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DE SE LER
FANON, HOJE
INOCÊNCIA
MATA
Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!
(Última prece de Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas.)
1 A data da morte de Frantz Fanon é um dos «problemas» das suas inúmeras biografias:
encontram-se três datas – 5 de Dezembro, 6 de Dezembro e 8 de Dezembro. Parece, no
entanto, consensual (pela predominância desta data) que a sua morte ocorreu no dia 6 de
Dezembro de 1961. Esta é a data que aparece numa das mais completas e concisas notas
biográficas de Frantz Fanon, publicada recentemente por Giovanni Pirellia e Rachel E.
Love, que teve a colaboração da família de Fanon, a sua esposa, o irmão Joby, colegas
vários (do liceu, da faculdade, da vida militar, de profissão, enfim), em vários períodos da
sua vida. Giovanni Pirellia & Rachel E. Love, «Biographical Note on Frantz Fanon». Inter-
ventions: International Journal of Postcolonial Studies – New York University. Published online:
06 Jan 2015. Vol. 17, No. 3, 6394–416, http://dx.doi.org/10.1080/1369801X.2014.993680
(Fevereiro de 2015).
2 Fanon estava hospitalizado no National Institutes of Health, em Bethesda, Maryland,
segundo alguns de seus biógrafos contra a sua vontade, pois não lhe agradara ter de recor-
rer àquele «país de linchadores». Ironicamente, Fanon, que se inscreve no hospital como
Ibrahim Fanon, é evacuado em aeronave providenciada pela Embaixada dos Estados Uni-
dos em Túnis.
3 «In a feverish spurt». Homi Bhabha, «Foreword: Framing Fanon». Frantz Fanon, The
Wretched of the Earth. New York: Grove Press, 2004.
4 Frantz Fanon chega à Argélia como médico psiquiatra colocado no hospital de Blida,
que hoje homenageia esse grande vulto da recente história da Argélia, Hôpital Psychiatrique
Frantz Fanon.
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5 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da Universidade Federal da
Bahia, 2008, p. 26.
6 Idem, ibidem, p. 46.
7 Idem, ibidem, p. 121.
8 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra. Lisboa: Letra Livre, 2015, p. 217.
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9 Idem, ibidem.
10 Ver, por exemplo, Arthur Jose Poerner, Argélia: o caminho da independência. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.
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(…)
Et nous voici debout
tous les damnés de la terre
tous les justiciers
marchant à l’assaut de vos casernes
et de vos banques
comme une forêt de torches funèbres
pour en finir
une
fois
pour
toutes
avec ce monde
de nègres
de niggers
de sales nègres.15
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Por outro lado, para além dessa visível homenagem, não é fácil
fugir à forte sugestão bíblica (apesar do assumido agnosticismo
de Frantz Fanon) para a qual remete a expressão. Esse eco bíblico
acentua a metáfora que traduz o estado de contiguidade da explo-
ração quotidiana, no corpo e no espírito, na pele e na alma, da
opressão e da repressão (sobretudo porque a escrita deste livro
releva de uma gestação muito vivencial, nos anos 50 do século xx,
numa Argélia a ferro e fogo), e os efeitos fracturantes desse estado,
resultando não apenas na baixa auto-estima do sujeito negro-
-africano colonizado, devido ao preconceito e à discriminação
racial e etnocultural próprios da situação colonial, à sujeição a
estruturas políticas e sociais numa situação de confrontação, mas
ainda nos traumas causados pela guerra, as «psicoses reactivas»
e as «psicotizações secundárias», que estuda no último capítulo.
Os Condenados da Terra é, neste contexto, uma explicação radical das
consequências do processo de internalização da dominação ante
a violência colonial (e a antevisão da que se seguiria no período
pós-colonial), a alienação e suas artimanhas no mundo domi-
nante que modifica e subverte a comunidade e os sujeitos. E neste
sentido Frantz Fanon tanto pode considerar-se um dos epígonos
da geração dos nacionalismos africanos, quanto um dos primei-
ros teóricos do que se chamaria depois «estudos pós-coloniais».
Com efeito, na pauta dos estudos pós-coloniais está não apenas
a ruptura com as noções essencialistas de identidade, um dos
núcleos conceptuais dos estudos culturais (com as contribuições
dos celebrados Stuart Hall, Homi Bhabha, Edward Said, Kwame
A. Appiah, Walter Mignolo, Néstor García Canclini, entre outros),
mas uma epistemologia que propõe a (re)leitura do colonialismo
a partir de paradigmas que consideram experiências de alteridade,
racializadas e culturalizadas, nas sociedades contemporâneas no
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18 Em Portugal, o livro teve duas edições: uma pela Ulisseia, nos anos 60, e outra pela
Ulmeiro, nos anos 80; no Brasil, o livro também foi publicado por duas editoras: a Civiliza-
ção Brasileira, em 1968, e a Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2005.
19 Lewis R. Gordon afirma que, pelo contrário, na América do Sul o pensamento de Fanon
formou muitos intelectuais, a começar por Paulo Freire. «Prefácio» a Pele negra, máscaras
brancas, op. cit., p. 11. Nem é despiciendo o facto de haver, no seio da comunidade académica,
um «Prémio Frantz Fanon por Obras Excepcionais do Pensamento Caribenho», concedido
pela Associação Filosófica Caribenha.
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26 David Macey é autor de Frantz Fanon: A Life (London: Granta Books, 2000) e Frantz Fanon:
A Biography (New York: Picador, USA, 2001).
27 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 88-89.
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Camaradas, não teremos outra coisa a fazer senão criar uma terceira
Europa? O Ocidente quis ser uma aventura do espírito. (…)
Estamos, hoje, a assistir a uma paralisação da Europa. Fujamos,
camaradas, desse movimento imóvel em que a dialéctica, pouco a
pouco, se transformou em lógica do equilíbrio.29
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31 Achille Mbembe, «L’universalité de Frantz Fanon», Frantz Fanon Œuvres, Paris: La Décou-
verte, 2011. Existe uma tradução portuguesa deste ensaio, a partir da qual se cita Mbembe:
http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/artigo.php?id=36 (acesso: 26 de Fevereiro
de 2015).
32 Tommie Shelby, «Cosmopolitanism, Blackness, and Utopia» – a conversation with Paul
Gilroy. Transition, nr. 98, 2008, pp. 116-135 (p. 120).
33 Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 211-212.
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Na sua curta vida, Frantz Fanon experimentou pelo menos três fra-
cassos graves. Nascido num departamento francês, acreditava-se
francês e branco. Quando foi estudar [na metrópole], fez a dolo-
rosa descoberta de que na sua pátria era negro das Índias Orientais
[Antilhas].
Enfurecido, decidiu que não seria nem francês nem das Índias
Orientais [antilhano], mas argelino: não eram os norte-africanos,
como ele, vítimas da mesma potência?37
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Não seria bem assim, pois, quando saiu da sua Martinica em direc-
ção à metrópole, após uma estada no combate pela libertação de
França durante a Segunda Guerra Mundial, Fanon já tinha, se não
uma consciência irredutível, a percepção muito crítica da condição
de dominado (que advinha também da leitura de textos de intelec-
tuais caribenhos), que a experiência africana iria transformar – já
na metrópole – numa «raiva vulcânica» (Jean-Paul Sartre).
É verdade que, para Fanon, «o homem colonizado liberta-se
na e pela violência»38. Mas tal se deve, segundo Fanon, ao facto de
esse homem viver numa «atmosfera de violência», numa «violên-
cia em acção» feita de «exercícios bélicos e [d]o odor a pólvora» –
resultando numa tensão que, de qualquer modo, o colonizado tem
de libertar periodicamente em explosões sanguinárias, contra o
colonizador e contra o seu irmão: «Autodestruição colectiva muito
concreta nas lutas tribais, eis uma das vias por onde se liberta a
tensão muscular do colonizado.»39 Fanon, sem o nomear, referia,
já em 1961, uma série de «heranças» coloniais com as quais se
debatem os países africanos na actualidade, desde as consequên-
cias do monolitismo das ideologias nacionalistas com o qual pen-
sa(va) a elite governante fazer frente ao tribalismo, até à existência
de actos letais decorrentes de relações na Françafrique (dir-se-ia
que Fanon antecipou em décadas, pela visão do que se passava no
Congo ex-belga, com o assassinato de Lumumba, as assassinas
guerras civis ditas tribais, como o genocídio do Ruanda):
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Por outro lado, ao falar das metamorfoses por que passa o «inte-
lectual colonizado», pode até pensar-se que já nessa altura Fanon
entendera a tão actual necessidade da descolonização epistemo-
lógica, ao expressar a «preocupação de os intelectuais coloniza-
dos recuarem relativamente à cultura ocidental em que correm
o perigo de se submergir»55, contra a «colonialidade do poder»
(Quijano) e contra a «desvalorização da história anterior à coloni-
zação» que, ontem como hoje, assume o seu significado dialéctico
(Joseph Ki-Zerbo expressaria a mesma ideia, ao afirmar, muitos
anos depois, na sua entrevista testamentária, que os cientis-
tas e intelectuais africanos teriam de deixar de se comportarem
como «súbditos coloniais»56). Fanon lembra, a propósito, que
«a condenação do colonialismo é continental. A afirmação, pelo
colonialismo, de que a noite humana caracterizou o período pré-
-colonial diz respeito a todo o continente africano»57 – o que vale
sempre lembrar quando se ouvem, ainda hoje, considerações de
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que o colonialismo não teve só coisas más, versão outra da ideia de que
não se pode julgar a história, como se fosse possível estudá-la sem
a julgar… E quando, reeditando a questão de Jean-Paul Sartre, a
Europa, na sua «intersubjectividade nacional», pergunta «o que
é que ele [Frantz Fanon] quer?», o filósofo responde «nada com a
Europa», pois o destinatário do discurso fanoniano é o oprimido
africano, argelino particularmente, Fanon está a transformar a
Europa no objecto do seu discurso – e esta parece ser a subversão
que leva Sartre a voltar a perguntar: «Que aconteceu então? Isto,
simplesmente: éramos sujeitos da história e actualmente somos
os objetos. Inverteu-se a relação de forças, a descolonização está
em curso; tudo o que nossos mercenários podem tentar é retar-
dar-lhe a conclusão.»58 Trata-se de uma proposição muito opti-
mista sobre a neutralização do eurocentrismo, embora este seja,
sem dúvida, o gesto seminal que faz de Frantz Fanon um pioneiro
das investidas epistemológicas pela descolonização do saber.
Note-se, no entanto, que nessa altura também Frantz Fanon
não escapou a algumas armadilhas eurocêntricas, mesmo con-
siderando o tempo de escrita (anos 50), sejam terminológicas,
como na expressão «homem de cor», sejam ideológicas, como na
designação «descolonização» para referir o processo de conquista
da independência (que, porém, o próprio notou – não de forma
explícita, mas através de considerações quase premonitórias –
não dever ser sinónimo de conquista de liberdade). Com efeito,
em todo o ensaio, Fanon fala constantemente em descolonização –
quando deveria, em muitos momentos, referir a independência. Ora,
estas duas designações para referir o mesmo processo relevam de
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Universidade de Lisboa/Universidade de Macau
Macau, 23 de Março de 2015
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