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JOAQUIM ROMERO MAGALHÃES

As descrições

escritas e a

identidade do

Brasil: séculos

XVI-XVIII

JOAQUIM ROMERO
MAGALHÃES é
historiador e professor da
Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra.

26 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 26-37, março/maio 2000


C
omo se apresenta, em que se fundamenta e
como evolui a imagem que vai sendo construída
do Brasil ao longo dos séculos, desde o
achamento de 1500 até à independência em
1822? Há escassos elementos disponíveis para
responder a uma tal pergunta. E nela se incluem
não poucos problemas para resolver previamente. Para
que não há uma segura resposta, que a tudo possa servir.
Desde logo, ressalta a grande questão de se saber qual
a difusão dos textos escritos. Recorde-se apenas que o
primeiro e admirável testemunho sobre a nova terra, o de
Pêro Vaz de Caminha, através da sua “carta do achamento”,
esteve inaproveitado de 1500 até 1817. O que significa
que quase nada do que foi observado no momento da
chegada à Terra de Vera Cruz esteve na origem do que
logo de seguida foi sendo difundido. E por isso a chamada
questão vespuciana, porque as cartas do florentino
Américo Vespúcio e dos que as aproveitaram mereceram
rápida passagem à letra de imprensa. Do mesmo modo,
passou a ser conhecido o designado “Relato do Piloto
Anónimo” porque o imprimiu Francazano de Montalbodo
em 1507 nos Paesi nuovamente ritrovati. Que difusão teve a
alemã Nova Gazeta da nova terra do Brasil (Copia der Newen
Zeytung aub Pressillg Landt)? Grande, pequena? Mas alguma.
Em contrapartida, talvez nem sequer valha a pena pergun-
tar quantos poderiam ter tido acesso ao muito oficial “Acto
notarial de Valentim Fernandes”, ou às cartas de d. Manuel,
ou às dos mercadores italianos estantes em Lisboa – antes
do século XIX e da sua revelação pelos eruditos…
Destes primeiros relatos e fragmentos de apressadas
descrições podemos supor que algumas impressões tives-
sem tido larga difusão pela Europa culta. Mas será de nos
perguntarmos ainda se quantos para além do Atlântico
começaram a emigrar dispunham de algum conhecimento
concreto sobre a terra, se saberiam sequer que existia essa
informação sobre tão longínquas paragens. Apesar do seu
êxito editorial, não muitos em Portugal ou no Brasil,
tampouco teriam lido o testemunho de Hans Staden –
Warhaftige Historia und Bescheibung eyner Landtschafft Wilden,
Nacketen Grimmingen Monsshfresser Leuten, in der Newenwelt
America gelegen –, só publicado em meados do século (1557).
O que é pouco provável, para não dizer nada provável.

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Como quase sempre acontece quando cura dar a conhecer “em breves palavras a
nos debruçamos sobre estas questões de fertilidade e abundância da terra do Brasil
fontes, temos apenas vestígios dos registos para que esta fama venha a notícia de mui-
das emissões produzidas, ficando em per- tas pessoas que nestes Reinos vivem com
feita ignorância quanto à respectiva recep- pobreza, e não duvidem escolhê-la para seu
ção pelos que em cada momento se podem remédio”. Propaganda de emigração que o
considerar os “consumidores” da informa- leva a escrever uma pequena e pouco deta-
ção disponível. lhada informação, a suficiente para fazer
Informação esta é aqui para reconheci- passar o seu recado. Para o que adopta o
mento do concreto, porque isso seria o im- velho e provado esquema das corografias:
portante. Construção e representação de um nome da terra, localização, extensão, se-
espaço novo e ainda não descrito, que fica- nhorio, actividades produtivas, população.
va em aberto para ser explorado e ocupado. A que vai acrescentar aquelas que lhe pare-
Onde provavelmente, por força da trans- ce serem as possibilidades que se abrem na
missão oral e dos topoi dos conhecimentos nova terra. Por observação ou por suspeita.
generalizados entre a gente ilustrada, tam- E alguma coisa do gentio dela, não deixan-
bém ganhava grande força motivadora a do de destacar o canibalismo que continu-
dimensão mítica. Marcada pela cultura ava a impressionar fortemente os europeus.
greco-romana. Para recordar apenas um O seu propósito era o de fazer propa-
episódio com sequência, frei Gaspar de ganda das boas condições da terra e a ela
Carvajal conseguiu mesmo ver as famosas atrair quantos quisessem emigrar, porque
amazonas a lutar à frente dos seus tributá- apesar da distribuição das capitanias (1534)
rios quando da expedição de Orellana, pelo e da instalação do governo-geral (1549) a
rio que lhe tomaria o nome, em 1542. “Es- população ainda era escassa. Assim, logo
tas mulheres são muito brancas e altas, têm ao descrever a capitania de Itamaracá
o cabelo muito comprido e entrançado e explicita: “Há nesta capitania muitas e boas
revolto na cabeça; e são de grandes mem- terras pera se povoarem e fazerem nelas
bros e andam desnudas em pêlo, tapadas as fazendas”. Tipo de informação essencial
suas vergonhas com os seus arcos e flechas para esse atrair à emigração dos potenciais
nas mãos fazendo tanta guerra como dez interessados. Na capitania do Espírito San-
índios”… Dominante presença da história to se podem fazer algumas povoações “e
e histórias antigas que o Humanismo culti- conseguir proveito das terras viçosas que
vava e que filtrava (e procurava adaptar) à por esta costa estão desertas”. E assim por
informação de visu que ia sendo obtida. todo o Brasil se abrem possibilidades a quem
Porque essa bagagem cultural anterior não nele se queira fixar. A descrição de Pêro de
era uma realidade que pudesse ser afastada Magalhães Gândavo não é optimista, mas
ou que em menor ou maior grau não conta- mostra com clareza o que se encontra em
minasse o que ia sendo escrito e – há que aberto para quem se quiser arriscar a ir para
supô-lo – dito. Mas a experiência das coi- lá viver. Prosa que teve a boa sorte de ser
sas, as vivências dos que percorriam as no- impressa em 1576 – e ainda por cima com o
vas paragens, começavam a sobrelevar aos patrocínio poético de Camões. Mas uma vez
dizeres dos antigos – como se vê logo pelos editada em letra de forma, não mais tornou
contemporâneos Naufragios y Comentarios a ser difundida. Talvez porque depressa a
de Alvar Nuñez Cabeza de Vaca (1555). As realidade se alterou e o que ficara escrito
coisas começavam a mudar, porque outra perdera actualidade. E a sua difusão não terá
era a utilidade buscada e outros os pontos de sido a maior.
referência que tinham de ser utilizados. Mas já de trás vinha uma outra via de
Com o seu Tratado da Terra do Brasil divulgação, que é de presumir muito mais
– e depois com História da Província San- eficaz. Uma das formas da Companhia de
ta Cruz a que Vulgarmente Chamamos Jesus se manter informada do que os seus
Brasil –, Pêro de Magalhães Gândavo pro- membros andavam fazendo nas várias pro-

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víncias consistia na redacção anual de uma lonização. Rascunha sobre a vinda dos pri-
carta que era enviada para Roma, ao Geral. meiros jesuítas com Tomé de Sousa, dos
Assim se registavam e passavam as notí- segundos com d. Duarte da Costa, e dos
cias consideradas importantes para o de- que adiante se lhes foram juntando. Desen-
senvolvimento do instituto, e se relatavam volve a descrição das ocupações e traba-
acontecimentos, sobretudo edificantes. Que lhos da Companhia, dos seus colégios e das
depois eram difundidas por colégios e ca- virtudes dos provinciais. Passa depressa
sas professas. Quanto mais exemplares, sobre as relíquias que iam coleccionando,
melhor o efeito a extrair das cartas. e demora-se um pouco mais sobre os cos-
Escreveu-as no vivo do espanto pela tumes dos Brasis. Que conhece bastante
novidade da terra e dos homens do Brasil bem. E termina com um ataque aos brancos
Manuel da Nóbrega. Outros as redigiram já e ao que fazem tiranizando os índios, o que
com mais experiência e com mais sabedo- tem como resultado impedir as conversões.
ria literária, entre os quais José de Anchieta, Forte condenação. Outras informações so-
recheando as suas missivas de importantes bre a terra e sobre os seus naturais, seus
observações, não apenas sobre o estado das homens e suas mulheres, seus usos e práti-
almas mas do que se passava nas terras. As cas se ficaram a dever a Anchieta. Como a
cartas cumpriam funções de vivo exemplo outros. Embora o proselitismo jesuíta esteja
a que se destinavam, tendo até havido tra- bem à tona, há que reconhecer que desses
duções publicadas e largamente divulgadas. escritos resulta um excelente conjunto de
Além de que muitas delas corriam mundo informações sobre a terra e as suas gentes.
na internacional linguagem do latim. Excelente observador se revela também
Tendo a Companhia de Jesus um como o padre Fernão Cardim, alentejano trans-
que sentimento de posse relativamente ao plantado além-mar. Por volta de 1584 des-
Brasil e às suas gentes, o interesse dos pa- creve o clima e terra do Brasil, que é uma
dres passava por que houvesse um pleno apresentação das “coisas notáveis”, dos
conhecimento do que por lá iam fazendo. animais e das plantas que aí havia ou já se
O que nem sempre garante o integral valor cultivavam. No mesmo intento de apresen-
das informações registadas. No entanto, tação constam os índios, seus costumes,
transparecem notas vivas do maior interes- adoração e cerimónias. Também se lhe deve
se, naquelas em que a edificação das almas uma missiva relativa a uma longa viagem e
não implica distorções piedosas – como o missão jesuítica efectuadas de 1583 a 1585.
sempre exagerado número dos catecúmenos De grande interesse pela soma de informa-
ou os sempre provisórios resultados da ções que transmite sobre o conjunto do
evangelização. Quase sempre entusiásticos, espaço de missão, e não apenas sobre a vida
pelo menos às primeiras impressões. O religiosa e social.
desânimo também emerge, porque era Nada do que havia no Reino aí faltava,
muito volátil o cumprimento por parte dos e muito mais abundava naquilo que o Rei-
naturais dos preceitos da nova religião. no não tinha. É a sempre subjacente visão
Os jesuítas não se limitavam, porém, a edénica que os jesuítas transmitem. A crer
apresentar as suas obras e os seus feitos em Fernão Cardim, ou a aceitar como rea-
exemplares. Homens cultos, de formação lidades os seus desejos, a terra cresce e trans-
humanista, procuravam entender e expli- forma-se: “Em fim esta terra parece outro
car o que viam e observavam. E assim es- Portugal”.
crevem sobre plantas e animais, ou muito Grande fortuna teve o escrito do frade
especialmente, sobre os índios. José de cosmógrafo André Thevet, intitulado Les
Anchieta vai mais longe. Escreve em 1584 Singularitez de la France Antarctique
um primeiro esboço de uma história do autrement nommée Amerique & de
Brasil. Alinha governadores e bispos, con- plusieurs Terres & Isles decouvertes de
ta dos índios e das suas relações com os nostre temps, saído em Paris, em 1557.
portugueses nos diferentes núcleos de co- Nascido no princípio do século em

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Angoulême, franciscano, ao serviço do rei
de França como cosmógrafo, Thevet será
dos primeiros europeus a descrever o que
viu e ouviu contar no Brasil, onde esteve
pouco mais de dois meses, em 1555-56. Ido
na expedição comandada por Nicolas de
Villegagnon, pouco por ali se demora. Mes-
mo assim o suficiente para deixar algumas
notícias de muito interesse sobre o novo
continente. “Singularidades” muito estima-
das, pelo que o relato foi reimpresso duas
vezes no ano seguinte – 1558 –, merecendo
pronta tradução em italiano – 1560 e 1584.
Contra André Thevet escreve Jean de
Léry, que pela mesma altura viveu no Bra-
sil. Calvinista, vem de Genebra para o forte
de Coligny na Baía de Guanabara em 1556.
Aí permanece até 1558. Regressado a Ge-
nebra, tardará a publicar a sua Histoire d’un
Voyage en Terre de Brésil –1578 –, a que
seis edições posteriores e tradução latina
asseguram difusão por toda a Europa. Obra
de um pastor protestante, irritado com as
falsas ou apressadas informações de Thevet,
que procura rebater. Das Singularidades
diz Jean de Léry estarem inçadas de men-
tiras. O que, bem vistas as coisas, é polémica
religiosa e não propriamente levantada a
propósito do que ambos puderam observar
da terra e das gentes do Brasil.
A Histoire d’un Voyage en la Terre du
Brésil resulta de uma apurada observação,
de quem durante algum tempo viveu
empenhadamente esse ensaio de estabele-
cimento dos franceses no Brasil. Como Léry
diz, Thevet só por lá esteve dez semanas…
Ainda por cima acamado. Léry não. Sem-
pre atento, encanta-se com a Baía de
Guanabara e descreve os homens e mulhe-
res do Brasil, como descreve os seus ali-
mentos, as aves e os animais selvagens ou
os irritantes insectos. Sabe dos ritos religio-
sos e familiares, diz da guerra e da hospita-
lidade, dos comportamentos na doença e
perante a morte. Procura saber alguma coisa
da origem dos grupos tupinambás e
tupininquins e da língua que falavam. Como
era inevitável, demora-se sobre o canibalis-
mo que considera como um ritual guerreiro
e não como uma forma corrente de alimen-
tação – mesmo se admite que os íncolas con-

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sideram a carne humana “maravilhosamen- colonização de tão bela terra, “capaz para
te boa e delicada”. É a mais completa obser- se edificar” nela um “grande império”. O
vação e divulgação do Brasil e dos seus que não tardou a acontecer, mesmo se não
naturais até então impressa na Europa. A houve o investimento desejável nas condi-
que as várias gravuras muito ajudam. ções de defesa.
As impressões de atentos mas, por for- Tendo passado à Índia em 1602, o fran-
ça, superficiais observadores irão sendo dei- cês Francisco Pyrard, natural de Laval,
xadas para trás. Impõe-se agora a visão escreve as suas andanças pelo Índico e pela
muito mais rica dos que constroem uma Ásia em 1611. Tendo no regresso de uma
vivência muito directa do objecto que in- viagem atribulada tocado no Brasil, apro-
tentam apresentar. E que precisam que esse veita para transmitir as suas observações.
escrito seja convincente para obter do po- Não é de estranhar que reivindique para os
der real o apoio necessário a pretendidas franceses a descoberta do Brasil. Era ainda
expedições de prospecção de metais para o a nostalgia da frustrada França Antárctica.
interior. Para mostrar a seriedade do seu A Bahia que Francisco Pyrard vê e des-
propósito descreve Gabriel Soares de Sousa creve – Voyage de Pyrard de Laval aux
o Brasil como um todo. E fá-lo com conhe- Indes orientales (1601-1611) – é já uma
cimento do objecto. cidade com o seu aparato urbano, em 1610.
Interessa-se Gabriel Soares de Sousa Facilitando a ligação entre a praia e o alto
não só pela terra, sua história, geografia e da cidade, um engenhoso elevador chama
enumeração de recursos. Sabe ou compila a atenção do viajante. Cidade portuária, com
dados sobre as árvores e frutos comestí- os seus armazéns e com uma “bela e grande
veis, sobre as plantas medicinais, as ma- rua, bem povoada de toda a sorte de lojas de
deiras, as aves, os insectos, os mamíferos, mesteres e artífices”. Cidade portuguesa
os peixes, os batráquios, os répteis. Das com a sua sé, com colégio de jesuítas, com
gentes tem bom conhecimento dos tupinam- misericórdia, hospital, onde aquartelam três
bás, de que apresenta um quadro bastante companhias de infantaria e residência do
pormenorizado, o mais perfeito até então. vice-rei. Com muitos conventos —
Com isto nos dá um muito completo relato franciscanos, bentos, carmelitas. Cidade
de uma vida vivida a fazer avançar a colo- portuguesa: “os portugueses governam-se
nização no Brasil. Significativamente nada no Brasil em tudo como em Portugal e não
pormenoriza quanto ao que se suspeitava como nas Índias orientais”. Observação
sobre esmeraldas, ouro e prata. pertinente.
Os índios são a primeira e principal di- A riqueza principal é o açúcar: “não
ficuldade com que ainda se defrontam os julgo que haja lugar em todo o mundo onde
colonos portugueses no Brasil, nesse ano se crie açúcar e tanta abundância como ali.
de 1587. Com poucas excepções, o retrato Não se fala em França senão do açúcar da
traçado e transmitido por Gabriel Soares Madeira e da Ilha de São Tomé, mas este é
de Sousa mostra a população branca – ou uma bagatela em comparação com o do
mestiça de brancos e índios – acuada a uns Brasil”. Aí já estavam em laboração cerca
poucos centros habitados, reduzida a uma de 400 engenhos. Isto na costa, entre
vida quase impossível, fazendo frente a Pernambuco e a Bahia.
ferozes naturais que quando podem destro- Ao contrário da generalidade dos por-
em engenhos e fazendas. tugueses que inicialmente com o Brasil se Na página
Como fundamento ao propósito revela- encantavam e nele encontravam um como
anterior,
do pelo roteiro de Gabriel Soares de Sousa que paraíso terrestre, este francês acha a
de mostrar “as grandes qualidades do Esta- terra muito má, incapaz de servir para ha- Thévet, As
do do Brasil”, está um alvitre para o gover- bitação se não fosse o atractivo pelos ren- Singularidades
no proceder empenhadamente à defesa dimentos do açúcar e do pau-brasil. Não
militar – fortificando os portos – e à aplica- escapou ao seu olhar atento a distinção entre
da França
ção de capitais como meio de assegurar a a agricultura do açúcar e do tabaco para Antártica

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exportação e as culturas para sustentação. também ficou por imprimir. “Da largura
Estas fornecem arroz, milho grosso e miú- que a terra do Brasil tem para o sertão não
do, raízes de mandioca, batatas e outras. trato, porque até agora não houve quem a
Milho não comiam os homens, dando-o aos andasse por negligência dos portugueses,
animais. Criam gado e aves. Há frutas com que, sendo grandes conquistadores de ter-
abundância, laranjas, limões, bananas, coco ras, não se aproveitam delas, mas conten-
e gengibre verde. Este só pode ser levado tam-se de as andar arranhando ao longo do
de conserva, para não fazer concorrência mar, como os caranguejos”. Esta murmu-
ao asiático. Belas hortas cheias de boas ração do frade franciscano quanto à “negli-
hortaliças, alfaces, repolhos, melões, pepi- gência dos portugueses que se não aprovei-
nos, rábanos. Visão elementar, superficial, tavam nas terras do Brasil” relaciona-se
que indica alguma coisa do que viu. Mas muito directamente com não haver uma
apenas com interesse lúdico, curiosidade continuada prospecção de metais precio-
distante de quem nada propõe relativamente sos que se achariam no interior. Porque só
ao futuro da terra. Assim como curiosidade por essa falta de persistência entendia frei
que era, saiu dos prelos em 1611 (com Vicente que ainda não tivessem sido en-
reedições logo em 1615 e 1619). Num tem- contrados. Sendo as terras do domínio
po em que em França havia quem preparas- castelhano confinantes, não parecia conce-
se a expedição que veio a fundar bem lon- bível que aí se tivessem descoberto “tantas
ge, no Norte, São Luís do Maranhão. e tão ricas minas” e Portugal continuasse
Entretanto os escritos portugueses – com sem as possuir. Mas a vida dos colonos junto
excepção de Pêro de Magalhães Gândavo da costa era indispensável para a comercia-
e da sua História da Província Santa Cruz lização dos produtos agrícolas, em especi-
a que Vulgarmente Chamamos Brasil al do açúcar. Como se diz da Bahia – e pode
(1576) – iam ficando manuscritos. Obras generalizar-se – “todo o meneio destas
de interesse geral como a de Fernão Cardim gentes é por água”. Não menos isso conta-
(Tratados da Terra e Gente do Brasil) ou va para a defesa dos moradores, que ficari-
como a de Gabriel Soares de Sousa (Trata- am desprotegidos pelos matos, que o gen-
do Descritivo do Brasil em 1587) não pas- tio bravo habitava, nas palavras contempo-
savam ao público em forma impressa. Não râneas de Diogo Campos Moreno (no tam-
parece de aceitar que tivesse sido o acaso bém inédito Livro que Dá Rezão do Estado
que levou a que quase todos estes escritos do Brasil, de 1612, como também por pu-
tivessem ficado inéditos, embora não intei- blicar ficaram os Diálogos sobre a Gran-
ramente desconhecidos. No entanto, e ape- deza do Brasil, de Ambrósio Fernandes
sar da larga difusão dos manuscritos cor- Brandão).
rente ao tempo, a impressão significava uma Entretanto os franceses não desistiam
publicidade acrescida, que as autoridades de uma instalação no Brasil. O que concre-
talvez não estivessem interessadas em tizaram, agora na costa Norte, no Mara-
promover. Porque apontavam suspeitas de nhão, fundando a cidade de São Luís em
riquezas que convinha manter em segredo. 1612. De pouca dura, pois estavam de sa-
Se bem que muito se buscasse o ouro sem ída em 1615. Porém isso valeu para que
que se encontrasse, nem por isso se desespe- Claude d’Abbeville escrevesse a Histoire
rava. Mais valia segredar do que assoalhar de la Mission des Pères Capucines en l’Ile
uma existência de que havia fortes indícios? de Maragnan, e com a Suite des choses
E que continuava a atrair aventureiros? Era plus mémorables advenues en Maragnan,
uma questão de defesa nesse fim de século les années 1613 et 1615 por Yves d’Evreux.
em que os impérios português e castelhano Sobremaneira importante para o conhe-
se viam acossados um pouco por todos os cimento do Brasil – ou de parte do Brasil na
seus domínios? Assim parece. Europa – vai ser a presença holandesa em
Em 1627 frei Vicente do Salvador es- Pernambuco. O grupo por que se fazia
creve a primeira História do Brasil. Que acompanhar João Maurício de Nassau cons-

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truirá a partir do Recife uma obra ímpar em Curiosas e Necessárias das Cousas do
informação descritiva. E ainda uma notá- Brasil, deverá ter sido o mais divulgado
vel cartografia, esclarecedora para o co- contributo impresso português sobre a ter-
nhecimento da terra. E esclarecedora do ra e as gentes brasileiras no século XVII.
cuidado dos novos senhores no apuramento Todavia, sem ilustrações.
desse saber. Para apenas tomar um famoso Mas teriam aqueles trabalhos dos pro-
autor, Gaspar Barleus (Rerum per testantes do Norte corrido em Portugal?
Octennium in Brasilia), torna-se patente Não parece. A censura estaria atenta. Além
que consegue dar muitas informações so- do que dizia respeito à religião, havia que
bre o que então foi sendo visto e observado, não lembrar a humilhante ocupação neer-
descrevendo e dando pormenores da natu- landesa do Recife. E por isso da parte
reza, dos recursos e da vida na colónia. Para portuguesa se respondia com uma séria
além dos feitos heróicos e das manifesta- produção narrativa e testemunhal, sobre-
ções de grandeza da personagem principal, tudo interessada nos feitos militares: frei
o cenário não resulta apoucado. Porque tem Manuel Calado, d. Francisco Manuel de
o cuidado de situar os acontecimentos, para Melo, Francisco de Brito Freire, frei Ra-
elucidar a narrativa. Seja no Brasil, em fael de Jesus. Que se esgotam com o tema
África ou na Europa. militar de que tratavam.
Como bom holandês, Gaspar van Baerle Em 1711 um jesuíta fez publicar sob o
não deixa ainda de quantificar gastos, apre- pseudónimo de André João Antonil uma
sentar estimativas para o que se ganhou e obra intitulada Cultura e opulencia do Bra-
para o que se perdeu. Para isso lança mão sil por suas drogas, e minas, Com varias
e incorpora no seu escrito informações noticias curiosas do modo de fazer o
várias, descrições, relatórios, cartas. Os assucar; plantar, & beneficiar o Tabaco;
leitores dos Países Baixos terão ficado a tirar Ouro das Minas; & descubrir as da
conhecer com algum pormenor o quadro Prata; E dos grandes emolumentos, que
em que se desenrolara a actuação de um esta Conquista da America meridional dá
grande comandante militar ao mesmo tem- ao Reyno de Portugal com estes, & outros
po que notável administrador. E homem de géneros, & contratos reais. Título prolixo
cultura. Também ao louvor do comandan- de uma magnífica descrição do Brasil de
te-administrador se dedica Joan Nieuhof 1711, em especial do Brasil açucareiro.
na sua Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- Logo mandada retirar de circulação por
en Lant Reise, que continua a narrativa ordem régia, pelo que poucos exemplares
encetada por Barleus. Ao mesmo tempo vão subsistiram. O autor, que escreve com
sendo conhecidas pinturas de Frans Jansz pseudónimo e que se diz um “O Anónimo
Post, de Albert Eckout, bastantes delas di- Toscano”, terá sido o jesuíta italiano João
fundidas por meio das gravuras abertas por António Andreoni. Atrevera-se a dar a co-
Zacharias Wagner (incomparavelmente nhecer por dentro a cultura açucareira e a
mais esclarecedoras do que as frustes ilus- descrever com pormenor todos os traba-
trações de Hans Staden ou Jean de Léry). A lhos e necessidades que nela havia. Com
imagem do Nordeste brasileiro, refeita na conhecimento de causa. O saber de quem
Europa, passa a ser muito mais completa e viveu na Bahia durante 35 anos. Não só.
precisa. Punha também a claro “todos os caminhos
Descrições a que da parte portuguesa que há para as minas de ouro descobertas e
apenas se poderia contrapor a Crónica da se apontam outras que ou estão para se
Companhia de Jesus de Simão de Vascon- descobrir ou por beneficiar”. Tudo particu-
celos (1658). Porque ao relato edificante laridades, em especial os acessos a Minas,
da chegada e primeiras obras dos apóstolos que não convinham que se tornassem pú-
jesuítas no Brasil lhe antepõe uma cuidada blicas e acessíveis a estrangeiros.
descrição da terra e das suas gentes. Que, Na Corte temeu-se que a informação
tendo como título Notícias Antecedentes, pudesse ter ido longe demais e que por ela

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se atraísse gente ao Nordeste e a Minas. decerto pouco desejável que se estampasse
Estava-se em plena Guerra da Sucessão de um tal rol de informações úteis em livro. E
Espanha. Não convinha assoalhar tais no- a afirmação da autoridade régia – que co-
tícias e dar indícios da acessibilidade a meçava a fazer-se sentir com a força que o
imensas riquezas de que muitos sonhavam ouro permitia ao absolutismo joanino – não
apropriar-se. Tanto mais quanto as amea- hesita em fazê-lo desaparecer. Havia que
ças dos franceses ao Brasil ainda estavam aumentar os cuidados para se evitarem as
em curso. Como se vê das expedições frequentes explosões de descontentamen-
predadoras ao Rio de Janeiro. to social que já se tinham experimentado e
Nem sempre de vista, o padre Andreoni que eram temíveis.
descreve com pormenor e rigor muitos dos Com o surgir do Brasil do ouro há ne-
segredos que andavam bem guardados fora cessidade de refazer o conhecimento do
dos espaços brasileiros. Porque de uma ver- Brasil, de obter descrições e de cartografar
dadeira e pormenorizada descrição se tra- as terras que de novo vão sendo conheci-
ta. Elogiosa, por vezes exagerada. Sempre das. Dessa necessidade se apercebe o rei,
fundamentalmente verdadeira. E didáctica. que vai promover a formação e as expedi-
De que alguns capítulos impediram de todo ções dos padres cartógrafos, Domingos
a circulação da obra. Trata-se do “Roteiro Capassi e Diogo Soares. Que irão contar
do caminho da Vila de São Paulo para as com conhecimentos frustes de anteriores
Minas Gerais e para o Rio das Velhas”, em exploradores dos sertões. Escreve um pa-
que se “apontam os pousos e paragens do dre jesuíta em 1730: “Tenho já junto uma
dito caminho, com as distâncias que tem e grande cópia de Notícias, vários roteiros e
os dias que pouco mais ou menos se gastam Mapas dos melhores sertanistas de São
de uma estalagem para outra, em que os Paulo, Cuiabá, Rio Grande, e da Prata e
mineiros pousam e se é necessário se vou procurando outras, a fim de dar princí-
descançam e refazem do que hão mister e pio a alguma carta, porque as estrangeiras
hoje se acha em tais paragens” (cap. X). A andam erradíssimas, não só no que toca ao
que se segue o “Roteiro do caminho velho Sertão, mas ainda nas Alturas e Longitu-
da cidade do Rio de Janeiro para as Minas des”. Era todo um espaço de novo conheci-
Gerais dos Categuás e do Rio das Velhas” do por força das incursões paulistas que se
(cap. XI), o “Roteiro do Caminho Novo da tornava indispensável bem representar. Para
Cidade do Rio de Janeiro para as Minas” garantir um domínio efectivo e não apenas
(cap. XII), e o “Roteiro do Caminho da Ci- passageiro. Mapas tinham vindo a ser tra-
dade da Bahia para as Minas do Rio das çados, muitos deles sem rigor nas coorde-
Velhas” (cap. XIII). Como se esta revelação nadas, um pouco por palpite, um pouco por
não bastasse, acrescenta-se ainda o modo de uma experiência do terreno que fixava er-
extrair o ouro das minas, de conhecer o ros mas também dava algumas indicações
minério que contenha prata e de como a úteis aos que pelos rios navegavam. Por-
separar. Ainda não contente com isso, o je- que dos que se aventuravam por esses rios
suíta alarga-se em considerações que reve- adentro poucos teriam conhecimentos para
lam a ausência de acatados representantes elaborar instrumentos rigorosos de orien-
da autoridade régia por essas paragens. tação. Mas tinham por si a experiência de
Dar razão da força e alimentar a tomada gerações de colonos e sobretudo de índios e
de consciência do que valia a grande terra mamelucos. Antes de meados de Setecen-
brasileira era um risco e um perigo. Por tos, com pouco mais havia que contar. O
isso, mais do que por razões de pormenor esforço de delimitação de fronteiras decor-
ou de inconvenientes informações, a Cul- rente dos Tratados de Madrid (1750) e de
tura e Opulência do Brasil por suas Dro- Santo Ildefonso (1777) vai mudar as coisas.
gas e Minas tinha de desaparecer. A lenta Com o ouro, novo centro económico em
gestação do sentimento de unidade não Minas Gerais, novos recursos e novos es-
podia ser conscientemente sentida. Mas era paços. E também, pela conflitualidade com

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os representantes régios e com os emigran- ções que enceta, nos naturais que elogia – ou
tes recentes que depressa queriam enrique- não naturais mas aí criados, como o padre
cer, uma tomada de consciência da situa- António Vieira. Quando pode, não deixa de
ção em que se encontrava a colónia ameri- elogiar os “engenhosos filhos” da América
cana. Em paralelo havia que registar o pas- Portuguesa. Com sentimentos de orgulho
sado como base de uma memória identitária. que devem ser entendidos. E que já puderam
Ao fundar, em 1719, a Real Academia da ser tidos como de ufanismo precoce.
História, era propósito de d. João V que Veja-se o que escreve sobre a guerra
dela saísse a história eclesiástica e a história dos Palmares, comunidade de escravos
civil do Reino de Portugal. Nela tinham fugidos que não minimiza, pois formavam
também cabimento as histórias dos Reinos uma “república rústica e a seu modo bem
e Senhorios dos reis de Portugal. Da história ordenada”, com quem alguns moradores se
do Brasil se encarregou o baiano Sebastião entendiam a troco de segurança. Também
da Rocha Pitta que lhe pôs o título de se protege de acusações de mal-dizer usan-
História da América Portugueza. Lavra- do de artifícios rectóricos simples: de um
dor de canas e coronel de ordenanças, governador do Rio de Janeiro que trouxe
académico da Real Academia da História de Minas amostras de metal “que o podiam
Portuguesa, da Academia Brasílica dos Es- enriquecer” prefere presumir que o tivesse
quecidos, talvez formado em Direito feito para “informação que havia de dar a
Canónico por Coimbra, estava de todo in- el-rei da qualidade das minas”. Já tudo ti-
tegrado na cultura portuguesa dominante. nha sido dito. Para o que ao tempo era pos-
Não teve, como autor, a mínima atenção sível. Matérias de eventual melindre, como
para com os sentimentos que já se manifes- a guerra dos Emboabas com os paulistas
tavam de recusa do Brasil-colónia às for- em Minas ou a dos Mascates com os
mas assumidas pela governação portugue- mazombos em Pernambuco têm algum
sa. Sentimentos que de uma maneira ainda desenvolvimento, e escondem mesmo
difusa começavam a surgir entre os nasci- menos do que mostram. E assim as altera-
dos e criados no Brasil, ou há muito lá re- ções fiscais que ocorrem na Bahia em 1720.
sidentes e que de modo diferente dos por- Em que aproveita para defender os naturais
tugueses recém-chegados entendiam a ter- do Brasil e acusar os “filhos do Reino” e os
ra e as gentes. Menos ainda, é bom de ver, estrangeiros com eles aliados. Quem qui-
podia Sebastião da Rocha Pitta antecipar ser que o saiba ler. A fidedignidade essen-
sentimentos de independência, cegueira que cial da História não deixa de satisfazer, se
mais tarde lhe assacaram para lhe denegrir bem que envolta nas roupagens barrocas
a obra. Injusto julgamento retrospectivo de de um provincianismo áulico a que não
uma história datada de 1724… poderia ter fugido.
Nos dez livros da História da América Pelos mesmos anos, embora publica-
Portugueza o académico correspondente da dos anos depois pela primeira vez, em 1749,
Real Academia da História Portuguesa es- ia o governador e capitão-general do Esta-
creveu as bajulices à autoridade política que do de 1726 a 1729 Bernardo Pereira de
uma tal pertença acarretava e seriam de Berredo pacientemente registando os acon-
esperar. Mas não deixou de mostrar a terra tecimentos do Maranhão nos seus Anais
na sua variedade geográfica, com as suas Históricos do Estado do Maranhão. Me-
produções e recursos e com os seus primi- nos generalista do que Sebastião da Rocha
tivos habitantes [Livro I]. Primeiro essa Pitta, apenas interessado em transmitir o
visão global. Segue-se depois uma descri- que acontecera e o que soubera do que se ia
ção das províncias do Brasil, com informa- passando na região que governava,
ções não dispensáveis. Nem sempre um cro- coleccionou um conjunto variado de notí-
nista exacto, no entanto o seu orgulho pela cias sobre o Norte do Brasil de 1644 a 1718.
terra do Brasil é genuíno e salta a cada pági- Queria com isto “juntar matérias para o
na nos feitos que relata, nas parcas descri- edifício de uma história, que mostrasse bem

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a todo o mundo o quanto se dilatam os vastos tugal. Tinha trigo em abundância, na
domínios portugueses”. Colónia do Sacramento e no Rio de Janei-
Obra escrupulosa e “tão cheia de zelo”, ro. Nem seria preciso que fosse muito,
que não ficou arquivo que não examinas- porque os moradores “vivem muito bem da
se, escritura que não lesse. Também farinha de pau”. Sal havia na capitania de
caprichou nas informações militares, ten- Pernambuco. Quanto ao vinho, não lhe fal-
do consultado sobre isso as relações escri- tam as “parreiras que frutificam duas vezes
tas que encontrou. no ano”. Só era preciso ter cuidado e traba-
Na pobre literatura existente ao tempo lhar. “Supondo porém em uma palavra que
sobre a América portuguesa da primeira na América faltam muitas cousas, que cres-
metade do século XVIII os Anais sobressa- cem na Europa, e é constante que tão bem
em como trabalho de boa consciência, se na Europa faltam muitas e mais preciosas
bem que nem sempre de interessante leitu- das que crescem na América com esta gran-
ra. O estilo barroco e áulico, que seria de de diferença que as que não há no Brasil se
esperar, também por aí se encontra espar- podem vir a ter com a indústria e aplicação,
ramado. Com os Anais fica o Estado do porém não há aplicação nem indústria bas-
Maranhão – Amazónia, Pará, Maranhão e tante para produzir em Portugal o que há no
Ceará – a dispor do primeiro grande relato Brasil, a saber o ouro, os diamantes, sem
histórico que lhe marca a individualidade. ser impossível descobrir minas de prata no
Singularidades que as condições de nave- Maranhão”. Mão-de-obra não faltava, e a
gação impuseram e que a política reconhe- emigração depressa se encarregaria de au-
ceu como conveniente para administrar mentar a população. Para conservar Portu-
esses espaços com independência relativa- gal o rei necessitava “totalmente das rique-
mente ao restante que merecia a designa- zas do Brasil e de nenhuma maneira das de
ção de Estado do Brasil. Portugal, que não tem para sustentar o Bra-
Com as obras de Sebastião da Rocha sil, de que se segue, que é mais cómodo e
Pitta e de Bernardo Pereira de Berredo, fica mais seguro estar onde se tem o que sobeja,
esboçada e ao alcance de muitos a história que onde se espera onde que se carece”.
possível do conjunto da imensa colónia da Também a língua desempenha um pa-
América do Sul. Espaço que estava a ser pel de relevo na construção lenta da iden-
considerado central nas reflexões sobre tidade. E, a exemplo do que ocorrera no
Portugal. A tal ponto que houve mesmo século XVI com Camões e Os Lusíadas, a
quem disso tirasse as necessárias poesia épica de temas brasileiros faz o seu
consequências políticas. O diplomata d. aparecimento: O Uraguay de José Basílio
Luís da Cunha, que distanciadamente – de da Gama (17??) e O Caramurú de frei José
Londres, Paris, Madrid ou da Haia – de Santa Rita Durão (1781). Igualmente a
reflectiu sobre Portugal, avança mesmo em cartografia finissecular mostrará a imagem
1735-36 uma proposta radical. “Visioná- a que se chegara depois do esforço das
ria”, como ele próprio escreve. Que pode- demarcações decorrentes dos tratados de
ria vir a ser lembrada mais tarde. Como foi. limites: a carta da Nova Lusitânia de Silva
Para ver “florentíssimo e bem povoado Pontes. Porém, a cartografia manuscrita,
aquele imenso continente do Brasil”, deve- longe de conseguir uma útil difusão, ficava
ria o rei de Portugal tomar o título de “im- apenas à disposição dos meios oficiais.
perador do Ocidente”, deixando a Europa e De todo o esforço de domínio do espa-
indo lá estabelecer-se. E acrescenta: “na ço e da reflexão escrita resultará finalmente
minha opinião o lugar mais próprio da sua uma visão descritiva global da terra do
residência seria a cidade do Rio de Janeiro, Brasil, com a informação bem arrumada
que em pouco tempo viria a ser mais opu- para se abarcar o conjunto do território: é
lenta, que a de Lisboa”. a Corografia Brazilica ou Relação
Bem vistas as coisas e comparadas as Historico-Geografica do Reino do Brazil,
vantagens, o Brasil ficava a ganhar a Por- da autoria do padre Manuel Ayres do Ca-

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sal. Embora publicada pela primeira vez pouco de história, uma enumeração dos rios
no Rio de Janeiro um pouco mais tarde, e lagoas, cabos, portos e ilhas, mineralo-
em 1817, já estaria pronta no essencial em gia, fitologia e zoologia. Seguem-se as
fins do século anterior – pelo menos as povoações com indicações decerto úteis,
informações datáveis não ultrapassam em como os caminhos que devem ser percorri-
geral os princípios do século XIX, com dos. Passa depois a percorrer as demais
uma ou outra ainda de 1815 – poucas. Dá províncias, terminando em Apêndice com
o padre Ayres do Casal poucas indicações as províncias de Solimões e da Guiana.
sobre o seu trabalho. Lá vai no entanto Sempre seguindo o mesmo esquema arru-
dizendo que se socorreu de manuscritos. mado para facilitar a visão do leitor. Estra-
Há de ter procurado quem o informasse, nha é a inclusão do Paraguay – denominan-
pois não pode ter conhecido de visu tudo do-o Paraná – como província brasileira.
aquilo que descreve. A que consegue dar Trata-se de uma atenta corografia. Nela
uma notável unidade. se concretiza um Brasil que é também uma
Bem integrada no espírito das Luzes, a afirmação da nação brasileira – esse Reino
Corografia procura antes de mais ser útil do Brasil que figura no título –, das suas
aos vassalos de Sua Majestade. Começa, riquezas e virtualidades. Não já a América
naturalmente, pela história da América e Portuguesa, mas Brasil. Aí sobressai bem
da sua descoberta por Cristóvão Colombo. nítida, em fins do século XVIII e princípios
E o Brasil é considerado como na América do século XIX, essa variedade articulada
Meridional. Concepção de uma história de recursos que torna o território uma uni-
continental. Só depois entra na descoberta, dade destacável do restante continente.
publicando em nota a carta de Pêro Vaz de Com a obra de Manuel Ayres do Casal fica
Caminha. Primeira publicação do relato do a dispor-se de uma descrição que transmite
achamento da nova terra de Vera Cruz. Só o conjunto da terra brasileira.
depois de uma breve resenha histórica pas- Que faltava ainda concretizar pela in-
sa a um sucinto quadro geográfico, arru- dependência política completa. Embora
mado em função do conjunto do território: para isso estivesse a contribuir um conjun-
serranias, cabos, baías e portos principais, to de políticas gerais para o todo do territó-
ilhas, rios, mineralogia, zoologia – em que rio, apesar de não ter esse objectivo. Mas
trata dos índios, organização religiosa, ani- de que acabava por emanar nolens volens
mais, insectos, aves –, fitologia. essa tomada de consciência de uma “perso-
Visão primeira do território apresenta- nalidade de sentimento” que levaria ao novo
do como uma unidade. Só depois dela co- Estado e à nação brasileira. Que só ocorre-
meça descrever as províncias, iniciando o ria no tumultuoso enquadramento do final
percurso pelo Sul, pelo Rio Grande. Um do Antigo Regime.

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