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Organização, Recursos Humanos e Planejamento

CONTEXTO SOCIAL
E IMAGINÁRIO
ORGANIZACIONAL
MODERNO

Maria Ester de Freitas


Professora do Departamento de Administração e Recursos Humanos da EAESP/FGV, Pesquisadora Visitante na
Universidade de Paris VII e Autora do livro Cultura organizacional: formação, tipologias e impactos.
E-mail: mfreitas@fgvsp.br

RESUMO ABSTRACT
Este artigo analisa algumas das mudanças que vêm ocorrendo no am- This article analyzes some changes happened in the social-organizational
biente socioorganizacional e as respostas que as grandes empresas environment and the answers given them by big businesses, mainly ones
têm dado a elas, especialmente desenvolvendo um imaginário próprio related to a specific imaginary created in order to legitimate them as a
que busca a sua legitimação como ator social central. central social actor.

PALAVRAS-CHAVE
Ambiente organizacional, cultura organizacional, imaginário organizacional.

KEY WORDS
Organizational environment, organizational culture, organizational imaginary.

6 RAE - Revista de Administração de Empresas • Abr./Jun. 2000 RAESão


• v.Paulo,
40 • v.n.402 • Abr./Jun.
n. 2 • p. 2000
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Contexto social e imaginário organizacional moderno

Traindo? Confiança? Sois todos iguais, vós, os falamos no ambiente atual, uma se apresenta de for-
realistas: quando não sabeis o que dizer, apelais para ma predominante como causa e conseqüência de tudo
a linguagem dos idealistas. o mais: mudanças aceleradas constantes. Vivemos uma
Jean-Paul Sartre - O diabo e o bom deus torrente de mudanças nos vários campos do social e
do humano sem nenhum precedente na História. A pa-
Não podemos pensar em organizações independen- lavra que define o momento é “complexidade”. Em
tes do contexto e da época em que se inserem. Isso boa medida, essas mudanças são decorrentes do rápi-
significa que as organizações devem ser compreendi- do desenvolvimento econômico das últimas décadas,
das dentro de um espaço social e de uma épo-
ca específicos, constituindo-se, assim, num
formato sócio-histórico. O histórico e o soci-
al são intrinsecamente ligados, pois não exis- É possível identificar o aparecimento
tem relações sociais entre os indivíduos e os
grupos nem entre estes e os objetos sociais do que Freud já chamava de “narcisismo
que se dêem sem referência a um tempo e a
um espaço. Toda significação só pode, então, das pequenas diferenças”, ou seja, um
ser compreendida numa prática e num pensa-
mento da sociedade e da História. individualismo de grupos ou de “tribos”.
Uma sociedade institui-se criando para si
a representação de uma visão de mundo, do
seu mundo e do mundo que ela conhece. A essa auto- em especial no mundo ocidental, porém elas trazem
imagem liga-se um “querer-se” e um “amar-se” como na sua rasteira uma espiral de efeitos múltiplos e
aquela sociedade, e não como uma outra qualquer. As influenciações recíprocas, ainda difíceis de serem
sociedades e os povos diferem em função do que apreendidos de uma forma mais precisa. Essa dificul-
amam, detestam, querem, desejam, sonham, buscam. dade comporta algumas explicações, entre elas o fato
Sua auto-representação é fruto do seu passado mas de não podermos isolar as variáveis independentes das
também do seu presente e do seu “querer-se” como demais, ou seja, o cultural, o econômico, o social, o
um futuro (Castoríadis, 1995). Tudo o que existe numa político, o religioso, o tecnológico estão tão imbrica-
sociedade é produção dessa sociedade e somente dos que alterações em um deles podem significar mu-
assim pode ser ela compreendida. danças simultâneas, e em cadeia, em todos os demais.
Parece corrente o pensamento que atribui às socie- Aliado a isso há o fato de estarmos dentro do pró-
dades tradicionais maior riqueza na produção e mani- prio movimento, o que não nos permite um distanci-
festação do imaginário e do simbólico. As sociedades amento necessário para uma compreensão mais
modernas aparecem como se fossem, se não destituí- abrangente. É sempre possível, porém, pinçar e bus-
das desses elementos, pelo menos expressando-os de car aprofundar alguns pontos.
forma pouco saliente. Ora, uma das características mais A queda das barreiras geográficas traz consigo a
marcantes das sociedades modernas é a ênfase na consolidação – ao mesmo tempo em que se reforça
racionalidade extrema ou, ainda, o pós-moderno inau- por ela – de alguns valores mundiais; a elevação mun-
gura-se na “morte de Deus”, na perda dos fundamen- dial do nível de educação contribui sensivelmente para
tos, da transcendência, ou seja, no esfacelamento da a geração de acréscimos significativos no universo das
religião, da ética, da moral e do sagrado. Desenvolve- ciências, impulsionando uma renovação tecnológica
remos um raciocínio inverso: essa racionalidade incessante; a velocidade na produção e na transmis-
definidora dos tempos modernos é, ela mesma, repleta são de informações faz desaparecer a diferença entre
de um imaginário e de um simbolismo que não encon- transportes e comunicações; o estoque mundial de
tram referências em nenhuma outra sociedade, e o ima- capital privado, que vem sendo utilizado para a com-
ginário das organizações modernas busca responder à pra de parcelas do setor público e para o financia-
problemática atual de fragilidade no processo de iden- mento da pesquisa aplicada, faz com que as empresas
tificação dos indivíduos. tenham um poder decisório – não apenas econômico
mas também político – que antes se encontrava nas
O CONTEXTO SOCIAL DAS ORGANIZAÇÕES mãos dos governos.
MODERNAS Por outro lado, a tendência para a rápida destrui-
ção dos padrões culturais tradicionais, integrados an-
De todas as imagens que nos vêm à mente quando teriormente, inclui vários aspectos, entre eles: a re-

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©2000, v. 40 - •Revista
n. 2 • de
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Administração
2000 de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. 7
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dução do significado da religião e da moral determi- seja, ele não pertence mais a um lugar específico, ele
nada pela religião; a significância reduzida dos pa- não está mais preso a raízes familiares, muito menos
péis sexuais, mudando as atitudes em relação a au- de vizinhança.
toridade, figuras parentais, moral sexual e atribu- No social mais amplo, verificam-se ganhos enor-
tos específicos de classes; e o declínio da ética do mes em relação às possibilidades materiais de vida, de
trabalho e a instituição de uma forma de vida conforto e de saúde, uma elevação no nível e no aces-
consumista e hedonista. Percebemos, assim, uma so à informação, a elevação dos índices de longevidade,
grande fragmentação de valores e condutas pessoais uma maior reivindicação de espaços políticos para a
e coletivas, em que a integração social começa a representação de novos grupos sociais, bem como o
aparecer como problemática. surgimento de novos grupos de negociação. Mas nem
tudo são flores no reino do social. O homem,
como o grande construtor de todo o social, é
também por ele construído, o que significa que
O que percebemos é uma sociedade a linguagem que fala é a mesma que esconde,
que a sociedade que protege é a mesma que
dominada pelo racional e pelos mata, que os critérios que incluem são os mes-
mos que excluem. Queremos dizer que as mu-
lobbies, o modelo do que ganha danças ocorridas no social também têm apre-
sentado efeitos colaterais danosos, tais como:
mais sem nenhuma relação efetiva desemprego, povos e grupos excluídos de
qualquer benefício gerado pelo progresso,
entre o trabalho e a remuneração. maior concentração mundial de renda, estresse
em todas as faixas de idade, fuga por meio de
suicídios e drogas, poluição, catástrofes am-
Um cenário como esse não pode deixar de apresen- bientais e tantos outros males, só para falarmos dos
tar impactos – diretos e indiretos – nos níveis do indi- mais evidentes. Também são claras as referências à
vidual, do familiar, do organizacional e do social mais fragmentação, fragilização e crise identitária, que ci-
amplo. Podemos notar, sem dificuldades, que, nas fa- entistas políticos, sociólogos, antropólogos, psicana-
mílias, várias mudanças têm deixado as suas marcas listas e outros especialistas tentam compreender.
com grande visibilidade: na redução do seu tamanho, Várias têm sido as tentativas de se precisar melhor
na alteração do conceito de família nuclear, na desa- se o que ocorre no momento é apenas um mal-estar no
gregação provocada por divórcios e separações mais processo de identificação ou algo mais acentuado e que
freqüentes e fáceis, na convivência de diferentes ar- poderia ser chamado de crise de identidade1. Têm sido
ranjos de relacionamento, na criação de filhos por ter- discutidas teses sobre: o enfraquecimento dos víncu-
ceiros/instituições, iniciando precocemente uma so- los sociais e do universo simbólico, a fragilização das
cialização secundária, no surgimento de uma quarta bases identitárias (Palmadade, 1990), a perda de fun-
idade e na redução das diferenças entre os valores ção dos rituais, especialmente aqueles relacionados às
“geracionais”, dando origem ao que Anatrella (1988) práticas religiosas, que lidam com as mudanças e
chama de uma “sociedade adolescentrique”. mediam a relação com o divino, mas também os de
Visto isoladamente, o indivíduo não parece mais passagem, nos quais verificamos uma espécie de in-
“feliz” que a sua própria família. A ele se atribui um diferenciação de comportamentos, não mais associ-
maior individualismo, dentro de redes sociais cada vez ados a idades ou a gerações (Maisonneuve, 1990).2 É
mais virtuais, nas quais ele desenvolve contatos múl- possível identificar o aparecimento do que Freud já
tiplos com um número cada vez maior de estranhos chamava de “narcisismo das pequenas diferenças”, ou
íntimos; uma maior insegurança, oriunda da falta de seja, um individualismo de grupos ou de “tribos”.3 Há,
referências claras; uma busca de sentido para a vida, ainda, o argumento sobre a ênfase nociva que a socie-
sentido esse que se encontra diluído num sentimento dade atual mantém com a primazia do econômico e a
difuso de perda; o estabelecimento de um contrato de influência da crise nas instituições tradicionais: Igre-
convivência pacífica com a solidão, às vezes, envolta ja, partidos políticos, sindicatos, Estado, escola, etc.
no manto da privacidade; a perda de laços afetivos (Roustang, 1990).
primários, o que o predispõe a estabelecer contatos Para Castoríadis (1990) existe não apenas um mal-
cada vez mais frouxos e “independentes” e o torna estar, mas uma bela crise da sociedade como um todo,
mais receptivo a processos de desterritorialização, ou que tem sua origem não apenas numa crise de valores

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Contexto social e imaginário organizacional moderno

mas também nas significações imaginárias sociais. oferecem o papel de ator central4 da sociedade, por meio
Estas não estariam mais cumprindo as suas funções e, do qual todas as demais relações devem se organizar.
socialmente falando, não existem mais respostas para Elas pretendem ser o modelo de racionalidade, de trans-
o sentido do “imortal”. O que percebemos é uma soci- parência, de produtividade e de resultado que as de-
edade dominada pelo racional e pelos lobbies, o mode- mais instituições presentes no corpo social devem se-
lo do que ganha mais sem nenhuma relação efetiva entre guir. A relação com o trabalho ou com o lugar do tra-
o trabalho e a remuneração (Madonna, Prince, Trump, balho tende a se tornar a principal referência dos indi-
etc.), não existindo mais nada nessa sociedade que víduos ou, de outra forma, as organizações modernas –
justifique os valores da integridade, da seriedade. Se no contexto citado – assumem voluntariamente o papel
esses valores ainda estão presentes é em fun-
ção de heranças passadas, pois a sociedade tal
como se apresenta não justifica a sua existên-
cia. Não se ganha pelo que se vale, mas se As organizações, especialmente
vale pelo que se ganha. Contrariamente à tese
do individualismo, Castoríadis (1990, p.131) as grandes empresas privadas,
crê que a característica predominante da so-
ciedade atual não é o individualismo, mas o apresentam uma maior facilidade
conformismo generalizado. “Conformisme qui
n’est possible qu’à condition qu’il n’y ait pas em captar as mudanças sociais e
de noyau d’identité important et solide.” Ou-
tros autores têm acusado a mass media pela responder mais rapidamente a
promoção de pseudo-eventos, espetáculos
(Debord, 1967) ou simulacros, em que a apa- elas que as demais instituições.
rência é tudo, o falso vale mais que o verda-
deiro e a reprodução de tudo é possível
(Baudrillard, 1981). Nesse movimento, até a morte é de fornecedores de identidades tanto social quanto in-
negada ou driblada, e a tecnologia, que pode fazer mi- dividual, contaminando o espaço do privado e buscan-
lagres, pode também trazer do túmulo os grandes ído- do estabelecer com o indivíduo uma relação de refe-
los sempre que sua presença for considerada como um rência total. Essa tentativa vai se dar por meio da pro-
bom negócio ou oferecer a oportunidade de um belo dução de um imaginário específico, no qual a organi-
espetáculo, como bem demonstra a recente “ressurrei- zação aparece como grande, potente, nobre, perfeita,
ção” de John Lennon. procurando captar os anseios narcisistas de seus mem-
Sabemos que as organizações, especialmente as bros e prometendo-lhes ser a fonte de reconhecimento,
grandes empresas privadas, apresentam uma maior fa- de amor, de identidade, podendo preenchê-los e curá-
cilidade em captar as mudanças sociais e responder los de suas imperfeições e fragilidades.5
mais rapidamente a elas que as demais instituições. Elas
respondem não apenas de maneira operacional mas tam- O IMAGINÁRIO ORGANIZACIONAL
bém de forma simbólica, via cultura organizacional e MODERNO
repasse de todo um imaginário. As organizações lêem
o que se passa no seu ambiente e reelaboram respostas Até recentemente, as grandes empresas (big
que possam ser direcionadas para os seus objetivos. businesses), especialmente as multinacionais, precisa-
As organizações são espaços de comportamentos con- vam ser bastante cuidadosas e privilegiavam uma ima-
trolados e todo o controle do social passa, necessaria- gem discreta, a fim de evitar serem acusadas de fazer
mente, pelo controle da identidade. Se existe, neste uso do poderio econômico para exercer influência po-
momento, uma crise ou um mal-estar no processo de lítica nas sociedades nas quais elas se instalavam. Esse
identificação dos indivíduos e se a integração social comportamento discreto e cauteloso lhes permitia fun-
começa a se apresentar como problemática, é necessá- dar sua legitimação numa base de competência e de
rio desenvolver mecanismos capazes de dar respostas compatibilidade com o projeto de desenvolvimento da
a essas questões e realinhar o processo de adaptação região ou do país onde elas se situavam, o que lhes
ao novo cenário mutável, redistribuindo a importância garantia uma aparente neutralidade. Mesmo assim, as
dos papéis dos atores sociais. palavras “big business” e “multinacional” traduziam
Nessa redistribuição, as organizações modernas as- uma má reputação.6 Elas eram acusadas de provocar
sumem uma importância que nunca tiveram antes e se desemprego, de sonegar impostos, de influir politica-

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mente nos governos dos países em que se instalavam, A empresa-cidadã


de concorrer deslealmente, de causar danos ecológi- É lícito reconhecer a importância que as empresas
cos, de, enfim, ser imorais. Não se passou ainda uma têm exercido no desenvolvimento econômico das so-
década e temos, hoje, um panorama completamente ciedades atuais, mas essa relevante função não altera a
diferente. sua finalidade básica: a de produzir – com lucro – bens
Podemos perceber atualmente, não apenas nas so- e serviços destinados a um mercado. A crise econômi-
ciedades ocidentais, um movimento de revalorização7 ca contribui para reforçar o seu papel, porém não é
do papel das empresas. Esse movimento se deve, em suficiente para modificar a sua essência.
grande medida, à “confirmação” do capitalismo como O conceito de cidadania é de uma outra natureza e
a “única” via capaz de promover o desenvolvimento implica, necessariamente, a superação de interesses
econômico e a crescente legitimação da ideologia particulares, a consciência do bem comum, a noção de
neoliberal, em que o econômico assume o papel pre- igualdade e liberdade, de respeito pelos direitos do
dominante e subordina todas as demais esferas da vida outro, bem como o reconhecimento da necessidade da
social. A crise nas instituições tradicionais da socieda- presença de diferentes atores no debate político sobre
de fomenta essa primazia do econômico. É verdade que os negócios da cidade e da nação por inteiro. O políti-
toda a sociedade deve ser capaz de desenvolver as con- co e o social se fundem e se sustentam numa represen-
dições de sua sobrevivência material, mas é neste mo- tação, num desejo, num projeto e numa vivência de
mento histórico específico que podemos verificar uma coletividade capaz de identificar-se como pertencendo
tendência reducionista que atribui ao aspecto econô- àquela, e não a outra sociedade, ou seja, a cidadania é
mico a importância de todas as coisas. A própria polí- um estatuto entre uma pessoa natural e uma sociedade
tica se transforma numa simples gestora de índices eco- política, portanto privativo do indivíduo e dos seus di-
nômicos. reitos/deveres civis. Um sistema artificial como uma
Além desses fatores – sem dúvida nenhuma impor- empresa, uma associação, pode ter uma nacionalidade,
tantes –, é também a crise de identidade vivida pelos mas certamente não uma cidadania.
indivíduos nessa sociedade ocidental que permite a As empresas falam em seus nomes e em nome de
ampliação do papel das organizações modernas. Quanto seus interesses, dos quais não perder é um dos mais
mais as referências culturais e religiosas, tradicionais, fortes. Falam em nome das categorias e dos setores
se quebram, mais os indivíduos e grupos se mostram econômicos que representam, defendendo, portanto,
receptivos a acatar mensagens e líderes que lhes pos- interesses parciais e legítimos. Pretendem, contudo,
sam oferecer uma resposta que traduza um pouco mais falar em nome de todos e se apresentam como isen-
de certeza e lhes permita o reconhecimento de um ca- tas de críticas ou envoltas num manto de bom-
minho, de um sentido para a vida. Numa sociedade em mocismo. Sabemos que, quando o econômico é o
que é exaltada a importância da imagem, da aparência, critério decisivo, as empresas podem fazer coisas
do consumo, da superficialidade, as organizações mo- bem absurdas do ponto de vista do cidadão: safras
dernas encontram um terreno fértil para se posicionar inteiras podem ser queimadas para elevar o preço do
como o grande referente que propõe uma forma de vida seu produto, independentemente da fome à sua vol-
de sucesso e uma missão nobre a realizar. O Estado – ta; aplica-se no mercado financeiro e reduz-se a ati-
falido e desacreditado – deve se restringir a oferecer vidade produtiva e empregadora; muda-se para um
as condições necessárias de infra-estrutura e deixar que outro país onde a estrutura de custos seja mais bara-
as empresas se ocupem do que garante o emprego, a ta, não importando a massa desempregada que elas
competitividade dos mercados e a potência da nação deixam atrás de si; apóiam campanhas de todos os
neste mundo globalizado. candidatos em uma mesma eleição para garantir a
Investidas como o novo pólo da legitimação social “simpatia” futura; incentivam guerras dos dois la-
e como o lugar que pode responder pelo esfacelamento dos para vender mais armas; podem, desde que seja
dos vínculos sociais e pelas questões identitárias, as possível, substituir por máquinas todas as pessoas
organizações modernas – com ênfase nas grandes em- que nelas trabalham, não apenas porque as máqui-
presas – constroem para e de si uma auto-imagem nas são mais velozes e “erram” menos, mas por to-
grandiosa, que vai enraizar-se num imaginário próprio, das as implicações da presença do trabalhador; fa-
que é repassado não apenas para os seus membros in- zem lobbies pesados para defender a aprovação de
ternos mas também para a sociedade no seu conjunto. alguns projetos que lhes garantam alguns privilégi-
Vejamos, mais de perto, alguns dos temas que são hoje os específicos, em detrimento do preço a ser pago
privilegiados por esse imaginário e como ele encobre por todos os demais. Enfim, a “consciência” das
as funções que são preenchidas. empresas limita-se ao que lhes garante que perma-

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neçam no jogo e que o ganhem. Estarão elas erra- O lugar da excelência


das? Não, ganhar o jogo é a sua missão e a sua natu- A palavra “excelência”8 mudou, recentemente, de
reza ou, como já dizia Guerreiro Ramos, “não se pode significado. Agora não se trata mais de um valor durá-
culpar o leão por ser carnívoro”. vel, um atributo ou uma qualidade superior. O que an-
No discurso de cidadania das grandes empresas, tes era um infinitivo – ser excelente – passou a ser um
duas frentes têm sido privilegiadas: apoio à cultura e gerúndio – sendo excelente. Ela adquiriu mobilidade,
à ecologia. No caso de apoio a projetos culturais, nun- transformou-se num patamar, numa seqüência sempre
ca se menciona o retorno que tais projetos podem pro- ascendente de posições, num quebra-recordes, numa
porcionar, seja em imagem institucional, seja em di- corrida de ultrapassagem. Essa escala móvel define hoje
videndos políticos, seja em redução de custos de cam- os paraísos e os infernos temporários das empresas e
panhas publicitárias. Ora, cada vez mais a publicida- de todos os que nelas estão.
de convencional apresenta limites de eficá-
cia; atualmente, busca-se uma valorização da
empresa como um todo, e não de um produto
específico. Cada vez mais os produtos são É também a crise de identidade vivida
efêmeros, mas uma marca consolidada é sem-
pre uma marca garantida, não importando que pelos indivíduos nessa sociedade
produto ela decide vestir. A indústria cultu-
ral é um verdadeiro setor econômico, e as ocidental que permite a ampliação
ações empresariais não devem ser confundi-
das com caridade, altruísmo ou mecenato. do papel das organizações modernas.
Mais uma vez, não estamos dizendo que as
empresas estão erradas em enveredar por esse
caminho, mas estamos, sim, marcando o que se trata Uma espécie de esquizofrenia coletiva toma conta
de um discurso que procura, conscientemente, indu- de todos – em especial dos altos escalões –, já que o
zir ao equívoco. risco de ser superado, no menor espaço de tempo pos-
A questão ecológica levanta entusiasmos e enga- sível, está sempre à porta. Os conteúdos devem ser sem-
nos semelhantes. Por um lado, não é favor a nenhum pre atualizados, os indivíduos e os grupos devem bus-
país preservar o que pertence ao planeta de todos. Por car sempre doses maiores, os saberes se tornam
outro, cada vez mais é verdade que, para se exportar imprestáveis com extraordinária velocidade, os heróis
para alguns mercados, é necessário obedecer a alguns de hoje não servem como referência para amanhã, os
critérios que consideram a redução de danos ecológi- valores atuais já estão obsoletos. A excelência torna-
cos, como a utilização de matérias-primas não-tóxi- se a palavra-chave e a condição maldita de sobrevi-
cas e que não estejam em risco de extinção, a produ- vência de pessoas e empresas. Torna-se um valor em si
ção de embalagens que sejam recicláveis, a não-utili- mesma e nada é mais superável que o Guinness Book,
zação de seres humanos como cobaias, a preservação que só existe para citar a referência que não serve mais.
da flora e da fauna dos ecossistemas ameaçados, o Perseguir a excelência mutável não é apenas obriga-
fato de não comprar a miséria de crianças e do tra- ção, mas a sina de todos. As empresas tornam-se o lugar
balho escravo, etc. Não é uma questão de agradar ao em que essa sina deve ser vivida e vão cobrar, rigorosa-
Greenpeace ou a outros organismos internacionais de mente, de cada indivíduo que não apenas seja, mas que
vigilância, mas é evitar ficar com produtos encalha- queira ser esse herói incansável. Elas lhe dizem para se
dos, com uma imagem internacional manchada e cor- considerar o “empreendedor de sua própria vida”, que
rer riscos de ser alvo de boicotes e sabotagens. A dis- ele seja o “seu próprio projeto”, que ele se veja como
cussão ecológica era, até pouco tempo atrás, conside- um “capital que deve dar retorno”. A excelência, como
rada um passatempo de meia dúzia de hippies que vol- um patamar deslocável cada vez mais para o alto, é o
taram a pé do Woodstock I, mas a causa saiu do único lugar que esse indivíduo pode almejar, é o único
diletantismo. Constituiu-se em bandeira política de lugar que lhe permite realizar-se, é o único lugar no qual
partidos políticos específicos, estando presente, de ele pode existir. O seu “ideal de ego” estará sempre se-
uma forma ou de outra, no mundo das intenções de dento e faminto, colocado a provas constantes e incapaz
todos. O risco aqui é o de transformar-se em vilão ou de se satisfazer (Aubert e De Gaulejac, 1992).
em inimigo da humanidade, ou seja, muito grande para Ora, a excelência se desloca do “ser” para o “fazer”,
ser enfrentado. Respeitar a ecologia, se não dá dinhei- e são as organizações os espaços em que esses resulta-
ro, pode evitar muito prejuízo. dos devem ser atingidos. O padrão, sempre crescente,

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será a exigência-chave não apenas para a qualidade do da imortalidade. É preciso negar a morte, é preciso ser
trabalho, mas se constituirá num sistema moral que jovem sempre. É a necessidade transformada em qua-
engloba toda a conduta do indivíduo. A carreira, ou o lidade, em virtude, criando exigências cada vez mais
status profissional, torna-se o elemento organizador da acentuadas de agilidade, rapidez e força.
vida pessoal, aquilo que lhe dá sentido, auto-imagem, A palavra “flexibilidade” cai do céu como uma luva
reconhecimento e o único referente que lhe pode per- ou uma benção. Ela é tudo o que há de mais caro atual-
mitir a expressão do sucesso e da realização pessoal. mente às organizações, pois representa o que garante
A identidade profissional torna-se a identidade pesso- esse rejuvenescimento permanente, que dá o tom do
al. Mas essa identidade está sempre em xeque, uma que é moderno, vivo e válido. Ela é a varinha mágica
vez que ela só se admite como o sucesso excelente. que renova estruturas, saberes, comportamentos, con-
Mas esse excelente tem gradações, e o padrão de on- dutas, métodos, pensamentos, visão de mundo, repre-
tem já foi conquistado; se o indivíduo não é diaria- sentações, conceitos.
mente esse herói quebrador de recordes, ele é um joão- O ser flexível tornou-se o sonho dourado de todas
ninguém, um morto-vivo, sem identidade, sem auto- as empresas, e conseguir ser flexível, a necessidade
imagem, sem reconhecimento. desesperada, o pesadelo dos executivos atuais, por ser
As organizações modernas sustentam a possibilida- condição de sobrevivência. Ser flexível e excelente é
de de todos serem heróis, desde que todos assumam a o “único” preço que os indivíduos têm de pagar para
sua “natureza” esportiva de ganhador. O heroísmo é chegar e manter-se no pódio. Todos estão convictos da
socialmente transmissível9, a ação é supervalorizada necessidade de chegar ao pódio, mas também sabem
quanto mais rápido é o tempo em que tudo deve se dar. que não existe pódio para todos. Há, em cada organi-
O Narciso que existe em cada um é chamado a se ma- zação e em cada indivíduo, um ponto de exaustão cada
nifestar, não de vez em quando, mas a assumir o seu vez mais próximo de ser atingido. É a eterna ameaça
lugar de direito permanente. A desmedida, como sen- da guilhotina!
do a ultrapassagem do parâmetro, é a medida de todos. A maneira de driblar essa necessidade de renova-
Essa excelência, contrariamente ao que tem sido alar- ção constante é colocando a organização como o lugar
deado como algo que só comporta um lado positivo, do desenvolvimento pessoal e o único em que a sua
pode mascarar uma perversidade e uma força mortífe- realização pode se dar. Com um objetivo como esse, a
ra não apenas para os indivíduos, mas para as próprias renovação de energias será sempre de forma garanti-
organizações, bastando imaginar o que vem ocorrendo da. É preciso mobilizar o sujeito de forma total. Ser
nos bastidores de preparação dos atletas olímpicos. flexível não é mais condição de sobrevivência no tra-
Quando superar é só o que importa, os anabolizantes balho, mas condição de vida. Nessa luta alucinada, as
simbólicos não fazem a menor diferença, pelo menos organizações investem em qualquer método, receita,
não no curto prazo que garante a medalha. Extrapole- guru, treinamento ou prática que lhes possa assegurar
se isso para a arena competitiva das empresas! uma promessa de tornar flexíveis os seus quadros. Se-
manas na selva, guerrilhas, cristais, florais, astrologia,
O lugar da juventude eterna numerologia, neurolingüística, filosofia, zen-budismo,
As organizações modernas parecem ter conseguido artes marciais, uma infinidade de práticas e pregações
não apenas romper as barreiras do espaço geográfico, tem sido tentada para rapidamente tornar todos
multiplicando-se em um mercado sem limites, mas tam- superadaptáveis. A racionalidade exaltada, nessa hora,
bém ter derrubado as barreiras do tempo. Ainda que a cede lugar à uma irracionalidade quase insana.
evolução tecnológica tenha nisso um grande papel e Um pouco de cautela não faz mal a ninguém, e sa-
suporte, é a mentalidade que fornece o núcleo e o mo- bemos bem que todo excesso é prejudicial, sendo al-
tor da ação renovada sempre, num tempo que só existe guns letais. Ora, parece razoável supor que, transfor-
como relações múltiplas no presente. mando a flexibilidade num valor em si mesmo, as or-
Ainda é verdade que, para o homem ocidental, ficar ganizações correm o risco de cair na própria armadi-
mais velho é aproximar-se mais da morte que da sabe- lha. Flexibilidade, quando excessiva, não constrói nada,
doria. As empresas, porém, capitalizam a idade de uma não consolida nada, não gera nada durável, não
outra forma. Ela é sinal de dinamismo, de sucesso, de referencia nada, não garante nem a própria sobrevivên-
potência, de reversão das dificuldades a seu favor, de cia, já que não armazena nenhuma memória capaz de
poder mergulhar na fonte da juventude, fazendo as ci- orientar uma tomada de decisão imprevista. A literatu-
rurgias plásticas necessárias – via incorporação de no- ra e a dramaturgia mostram-nos que, por trás de cada
vas técnicas, novos processos e novas práticas. É qua- fonte da imortalidade, há sempre uma alma penada...
se como se as empresas tivessem descoberto a fórmula Mas as organizações não têm alma, ou têm?

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Contexto social e imaginário organizacional moderno

A empresa como restauradora da ética e da cia, da Dignidade, responsáveis por uma missão no-
moralidade bre, elas se pretendem ares de santidade. A megalo-
Não é novidade alguma o fato de as organizações mania parece ser o pecado mais freqüente das orga-
terem, seguidamente, se utilizado de discursos nos quais nizações, que não se satisfazem em apenas corrigir
o homem aparece como o centro de suas preocupações. erros, mas tentam apagar o passado, impedindo, as-
Evidentemente, sempre existiu um grande abismo en- sim, a aprendizagem que só a crítica e a reflexão
tre o mundo das intenções e a realidade cotidiana. podem gerar.
Mais uma vez lembramos que as organizações são É impressionante a maneira como as organizações
produto e produtor dos ambientes em que atuam. A modernas buscam transformar a necessidade em vir-
competitividade atual não apareceu do nada e são as tude. Na mesma linha do que já discutimos sobre a
próprias empresas que dela participam que estabele- questão ecológica, podemos ver esse movimento pelo
cem as regras. Quando o ambiente começa a se tornar retorno de posturas mais éticas; podemos observar
nocivo ao próprio jogo, é preciso modificar o ambi- no exemplo do banqueiro, cuja confiabilidade,
ente para que o jogo possa continuar.
O modelo que consagra aquele que ga-
nha de qualquer jeito tende a esgotar-se na
própria produção exclusiva de um mundo de A excelência torna-se a palavra-chave
cínicos, delatores, sabotadores, espiões,
traidores, quebradores de contratos, corrup- e a condição maldita de sobrevivência
tos, etc. Um lamaçal desse tipo não pode
produzir frutos nem gerar o mínimo da con- de pessoas e empresas. Perseguir
fiança necessária para que as organizações
possam desenvolver suas atividades por um a excelência mutável não é apenas
tempo maior que o curto prazo. É necessá-
rio, pois, dar um basta e limpar as relações obrigação, mas a sina de todos.
organizacionais. Não existem anjos nem ino-
centes nesse jogo, mas existem conveniênci-
as e a necessidade de um mínimo de credibilidade para que é – ou deveria ser – condição sine qua non, é
que as organizações possam operar, gerar lucros, cres- alardeada como uma qualidade. Ser responsável e
cer e expandir. Todos os dirigentes sabem que um am- cumprir as leis é questão obrigatória; respeitar a dig-
biente habitado exclusivamente por cínicos apenas nidade individual, as crianças, os velhos e os ani-
ressalta as fragilidades organizacionais e, de resto, mais é requisito de humanidade, independentemen-
apodrece o tecido social como um todo. te de religião; zelar pelo planeta é, na mais pobre
O movimento pela ressurreição da ética leva a su- das hipóteses, garantir um espaço de sobrevivência
por que o ambiente estava se tornando mortífero e que aos seus descendentes.
as condições mínimas de confiabilidade estavam pe- Não estamos desqualificando o esforço que vem
recendo. A imprensa mundial deu mostras de ser ex- sendo feito pelas organizações para se estabelecerem
tremamente eficaz e assumiu ares de corajosa e inde- relações mais decentes, mais confiáveis, mais respon-
pendente ao fazer inúmeras denúncias de corrupção, sáveis. Pelo contrário, louvamos cada bom exemplo
negociatas, espionagem industrial, quebra de sigilo dado. Mas daí a assumir o discurso tal como vem sen-
de governos e empresas, exploração de trabalho es- do “vendido”, como um produto, uma tecnologia de
cravo, etc. Vários dirigentes organizacionais, políti- convencimento, é outra coisa. Talvez uma postura
cos, estadistas de um bom número de países sabem mais humilde, de quem reconhece o erro cometido,
que têm uma parcela de culpa pelo lamaçal que esta- de quem sabe que não há como continuar sem confi-
va se espalhando pelo planeta. É sempre bem-vinda ança entre os parceiros, possa produzir um efeito mais
qualquer atitude que busque corrigir esse caminho que profundo e duradouro e, certamente, esse é um ponto
leva ao suicídio moral coletivo. de convergência de todos os que fazem e pensam se-
As organizações modernas apresentam-se agora riamente uma sociedade.
não apenas como o modelo de gestão eficaz que deve
ser seguido pelas demais instituições da sociedade, A empresa-comunidade
mas também como as guardiãs dos valores sociais mais As organizações modernas/empresas utilizam-se
elevados e da moralidade pública. Guardiãs da Ho- também do discurso de ser uma comunidade ou uma
nestidade, do Respeito, da Seriedade, da Transparên- grande família. A identificação que é solicitada aos

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Organização, Recursos Humanos e Planejamento

indivíduos a elas ligados não mais diz respeito apenas sas captarem as mudanças no meio ambiente e a
às competências profissionais, mas se amplia para as elas responderem de maneira mais rápida que as
comportamentais e relacionais. demais instituições da sociedade. Podemos supor
que as organizações se dão conta do que
Anatrella (1988) chamou de “sociedade
adolescentrique”, ou seja, um novo tipo
A palavra “flexibilidade” cai do céu de sociedade em que os relacionamentos
tendem a ser mais horizontais que verti-
como uma luva ou uma benção. Ela é cais, mais parecidos com o que define as
relações entre tios e sobrinhos ou entre
a varinha mágica que renova estruturas, os membros de um mesmo clube, própri-
as da confraria.
saberes, comportamentos, condutas, Segundo Anatrella, a adolescência é
prolongada e as relações laterais tendem
métodos, pensamentos, visão de à permanência. O adolescente torna-se
mais “independente” em relação aos pais
mundo, representações, conceitos. (e à autoridade) sem realizar completa-
mente seu trabalho de individuação e ne-
gando as diferenças de comportamento
Mecanismos diversos têm sido criados para expan- entre as gerações. Os problemas não são mais nego-
dir as áreas de influência das empresas sobre os indi- ciados, porém evitados, e a tarefa educativa dos pais
víduos. A criação de espaços “soft”, de lazer, de recre- é quase esvaziada. O narcisismo, vivido fortemente
ação e de integração social, como clubes, colônias de na adolescência, em vez de ser promotor de diferen-
férias, academias de ginástica, etc., não traduzem mais ciação e individuação do sujeito, pode levá-lo ao con-
nenhuma novidade. O local de trabalho é também o formismo, ao próprio desaparecimento nas relações
lugar do hobby, do lúdico, do poético, da convivência grupais. O narcisismo atinge um paradoxo bem sin-
harmoniosa entre escalões hierárquicos democratica- gular: ser igual a todo mundo (à imagem de um clã).
mente embaralhados, cuja pretensa proximidade dilui Nesse quadro, a relação educativa é a da sedução,
as diferenças e os conflitos. com uma pseudo-igualdade e pseudoproximidade,
Da mesma forma, a casa ou o universo privado de privilegiando a camaradagem entre os membros da
cada um também tende a ser integrado à empresa por “tribo”. Parece que as organizações modernas cap-
meio do computador conectado em rede (pode-se tra- taram esses ventos, ou será uma mera coincidência?
balhar um pouquinho mais a qualquer hora sem neces-
sidade de deslocamento ou de tirar o pijama). As defi- CONCLUSÃO
nições de férias agora são também passíveis de serem
decididas pelas empresas, pelo menos para uma parce- Reafirmamos que o contexto social atual, extraor-
la premiada por seus recordes espetaculares. Uma ali- dinariamente mutável, não nos permite ainda uma vi-
ança é feita com os próprios familiares dos membros são clara de todas as implicações para o universo or-
da empresa a fim de incentivá-los a produzir o máxi- ganizacional, porém aponta para diferenças substan-
mo e a fazer jus aos paraísos gregos ou caribenhos em ciais quanto a uma nova forma de viver não apenas o
disputa. Existe ainda espaço para a expressão de senti- mundo do trabalho mas o das relações sociais, em
mentos de religiosidade, ou seja, o psicoespiritual tam- geral cada vez mais indiferenciado daquele ou cada
bém está sendo zelado, por meio de cursos, palestras e vez mais indistinto do que nele ocorre.
práticas orientais de relaxamento, aumento de concen- Apesar de ser verdade que, na disputa por maiores
tração e controle de estresse. ganhos de competitividade, as empresas tendem a se
A empresa passa a ser o lugar onde o trabalho, a abrir em relação aos indivíduos que nelas trabalham,
convivência e os laços fraternos se juntam de forma elas parecem, na realidade, estar se fechando, produ-
entusiasmada e prazerosa. Uma aventura gostosa a ser zindo um imaginário auto-referente, falando só de si,
compartilhada por todos os colaboradores. Não existe excluindo o outro, numa tradução ampliada das tri-
espaço para os indiferentes. Os rituais existem para bos urbanas ou com um forte “narcisismo das peque-
serem cumpridos e vividos com emoção. Tudo em nome nas diferenças”. Em outras palavras, buscando uma
da sociabilidade. homogeneização que em nada favorece os ganhos que
Comentamos anteriormente o fato de as empre- o aprendizado com a diferença garantem, as organi-

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Contexto social e imaginário organizacional moderno

zações, em vez de se tornarem mais capazes de lidar Em relação à identidade, as organizações não po-
com a complexidade que os desafios atuais colocam, dem fornecer nada mais que referências parciais e con-
tendem a fazer um gol contra. Nesse caso, em vez de traditórias. O tipo de ser que elas pretendem formar é
contribuir para amenizar a atual crise de identidade, o retrato das próprias contradições que abrigam no seu
elas a agravam (e aí Castoríadis toca no ponto sensí- seio. Elas dizem ao indivíduo para ser combativo,
vel do conformismo generalizado). agressivo, individualista, mas, ao mesmo tempo, ele
Um bom ambiente de trabalho é condição neces- deve colaborar, integrar-se na equipe e fazer parte do
sária para um bom desenvolvimento profissional, mas time; pedem que ele seja inovador, criativo, ousado,
é só uma parte. O sentimento de identidade social é mas que obedeça à tradição e não provoque rupturas;
fortemente ancorado na relação profissional, mas não elas querem que ele tenha iniciativa, mas sendo obedi-
se esgota nela. Quando as organizações incentivam o ente; ele deve ser orgulhoso de estar no time, mas deve
estreitamento das relações sociais apenas no seu in- sempre provar que merece o lugar do outro; ele pode
terior, elas não estão prejudicando apenas os indiví- tudo, mas não sabe de nada; ele é grande e potente como
duos, mas a si próprias na medida em que eles tende- elas, mas frágil a cada reestruturação que elas farão;
rão a não reoxigenar seus contatos e a desenvolver, querem que ele seja herói numa maratona que não tem
em médio e longo prazos, relações intoxicadas e cir- fim, fazendo com que ele corra pelo próprio movimen-
culares, ou seja, um crescimento estagnado. É saudá- to em direção ao alvo, uma vez que este não é para ser
vel para as pessoas e para as organizações que elas atingido. No limite, o que elas pedem é que ele seja
mantenham contatos múltiplos e diversos, que vejam, diferente sendo o mesmo que os outros, que ele as ame
pensem, sintam, discutam com outros que não aque- independentemente de ser amado, que confie nelas
les presentes no seu dia-a-dia de trabalho. E isso é mesmo que elas dêem mostras de não ter merecimen-
tanto mais verdade quanto mais mutável é o ambien- to, que ele almeje sempre o troféu que não existe. De
te, quanto mais as variáveis se multiplicam, quanto resto, as organizações são, e tendem a continuar sen-
mais a diversidade é a norma. do, objetos fascinantes e provocativos. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANATRELLA, Tony. Interminables adolescences: les 12/ CASTORÍADIS, Cornelius. La crise du processus identificatoire. MAISONNEUVE, Jean. Crise des rituels et néo-rituels?
30 ans. 7. ed. Paris : Cerf/Cujas, 1988. Connexions, n. 55, p. 123-35, 1990. Connexions, n. 55, p. 29-43, 1990.

AUBERT, N., DE GAULEJAC, V. Le coût de l’excellence. PALMADADE, Jaqueline. Postmodernité et fragilité


CASTORÍADIS, Cornelius. A instituição imaginária da
Paris : Seuil, 1992. identitaire. Connexions, n. 55, p. 7-28, 1990.
sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1995.

BAUDRILLARD, Jean. Simulations et simulacres. Paris : ROUSTANG, Guy. Primat de l’economique en question et
Galilé, 1981. (Col. Debates). DEBORD, Guy. La société du spetacle. Paris : Gallimard, 1967. devenir social. Connexions, n. 55, p. 101-8, 1990.

NOTAS

Este artigo baseia-se em pesquisa financiada pelo Núcleo 4. No sentido analisado por Eugène Enriquez em L’entreprise 7. Alguns autores têm se referido a esse movimento como
de Pesquisas e Publicações (NPP) da EAESP/FGV intitulada comme lieu social: un colosse au pied d’argile. In: de “reabilitação”. Ver, por exemplo: D. Segrestin em tese
“A questão do imaginário e a fronteira entre a cultura SAINSAULIEU, R. (Dir). L’entreprise: une affaire de société. intitulada “La reabilitation de l’entreprise: un vue
organizacional e a psicanálise”. Paris : Fonds National de Science Politique, 1990. p. 203-28. sociologique”, defendida em 1988, no Instituto de Estudos
Políticos de Paris. Outras referências podem ser
1. Em seu número 55, a revista Connexions, da editora encontradas em SAINSAULIEU, R. (Dir). L’entreprise: une
Érès, lançou, em 1990, um debate sobre o tema “Mal- affaire de société. Paris : Fonds National de Science
5. Ver a análise feita por Max Pagès et al. em L’emprise de
estar na identificação”, que reuniu especialistas e Politique, 1990. p. 203-28.
l’organisation. Paris : PUF, 1979 e também ENRIQUEZ,
intelectuais diversos.
Eugène. L’organisation en analyse. Paris : PUF, 1992.
2. Podemos identificar, neste artigo, um argumento que
vai na mesma direção do exposto por Anatrella, já citado, 8. A revista Autrement, n. 86, de janeiro de 1987, lançou
sobre a “sociedade adolescentrique”. 6. Ver HALLIDAY, Tereza Lúcia. A retórica das multinacionais. um belo e rico debate sobre o tema “Excelência: um valor
Rio de Janeiro : Summus, 1987. A autora desenvolve um pervertido”.
3. O termo “tribo” tem sido usado por Michel Maffesoli estudo sobre multinacionais no Brasil, Estados Unidos e
para dar conta dos vários tipos de grupos que surgem França, levanta as principais acusações sofridas por elas e a
nas sociedades contemporâneas. “Grupalismo” ou maneira como desenvolvem estratégias de legitimação, que 9. Ver artigo de Alain Ehrenberg na revista Autrement, n.
“neotribalismo” são também termos utilizados. Ver: O passam, necessariamente, pela utilização da palavra e da 86, de janeiro de 1987, e seu livro Le culte de la
tempo das tribos. Rio de Janeiro : Forense, 1987. criação de imagens que dêem sustentação ao seu discurso. performance. Paris : Calmann-Lévy, 1991.

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