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A PERTINÊNCIA

DE SE LER
FANON, HOJE
INOCÊNCIA
MATA
Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!
(Última prece de Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas.)

No dia 6 de Dezembro de 19611, morria em Maryland, Washington2,


Frantz Fanon. Soubera um ano antes, em Túnis, que sofria de
leucemia e que teria menos de um ano de vida. Ainda assim,
empenhara-se por acabar a tarefa que tinha entre mãos, Os Con-
denados da Terra, livro que escreveu entre Abril e Julho de 1961, com
um ritmo febril, nas palavras de Homi Bhabha3, e que acabaria por
ver publicado. Morreria dias depois, aos 36 anos, sete meses antes
da proclamação da independência da Argélia (5 de Julho de 1962),
a pátria adoptiva a que chegara em 19534 (e de que seria expulso

1 A data da morte de Frantz Fanon é um dos «problemas» das suas inúmeras biografias:
encontram-se três datas – 5 de Dezembro, 6 de Dezembro e 8 de Dezembro. Parece, no
entanto, consensual (pela predominância desta data) que a sua morte ocorreu no dia 6 de
Dezembro de 1961. Esta é a data que aparece numa das mais completas e concisas notas
biográficas de Frantz Fanon, publicada recentemente por Giovanni Pirellia e Rachel E.
Love, que teve a colaboração da família de Fanon, a sua esposa, o irmão Joby, colegas
vários (do liceu, da faculdade, da vida militar, de profissão, enfim), em vários períodos da
sua vida. Giovanni Pirellia & Rachel E. Love, «Biographical Note on Frantz Fanon». Inter-
ventions: International Journal of Postcolonial Studies – New York University. Published online:
06 Jan 2015. Vol. 17, No. 3, 6394–416, http://dx.doi.org/10.1080/1369801X.2014.993680
(Fevereiro de 2015).
2 Fanon estava hospitalizado no National Institutes of Health, em Bethesda, Maryland,
segundo alguns de seus biógrafos contra a sua vontade, pois não lhe agradara ter de recor-
rer àquele «país de linchadores». Ironicamente, Fanon, que se inscreve no hospital como
Ibrahim Fanon, é evacuado em aeronave providenciada pela Embaixada dos Estados Uni-
dos em Túnis.
3 «In a feverish spurt». Homi Bhabha, «Foreword: Framing Fanon». Frantz Fanon, The
Wretched of the Earth. New York: Grove Press, 2004.
4 Frantz Fanon chega à Argélia como médico psiquiatra colocado no hospital de Blida,
que hoje homenageia esse grande vulto da recente história da Argélia, Hôpital Psychiatrique
Frantz Fanon.

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inocência mata

em 1957), depois de oito longos anos de uma guerra de libertação


que ceifou centenas de milhares de vidas humanas.
Frantz Omar Fanon nasceu no dia 20 de Junho de 1925, na ilha
da Martinica, numa numerosa família da classe média, cujos oito
filhos puderam frequentar o liceu. Embora Fanon fosse muito mais
novo que o seu compatriota Aimé Césaire (1913-2008), foi durante o
seu tempo de estudante liceal que Fanon conheceu, enquanto aluno,
e se tornou amigo do ideólogo da négritude, poeta, dramaturgo e
ensaísta, com uma carreira política como deputado à Assembleia
Nacional francesa pelo círculo da Martinica e como presidente da
Câmara de Fort-de-France (Césaire retirar-se-ia da vida pública
em 2001). Fanon admirava o intelectual defensor da valoriza-
ção das raízes africanas da identidade antilhana, já então figura
pública na ilha, sobretudo com a fundação, em 1934, de L’étudiant
noir, em Paris, e da revista Tropiques, quando já de regresso à ilha
natal. Apesar da admiração pelo seu antigo professor (chegou a
participar na sua campanha eleitoral para deputado à Assembleia
Nacional francesa), Fanon viria a discordar do autor de Discurso
Sobre o Colonialismo (que Fanon confessaria tanto ter apreciado e
que escolheu para epígrafe da sua primeira obra, Pele Negra, Más-
caras Brancas), anos depois, quando Césaire apoia o estatuto de
département d’outre-mer atribuído à Martinica (e a outras ilhas do
«Caribe francês» e a Reunião, ilha na costa oriental de África)
através de uma lei de que o próprio Césaire seria relator, em 1946;
diferenças que se acentuariam quando Césaire faz campanha pelo
«sim» da departamentalização no referendo organizado pelo gene-
ral de Gaulle, em 1958. Fanon discordaria ainda dos pressupostos
da négritude, que consideraria uma «miragem», começando por
afirmar, logo no início, que iria tenazmente questionar as duas
metafísicas, o branco e o negro, e ver que elas são frequentemente

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A pertinência de se ler Fanon, hoje

muito destrutivas5, e criticando aquilo que considerava serem os


esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco,
custe o que custar, a existência de uma civilização negra6. E mais
adiante: «De fato, a negritude aparece como o tempo fraco de uma
progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia
do branco e a tese; a posição da negritude como valor antitético e
o momento da negatividade.»7
Trata-se de um tema caro a Fanon – não na perspectiva dos
intelectuais africanos das colónias britânicas, sintetizada na
metáfora da tigritude de Wole Soyinka, expressando a perversidade
da négritude. Para Fanon, a négritude era o resultado da lógica de
internalização da dominação, porque funcionava como uma «antí-
tese afectiva, senão lógica, do insulto que o homem branco fazia
à humanidade»8. Mais:

Essa negritude, votada ao desprezo do branco, revelou-se, em


certos sectores, a única capaz de levantar proibições e maldições.
Uma vez que os intelectuais guineenses deparavam, antes de mais,
com o ostracismo global, com o desprezo sincrético do dominador,
a sua reacção foi admirarem-se e cantarem-se. À afirmação incon-
dicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da
cultural africana. Em geral, os cantores da negritude irão opor a
velha Europa à jovem África, a razão enfadonha à poesia, a lógica
opressiva à natureza agitada; por um lado, dureza, cerimónia,

5 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da Universidade Federal da
Bahia, 2008, p. 26.
6 Idem, ibidem, p. 46.
7 Idem, ibidem, p. 121.
8 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra. Lisboa: Letra Livre, 2015, p. 217.

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protocolo, cepticismo, por outro, ingenuidade, petulância, liber-


dade e até exuberância. Mas também irresponsabilidade.9

Fanon crescera num ambiente tão estimulante intelectual e politi-


camente (para além da figura de Césaire, a Martinica era, à época,
palco de acções culturais e políticas de intelectuais como René
Ménil, Georges Gratiant, Thélus Léro ou Léopold Bissol) que, aos 17
anos, já com a Martinica sob jugo alemão, conseguiu chegar à ilha
Dominica, então colónia britânica, para se juntar às Forças Alia-
das e combater contra a Alemanha nazi, tendo actuado no Norte de
África (Marrocos e Argélia) e em França (em várias frentes), numa
altura em que o nacionalismo argelino começava a convencer-se
da improbabilidade de um diálogo com as autoridades coloniais
com vista à independência, apesar da «promessa» de emancipa-
ção da metrópole, caso os argelinos participassem na guerra pela
libertação da França ocupada pela Alemanha nazi.10 Esta missão
em África, em que o jovem militar presenciou uma outra face do
racismo colonial, diferente do tipo de discriminação que vivenciara
na sua Martinica natal, viria a marcar de forma absoluta o percurso
de vida de Frantz Fanon. Afinal, viveu uma dupla experiência difí-
cil, o colonialismo e o nazismo, e dessa dolorosa aprendizagem dá
conta o seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952):

Quando éramos estudantes, discutíamos durante horas inteiras


sobre os supostos costumes dos selvagens senegaleses. Havia, em
nossos discursos, uma inconsciência pelo menos paradoxal. Mas é
que o antilhano não se considera negro; ele se considera antilhano.

9 Idem, ibidem.
10 Ver, por exemplo, Arthur Jose Poerner, Argélia: o caminho da independência. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.

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A pertinência de se ler Fanon, hoje

O preto vive na África. Subjetivamente, intelectualmente, o anti-


lhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o per-
ceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de
preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senega-
lês. Que conclusão tirar de tudo isso?11

O encontro com a fria realidade da metrópole organizará o tecido


da sua experiência de discriminação. Com efeito, depois da guerra,
e por causa da sua participação nela, em 1946 Fanon ganha uma bolsa
de estudo e parte para França, onde se inscreve no curso de medicina
dentária, que viria a trocar pelo de psiquiatria, e que conclui em 1951,
em Lyon, com uma tese sobre «Distúrbios mentais e síndromes psi-
quiátricas em degeneração espino-cerebelar hereditária. O caso de
um doente de Friedrich com delírio de possessão»12 – a segunda, pois
a primeira tese fora recusada pela crítica feroz que o jovem médico
fazia à psiquiatria positivista, antes propondo uma psicoterapia insti-
tucional, envolvendo a comunidade, defendida pelo psiquiatra espa-
nhol François Tosquelles, seu mestre e sob cuja supervisão publicaria
os seus primeiros ensaios sobre psiquiatria. O tema revelava já a
preocupação de Fanon com os traumas e distúrbios mentais que vira
no Norte de África e que motivaria os inúmeros escritos sobre psi-
quiatria que publicou, entre 1951 e 1959, em revistas de especialidade
em França, na Argélia, na Tunísia e em Marrocos.13
Por isso, embora seja evidente a anterioridade da expressão
«os condenados da terra» que compõe os primeiros versos de A

11 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, op. cit., p. 132.


12 Tradução livre: Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénérescence
spino-cérébelleuse: un cas de malade de Friedrich avec délire de possession.
13 Ver: Claudine Razanajao e Jacques Postel, «La vie et l’œuvre psychiatrique de Frantz
Fanon». Sud/Nord, 2007/1 – n.° 22, pp. 147-174.

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inocência mata

Internacional («Debout, les damnés de la terre/Debout, les forçats


de la faim»), julgo mais verosímil que o título escolhido por Frantz
Fanon (e não pelos editores, como nos seus outros livros) venha
do sentido de um verso do poema «Sales nègres» do livro Bois
d’ébène (1945), de Jacques Roumain (1907-1944), poeta haitiano
e fundador do Partido Comunista haitiano que, juntamente com
Nicolás Guillén, constitui uma das referências da ideologia esté-
tica do negrismo caribenho, uma das matrizes da négritude14:

(…)
Et nous voici debout
tous les damnés de la terre
tous les justiciers
marchant à l’assaut de vos casernes
et de vos banques
comme une forêt de torches funèbres
pour en finir
une
fois
pour
toutes
avec ce monde
de nègres
de niggers
de sales nègres.15

14 Fanon também já homenageara Roumain com o título da revista Tam-Tam, editada em


1949: «Trop tard/jusqu’au cœur des jungles infernales/retentira précipité le terrible bégaie-
ment/télégraphique des tam-tams répétant infatigables/répétant/que les nègres/n’acceptent
plus/d’être vos niggers/vos sales nègres» Jacques Roumain, «Sales nègres», Bois d’ébène.
15 Jacques Roumain, Bois d’ébène. Ênfase meu.

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A pertinência de se ler Fanon, hoje

Por outro lado, para além dessa visível homenagem, não é fácil
fugir à forte sugestão bíblica (apesar do assumido agnosticismo
de Frantz Fanon) para a qual remete a expressão. Esse eco bíblico
acentua a metáfora que traduz o estado de contiguidade da explo-
ração quotidiana, no corpo e no espírito, na pele e na alma, da
opressão e da repressão (sobretudo porque a escrita deste livro
releva de uma gestação muito vivencial, nos anos 50 do século xx,
numa Argélia a ferro e fogo), e os efeitos fracturantes desse estado,
resultando não apenas na baixa auto-estima do sujeito negro-
-africano colonizado, devido ao preconceito e à discriminação
racial e etnocultural próprios da situação colonial, à sujeição a
estruturas políticas e sociais numa situação de confrontação, mas
ainda nos traumas causados pela guerra, as «psicoses reactivas»
e as «psicotizações secundárias», que estuda no último capítulo.
Os Condenados da Terra é, neste contexto, uma explicação radical das
consequências do processo de internalização da dominação ante
a violência colonial (e a antevisão da que se seguiria no período
pós-colonial), a alienação e suas artimanhas no mundo domi-
nante que modifica e subverte a comunidade e os sujeitos. E neste
sentido Frantz Fanon tanto pode considerar-se um dos epígonos
da geração dos nacionalismos africanos, quanto um dos primei-
ros teóricos do que se chamaria depois «estudos pós-coloniais».
Com efeito, na pauta dos estudos pós-coloniais está não apenas
a ruptura com as noções essencialistas de identidade, um dos
núcleos conceptuais dos estudos culturais (com as contribuições
dos celebrados Stuart Hall, Homi Bhabha, Edward Said, Kwame
A. Appiah, Walter Mignolo, Néstor García Canclini, entre outros),
mas uma epistemologia que propõe a (re)leitura do colonialismo
a partir de paradigmas que consideram experiências de alteridade,
racializadas e culturalizadas, nas sociedades contemporâneas no

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inocência mata

jogo social e político das relações de poder – campo de que real-


mente é pioneiro Fanon, que valoriza as perspectivas da subjec-
tividade e da cultura a par das dimensões da economia, da polí-
tica e da história no estudo da violência colonial e seus desdo-
bramentos interiores – «A densidade da Historia não determina
nenhum de meus atos»16, dissera Fanon em Pele Negra, Máscaras
Brancas. Outra «herança» fanoniana aos estudos pós-coloniais
seria, precisamente, esse cruzamento de epistemologias para o
estudo do sujeito da situação colonial. É que, em Lyon, Fanon não
estudou apenas medicina: estudou também literatura, filosofia,
história e sociologia. E essa transversalidade de conhecimentos é
igualmente visível na sua obra e, particularmente, em Os Condena-
dos da Terra. O próprio Fanon parece ter consciência dessa abor-
dagem transdisciplinar, não frequente naquela época, quando, no
capítulo V do mesmo livro, sobre «Guerra colonial e perturbações
mentais», afirma:

Vamos abordar aqui o problema das perturbações mentais provo-


cadas pela guerra de libertação levada a cabo pelo povo argelino.
Talvez se considerem inoportunas e singularmente deslocadas,
num livro como este, tais notas sobre psiquiatria. Nada podemos
contra isso.17

Mais conhecido como revolucionário argelino do que enquanto


intelectual antilhano produtor de (uma) teoria, Fanon teve, a par
dos seus escritos, uma existência muito tumultuosa. Estes, por
exemplo, antes de se afirmarem hoje como seminais dos estudos

16 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, op. cit. p. 190.


17 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 257.

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A pertinência de se ler Fanon, hoje

sobre as sociedades contemporâneas, seja na perspectiva dos es-


tudos culturais, pós-coloniais, seja nos estudos de sociologia, de
antropologia política ou de politologia, foram apreendidos em
França, censurados nos Estados Unidos e, obviamente, em Por-
tugal18 (onde a tradução da Ulisseia de Os Condenados da Terra foi
censurada e apreendida «a bem da nação», em 1967). Por sua vez,
uma citação de Fanon por um professor ou um cidadão19 compro-
metido com causas emancipatórias era um passaporte para um
rótulo ostracizante, o de radical, eufemismo para racista – atri-
buto que, naqueles tempos e nestes, dimensionados numa visão
pastoral do colonialismo, à direita e à esquerda, empurrava o au-
tor da citação para o campo do maniqueísmo, que caracterizava a
cena mundial durante a Guerra Fria, com repercussão nas opções
ideológicas (socialismo vs capitalismo) dos países do, então cha-
mado, Terceiro Mundo.

Descobri Frantz Fanon relativamente tarde nos meus estudos so-


bre África, sob a urgência de Mário Pinto de Andrade. E o que me
surpreendeu nessa descoberta foi a «desconfiança» de que muitos
falavam de Fanon sem nunca o terem lido na verdade, pois Frantz
Fanon implode precisamente a «epistemologia» do maniqueís-
mo de que era acusado, ao afirmar que «o maniqueísmo primário
que regia a sociedade colonial permanece intacto no período de

18 Em Portugal, o livro teve duas edições: uma pela Ulisseia, nos anos 60, e outra pela
Ulmeiro, nos anos 80; no Brasil, o livro também foi publicado por duas editoras: a Civiliza-
ção Brasileira, em 1968, e a Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2005.
19 Lewis R. Gordon afirma que, pelo contrário, na América do Sul o pensamento de Fanon
formou muitos intelectuais, a começar por Paulo Freire. «Prefácio» a Pele negra, máscaras
brancas, op. cit., p. 11. Nem é despiciendo o facto de haver, no seio da comunidade académica,
um «Prémio Frantz Fanon por Obras Excepcionais do Pensamento Caribenho», concedido
pela Associação Filosófica Caribenha.

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inocência mata

descolonização»20 – uma consideração bem ao jeito das formula-


ções pós-coloniais sobre relações de poder no âmbito da cultura,
classe, etnia, do género, da orientação sexual e outras categorias
que compõem o xadrez das relações de poder internas à sociedade
«descolonizada». Portanto, nessa altura (finais dos anos 80-prin-
cípios dos anos 90), Fanon era, no mundo da língua portuguesa –
um mundo em que a teoria do luso-tropicalismo moldou mentali-
dades e a visão paternalista do colonialismo, de forma explícita ou
implícita, na análise histórica ou na percepção do presente –, con-
siderado radical. Tal como o movimento da négritude – e da negri-
tude (de língua portuguesa) – passava por um desmerecimento,
em que nem sequer a catarse do discurso científico começara
ainda a fazer-se. Comentadores e opinion-makers, também os de
origem africana, com acesso à comunicação social em Portugal
(mesmo em órgãos que se dizem dirigidos às comunidades africa-
nas), dimensionados na ideia de um «colonialismo intercultural»,
viam em Frantz Fanon um racista que apelava ao ódio entre as ra-
ças. Concordo com quem considera que essa «percepção» da obra
de Fanon se deve ao célebre prefácio de Jean-Paul Sartre (nome
com o qual os intelectuais negro-africanos se haviam habituado a
dialogar) a Os Condenados da Terra (como famoso se tornara «Orfeu
negro», prefácio a Anthologie de la poésie nègre et malgache, 1948, de
Léopold Senghor, texto que há muito ganhou o estatuto de ensaio,
passando a circular em publicação autónoma). Com efeito, estou
convencida de que muitos leram apenas o prefácio e resumiram
o texto de Fanon ao apelo que Sartre encontrou nas palavras do
intelectual martinicano:

20 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 54.

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A pertinência de se ler Fanon, hoje

Neste novo momento a agressão colonial se interioriza em terror entre


os colonizados. Não me refiro somente ao temor que experimentam
diante de nossos inesgotáveis meios de repressão como também ao
que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados entre as armas que
apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnifi-
cina que sobem do fundo do coração e que eles sempre reconhecem:
porque não é de início a violência deles, mas a nossa, voltada para trás,
que se avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses oprimi-
dos é ocultar profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral
e a nossa reprovam e que, todavia, é o último reduto de sua humani-
dade. Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotên-
cia, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados.
Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotência,
a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados.21

Sartre escreve, em 1961, claramente não para os destinatários de


Fanon, mas para os destinadores do seu texto, os agentes coloniais
(Sartre afunila o âmbito do seu círculo de destinatários, retirando
daquele grupo um segmento a quem se dirige, a esquerda libe-
ral francesa). Todo o longo parágrafo e outros que se lhe seguem
podem ler-se como uma interpretação existencialista do texto
de Fanon, revestida de uma justificação de violência que Frantz
Fanon alegadamente defende, como se de uma violência reden-
tora se tratasse, chegando a pontuar todas as manifestações cul-
turais dos africanos com sinais de revolta (a dança, as manifesta-
ções de religiosidade, os rituais que actualizam usos e costumes).
Fanon acabaria, pela visão de Sartre, a reificar o colonizado negro

21 Jean-Paul Sartre, «Prefácio», Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização


Brasileira, 1968, pp. 10-11.

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inocência mata

africano enquanto sujeito da história – colonial e porventura ante-


rior à presença europeia – baseada na violência, ao afirmar que
«os colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se
para a alienação religiosa. No fim de contas, o único resultado é
a acumulação de duas alienações, cada qual reforçada pela outra.
Assim, em certas psicoses, cansados de serem insultados todos os
dias, os alucinados imaginam de repente ouvir uma voz de anjo
que os cumprimenta (…)»22
A «escolha» de determinado destinatário do texto de Jean-Paul
Sartre – cuja leitura terá deixado o próprio Fanon silencioso quando,
já no hospital, recebeu o livro23 – é importante no contexto em que
este é publicado: em 1961, a guerra da Argélia atingira o zénite das
atrocidades (Fanon fala, ainda em 1961, em genocídio24 e é assim
que muitos historiadores classificam as atrocidades cometidas
pela Legião francesa e pelos pieds-noirs). O que Sartre faz é desve-
lar, para «dentro», o processo de exploração do sistema colonial e
as diligências «necessárias» empreendidas pelo colonizador para
que o sistema funcione. Vaticina o mal-estar que a sua análise
possa provocar mesmo na esquerda, a quem se dirige, e sintetiza
que «quando domesticamos um membro de nossa espécie, dimi-
nuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem
reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais
do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados
a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem
homem nem animal, é o indígena.»25

22 Jean-Paul Sartre, op. cit., pp. 12-13.


23 Alice Cherki, Frantz Fanon: Portrait. Paris: Seuil, 2000.
24 «Aqui, é a guerra, é essa guerra colonial que muitas vezes toma aspecto de um autêntico
genocídio, essa guerra, enfim, que perturba e despedaça o mundo, o acontecimento desen-
cadeante.» (Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 260).
25 Jean-Paul Sartre, op. cit., p. 10.

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A pertinência de se ler Fanon, hoje

David Macey, um dos biógrafos de Frantz Fanon26 e um dos


primeiros estudiosos da sua obra a considerá-lo um dos precur-
sores do que se entenderia, 20 anos depois, por «estudos pós-
-coloniais», afirma ser Fanon muito mais do que um «apóstolo
da violência» e «santo patrono» dos Panteras Negras, como dele
disse o «pantera» Stokely Carmichael. Na verdade, não é temerá-
rio pensar que esse estatuto foi exponenciado pelo citado prefácio
de Jean-Paul Sartre.
É um facto que no ponto de partida das reflexões de Fanon a
violência é a práxis fundadora da sociedade colonial, estando ela
presente em todas as expressões materiais e simbólicas da relação
colonial. Por isso é que, segundo Fanon, «para o colonizado, essa
violência representa [também] a práxis absoluta (…) A violência é,
por conseguinte, compreendida como a mediação real. O homem
colonizado liberta-se na e pela violência. Esta práxis ilumina o
agente porque lhe aponta os meios e o fim»27. Em Os Condenados
da Terra, Frantz Fanon diagnostica, como resultado dessa violên-
cia política, económica, social e cultural do opressor – que resulta
em massiva horda de marginalizados com ódio ao outro (também
decorrente do «medo ao outro») –, uma reacção incontrolada do
oprimido: violência gerada pelo recurso às regressões identitá-
rias e étnicas. Esta é uma das evidências da actualidade da obra
de Frantz Fanon, se pensarmos que tal é a situação que (ainda)
vivemos hoje, decorrente de comportamentos legitimamente
entendíveis como de regressão identitária, porque resultando de
«identidades assassinas» (Amin Maalouf) – que também pode-
ria ser «melancolia homicida», conforme analisa o próprio na

26 David Macey é autor de Frantz Fanon: A Life (London: Granta Books, 2000) e Frantz Fanon:
A Biography (New York: Picador, USA, 2001).
27 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 88-89.

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inocência mata

senda do Professor A. Porot28. No seu conjunto, o livro analisa os


antagonismos das relações dominado/dominante, no contexto da
Guerra Fria, ainda que a terminologia da ciência política tenha
tornado inibidora a expressão «Terceiro Mundo» – que, como
se sabe, decorre (mas nela não se esgota) da teoria maoista dos
«três mundos», hoje sem qualquer fundamentação quer político-
-económica, quer geopolítica – e tenha optado por uma pretensa-
mente menos judicativa, os países do Sul, ou, simplesmente, o Sul.
E quanta actualidade não revela o seguinte excerto da «Conclusão»:

Camaradas, não teremos outra coisa a fazer senão criar uma terceira
Europa? O Ocidente quis ser uma aventura do espírito. (…)
Estamos, hoje, a assistir a uma paralisação da Europa. Fujamos,
camaradas, desse movimento imóvel em que a dialéctica, pouco a
pouco, se transformou em lógica do equilíbrio.29

Não é que se possa inverter o lugar da «condenação», como se vê na


provocatória pergunta «Are the Europeans now the damned of the
earth?»30, no artigo em que Neelam Srivastava estuda a recepção de
Fanon na Itália. O que a pergunta encerra é, precisamente, a dimen-
são universal e transtemporal das reflexões de Fanon sobre o poder,
tal como a origem da inspiração da expressão «os condenados da
terra», atrás já referida. A obra de Fanon ganhou uma projecção tão
intensa, que o filósofo camaronês Achille Mbembe considera, no
prefácio à obra completa de Fanon, em 2011, que existe agora uma

28 Idem, idibem, p. 309.


29 Idem, ibidem, p. 325.
30 Neelam Srivastava, «Frantz Fanon in Italy». Interventions: International Journal of Postcolo-
nial Studies. Published online: 17 December 2014, Vol. 17, No. 3, 309–328. http://dx.doi.org/
10.1080/1369801X.2014.991419.

20
A pertinência de se ler Fanon, hoje

«biblioteca Fanon», uma crítica vibrante e dinâmica inspirada da sua


obra, que atravessa quase todas as disciplinas das ciências humanas
e sociais, enfim, «uma verdadeira ‘biblioteca Fanon’ nasceu e per-
mitiu, por sua vez, a constituição de um campo de estudos flores-
cente, rizomático e, hoje em dia, de alcance planetário».31 Esta visão
celebrativa da obra fanoniana pode não ser unânime, se tivermos
em conta a resposta, com um travo de pessimismo, de Paul Gilroy
à pergunta «O que tem o nacionalismo negro a dizer sobre a situa-
ção do mundo agora? Não muito.»32, embora se possa contrapor a
esse pessimismo a proposta testamentária de Fanon e o seu convite
à relativização:

Cada geração deve, numa relativa opacidade, descobrir a sua missão,


cumpri-la ou traí-la. (…)
A nossa missão histórica, a missão daqueles que tomaram a deci-
são de acabar com o colonialismo, consiste em ordenar todas as revol-
tas, todos os actos desesperados, todas as tentativas abortadas ou afo-
gadas em sangue.33

Composto de cinco capítulos, que continuam as problemáticas


de livros anteriores (especialmente Pele Negra, Máscaras Brancas),
Os Condenados da Terra parece ser, de facto, um livro testamentá-
rio, sobretudo tendo em conta o seu momento de escrita. Assim, a
alienação cultural e seus traumas, a internalização da dominação

31 Achille Mbembe, «L’universalité de Frantz Fanon», Frantz Fanon Œuvres, Paris: La Décou-
verte, 2011. Existe uma tradução portuguesa deste ensaio, a partir da qual se cita Mbembe:
http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/artigo.php?id=36 (acesso: 26 de Fevereiro
de 2015).
32 Tommie Shelby, «Cosmopolitanism, Blackness, and Utopia» – a conversation with Paul
Gilroy. Transition, nr. 98, 2008, pp. 116-135 (p. 120).
33 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 211-212.

21
inocência mata

(hoje falar-se-ia de subalternidade) e suas consequências na frag-


mentação da cultura nacional (cuja existência Fanon recusa em
situação colonial pois considera que esta paralisa na sua totali-
dade a cultura nacional), a relação entre cultura nacional e lutas de
libertação, as ideologias nacionalistas e seus equívocos, os progra-
mas (mínimos e máximos) dos movimentos nacionalistas e seus
falhanços, o modus operandi monolítico dos poderes pós-coloniais
e suas semelhanças com o poder colonial, o papel da burguesia
e da «nova» elite, as ideologias dos nacionalistas africanos (que
Fanon considera terem sido importadas), as ambiguidades do
«intelectual colonizado», as frustrações do ex-colonizado face ao
novo país são matéria de Os Condenados da Terra: uma análise multi
e transdisciplinar, multidimensional, da violência como reali-
dade inerente à situação colonial, que está presente em todas as
expressões materiais e simbólicas da sociedade, mesmo depois
das independências, detendo-se demoradamente na terapêutica
da violência como inevitável, pois «as posições defensivas surgi-
das do confronto violento do colonizado com o sistema colonial
organizam-se numa estrutura que revela então a personalidade
colonizada»34. Quem ler antes Pele Negra, Máscaras Brancas tenderá
a considerar Os Condenados como a síntese da análise da «extensão
dos sofrimentos psíquicos causados pelo racismo e pela presença
viva da loucura no sistema colonial. Com efeito, em situação colo-
nial, o trabalho do racismo visa, em primeiro lugar, abolir toda a
separação entre o eu interior e o olhar exterior.»35
Os Condenados da Terra tem na sua base as vivências coloniais
da violência, sobretudo na Argélia em luta pela independência –

34 Idem, ibidem, p. 258.


35 Achille Mbembe, op. cit.

22
A pertinência de se ler Fanon, hoje

e esta é uma das críticas que o angolano Mário Pinto de Andrade


aponta no pensamento de Fanon, ao afirmar que «a guerra da
Argélia passou a representar o ideal revolucionário que cristalizou
a esperança dos colonizados», elevando, no seu raciocínio, um
caso particular – como, por exemplo, o papel do campesinato –
«ao estatuto de universalidade aplicável aos países colonizados»36.
Albert Memmi, o tunisino que Fanon conhecera na sua estada
em Túnis, diria sobre essa «teorização» da vivência argelina, em
«La vie impossible de Frantz Fanon» (1973):

Na sua curta vida, Frantz Fanon experimentou pelo menos três fra-
cassos graves. Nascido num departamento francês, acreditava-se
francês e branco. Quando foi estudar [na metrópole], fez a dolo-
rosa descoberta de que na sua pátria era negro das Índias Orientais
[Antilhas].
Enfurecido, decidiu que não seria nem francês nem das Índias
Orientais [antilhano], mas argelino: não eram os norte-africanos,
como ele, vítimas da mesma potência?37

36 Mário Pinto de Andrade, «Fanon et l’Afrique Combattante. Témoignage d’un militant


angolais». Texto original de uma comunicação de Mário Pinto de Andrade no Memorial
Internacional Frantz Fanon, datado de Fort-de-France, Martinica, Abril de 1982. Fundação
Mário Soares: http://casacomum.net/cc/visualizador?pasta=04330.008.016#!7 (acesso: 23
de Março de 2015).
37 (Tradução livre) «In his short life, Frantz Fanon experienced at least three serious fail-
ure. Born in a French department, he believed himself French and White. When he went
to study in the capital he made the painful discovery that in the mother country he was
West Indian and Black.
Infuriated, he decided that he would be neither French nor West Indian, but Algerian: were
not the North Africans, like himself, the dupes and the victims of the same mother country?»
Albert Memmi, «The Impossible Life of Frantz Fanon», translated by Thomas Cassirer and
G. Michael Twomey. The Massachusetts Review, 14.1 – Winter 1973, p. 10. O artigo fora publicado
dois anos antes: «La vie impossible de Frantz Fanon», Esprit, 9 septembre 1971.

23
inocência mata

Não seria bem assim, pois, quando saiu da sua Martinica em direc-
ção à metrópole, após uma estada no combate pela libertação de
França durante a Segunda Guerra Mundial, Fanon já tinha, se não
uma consciência irredutível, a percepção muito crítica da condição
de dominado (que advinha também da leitura de textos de intelec-
tuais caribenhos), que a experiência africana iria transformar – já
na metrópole – numa «raiva vulcânica» (Jean-Paul Sartre).
É verdade que, para Fanon, «o homem colonizado liberta-se
na e pela violência»38. Mas tal se deve, segundo Fanon, ao facto de
esse homem viver numa «atmosfera de violência», numa «violên-
cia em acção» feita de «exercícios bélicos e [d]o odor a pólvora» –
resultando numa tensão que, de qualquer modo, o colonizado tem
de libertar periodicamente em explosões sanguinárias, contra o
colonizador e contra o seu irmão: «Autodestruição colectiva muito
concreta nas lutas tribais, eis uma das vias por onde se liberta a
tensão muscular do colonizado.»39 Fanon, sem o nomear, referia,
já em 1961, uma série de «heranças» coloniais com as quais se
debatem os países africanos na actualidade, desde as consequên-
cias do monolitismo das ideologias nacionalistas com o qual pen-
sa(va) a elite governante fazer frente ao tribalismo, até à existência
de actos letais decorrentes de relações na Françafrique (dir-se-ia
que Fanon antecipou em décadas, pela visão do que se passava no
Congo ex-belga, com o assassinato de Lumumba, as assassinas
guerras civis ditas tribais, como o genocídio do Ruanda):

A violência do colonizado, como dissemos, unifica o povo. Com efeito,


devido à sua estrutura, o colonialismo é separatista. O colonialismo

38 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 89.


39 Idem, ibidem, p. 58.

24
A pertinência de se ler Fanon, hoje

não se contenta em verificar a existência de tribos, reforça-as, dife-


rencia-as. O sistema colonial alimenta as circunscrições militares e
reactiva as velhas confrarias marabúticas. Na sua prática, a violência
é totalizante, nacional. Por isso, comporta na sua intimidade a liqui-
dação do regionalismo e do tribalismo. Por isso, os partidos naciona-
listas mostram-se particularmente impiedosos com os caïds e com os
chefes tradicionais. A liquidação dos caïds e dos chefes é um preliminar
à unificação do povo.40

Mas Fanon analisa também, segundo uma outra perspectiva, o pro-


cesso de aniquilamento do subjectivo, seja político, económico ou
cultural, acelerado pelo aumento das desigualdades, exclusão e frac-
turas sociais que provocam a reificação dos sujeitos da margem, nas
relações entre o Norte e o Sul, e internamente no Norte e no Sul.
O interessante em Frantz Fanon é que a sua análise das relações
de poder, situando-se a nível das relações coloniais (e não de quais-
quer outras hoje na pauta dos estudos culturais e pós-coloniais, de
classe, de género ou orientação sexual), ultrapassa as «clássicas»
abordagens eminentemente materialistas (política, económica ou
social), existencialistas e culturalistas e introduz, nesse complexo
analítico, saberes outros (a história, a filosofia e a psiquiatria) para
construir uma epistemologia que considera outras componentes
do ser humano (a língua, o corpo, o sexo, o ser) na sua experiência
subjectiva, de que resultam traumas na estrutura psíquica do sujeito
colonizado. Essa transdisciplinaridade fanoniana pode até nem ser
original se considerarmos as reflexões de fenomenologistas como
Edmund Husserl ou Emmanuel Lévinas, ou os trabalhos do pró-
prio Jean-Paul Sarte e de Simone de Beauvoir (sobre o ser), porém,

40 Idem, ibidem, p. 96.

25
inocência mata

Fanon concilia esses saberes com os da psiquiatria para o estudo


do fenómeno do racismo. Para Fanon, o colonialismo é muito mais
do que um sistema definido, apenas, como exploração estrangeira
dos recursos humanos de um território com recurso à mão-de-obra
local, mas, sobretudo, «negação sistematizada do outro, uma decisão
obstinada de recusar ao outro qualquer atributo de humanidade»41.
As reflexões de Fanon também não são «canónicas» na aná-
lise que faz dos antagonismos sociais, numa altura em que a ideo-
logia predominante nos movimentos nacionalistas, apoiados pela
esquerda europeia, tendia para o marxismo, teoria em que o pro-
letariado é erigido a força que dinamiza as transformações sociais.
Fanon considera que, «nos países capitalistas, o proletariado nada
tem a perder e, eventualmente, teria tudo a ganhar [enquanto] nos
países colonizados, o proletariado tem tudo a perder»42. Porém,
Fanon atribui a força motriz dessa luta contra o capitalismo colonial
ao campesinato, de certa forma tendendo mais para a conciliação
entre a classe operária e a campesina, de que falara Friedrich Engels
após a morte de Karl Marx. E porque acredita que «o camponês
que permanece na sua terra defende tenazmente as suas tradições
e representa, na sociedade colonizada, o elemento disciplinado cuja
estrutura social se mantém comunitária»43, Fanon critica:

O campesinato é sistematicamente esquecido pela propaganda da


maioria dos partidos nacionalistas. Ora é evidente que nos países colo-
niais só o campesinato é revolucionário, já que não tem nada a perder
e tem tudo a ganhar. O camponês, o desqualificado, o esfomeado é o
explorado que descobre mais depressa que só a violência paga. Para ele,

41 Idem, ibidem, p. 257-258.


42 Idem, ibidem, p. 112.
43 Idem, ibidem, p. 115.

26
A pertinência de se ler Fanon, hoje

não há compromisso, não há possibilidade de entendimento. A colo-


nização, ou a descolonização, é simplesmente uma relação de forças.44

Interessante, neste contexto, é a reflexão de Mário Pinto de Andrade


segundo a qual Fanon não teria entendido as especificidades dos
movimentos de libertação da África subsaariana, dimensionado
como estava no «modelo argelino». Embora considere, mais adiante,
ter havido «uma progressão no pensamento político de Fanon em
torno da proposta do modelo argelino e da relação dialéctica que ele
estabeleceu entre a luta pela liberdade e a independência nacional,
e a luta contra o colonialismo em África»45, Mário Pinto de Andrade
critica aquilo que considera «precipitação» de Fanon quanto à critica
que faz aos intelectuais assimilados:

Durante todo esse «ano da África» [«Fevereiro de 1960, na ocasião


da conferência panafricana realizada em Túnis»], debatemos com
Fanon a validade da marcha empreendida pelo MPLA na mobili-
zação das camadas sociais. A nossa argumentação esbarrava num
muro de convicções bem arraigadas no único sujeito histórico revo-
lucionário, aos seus olhos – o campesinato. Eis porque Fanon aca-
bou por se voltar para a UPA, legitimando-a.46

É que, para Fanon, os movimentos políticos nacionalistas – cuja


noção é «importada da metrópole» – não conseguiam implantar
a sua organização nos campos, confirmando os fracassos sofridos
a «análise teórica» dos partidos nacionalistas47. E numa época em

44 Idem, ibidem, p. 64.


45 Mário Pinto de Andrade, op. cit.
46 Idem, ibidem.
47 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 111-116.

27
inocência mata

que a ideologia dos movimentos nacionalistas africanos estava


vinculada ao antagonismo protagonizado pela pequena burguesia
(isto é, aquela franja de colonizados com um status burguês) e pelo
proletariado, Fanon reequaciona a identidade dessa luta, e, man-
tendo-a no âmbito do capitalismo colonial, desloca essa perspec-
tiva do contexto europeu para o contexto colonial, especificando
as suas particularidades quanto aos modelos sociais, o socialismo
e o capitalismo (que se apresentavam como alternativas exclusi-
vas naquela época), afirmando que foram concebidos por homens
de continentes e de épocas diferentes48. Isso revela que Fanon não
labora numa epistemologia maniqueísta, como tantas vezes dele
se afirmou. Por isso, mantendo a identidade original desse grupo,
desde A Internacional, «os condenados da terra» são, assim, todos
os deserdados, explorados e espoliados, apesar de o paradigma
ser, para Fanon, os povos colonizados pela Europa.
Fanon tem, porém, consciência da performance deletéria da
«elite colonial» no processo de libertação: autoritarismo, totalita-
rismo, culto de personalidade, nepotismo, despotismo, corrupção.
Das «trevas coloniais» aos «sóis das independências», Fanon che-
gou a ser profético nas suas análises – melhor seria dizer nas suas
previsões, uma vez que em 1961 grande parte dos países africanos
vivia sob o jugo colonial. No capítulo inaugural do livro, «Da vio-
lência: da violência em contexto internacional», Fanon já fala da
impaciência do colonizado e das suas frustrações que se prolon-
gam na pós-independência e aponta que «a burguesia colonizada
que chega ao poder usa a sua agressividade de classe para açam-
barcar os postos anteriormente ocupados pelos estrangeiros»49,

48 Idem, ibidem, p. 101.


49 Idem, ibidem, pp. 159-160.

28
A pertinência de se ler Fanon, hoje

reproduzindo a nova elite do dito Terceiro Mundo a mesma rela-


ção de poder para com o povo ex-colonizado numa dupla direcção:
não apenas porque «os elementos ocidentalizados têm para com
as massas camponesas sentimentos que recordam os existentes no
seio do proletariado dos países industrializados»50, mas também,
continuará em capítulos seguintes, porque «a falta de preparação
das elites, a ausência de ligação orgânica entre elas e as massas,
a sua preguiça e, digamo-lo, a cobardia no momento decisivo da
luta vão dar origem a trágicos desaires»51. Fanon antecipa (até pelo
tempo verbal futuro usado) a crítica à «nova» classe que se vai erigir
em governante e que ele considera antinacional, «grosseira, estú-
pida e cinicamente burguesa», que «limitará as suas pretensões à
reconquista de escritórios e de casas comerciais outrora ocupados
pelos colonos. A burguesia nacional toma o lugar da antiga popu-
lação europeia: médicos, advogados, comerciantes, representan-
tes, agentes gerais e agentes aduaneiros»52.
Essa sua crítica aos movimentos nacionalistas tem uma pro-
jecção no futuro, por aquilo que não fariam (em 1961) – e que, afi-
nal, não fizeram (hoje) –, estende-se aos poderes pós-coloniais,
pois «o partido único é a forma moderna da ditadura burguesa
sem máscara, sem disfarce, sem escrúpulos, cínica (…) A ditadu-
ra burguesa dos países subdesenvolvidos vai buscar a sua solidez
à existência de um líder»53.
Para além dos «percalços da consciência nacional» que essa
classe provoca, é essa burguesia responsável pela fraqueza – pelo

50 Idem, ibidem, p. 114.


51 Idem, ibidem, p. 153.
52 Idem, ibidem, pp. 156-157.
53 Idem, ibidem, p. 169.

29
inocência mata

falhanço, vaticina Fanon – das organizações políticas que emergi-


ram das independências:

A fraqueza clássica, quase congénita, da consciência nacional dos


países subdesenvolvidos não é apenas a consequência da mutilação
do homem colonizado pelo regime colonial, é também o resultado
da preguiça da burguesia nacional, da sua indigência, da formação
profundamente cosmopolita do seu espírito.54

Por outro lado, ao falar das metamorfoses por que passa o «inte-
lectual colonizado», pode até pensar-se que já nessa altura Fanon
entendera a tão actual necessidade da descolonização epistemo-
lógica, ao expressar a «preocupação de os intelectuais coloniza-
dos recuarem relativamente à cultura ocidental em que correm
o perigo de se submergir»55, contra a «colonialidade do poder»
(Quijano) e contra a «desvalorização da história anterior à coloni-
zação» que, ontem como hoje, assume o seu significado dialéctico
(Joseph Ki-Zerbo expressaria a mesma ideia, ao afirmar, muitos
anos depois, na sua entrevista testamentária, que os cientis-
tas e intelectuais africanos teriam de deixar de se comportarem
como «súbditos coloniais»56). Fanon lembra, a propósito, que
«a condenação do colonialismo é continental. A afirmação, pelo
colonialismo, de que a noite humana caracterizou o período pré-
-colonial diz respeito a todo o continente africano»57 – o que vale
sempre lembrar quando se ouvem, ainda hoje, considerações de

54 Idem, ibidem, p. 154.


55 Idem, ibidem, p. 214.
56 Joseph Ki-Zerbo, Para quando a África? (Entrevista de René Holenstein). Porto: Campo
das Letras, 2006, p. 15.
57 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 216.

30
A pertinência de se ler Fanon, hoje

que o colonialismo não teve só coisas más, versão outra da ideia de que
não se pode julgar a história, como se fosse possível estudá-la sem
a julgar… E quando, reeditando a questão de Jean-Paul Sartre, a
Europa, na sua «intersubjectividade nacional», pergunta «o que
é que ele [Frantz Fanon] quer?», o filósofo responde «nada com a
Europa», pois o destinatário do discurso fanoniano é o oprimido
africano, argelino particularmente, Fanon está a transformar a
Europa no objecto do seu discurso – e esta parece ser a subversão
que leva Sartre a voltar a perguntar: «Que aconteceu então? Isto,
simplesmente: éramos sujeitos da história e actualmente somos
os objetos. Inverteu-se a relação de forças, a descolonização está
em curso; tudo o que nossos mercenários podem tentar é retar-
dar-lhe a conclusão.»58 Trata-se de uma proposição muito opti-
mista sobre a neutralização do eurocentrismo, embora este seja,
sem dúvida, o gesto seminal que faz de Frantz Fanon um pioneiro
das investidas epistemológicas pela descolonização do saber.
Note-se, no entanto, que nessa altura também Frantz Fanon
não escapou a algumas armadilhas eurocêntricas, mesmo con-
siderando o tempo de escrita (anos 50), sejam terminológicas,
como na expressão «homem de cor», sejam ideológicas, como na
designação «descolonização» para referir o processo de conquista
da independência (que, porém, o próprio notou – não de forma
explícita, mas através de considerações quase premonitórias –
não dever ser sinónimo de conquista de liberdade). Com efeito,
em todo o ensaio, Fanon fala constantemente em descolonização –
quando deveria, em muitos momentos, referir a independência. Ora,
estas duas designações para referir o mesmo processo relevam de

58 Jean-Paul Sartre, op. cit., p. 18.

31
inocência mata

lugares diferentes de enunciação, e a historiadora Isabel Castro


Henriques sintetiza da seguinte forma a questão:

A natureza hegemónica da colonização e do colonialismo impôs a


noção europocêntrica de descolonização (princípio dos anos 60),
ignorando o papel dos povos oprimidos no processo da sua liberta-
ção e reduzindo no mesmo movimento a importância das indepen-
dências, umas obtidas pacificamente, outras, como no caso portu-
guês, conseguidas após anos de guerra, de violências, de combates,
de destruições.59

De Frantz Fanon, exponencio o que disse um dia sobre Francisco


José Tenreiro (que faleceu aos 42 anos, em 1963)60: que há duas
espécies de escritores prolíferos, os que ficam na história e os
que apenas têm lugar numa nota de rodapé; e há os que publicam
pouco mas cuja obra constitui um desafiante campo de estudo.
Tal é o caso de Frantz Fanon, que em vida publicou apenas três
livros – Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), L’an V de la révolution61
(1959, depois reeditado com o título Sociologie d’une révolution: l’an
V de la révolution algérienne), Os Condenados da Terra (1961) – e postu-
mamente um quarto livro, Pour la révolution africaine (1964), editado
pela viúva, Josie Fanon (Marie-Josephe Duble Fanon), que reúne
alguns dos escritos dispersos de Fanon. Porém, antes mesmo do

59 Isabel Castro Henriques, «Colónia, colonização, colonial e colonialismo». Dicionário Crí-


tico das ciências sociais dos países da fala oficial portuguesa. Salvador: Editora da Universidade
Federal da Bahia, 2014, p. 56.
60 Inocência Mata, «Francisco José Tenreiro: entre as liminaridades identitárias e a ideolo-
gia insular». In: Inocência Mata (org.), Francisco José Tenreiro: as múltiplas faces de um intelectual.
Lisboa: Edições Colibri, 2011, pp. 305-323.
61 É muito auspiciosa, na sua intenção, a tradução para o inglês deste título em 1965
como Studies In A Dying Colonialism, depois abreviado em edições posteriores como A Dying
Colonialism.

32
A pertinência de se ler Fanon, hoje

último livro da sua bibliografia, Frantz Fanon era já um intelec-


tual no panteão dos mais conceituados pensadores do mundo
de língua francesa (é verdade que apenas depois da tradução da
sua obra para inglês, em meados dos anos 60), pelo reconheci-
mento da originalidade do seu pensamento, pela visão do futuro
e pela coragem discursiva de Os Condenados da Terra, cuja história
e interlocução com, nesse tempo, talvez o maior intelectual francês,
Jean-Paul Sartre tornaram o livro muito mais visível do que Pele
Negra, Máscaras Brancas, o seu livro inaugural escrito aos 25 anos e
que antecipa em muitos anos outro ensaio extraordinário sobre os
traumas da alienação cultural que é Retrato de colonizado precedido
pelo retrato do colonizador (1957), de Albert Memmi, também com
uma introdução de Jean-Paul Sartre. A sua brilhante capacidade
de análise do todo (mundo colonizado) a partir da parte (Argélia,
terra em que, cumprindo o seu último desejo, repousa o seu corpo
questionante) e de «previsão» fizeram dele um dos maiores pen-
sadores do século xx.

Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!

Inocência Mata
Universidade de Lisboa/Universidade de Macau
Macau, 23 de Março de 2015

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