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Porque estudar as Filosofias Africanas

Crítica à Negação das Histórias e Culturas Africanas


Tratar da negação das filosofias africanas também se refere à negação de
toda História e Cultura Africana, Afrodiaspórica, Indígena, Latino-Americana, além
de outras epistemologias, de diferentes maneiras e em diferentes proporções. A
filosofia faz parte da história e da cultura. Ela é um tipo de conhecimento, entre
outros, produzido por todos os seres humanos, a partir da experiência humana.
Logo, negar a filosofia de quaisquer povos é negar sua humanidade. O livro
Filosofia e consciência negra: desconstruindo o racismo (2018) traz questões
pertinentes a esse respeito. A filosofia não é um tipo de conhecimento exclusivo de
algum povo ou povos específicos. Os questionamentos filosóficos sobre a verdade,
o justo, a beleza, a finitude da vida, a forma de organização política mais
democrática e as respostas a esses questionamentos não são absolutamente
universais. Portanto, eles não são válidos para todos os contextos, sem qualquer
adaptação ou atualização, independentemente da época ou cultura de cada povo ou
país, mas de fato variam de acordo com a cultura e o local. Nem por isso as
contribuições filosóficas e culturais são completamente restritas ao seu contexto de
origem, mas carregam inevitavelmente suas marcas.
Como que filósofos e filósofas com visões tão diferentes, ou mesmo opostas,
entram em consenso sobre uma suposta origem grega da filosofia? Faz sentido
acreditar em um “berço da civilização” onde teria acontecido esse “milagre grego”?
Será coincidência que a maioria dos filósofos contemporâneos que conhecemos são
homens brancos europeus, principalmente dos mesmos três países da Europa
Ocidental (Alemanha, França e Inglaterra)? Ora, não só existe Filosofia Africana,
como existem diversas tendências filosóficas dentro desse vasto continente,
ridiculamente maior do que a Europa. Mas se existem, por que não estudamos as
filosofias africanas nas escolas? Por que tais filosofias e seus filósofos e filósofas
estão tão pouco presentes nas pesquisas acadêmicas, nas salas de aula, nos
materiais didáticos e paradidáticos de filosofia?
Para fomentar ainda mais esse debate no Brasil, a revista Ensaios Filosóficos
pediu ao filósofo sul-africano Mogobe Ramose um texto crítico à negação das
filosofias africanas. Em seu artigo Sobre a legitimidade e o estudo da Filosofia
Africana (2011), Ramose nos alerta que a questão fundamental por detrás da
negação da Filosofia Africana está na “autoridade de definir o significado e o
conteúdo da filosofia”. Nesse mesmo sentido, o filósofo fluminense Renato Noguera
analisa esse e outros trabalhos em seu livro sobre O ensino de filosofia e a lei
10.639 (2014). Noguera compreende que, para localizar essa autoridade na
Filosofia, devemos aplicar uma análise geopolítica da produção filosófica
hegemônica, cuja definição de filosofia exclui outras formas de filosofar. Por sua
vez, explica que a “geopolítica envolve a gerência do Estado sobre os territórios e
as disputas por hegemonia através da expansão em vários domínios, incluindo o
cultural”. Desse modo, Noguera reflete que “uma análise das relações entre
geopolítica e filosofia é uma abordagem que nos permite vincular o lugar epistêmico
étnico-racial, de gênero, espiritual, sexual, geográfico, histórico e social com o
sujeito do enunciado, desfazendo a noção de que o discurso filosófico brota de uma
‘razão universal’ imersa num campo neutro de forças”. Portanto, uma definição
excludente de filosofia na verdade faz parte de uma disputa maior por hegemonia no
domínio cultural. Esse controle sobre quais são os nossos referenciais está
intimamente ligado a manutenção das opressões e desigualdades sociais. Para os
nossos opressores, o conhecimento é perigoso porque ele também é um meio de
empoderamento.
Em contextos de colonialismo e neocolonialismo, a hegemonia nas relações
de poder está então na autoridade dos (neo)colonizadores, cuja arma de disputa
cultural empregada foi o epistemicídio. Em termos gerais, o epistemicídio pode ser
entendido como o extermínio das maneiras de conhecer e agir de determinados
povos ou epistemologias. Além disso, o assassinato dos conhecimentos dos povos
oprimidos do Terceiro Mundo está também fortemente estigmatizado pela raça.
Desse modo, Noguera vincula o epistemicídio ao racismo epistêmico, que “remete a
um conjunto de dispositivos, práticas e estratégias que recusam a validade das
justificativas feitas a partir de referenciais filosóficos, históricos, científicos e culturais
que não sejam ocidentais”. De fato, por um lado o epistemicídio não nivelou e nem
eliminou totalmente as maneiras de conhecer e agir dos povos colonizados, mas,
por outro, ele ainda é a principal causa da negação e exclusão das culturas e
filosofias africanas do domínio cultural hegemônico; logo, uma das principais causas
da exploração e do genocídio. Sendo assim, para superar o epistemicídio e o
racismo epistêmico, devemos nos engajar numa participação ativa na luta social,
política e cultural por uma educação crítica e emancipadora.

Educação e participação popular


Desde sempre lutamos por conhecimento, pelo acesso a outros
conhecimentos, pelo direito de produzir conhecimentos e promovê-los em meios
coletivos para toda sociedade, nas escolas, nas universidades, nos museus, nos
centros culturais, nas casas, nas ruas. Nossa luta é para socializar e debater
conhecimentos importantes para nossa libertação. Os povos colonizados, as
mulheres, os negros sempre reconheceram a necessidade da educação na luta por
sua emancipação. Em Educação e libertação: a perspetiva das mulheres negras,
sexto capítulo de Mulheres, raça e classe (1981), a filósofa estadunidense Angela
Davis nos atinge intelectual e afetivamente quando nos conta sobre os esforços de
mulheres brancas e negras no século XIX para superar as barreiras impostas pelo
regime escravocrata. Nessa época, o governo proibia a educação de crianças
negras, então elas tomarem a iniciativa de aceitar essas crianças em suas salas de
aula e depois de abrir uma escola para a comunidade negra. A partir desses relatos,
Davis nos ensina sobre a importância do engajamento na educação como meio de
libertação e também da importância da solidariedade política entre os diferentes
grupos e movimentos sociais.
Sobre isso podemos também mencionar as contribuições do pedagogo e
filósofo pernambucano Paulo Freire. Assim como Davis, Freire apostava na
educação como instrumento de emancipação, se comprometendo a compartilhar
suas teorias e experiências práticas em vários livros, além de ter se engajado na
luta contra o analfabetismo em países latino-americanos e africanos – no Brasil
antes da ditadura civil-militar de 64 e depois fora do país, durante seu exílio. Em
1992, depois de ter sido Secretário de Educação da cidade de São Paulo, ele
comunicou um texto seu sobre Educação e participação comunitária, publicado no
livro Política e Educação (1993). Nesse texto, a partir de uma compreensão crítica
da prática educativa como prática emancipadora, ele nos fornece reflexões
necessárias sobre a inevitável liberdade do ser humano – e por isso sua inevitável
responsabilidade social – para optar por um posicionamento conservador e
neoliberal ou progressista e democrático. Em sua militância, Freire nos deixa uma
importante mensagem de gestão popular nos interesses públicos, diante da
urgência de construirmos estruturas sociais e administrativas não autoritárias e
hierarquizadas, mas sim estruturas democratizantes, descentralizadas, autônomas e
participativas em prol da realização dos nossos direitos e deveres.
Nessas perspectivas, é emblemática a fotografia de três crianças negras
segurando uma faixa em reivindicação "PELO ENSINO DA HISTÓRIA e CULTURA
NEGRA", na manifestação pública ocorrida durante a 33ª Reunião da SBPC
(Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), realizada em Salvador, na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), em julho de 1981. Somente anos depois
seriam promulgadas as leis 10.639 (2003) e 11.645 (2008), que estabelecem a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afrobrasileira e indígena em
todos os níveis de ensino. Essa temática obrigatória inclui o estudo de diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, tais como a história da África, a luta dos negros e dos povos indígenas, a
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o indígena na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política.
Além de recontar a História a partir de outra perspectiva, o estudo e ensino dessa
temática serve não só para desmistificar estereótipos racistas e difundir nossas
culturas, mas com isso e através dessas contribuições ampliar o combate às
desigualdades sociais. Portanto, junto a difusão das nossas culturas precisamos
intervir no modo como serão difundidas e a quais interesses. Na mesma fotografia
se pode ler em outra faixa que o ato público se manifestava “POR UMA CIÊNCIA A
SERVIÇO DOS TRABALHADORES e das ETNIAS OPRIMIDAS”.
Nessa reunião da SBPC, intelectuais e militantes como Lélia Gonzalez,
Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura denunciavam as
tentativas de folclorização e comercialização da cultura negra. Ainda sob a ditadura
civil-militar, organizações como o Movimento Negro Unificado, o Instituto de
Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, entre tantas outras, defenderam a consulta e
participação crítica da comunidade afro-brasileira na elaboração de projetos como o
Memorial Zumbi, que já arquitetava a criação de um Parque Nacional Zumbi dos
Palmares no local histórico onde existiu a “capital” do Quilombo dos Palmares.
Aproveitando, também podemos mencionar o próprio Quilombo dos Palmares como
demonstração de força e organização de grupos oprimidos, que resistiram por
quase cem anos entre os séculos XVI e XVII a diversas tentativas de destruição por
parte do poder colonial português e até mesmo de invasores holandeses, e chegou
a reunir cerca de 30 mil pessoas. Esses entre outros milhares são exemplos de
participação popular, de engajamento político, de movimentos conscientes e
organizados, de defesa não só do resgate das histórias e culturas africanas e afro-
brasileiras mas também de um movimento para recontar a história e reparar a
cultura, aprender com o passado para construir um futuro melhor. É a partir desse
ponto de vista que estudamos, difundimos e discutimos as filosofias africanas e
afrodiaspóricas como parte da construção de uma cultura de luta, resistência,
educação popular, democracia direta.

Apresentação geral das Filosofias Africanas


Baseado no capítulo 21, Tendências da filosofia e da ciência na África, do
oitavo volume da coleção História Geral da África da UNESCO, África desde 1935
(2010), e no já mencionado Filosofia e consciência negra, especificamente em seu
capítulo 2, Outras margens da filosofia: Filosofias Africana e Latino-Americana,
encontramos três tendências filosóficas principais na filosofia africana
contemporânea: a Cultural (também denominada de etnofilosofia), a Ideológica
(também reconhecida como Política ou Nacionalista) e a Crítica (também
considerada como Profissional ou Acadêmica). É importante apontar que essa
divisão serve exclusivamente para facilitar a análise, mas que, enquanto cada
tendência filosófica possui características específicas, existem vários pontos
comuns entre as diferentes filosofias africanas.
A tendência Cultural se vincula às tendências filosóficas tradicionais mais
antigas do continente. O termo “etno-filosofia” para designá-las não seria apropriado
porque o fato de que elas se referem a filosofias de determinadas etnias africanas
não significa que são restritas a tais etnias, tampouco poderiam ser consideradas
como sub-filosofias. A principal forma de transmissão e registro das tendências
culturais é a oralidade e seu principal aspecto é a coletividade ou conectividade.
Esse conjunto de filosofias possui um caráter sociológico, englobando o modo de
vida de um povo, as suas regras e a sabedoria acumulada pelos sábios ancestrais,
geração após geração, por vezes elaborado por pessoas excepcionais. Nesse
domínio se reflete sobre as relações entre o ser humano e a natureza, os vivos e os
mortos, maridos e esposas, pais e filhos, governantes e governados. São exemplos
de filosofia africana cultural as filosofias Bantu, Iorubá, Kemética, a Ancestralidade,
a Sagacidade, e de filósofos e filósofas, o senegalês Cheikh Anta Diop, a afro-
americana Marimba Ani, o congolês Théophile Obenga, a burquinense Sobonfu
Somé, o queniano Odera Oruka.
A tendência Ideológica se caracteriza pelas suas preocupações mais
estritamente políticas, se referindo ao conjunto de ideias destinadas a orientarem a
ação política e definirem objetivos políticos. Nesse sentido, enquanto a cultura
abrange a totalidade do modo de vida, a ideologia está no domínio das relações
políticas. Formulada a partir de indivíduos particulares, as tendências ideológicas se
expressam sobretudo através das línguas europeias por meio da escrituralidade.
Esse conjunto de filosofias é principalmente uma resposta direta à colonização e às
lutas de libertação nacional, em vista a fomentar e organizar a luta anticolonial,
pensando a África como um todo e a situação política e cultural dos negros em geral
e dos povos colonizados do Terceiro Mundo. Portanto, as tendências ideológicas
visam à compreensão e superação do colonialismo, isto é, à libertação e autonomia
política, econômica e cultural dos povos colonizados. São exemplos de filosofia
africana ideológica as filosofias do Pan-Africanismo, da Negritude e do
Anticolonialismo, e de filósofos, o afro-americano W. E. B. Du Bois, o ganês Kwame
Nkrumah, o martinicano Aimé Césaire, o senegalês Léopold Senghor, o egípcio
Gamal Nasser, o martinicano-argelino Frantz Fanon, o cabo-verdiano-guineense
Amílcar Cabral, o angolano Agostinho Neto.
A tendência Crítica se pretende uma filosofia africana mais científica,
metódica e rigorosa. Assim como a filosofia ideológica, a filosofia crítica quase não
se expressa em línguas autóctones, mas principalmente em línguas estrangeiras.
Esse conjunto de filosofias elabora críticas tanto ao colonialismo e eurocentrismo
quanto às tendências culturais e ideológicas da filosofia africana. Da sua parte, se
apropriou mais profundamente de tradições intelectuais ocidentais, privilegiando
menos a disputa no campo político do que no teórico. As tendências críticas buscam
conciliar certa combinação de racionalismo e empirismo realista. As principais
vertentes da filosofia africana crítica são as Críticas às tendências culturais e
ideológicas e as Críticas às concepções ocidentais de filosofia e ciência, e os
principais filósofos são o beninense Paulin Hountondji, o anglo-ganês Kwame
Appiah, os camaroneses Marcien Towa e Achille Mbembe, o congolês Valentin
Mudimbe, o ganês Kwasi Wiredu.
Outras tendências filosóficas podem ser encontradas nas produções literárias
africanas, como são os trabalhos do nigeriano Chinua Achebe e da nigeriana
Chimamanda Adichie e muitos outros africanos e diaspóricos, além das teorias
feministas, com destaque para as nigerianas Oyèrónkë Oyěwùmí e Bibi Bakare-
Yusuf. As tendências feministas poderiam ser igualmente classificadas como
ideológicas, por seu caráter anticolonial, e críticas, por sua crítica rigorosa às
concepções eurocêntricas, assim como as tendências literárias poderiam ser
consideradas como culturais, ideológicas e críticas. Por sua vez, ampliamos as
Filosofias Africanas para a dimensão da Diáspora, pela qual se encontra, além dos
já citados nesta seção, filósofos e filósofas como as afro-americanas Angela Davis e
Patricia Hill Collins, os jamaicanos Charles Mills e Stuart Hall, os brasileiros Renato
Noguera, Eduardo Oliveira e Luís Thiago Freire Dantas, as brasileiras Adilbênia
Machado, Aline Matos da Rocha e Katiúscia Ribeiro, entre tantas outras pessoas.
Em maior amplitude as contribuições afrodiaspóricas para as filosofias africanas são
marcantes, como por exemplo nas vertentes Pan-Africanista e da Negritude, que se
originaram a partir de negros africanos e da diáspora organizados nos Estados
Unidos e na França, respectivamente. E sobre as tendências, como mencionado,
classificar em correntes filosóficas africanas serve para reconhecer as diferentes
tendências do pensamento filosófico africano, cujas fronteiras normalmente são
rompidas por essas filosofias.
Enfim, vale recordar a importância da educação como meio de
conscientização e politização das camadas populares como caminho à sua
emancipação. Somente com esse trabalho de educação popular podemos fomentar
táticas de ação direta necessárias para revolucionar as estruturas. Para que isso
aconteça, todos os espaços devem ser ocupados com críticas sociais por meio de
múltiplas formas de engajamento. Esse movimento de contestação – cada vez mais
importante e necessário agora que enfrentamos uma forte crise política, social e
econômica no Brasil, na América Latina e no mundo com a ascensão do
neoliberalismo e a constante manutenção das opressões racistas, machistas,
lgbtfóbicas, capitalistas, imperialistas –, exige a participação de uma grande
quantidade de pessoas aliado a uma alta qualidade política. Precisamos nos
preparar, nos formar, nos engajar, discutir nossas estratégias, planejar as ações e
executar nossos planos.

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