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História da Filosofia Medieval

Professor Carlos Eduardo de Oliveira

Comentário sobre o primeiro artigo da questão 15 da Primeira Parte da Suma de


Teologia de Tomás de Aquino

Jonathan Piccolo de Lima


Nº USP – 760260

Ao longo de todo o texto da Suma de Teologia, Tomás de Aquino segue uma


determinada estrutura para apresentar suas ideias. Conforme Bird (2005) explica, os mais
de 3.000 artigos da Suma estão articulados em partes bastante distintas. Primeiro, Tomás
apresenta uma pergunta que implica uma resposta positiva ou negativa. Em seguida,
temos uma solução direta e uma série de argumentos – opostos à visão de Tomás e, por
isso, comumente conhecidos como “objeções” – que embasam tal posição. Depois, o
filósofo introduz o “sed contra”, isto é, uma seção em que anuncia seu ponto de vista
sobre o tema em questão. Isso é seguido do “corpo” do artigo, em que Tomás de Aquino
traz argumentos para sustentar sua resposta à questão. Por fim, as objeções apresentadas
no início do artigo são respondidas.

O primeiro artigo da questão 15 da Primeira Parte da Suma de Teologia de Tomás


de Aquino – daqui em diante referido como ST I, q.15, a.1, assim como convencionado
na literatura – não é uma exceção à esta estrutura. Neste artigo, Tomás desenvolve sua
posição em relação à primeira das três perguntas da questão 15, isto é, “se, acaso, há
ideias" (Tomás de Aquino, 2008, p. 311). Como veremos neste trabalho, a posição
adotada por Tomás representa não só um golpe à compreensão platônica das ideias –
articulado através da conciliação entre noções do platonismo e do aristotelismo –, mas
também uma nova compreensão das ideias, que passam a ser entendidas como princípio
cognitivo e ontológico das formas.

Conforme indicado acima, Tomás (2008) começa o ST I, q.15, a.1 com uma
resposta direta – a saber, “vê-se que não há ideias” (p. 311) – e em seguida apresenta três
argumentos que sustentam esta posição. O primeiro é de Dionísio, que afirma que Deus
não conhece as coisas segundo a ideia. Para ele, (a) as ideias somente existem para que
as coisas sejam conhecidas por meio delas, isto é, elas são princípios de cognição, e (b)
Deus não necessita de ideias para conhecer, então chega-se à conclusão de que as ideias
não existem. O segundo argumento defende que Deus conhece tudo em si mesmo e, à
medida que não conhece a si próprio através de uma ideia, tão pouco conhece todo o
restante desta maneira – o que indica, mais uma vez, a não-necessidade da existência das
ideias. Por fim, o terceiro argumento indica que a existência de Deus, suficiente em si
mesmo como princípio de todo conhecimento e operação, mina a sustentação da ideia
enquanto aquilo que é necessário para que estas duas funções se cumpram.

Como vemos, as duas primeiras objeções trazem a ideia como princípio de


conhecimento, enquanto a terceira traz uma perspectiva adicional, a das ideias enquanto
princípio de operação. Assim, o conjunto de objeções investe tanto contra a noção de que
ideias são necessárias para que se tenha conhecimento, quanto contra o ponto de vista de
que ideias são necessárias para que se produzam as coisas. Em suma, as objeções buscam
demonstrar, por duas vias complementares, que é descabido sustentar a existência das
ideias.

Oliveira (2013) explica que apoiar a hipótese contrária às objeções, isto é, de que
Deus necessita de ideias, algo externo a si mesmo, para conhecer ou fazer com que as
coisas sejam criadas traz problemas para a concepção tomasiana daquilo que se julga
adequado a Deus. Afinal, continua o autor,

(...) se Deus precisasse de algo além de si mesmo seja para conhecer, seja para fazer com que
as coisas fossem criadas, ele já não poderia ser mais considerado nem perfeito nem,
consequentemente, eterno nem imutável. Ou seja, segundo os argumentos anunciados,
acreditar na existência das ideias parece ser o mesmo que propor a não existência de Deus, ou,
ao menos, que o Deus criador dos cristãos não seria nem onipotente nem incriado. Ora, o
principal problema é que um deus desprovido de tais características simplesmente não poderia
ser Deus (Oliveira, 2013, p. 23)

É interessante, neste ponto, nos atermos com mais cuidado à incompatibilidade


entre a concepção platônica das ideias e a concepção judaico-cristã de Deus, conforme
enunciada acima. Por um lado, Platão e sua tradição trazem as ideias como realidades
existentes por si mesmas, fora de qualquer intelecto ou da mente divina. Nas palavras de
Copleston (1993), “as ideias existem em seu próprio paraíso em um estado de isolamento
entre si e separadas da mente de qualquer Pensador”1 (p. 166, tradução nossa).

Por outro lado, temos a concepção de Deus como perfeito, eterno, imutável,
onipotente e incriado. Na Suma de Teologia, Tomás de Aquino apresenta cinco vias,

1
Original: The Ideas exists in their heaven in a state of isolation one from another, and apart from the
mind of any Thinker.
fortemente sustentadas por noções aristotélicas e conhecidas como a Quinque viæ, para
demonstrar a existência de Deus com estas características. De especial interesse para este
trabalho, a primeira via elencada por Tomás tem como fundamento o argumento do
movimento, inspirado na Física de Aristóteles, e propõe que somente aquilo que existe
em ato pode levar à atualização de algo que existe em potência, i.e., tudo que se move
deve ser movido por algo. Como não se pode cair numa regressão ao infinito, chega-se à
conclusão de que deve existir um primeiro motor imóvel, algo que seja ato puro, sem
potência, sem carência de qualquer coisa, sem necessidade de se atualizar. Deus é o
Primeiro Motor (Marcondes, 1997).

Assim, ao tratar das ideias no ST I, q.15, a.1, Tomás nos traz um embate entre
duas grandes tradições filosóficas: a platônica e a aristotélica. Como veremos adiante, o
filósofo defende a visão de que ideias não podem existir fora de Deus e, para tanto, “apela
a Aristóteles, que criticara Platão por considerar as ideias como existentes per se e não
no intelecto [in intellectum]”2 (Boland, 1996, p. 211, tradução nossa)

No “sed contra” e no “corpo” do artigo, como esperado, o Aquinatense toma uma


posição diversa das objeções apresentadas anteriormente. Ao invocar a autoridade de
Agostinho, ele reforça o ponto de vista de que a compreensão das ideias é essencial para
se alcançar a sabedoria. Desta forma, Tomás pensa ser necessário defender a existência
das ideias, e, ao mesmo tempo, evitar as consequências da doutrina platônica – o que pode
se realizar através de “uma nova compreensão dos termos envolvidos na questão”
(Oliveira, 2013, p. 23).

Tomás de Aquino começa sua resposta apresentando uma concepção bastante


semelhante àquela presente na tese defendida por Agostinho na Questão 46 do Livro das
oitenta e três questões. Primeiro, ele afirma a existência de ideias na mente de Deus. Em
seguida, explica que o termo grego “ideia” tem como correspondente o termo latino
“forma”. A nova compreensão dos termos, indicada acima como necessária para o projeto
tomasiano, se concretiza quando Tomás qualifica o termo “forma” com a sentença “de
coisas diversas, que existem além das próprias coisas”. É a partir desta leitura que Tomás
argumenta que a forma pode ser entendida tanto como exemplar destas coisas diversas,
quanto como princípio de cognição destas coisas (Oliveira, 2013).

2
Original: “(...) appeals to Aristotle, who criticized Plato for regarding the ideas as existing per se and
not in the intellect [in intellectum]”
Como Wippel explica, no restante do ST I, q.15, a.1, Tomás de Aquino “baseia
sua argumentação pelas ideias divinas na necessidade de exemplares divinos, i.e., na sua
função ontológica” (Wippel 1993, p. 33, apud Doolan, 2008, p. 15, tradução nossa)3. O
Aquinatense defende que a forma é a causa final (finalidade) de todos os que não são
gerados por acaso. Ou seja, no projeto tomasiano, tudo que é feito sem ser por acaso, é
feito segundo uma ideia exemplar. Além disso, o agente que age em consonância com a
forma somente o faz porque há nele alguma similitude da forma. Tal similitude pode
acontecer de duas maneiras.

No primeiro caso, os agentes “agem por meio da natureza” e a forma preexiste no


agente “segundo o ser natural”. Tomás exemplifica isso indicando que o homem é capaz
de gerar o homem e o fogo é capaz de gerar o fogo. No segundo caso, os agentes “agem
por meio do intelecto” e a forma preexiste no agente “segundo o ser inteligível”. É deste
modo que “a similitude da casa preexiste na mente do construtor”. A esta última
similitude, diz Tomás, podemos dar o nome de “ideia de casa, uma vez que o artífice
tenciona que a casa seja semelhante à forma que a mente concebe” (2008, p. 312). Assim,
aponta Oliveira (2013), a ideia é entendida como princípio de operação.

Em consonância com a segunda via elencada por Tomás para demonstrar a


existência de Deus – a saber, que Deus é a primeira causa eficiente (Marcondes, 1997, p.
132) –, Tomás de Aquino indica, na conclusão do “corpo” do artigo, que o mundo não é
feito por acaso (à revelia da intenção de seu autor), mas, pelo contrário, é feito por Deus,
que age através do intelecto. Assim, o filósofo aponta para a necessidade de uma forma
exemplar na mente divina, já que formas exemplares são a causa final de tudo aquilo que
não é feito por acaso. A isso Tomás dá o nome de “noção de ideia”.

Segundo Oliveira (2013), toda a argumentação precedente, que aparentemente


gira em torno apenas de uma maneira de compreensão da ideia – i.e., a ideia enquanto
forma exemplar –, também apresenta a segunda função das ideias – i.e., a ideia enquanto
princípio de cognição. À medida que a ideia é uma forma exemplar, deve haver nela algo
em comum, alguma similitude, com aquilo que é feito a partir dela. Assim, explica o
autor, “a ideia apenas recebe esse nome comum de ‘exemplar’ na medida em que
inteligimos haver uma forma com as características descritas” (Oliveira, 2013, p. 29).

3
Original: [Thomas] bases his argumentation for divine ideas upon the need for divine exemplars, i.e.,
upon their ontological function.
É esta intelecção da forma, com o consequente fornecimento da definição da
forma, que Tomás nomeia de “noção de ideia”. Entendida desta maneira, fica clara a
função cognitiva da ideia exemplar. Quando inteligimos o que é a forma exemplar,
podemos também compreender tudo aquilo que esta forma é capaz de produzir. Em outras
palavras,

a ideia é um princípio de conhecimento na medida em que, ao inteligir a forma que é um


exemplar, ou seja, ao apreender a noção da ideia, por meio dessa apreensão, apreendo também
aquilo de que essa forma é um exemplar (Oliveira, 2013, p. 30)

Terminado o “corpo” do artigo, as objeções presentes no início do artigo são


respondidas por Tomás naquela que se configura como a última seção do ST I, q.15, a.1.
Na resposta à primeira objeção, o filósofo indica que o problema levantado por Dionísio
só existe quando compreendemos a ideia segundo a concepção platônica – isto é, quando
as ideias são entendidas como realidades existentes em si mesmas, fora de qualquer
intelecto ou da mente divina. A nova compreensão dos termos, em que Tomás indica a
necessidade da existência de ideias no intelecto divino, faz com que o argumento de
Dionísio seja contextualizado e tome um significado diferente, não representando, então,
um ataque à existência de ideias, mas somente à uma compreensão acerca delas.

Na resposta à segunda objeção, Tomás de Aquino reforça que Deus conhece a si


mesmo e aos outros por meio de sua essência, e realça o fato de que a essência divina é
“princípio operativo dos outros, mas não de si mesmo”. Assim, o Aquinatense busca
demonstrar que a essência divina pode ser entendida como ideia à medida em que ela é
um exemplar a partir do qual as demais coisas são feitas. Essa compreensão, no entanto,
não é válida quando a essência divina é comparada a si mesma, pois neste caso “a
essência, por ser idêntica ao próprio Deus – o qual, lembremos mais uma vez, não é
gerado –, não pode ser entendida como um exemplar” (Oliveira, 2013, p. 31).

Por fim, na resposta à terceira objeção, o filósofo demonstra que Deus é, em sua
essência, similitude de todas as coisas – isto é, Deus é o princípio operativo de todas as
coisas diversas. Ou, como comentamos ao tratar da primeira e segunda vias de Tomás,
Deus é o Primeiro Motor e a primeira causa eficiente. Com a nova compreensão de ideia
enquanto exemplar, Tomás conclui, então, que “a ideia em Deus não é senão a essência
de Deus” (Tomás de Aquino, 2008, p. 313).

Vemos, portanto, que a posição tomasiana representa um duro golpe à


compreensão platônica das ideias. Na discussão que faz no primeiro artigo da questão 15
da Primeira Parte da Suma de Teologia, Tomás apresenta uma nova forma de se entender
as ideias. Em outras palavras, ele defende a existência das ideias, mas busca evitar, com
essa nova visão acerca delas, as consequências da doutrina platônica. O filósofo indica
que as ideias não devem ser compreendidas como existentes em si mesmas, mas, pelo
contrário, como existentes no intelecto divino. Além disso, devem ser entendidas como
tendo funções cognitivas e ontológicas, já que são, respectivamente, princípios de
conhecimento e exemplares das coisas que são ditas formas. Assim, a doutrina tomasiana
das ideias se caracteriza como uma síntese entre Agostinho e Aristóteles, pois une, “de
um lado, a crítica aristotélica da doutrina platônica das ideias e, de outro, a doutrina
agostiniana das ideias, que aliás brotou do pensamento platônico” (Grabmann, 1993, p.
35).

Referências

BIRD, O. (2005). Como ler um artigo da Suma. Tradução de Getúlio Pereira Jr.
Apresentação de Francisco Benjamim de Souza Netto. Coleção Textos Didáticos,
(53).

Boland, V. (1996). Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas: sources and
synthesis. Brill.

Copleston, F. (1993). A History of Philosophy. Volume I: Greece and Rome (Vol. 1).
https://doi.org/10.2307/2019031

Doolan, G. T. (2008). Aquinas on the Divine Ideas as Exemplar Causes. Journal of


Chemical Information and Modeling (Vol. 53). Washington: The Catholic
University of America Press. https://doi.org/10.1017/CBO9781107415324.004

Grabmann, M. (1993). A quaestio de ideis de Santo Agostinho: seu significado e sua


repercussão medieval. Cadernos de Trabalho Cepame, 2(1), 29–41.

Marcondes, D. (1997). Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a


Wittgenstein. Zahar.

Oliveira, C. E. de. (2013). Tomás de Aquino e a Filosofia: guia de estudos. Lavras.

Tomás de Aquino. (2008). Suma de Teologia. Discurso: Revista Do Departamento de


Filosofia Da USP. Tradução de Carlos Eduardo de Oliveira.

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