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O DISCURSO ICÔNICO SOBRE A CORPORALIDADE MASCULINA:

OS PROCESSOS DE HIBRIDIZAÇÃO E TRANSGRESSÃO

Maira Guimarães
Universidade Federal de Minas Gerais
Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos
(maira-guimaraes@ufmg.br)

Resumo:

Contemplando o discurso icônico como um portador legítimo de significado e significações,


acreditamos que a imagem é capaz de retratar os comportamentos, os valores e as ideologias de uma
determinada sociedade. Na atualidade, não é raro encontrarmos discursos imagéticos que exploram
o corpo e a corporalidade, sendo, portanto, o corpo entendido como construtor e constituinte não só
da imagem do sujeito individual, mas também do sujeito coletivo – cabendo, neste viés de análise, a
questão do gênero. No que diz respeito à retratação do corpo na mídia impressa, quase sempre,
observamos a representação do feminino aliada às ideias de inércia e delicadeza, em oposição ao
universo masculino que se associa aos elementos relacionados à esportividade e à força. Tendo em
vista tais dicotomias, buscamos analisar a transgressão dos imaginários sociodiscursivos sobre o
corpo masculino na mídia impressa, a partir das imagens icônica e etótica (ethos) presente em um
ensaio sensual fotográfico publicado pela revista Tpm. Situando o nosso referencial teórico nos
estudos pertencentes a Análise do discurso Franco-Brasileira, nos pautaremos nos trabalhos de
Kerbrat-Orecchioni (2010) e Auchlin(2001) sobre o conceito de ethos, nas abordagens de Nicolas
(2012) no que diz respeito à transgressão e na noção de imaginários sociodiscursivos proposta por
Charaudeau (2007). Em linhas gerais, podemos destacar que o corpus selecionado nos propicia
reflexões importantes sobre a oscilação entre a presença de elementos pertencentes ao universo
feminino e ao universo masculino, sendo tal característica o que nos permite classificar o ensaio
sensual fotográfico masculino como híbrido e transgressivo.

Palavras-chave: Corpo masculino. Transgressão. Hibridização.

Introdução

Na contemporaneidade, a exposição do corpo se dá com grande regularidade na mídia. Em


uma simples ida a uma banca de jornal ou zapeando pela televisão – ato de trocar repetidamente e
rapidamente de canal – podemos observar tal constatação. Não é raro encontrarmos a exibição de
corpos esculturais femininos e masculinos, estes últimos com menos frequência do que os
primeiros, estampados nas capas de revista ou projetados em programas televisivos de
entretenimento. Ao investigarmos o corpo na esteira dos trabalhos pertencentes à Análise do
Discurso, não buscamos refletir somente sobre a estrutura física, mas o que propomos é um estudo
onde possamos reverberar sobre os dotes carnais atrelados aos adornos, aos comportamentos
gestuais e aos vestuários. Para nós, a junção desses elementos materiais amalgamados ao contexto
cultural e discursivo, possibilitaria uma maior apreensão do que se entende por sujeito, corpo e
corporalidade sob o olhar da sociedade brasileira.
A mídia impressa, quase sempre, se pauta na dicotomia descoberto versus coberto no que
diz respeito, respectivamente, à retratação do corpo feminino e masculino, sendo que, usualmente, a
representação do feminino encontra-se aliada às ideias de inércia, delicadeza e sensibilidade em
contraposição ao universo masculino que se associa aos elementos relacionados à esportividade, à
força e à racionalidade. De acordo com Fonseca-Silva (2007, p. 15):

Os homens e as mulheres que encontramos na rua ou com os quais vivemos não são
nunca como os das revistas, e, no entanto, resquícios de homens e mulheres de
revistas se encontram em toda parte, em todas as lojas, em todas as academias, em
todas as conversas, em todos os sonhos. Logo, e paradoxalmente, são os únicos
reais. É bem provável que não há correlação direta entre o mundo e os textos, que
ler os textos não é igual a ler o mundo, mas é certamente, ainda mais verdadeiro que
em nenhum lugar esta correlação é mais estreita. Dito de outra forma, a realidade
pode não corresponder aos discursos (...) mas a questão verdadeira não é bem essa: a
verdadeira questão é a da correlação entre discursos e as ideologias, ou seja, entre os
discursos e o mundo como os sujeitos ‘pensam’ que é. Ou, vendo as coisas mais de
perto, quais as relações entre o que se diz e o conjunto de práticas que os sujeitos
assumem ou que se submetem.

Desse modo, concatenamos com a referida autora ao considerarmos que tanto as revistas femininas
quanto as revistas masculinas participam das práticas sociais reproduzindo aquilo que a mídia
impressa considera um padrão de comportamento, corpo e beleza.
Tendo em vista a bipartição mencionada acima para a retratação do mundo feminino e
masculino, buscamos analisar a transgressão dos imaginários sociodiscursivos sobre o corpo do
homem na mídia impressa, a partir das imagens icônica e etótica (ethos) presentes em um ensaio
sensual fotográfico.

1. O arcabouço teórico

Ao propormos, em nosso presente artigo, a análise do corpo e da corporalidade em um


discurso icônico pertencente ao gênero ensaio sensual fotográfico, salientamos a relevância de se
explorar a imagem como um objeto de estudo. De acordo com Goliot-Lété et al.(2008, p. 193-194):
“A imagem é ícone, representação dos homens, da natureza e do invisível. Ela estimula,
alternadamente pouco ou ao mesmo tempo, as sensações, as emoções, a imaginação e a razão.”1
Assim sendo, a imagem é capaz de retratar os hábitos, os costumes e a cultura de um determinado
grupo social além de ser considerada um instrumento de alcance mundial, visto que não é
necessário um conhecimento linguístico específico para que ela possa ser compreendida. Situando o
referencial teórico nos estudos pertencentes à Análise do discurso Franco-Brasileira, nos
pautaremos nos trabalhos de Kerbrat-Orecchioni (2010) e Auchlin (2001) sobre o conceito de ethos,

1Tradução livre da profa. Dra. Emília Mendes para o curso intitulado: “Seminário de Tópico Variável em linguística do texto e do
discurso: Discurso da imagem” fornecido pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguístico da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais durante o primeiro semestre de 2013.
na noção de imaginário sociodiscursivo proposta por Charaudeau (2007) e nas abordagens de
Nicolas (2012) no que diz respeito à transgressão.
O conceito de ethos foi cunhado pelo filósofo Aristóteles e, de modo superficial, pode ser
entendido como a imagem que o orador produz de si no e pelo discurso. Ao revisitar esse conceito,
Kerbrat-Orecchioni (2010, p. 125) nos assegura que: “Por outro lado, mesmo se quisessem, os
locutores não poderiam mudar radicalmente de ethos porque ele está ligado ao corpo: por mais
trabalhada que possa ser a comunicação, sempre ficará algo de irremediavelmente pessoal no timbre
da voz, nas mímicas, na postura.” Portanto, consideramos que, ao realizarmos uma análise da
corporalidade do modelo-personagem presente no ensaio sensual fotográfico, estamos nos pautando
nas estratégias argumentativas utilizadas para a construção de sua imagem. Para Lima (2013, p. 03):

Valorizar o corpo significou ampliar o seu conceito, compreendendo-o para além de


um mero espaço físico ocupado por um conjunto de órgãos, pois passa a ser nele o
lugar em que se dá, se realiza e se manifesta não só as suas aptidões e contingências
físicas, mas também e sobretudo o conjunto complexo de reciprocidade e inter-
relações entre as emoções, a sexualidade, sentimentos, os pensamentos e os desejos
humanos, tornando assim a noção ou mesmo o conceito de “corpo” em algo
eminentemente rico e complexo.

Assim, tanto o discurso do corpo quanto o discurso icônico se definem como ferramentas para a
compreensão e a expressão de um sujeito através da exteriorização de apreciações, condutas e
valores sociais. Ainda no que concerne o conceito de ethos, Auchlin considera que (2001, p. 209):

O ethos, nesse sentido é um ‘fantasma’ do sujeito falante, uma ilusão do sujeito


falante, um ‘holograma experiencial’, que resulta do crescimento de duas fontes de
tratamento distintas: o tratamento interpretativo de dados internos aos enunciados e
ao discurso; e o tratamento sintomatológico e empático dos fatos externos e
contingentes à fala.

Em vista disso, podemos constatar que os trabalhos de Kerbrat-Orecchioni (2010) se encontram na


esteira dos de Auchlin (2001) ao conceber que o ethos se configura sobre dois eixos, sendo o
primeiro eixo relacionado a uma categoria intrínseca da língua, ou seja, ao ato de fala, as escolhas
lexicais e o discurso verbal como um todo; e o segundo eixo associado a uma categoria extrínseca
da língua, isto é, os gestos, as vestes e o tom da voz.
Julgamos importante ressaltar que o conceito de ethos se define por seu caráter instável,
posto que, dependendo do contexto e do interlocutor, ora podemos assumir um determinado ethos,
ora podemos assumir o ethos oposto. Em uma situação acadêmica, é conveniente e até mesmo
esperado, que o orientando apresente um ethos de seriedade e responsabilidade para o seu
orientador, uma vez que se trata de um contexto profissional. No entanto, ao encontrarmos o mesmo
orientando em uma mesa de bar com os seus amigos, podemos perceber que ele exibirá um ethos de
espontaneidade e descontração.
De certa forma, a característica relacionada à instabilidade pode ser encontrada no conceito
de ethos e na noção de imaginário sociodiscursivo. Entendemos por instável o aspecto de
variabilidade e de flexibilidade, visto que a noção de imaginário se baseia em visões de mundo
compartilhadas por um grupo social sobre um determinado acontecimento. Como guisa de
exemplificação, podemos citar os imaginários sociodiscursivos relativos à representação do corpo
obeso ao longo da história. Na Idade Média, devido às guerras, às pragas e à fome que acometia a
sociedade, o excesso de formas era visto como sinônimo de saúde, fertilidade e fartura. Contudo,
para a cultura ocidental dos dias atuais, a obesidade faz alusão aos imaginários pertencentes à
ociosidade e ao desleixo com a saúde e o próprio corpo.
Para Charaudeau (2007, p. 11):

Deve ser entendido, a nossa proposta consiste em livrar-se de um conceito, o de


estereótipo, que é demasiado restritivo, uma vez que é reconhecido pelo seu caráter
de fixação de uma verdade que não está provada, ou que é falsa. O imaginário não é
nem verdadeiro nem falso. Ele é uma visão de mundo proposta que se baseia nos
saberes que constroem os sistemas de pensamento, os quais podem se excluir ou se
sobrepor uns aos outros. Isso permite que o analista não tenha que denunciar este ou
aquele imaginário como falso. Esse não é o seu papel. O seu papel é mostrar como
aparecem os imaginários, em que situação comunicacional eles se inscrevem e qual
visão de mundo eles testemunham. (tradução nossa)

O conceito de imaginário sociodiscursivo, portanto, pode ser entendido como as avaliações e


apreciações que se encontram depositadas na memória coletiva de uma comunidade linguística,
histórica e social. Para Charaudeau (2007), tais julgamentos se fundamentam em saberes de
conhecimento – a verdade sobre os fenômenos do mundo sem que haja a interferência da
subjetividade do “observador” – e em saberes de crença – o olhar que o sujeito apresenta sobre as
ações do homem.
Quando, em um discurso, a visão de mundo retratada não coincide com os imaginários
sociodiscursivos mais difundidos e cristalizados por um grupo social, é provável que estejamos
diante de um caso de transgressão. De acordo com Nicolas (2012, p. 20-21): “As transgressões
podem ser notadamente reivindicadas por grupos sociais minoritários ou dissidentes em uma lógica
de provocação ou em uma tentativa de subversão das normas em vigor.” (tradução nossa). Assim,
consideramos que a transgressão desempenha um processo de ultrapassagem dos limites
considerados mais bem aceitos socialmente por um grupo, ou seja, ela rompe com as fronteiras
sociais com o objetivo de instaurar novos valores.
Gostaríamos de salientar, portanto, que a transgressão se alicerça em um paradoxo: para que
ela exista o sujeito transgressor deve-se pautar em uma norma vigente, uma vez que a transgressão
se baseia tanto no social quanto no histórico, contextos estes que variam de acordo com o tempo, a
sociedade e a cultura.

2. O corpus

O ensaio sensual fotográfico intitulado “Sem Fantasia” foi publicado em outubro de 2010 na
revista Tpm2e apresenta em sua composição seis imagens em preto e branco e uma entrevista com o
apresentador Rodrigo Faro. Assim sendo, abarcaremos tanto o discurso verbal quanto o discurso
icônico, uma vez que acreditamos que estes dois elementos possibilitam uma maior compreensão
do gênero. Anteriormente à análise do corpus selecionado para o nosso estudo, julgamos
conveniente elaborar algumas ponderações sobre o discurso erótico.
A noção de erótico nos é apresentada inicialmente pelo filósofo Platão em sua obra O
banquete (380 a.C.), cujos temas principais são a natureza, o amor e as suas qualidades. Segundo o
autor, antes do surgimento de Eros, deus do amor na mitologia grega, existiam três tipos de seres: o
masculino, o feminino e o andrógeno. O corpo dos andrógenos era composto por quatro pernas,
quatro braços, quatro mãos, duas faces, dois genitais e uma cabeça. Ao desafiar Zeus, deus-rei do
Olimpo, estes seres são partidos em dois como forma de castigo. Após esta divisão, os andrógenos
sentiram a necessidade de procurar a sua metade correspondente e, é quando as duas partes se
encontram, que surge Eros: o desejo de se recompor e reestruturar a antiga formação.
É praticamente inviável debater sobre a noção de erotismo sem citar a pornografia, posto
que, para alguns estudiosos, há uma demarcação tênue entre o que é erótico e o que é pornográfico
cabendo, portanto, aos aspectos culturais a definição de tal limite. Nos estudos de Maingueneau
(2010, p. 28):

A noção de pornografia e a de erotismo se baseiam na rejeição e recusa que uma tem


da outra. A pornografia recusa o erotismo quando se recusa a ‘tapar o sol com a
peneira’ e demonstrar o discurso ‘verdadeiro’, sem insinuações. O erotismo recusa a
pornografia através da sua superioridade, seu caráter estilístico, e civilizado de não
ser pornográfico. Sendo assim, o erotismo é ambíguo, se comporta de duas formas,
pois às vezes é superior, sublime ou, às vezes, é uma pornografia envergonhada que
não tem coragem de se mostrar.

Para esse autor, erotismo e pornografia separam-se por meio de conceitos rígidos e estanques, como
indireto versus direto; civilizado versus selvagem; artístico versus comercial. No entanto, não
podemos deixar de sublinhar que um conceito se vale da oposição do outro para existir.

2A revista pertence à Trip Editora e desde 1986 está presente no mercado editorial na área de conteúdos especiais e comunicação. A
Trip Editora se qualifica no seu próprio site como uma das maiores esclarecedoras sobre comportamento e comunicação para
públicos especiais no Brasil, tendo como slogan a frase: “Refletir a sua verdade com os nossos olhos.” Atualmente, a Trip Editora
publica cerca de 40 milhões de exemplares por ano distribuídos em 14 títulos. http://www.tripeditora.com.br. (Acesso em 20 de
fevereiro de 2015)
Grosso modo, podemos classificar o erotismo como um jogo de insinuação, visto que ele se
dá pelo via do “mostra, mas esconde”. Ao contrário do discurso pornográfico, no discurso erótico
não encontramos a exibição explícita dos órgãos sexuais ou do ato sexual. Na maioria dos casos, o
discurso erótico possui o caráter do cotidiano que se erotiza de acordo com o seu contexto, como é
o caso das imagens de pin-ups em que notamos a erotização da cena através de pequenos acidentes
domésticos.
No que concerne ao erotismo nos ensaios sensuais fotográficos vinculados em revistas
impressas, consideramos pertinente ressaltar que o ato de fotografar pessoas nuas ou seminuas teve
início no século XX na França com o desenvolvimento da impressão e com a reprodução em grande
escala da fotografia. A partir desse período, o erotismo e a pornografia atingiram um grande número
de admiradores passando a se tornar um mercado bastante acessível e, principalmente, lucrativo. Na
esteira dos estudos de Del Piore (2011, p. 120):

Com relação à primeira publicação brasileira com a presença de nus masculinos,


destacamos o jornal Lampião (1978-1981) que tinha como público-alvo os
homossexuais. Segundo Kucinski (1991), o jornal tinha o formato de tablóide, era
impresso em preto e branco e trazia editoriais, cartas dos leitores, notícias,
reportagens, informações culturais, indicações de livros, exposições e entrevistas.
Nos números finais, o jornal começou a publicar fotos eróticas e, aos poucos, perdeu
a sua credibilidade, no entanto, embora tenha durado pouco, o jornal marcou a
imprensa brasileira pelo seu vanguardismo nas posições defendidas.

Nos dias atuais, é mais comum encontrarmos revistas com ensaios eróticos femininos do que
masculinos. Uma hipótese para esse fato pode ser a difusão do discurso patriarcal dominante no
qual a mulher não se excita, tanto quanto o homem, com o visual, cabendo a ela, portanto, as
percepções sensoriais relativas aos outros sentidos, como o olfato e o tato.
Consideramos importante ressaltar que, no decorrer de nossa pesquisa3, não encontramos
nenhum ensaio erótico masculino que apresentasse a exibição da nudez – como é corriqueiro nos
ensaios femininos, posto que, na totalidade dos casos analisados, o modelo-personagem é retratado
com o corpo coberto e fragmentado, ou seja, há uma exploração maior do plano americano – aquele
que focaliza o fotografado do joelho para cima.

3. Análise do corpus

Ao estudarmos o ensaio fotográfico sensual masculino intitulado “Sem fantasia”, podemos


observar uma mistura dos gêneros masculino e feminino. A princípio destacaremos as
características relacionadas aos imaginários sociodiscursivos pertencentes ao universo do homem
para, posteriormente, darmos ênfase aos aspectos referentes aos imaginários sociodiscursivos da

3O período de coleta das revistas Tripe Tpm se deu entre janeiro de 2012 e janeiro de 2013.
mulher. Por razões metodológicas de análise, em um primeiro momento, iremos analisar o discurso
verbal, para em seguida, fazermos um estudo das imagens icônicas, aliando assim texto e imagem.
Para dar início ao nosso estudo, gostaríamos de salientar que o modelo fotografado, Rodrigo
Faro, apresenta, atualmente, o programa televisivo Melhor do Brasil que é exibido nas tardes de
domingo pela emissora TV Record. No discurso de apresentação do modelo para a leitora da
revista, destacamos o seguinte trecho:

Chamado pela Record, em 2008, Rodrigo começou ganhando R$70 mil, ‘um pouco
mais’ do que ganhava na Globo. Hoje, afirma receber entre 15 e 20 vezes mais do
que quando fazia novela. Se calcularmos que seu salário dobrou ao mudar de
emissora, então hoje ele fatura no mínimo, meio milhão de reais – sem contar
merchandising, campanhas publicitárias e participação em eventos. E está
contratado até 2017. (REVISTA TPM, NÚMERO 103, ANO 09, P.56)

Ao retratar o apresentador como um homem que possui sucesso e êxito na sua carreira profissional,
destacamos a presença de elementos – a quantia recebida e o convite para atividades publicitárias –
que corroboram para a construção de um ethos de um homem que é rico, bem sucedido e que
apresenta a carreira em ascensão. A construção da imagem de um homem que é famoso e que
possui popularidade também se faz presente nas qualidades atribuídas a Rodrigo no decorrer da
entrevista, conforme destacamos:

Diante dessa overdose de imagem, o apresentador, que já foi ator da Globo, está
pensando em contratar seguranças. Ainda mais depois de que teve que ser
resgatado pelo corpo de bombeiros do stand de um dos patrocinadores de seu
programa, na Beauty Fair (Feira Internacional de Cosméticos e Beleza). Isso
porque cerca de 10 mil pessoas pararam o evento para tirar foto, pedir autógrafos e
dançar com ele. (REVISTA TPM, NÚMERO 103, ANO 09, P. 56)

Observarmos então que a imagem do apresentador elaborada pela revista Tpm se baseia no ethos do
homem que é reconhecido e ao mesmo tempo assediado por todos, no entanto, gostaríamos de
enfatizar que a fama de Rodrigo Faro não se caracteriza com algo momentâneo, já que ele foi
considerado por muitos, como um dos ícones masculinos de beleza, principalmente nos anos 1980 e
1990 quando era integrante da banda Dominó. 4
No que concerne à beleza e à popularidade do apresentador com as mulheres, durante a
entrevista, Rodrigo afirma que não se acha lindo, mas que tem virilidade, o que segundo ele é
importante. Sendo então indagado sobre o que é ser viril, o apresentador responde: “Se portar como
homem, que vai desde quando a mulher fala ‘Amor, não tô conseguindo abrir a lata da maionese’
até ser uma figura masculina que protege sua esposa e filhas”. Neste trecho, podemos observar dois
aspectos que merecem destaque. O primeiro aspecto está associado ao imaginário sociodiscursivo
referente à não relação do homem com a beleza física e o segundo aspecto se refere ao imaginário

4Dominófoiuma boy band brasileiraqueteveseuaugenosanos 80 e depois no final dos anos 90. A bandavendeucerca de 6 milhões de
discos no Brasilnosanos 1980. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dominó_(banda). Acessoem 15 de julho de 2014.
que remete à figura masculina como aquele que deve sustentar e proteger a família. De acordo com
Del Priore (2011, p. 156):

A valorização da força física como fator de desenvolvimento da sociedade


engendrava outras formas de práticas, agora também fundadas em conceitos
estéticos. O corpo musculoso e forte tornava-se signo de beleza e era
revelador de boa saúde. Entravam em cena halteres e pesos. Valores como
resistência, autoridade e competição simbolizavam a afirmação da mascu-
linidade. Tais mutações escoravam-se nas mudanças econômicas. A
prosperidade alimentava os sonhos de ascensão social. Junto a isso, havia a
aspiração de alargar horizontes e formar melhores brasileiros. Na vida
privada, a atenção crescente dada à família, aos filhos e ao casamento exige
uma adequação entre a casa e a rua. Isso porque a imprensa promovia a nova
masculinidade, associando-a a ‘caráter, trabalho duro e integridade’. O bom
macho era também bom pai de família e provedor.

Desse modo, notamos que o discurso verbal de Rodrigo Faro sobre a aparência e o comportamento
perante à família endossa os imaginários sociodiscursivos pertencentes ao típico comportamento
masculino.
Na afirmação do apresentador: “Não me acho lindo, mas tenho virilidade, o que é
importante.”, destacamos a presença da conjunção alternativa mas como um indicador de
compensação: Não sou lindo, mas sou viril. Ao retratar a virilidade como uma característica
importante, Rodrigo deixa implícito o julgamento de que, para o homem,é mais importante ser viril
do que bonito, cabendo, portanto, à esfera do feminino a preocupação com a beleza. Segundo Perrot
(2007, p. 49):

A mulher é valorizada por sua aparência, é antes de tudo uma imagem, ela é feita de
aparências. A beleza serve como um capital na troca amorosa. Esta troca é desigual,
pois o homem exerce o papel de sedutor ativo e a sua parceira deve contentar-se
como objeto de sedução. Desta forma, as feias são ‘rejeitadas’ até que o século XX
apareça com a tópica: todas as mulheres podem ser belas. É apenas uma questão de
maquiagem e cosméticos, como dizem as revistas femininas.

Posto isso, destacamos que ao afirmar ser um homem viril, Rodrigo Faro atribui as dicotomias
fragilidade versus potência, inércia versus movimento, imanência versus transcendência ao
feminino e ao masculino respectivamente.
No que diz respeito aos imaginários sociodiscursivos referentes à virilidade, salientamos a
construção do ethos de um homem dotado de energia física e moral. Com relação ao vigor físico,
podemos constatar essa qualidade quando o apresentador faz alusão à sua capacidade de “abrir a
lata de maionese”, já no que concerne à vitalidade moral, apontamos o seguinte trecho da entrevista:
“... – e as contas da casa (‘um bolo assim’, diz, fazendo gesto que mostra mais de 5 centímetros),
que Vera paga pessoalmente no banco, com cheques assinados pelo marido”. Observamos,
portanto, que Rodrigo Faro se auto classifica como viril, pois acredita possuir ao mesmo tempo a
força física, financeira e moral para proteger a sua família. O que queremos dizer é que, ao se
apresentar como um homem que pagas todas as contas da casa e que auxilia a sua esposa nas tarefas
domésticas que necessitam de força muscular, Rodrigo endossa o imaginários sociodiscursivos
relativos à virilidade através da ideia de que um homem viril é aquele que demonstra coragem,
energia e hombridade ao se responsabilizar pelos seus “deveres sociais” e zelar pela sua família.
Partindo para a análise dos elementos icônicos, encontramos, nas imagens presentes no
ensaio sensual, objetos referentes ao mundo feminino conforme podemos observar:

Figura 1: Ensaio Sem Fantasia


Fonte: Revista Tpm, número 103, ano 09, p.54,55,61

A presença do sutiã e da meia 7/8 utilizada pelo apresentador servem para endossar a nossa
afirmação de que o fotografado apresenta uma proximidade e até mesmo um entendimento do
universo feminino, visto que ao ser perguntado sobre como foi a sua criação, Rodrigo responde:

Sou cercado por mulheres. Fui criado pela minha mãe e pela minha avó. Minha
diretora [Rita Fonseca] é mulher, tenho duas filhas [Clara, 5, e Maria, 2] e a Vera
[Viel, esposa dele e repórter do Amaury Jr.Show, na RedeTV!]. Não fui no puteiro
com 13 anos. Minha primeira vez foi com uma namoradinha no banheiro do salão
de festas do meu prédio [em São Paulo]. Minha mãe me explicou como eu deveria
tratar uma mulher. Isso é bom até para apresentar um programa em que a maioria
do público é feminina. Sempre tomo cuidado pra não ser machista, babaca.

Nessa declaração, podemos perceber que o apresentador constrói um ethos de sensibilidade e


familiaridade com o mundo feminino, sendo a condição da emotividade relacionada ao fato de sua
mãe tê-lo ensinado como uma mulher deve ser tratada – nessa afirmação de Rodrigo, encontramos
implícita a ideia de que ele é um homem amoroso, respeitoso e atencioso – e acondição do
conhecimento do universo feminino atribuída pelo seu convívio cotidiano com várias mulheres
tanto em sua vida profissional quanto em sua vida pessoal.
O ethos de sensibilidade construído pela afirmação do apresentador sobre a sua educação
familiar revela ao público-alvo da revista que Rodrigo é um homem afetuoso e romântico, conforme
podemos observar no trecho em que ele explica como conheceu a esposa: “Há 13 anos, num
comercial, no Guarujá [litoral paulista]. Dei um beijo nela e falei: ‘Gozado, acho que vamos ficar
juntos pra sempre’ [risos]”. Nesse trecho, o discurso do apresentador retrata uma tópica muito
comum pertencente ao imaginário sociodiscursivo da mulher: o amor à primeira vista atrelado à
ideia da “intuição feminina”, pois é como se Rodrigo tivesse o pressentimento de que Vera seria o
seu grande amor. Outra característica referente ao imaginário sociodiscursivo do universo da
mulher se faz presente quando o próprio apresentador conta à entrevistadora que chama a todos de
“meu anjo” e “meu amor”, característica esta, considerada pela cultura ocidental, como pertencente
ao comportamento feminino.
Partindo para a análise do discurso icônico no que diz respeito a peças femininas utilizadas
por Rodrigo, destacamos a presença do conceito de fetichismo segundo Canevacci (2008):

O fetichismo move as coisas para transformá-las em sujeitos sexuados. Coisa e


pessoa se assimilam e atrelam... evoluem.Tem como conseqüência a dissolução
progressiva das tradicionais distinções entre normal e anormal, perverso e correto,
familiar e estrangeiro através de evidentes atratores micro-fetish. É o fetiche que
costura o anômalo ao habitual.

É possível destacar que o sutiã e a meia 7/8 funcionam como elementos de fetiche, pois eles
rompem com a dicotomia normal versus anormal no que concerne aos padrões de moda masculina.
O que pretendemos demonstrar é que ao incorporar tais peças femininas mescladas ao vestuário
tipicamente masculino (camisa social com listras pretas e brancas), Rodrigo transgride com o que
seria “padrão” em relação aos imaginários sociodiscursivos do vestuário do homem. Ainda de
acordo com Canevacci (2008), o fetiche negligencia a identidade, portanto é através do uso de peças
femininas que o apresentador transmite a oscilação entre os gêneros masculino e feminino,
“descuidando” da sua identidade de homem e se aproximando da afeminação 5 . Consideramos
conveniente salientar que não é de nossa pretensão julgar tal comportamento como positivo ou
negativo, uma vez que esse não é o nosso objetivo proposto. O que buscamos é demonstrar como os
elementos verbais e os elementos icônicos relacionados ao universo sociodiscursivo da mulher
funcionam como unidades de significação que contribuem para a construção da feminilidade como
um elemento de transgressão dentro do gênero ensaio sensual masculino.
Dando continuidade a análise dos elementos femininos, gostaríamos de evidenciar alguns
aspectos gestuais relacionados à corporalidade de Rodrigo:

5 Fazerperderouperder as característicasmasculinas, assumindooutrasmaisassociadasaosexofeminino.Fonte: verbete"efeminado".


In:DicionárioPriberam da Língua Portuguesa [emlinha], 2008-2013. http://www.priberam.pt/DLPO/Efeminado [consultadoem 18-
07-2014. (Acesso em 18 de julho de 2014)
Figura 2: Ensaio Sem Fantasia
Fonte: Revista Tpm, número 103, ano 09, p.57, 59

Nestas imagens consideramos oportuno o modo como o apresentador puxa a própria camiseta,
desse modo, a presença da oscilação entre os gêneros feminino e masculino se faz mais evidente
quando abordamos tal atitude do apresentador, visto que esse movimento nos traz como referência
as poses tipicamente femininas conforme podemos observar:

Figura 3: A intericonidade
Fonte: Revista Trip, número 193, 2010

Ao ver as fotografias de Rodrigo Faro apresentadas acima imediatamente acionamos em nossa


memória icônica as imagens de mulheres na mesma posição que o apresentador. Ao movimento de
buscar e encontrar na memória imagens já vistas anteriormente, Courtine dá o nome de
intericonicidade. Para Courtine (2008, p. 40):

A intericonicidade pressupõe estabelecer relações entre imagens: imagens exteriores


ao sujeito (no sentido arqueológico, imagens existentes na sociedade) e imagens
internas ao sujeito que leva em conta todo um catálogo memorial de imagens do
indivíduo, incluindo sonhos, imagens vistas, ressurgidas ou que povoam nosso
imaginário.
A ideia de memória visual foi cunhada pelo autor supracitado ao revisitar os trabalhos de Foucault,
mais especificamente, a noção de memória discursiva. Através do comportamento gestual de
Rodrigo Faro, podemos notar o presença da intericonicidade no que diz respeito aos imaginários
sociodiscursivos pertencentes ao universo feminino. Desta forma, é possível afirmar que no ensaio
do apresentador Rodrigo Faro, a oscilação entre o feminino e o masculino se faz presente tanto no
discurso verbal como no discurso icônico, sendo este caráter ambíguo o que nos permite classificar
o ensaio como transgressivo.

4. Considerações finais

A citação da artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954): “E a sensação nunca mais me


deixou, de que meu corpo carrega em si todas as chagas do mundo” retrata, para nós, a sutileza e a
importância de se estudar o discurso sobre o corpo e a corporalidade. Ao situarmos essa substância
orgânica sob o viés dos estudos pertencentes à Análise do discurso, abandonamos o caráter
biológico que o corpo pode assumir para interpretá-lo como um espaço onde se manifesta múltiplos
significados e significações. Assim, podemos afirmar que o corpo nos revela os traços sociais e
históricos de uma sociedade como um todo.
Através da análise tanto do discurso verbal quanto do discurso icônico, nos foi possível
destacar a presença da transgressão no referido ensaio, uma vez que encontramos a hibridização do
gênero masculino – atrelado às ideias de virilidade, força física, poder econômico e proteção
familiar – e feminino – representado pelas ideias de sensibilidade, emotividade e pelo uso das peças
íntimas: sutiã e meia 7/8. Na esteira das reflexões da artista supracitada, podemos afirmar que o
estudo do ensaio sensual fotográfico intitulado Sem Fantasia, nos permitiu profundas reflexões no
que diz respeito aos imaginários sociodiscursivos da sociedade ocidental contemporânea em relação
ao que se entende por masculino e feminino.

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