúlio, JK, Jango). O pronunciamento eleitoral de
2014, quando 54 milhões de votos asseguraram a reeleição de Dilma, terminou constituindo-se
em surpresa traumática para a elite conservadora brasileira. Desde o primeiro dia do governo, os
opositores de tudo fizeram para desestabilizar o governo inviabilizando seus projetos com o claro
objetivo de criar condições objetivas para sua derrubada: “Como é próprio das elites
conservadoras e autoritárias, não viam, na vontade do povo brasileiro, o elemento legitimador de
um governo. Queriam o poder a qualquer preço. Tudo fizeram para desestabilizar a mim e e ao
meu governo”. Vê-se aí então, como muito bem apontou Dilma, em seu discurso, que a base
conservadora da política brasileira, dominante no Congresso, não está de modo algum
comprometida com o país, nem com o processo eleitoral nem muito menos com a democracia,
mas, sim preocupada com a satisfação de seus interesses de classe: “Muitos articularam e

1
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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O discurso de Dilma no Senado

votaram contra propostas que, durante toda a vida, defenderam, sem pensar nas consequências
que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro.” O fato de sua oposição haver votado
contra essas medidas, sinaliza claramente que a disputa não era só de projetos, posto que o
fundamental era, de qualquer forma, derrubar Dilma. A classe dominante, algo como 1% da
população, representada na crise por partidos políticos a ela naturalmente serviçais, almeja a
apropriação de riquezas nacionais e a manutenção de seus privilégios. O projeto vitorioso nas
urnas é outro. Projeto distributivista que almeja elevar a qualidade de vida da população carente,
garantindo-lhe acesso pelo menos aos bens sociais consagrados na Constituição, como educação,
saúde, moradia e trabalho. Como disse o presidente golpista em recente evento internacional,
Dilma não teria caído se tivesse aceitado abraçar o projeto neoliberal de desoneração do Estado
em nome do Capital rentista. Assumindo interinamente o governo, o vice-presidente foi capaz de
montar um ministério sem uma só ministra mulher. Esse fato não é secundário, ao contrário, tem
um grande peso simbólico. Se as urnas elegeram uma mulher, o mínimo que se deveria fazer
seria compor um ministério com homens e mulheres, como, aliás, era nas administrações Lula e
Dilma. Um dos primeiros atos do governo interino foi acabar com os ministérios da igualdade
racial e das mulheres transformando-os em secretárias ligadas ao ministério da justiça. É evidente
que esse golpe é também uma ação reativa ao avanço das conquistas das mulheres e dos negros
deste país, favorecidos por políticas como o bolsa família e a política de cotas para ingresso nas
universidades publicas. O fato de o ministério não possuir nenhum negro e nenhuma mulher
também prova esta tese. O projeto eleito pelas urnas em 2014, não é este que aí está, que, a título
de enxugar a máquina do Estado, prevê, entre outras medidas, o congelamento por 20 anos dos
orçamentos para áreas centrais como saúde, educação e saneamento; o fim dos direitos
trabalhistas com a prevalência do negociado sobre legislado; a reforma da previdência, com o
aumento de tempo de contribuição. O projeto neo-liberal intitulado uma ‘ponte para o futuro’, na
verdade deveria ser chamado uma ‘ponte para o passado’ já que fará o país retroceder pelo menos
90 anos em matéria de direitos trabalhistas. Estamos à beira de uma era de enormes incertezas. O
atual governo golpista está pondo em risco conquistas dos últimos 13 anos como o fim da
pobreza absoluta e da fome (segundo a ONU a fome no Brasil caiu 82% em 12 anos), o
atendimento médico em áreas afastadas, a chegada na universidade de jovens de família de baixa
renda, programa de construção de moradia popular etc. A possibilidade de retirada de matérias
como sociologia e filosofia da grade curricular obrigatória do ensino médio, proposta por medida
provisória, mostra claramente que não há nenhum comprometimento do governo ilegítimo com a
formação do cidadão para a vida. Disciplinas como filosofia e sociologia fornecem as
ferramentas criticas necessárias a cada individuo para construir sua própria análise critica acerca

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Susana de Castro

da realidade social em que está inserido. Todo esse desmonte é feito à luz do dia e sem que os
golpistas percebam que precisariam no mínimo de consultar a sociedade civil. Esse modus
operandi é próprio a governos autoritários.
Não houve crime de responsabilidade, todos sabem. Os próprios senadores anunciavam
antes do julgamento que este era um teatro, pois cada qual já sabia seu voto e que afinal tratava-
se de um julgamento político. No sistema parlamentarista há a possibilidade do Parlamento
impedir um primeiro ministro, sempre quando esse perde a maioria. No presidencialismo, não.
No presidencialismo é preciso provar que houve crime de responsabilidade. Estamos vivendo,
portanto, sob um regime parlamentar ainda que no plebiscito convocado em 1993 tenhamos
votado contrariamente à adoção deste modelo político. Dilma foi, na verdade, deposta quando
não conseguiu nomear Lula chefe da Casa civil. O golpe tem a anuência do Judiciário, das mídias
nacionais e de setores da alta burocracia estatal, autonomizados, como o Ministério Público
Federal, a Políca Federal e a Receita federal. O STF deveria ter se manifestado de maneira clara
condenando divulgação de escuta da gravação de um conversa telefônica entre Dilma e Lula, mas
não o fez. Assim, como não deveria ter impedido a posse de Lula como novo ministro. Trata-se
de uma prerrogativa da presidência da República a nomeação dos membros do seu gabinete.
Sabemos que o alvo da Lava Jato chama-se Lula. O juiz Moro e os procuradores não descansarão
enquanto não encontrarem provas que o incriminem. Resta saber se, de fato, conseguirão
condená-lo apenas por meio de mera opinião, ou, como alegam para o arrepio da ordem jurídica,
de mera e fundamentalista ‘convicção’. Um fato grave em toda essa história é a atuação seletiva
do Judiciário. O presidente interino e parte de sue gabinete, grande parte da classe política que
votou pela admissibilidade do processo de impeachment e posteriormente pelo impedimento, são
citados em delações ou estão envolvidos em algum processo de desvio de verba pública. Por que
essas pessoas, como próprio presidente e seu ministro Padilha, por exemplo, não são alvo de
inquérito judicial? A seletividade do Judiciário corrobora a certeza do conluio entre os diversos
poderes visando à cassação de Dilma Rousseff. Com que autoridade moral é julgada uma
presidenta eleita democrática e legalmente e sobre a qual não pesa qualquer prova de que tenha
participado de qualquer ato ilícito?
Por fim, fora Temer!

Susana de Castro
Susana de Castro é professora de filosofia da UFRJ,
autora de vários livros, entre eles Filosofia e
Gênero (ed. 7Letras).
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