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DEBATE: Ontologia é apenas outra palavra para cultura (Parte 1) – Introdução, por Soumhua Venkatesan

sociofilo sociofilo

3 semanas atrás

Fonte: http://www.anthroencyclopedia.com/entry/ontological-turn

Por Soumhya Venkatesan

Tradução: Alberto Luis Cordeiro

Revisão: Marília Bueno

*Tradução do debate do debate da GDAT, ‘Ontology is just another word for culture. Ver: Carrithers et al.
2010. ‘Ontology Is Just Another Word for Culture’, Critique of Anthropology, 30 (2), 152-200.

Moção apresentada na Reunião do Grupo de Debates em Teoria Antropológica, Universidade de


Manchester, 2008.

A favor da moção:

Michael Carrithers, Universidade de Durham

Matei Candeia, Universidade de Durham

Em oposição à moção:

Karen Sykes, Universidade de Manchester

Martin Holbraad, University College, Londres

Editado por Soumhya Venkatesan, Universidade de Manchester


Introdução

Soumhya Venkatesan

Em seu discurso após o jantar no encontro decenal da Associação de Antropólogos Sociais [Association
of Social Anthropologists] sobre Antropologia e Ciência, realizado em Manchester em 2003, Eduardo
Viveiros de Castro identificou o valor cardinal que, em sua opinião, orienta consistentemente a
antropologia: “trabalhar para criar a autodeterminação conceitual, ou seja, ontológica, das pessoas”
(2003: 4, 18). Esta foi uma grande afirmação que gerou (e na verdade deveria gerar) tanto desconforto
como excitação. A “virada ontológica” na antropologia tem sido fortemente impulsionada por alguns
estudiosos que foram diretamente inspirados por de Viveiros de Castro (Henare et al., 2006). Henare et
al. (2006), em Thinking Through Things, argumentam que uma abordagem genuinamente ontológica
(que não privilegia a epistemologia ou o estudo das representações de outras pessoas do que sabemos
ser o mundo real, reconhecendo antes a existência de múltiplos mundos) não torna a ontologia
sinônimo de cultura. A cultura, argumentam eles, é equivalente a “representação”: há um mundo
(realidade) e muitas visões de mundo (culturas). Uma abordagem ontológica, por outro lado, reconhece
múltiplas realidades e mundos. Essa distinção entre ontologia e cultura é um dos assuntos abordados
pelo debate.

O fato dos editores de Thinking Through Things sentirem a necessidade de dissociar o seu projeto do
conceito de cultura deriva, em parte, da forma como a ontologia por vezes aparece nas conversas
antropológicas como uma alternativa moderna à cultura (Holbraad discute isso na sua apresentação, tal
como Candea). As alternativas e as críticas à cultura como conceito viável são inúmeras. No entanto, o
conceito de cultura (como mostra Carrithers) continua a ser útil para todo caso em que a palavra é
tratada com um certo grau de suspeita, especialmente quando mobilizada como explicação. Mas, como
Latour (2005) argumenta, qualquer conceito que é transformado por cientistas sociais em uma espécie
de “coisa” e mobilizado como explicação deve ser tratado com suspeita. Ele próprio se concentra em
outro grampo antropológico: o social. É certamente possível abusar do termo “ontologia” da mesma
forma. Devemos então abandonar qualquer conceito que se torne uma coisa?

Há outra questão. Apesar da falta de consenso entre os antropólogos sobre o que constitui a cultura, a
palavra, no entanto, tornou-se comum fora da disciplina. Isso tem causado alguma preocupação aos
antropólogos. Uma preocupação semelhante foi levantada sobre ‘sociedade’ na reunião de 1989 do
Group for Debates in Anthropological Theory (GDAT) [Grupo de Debates em Teoria Antropológica], que
debateu a moção: ‘O conceito de sociedade é teoricamente obsoleto’ (ver Ingold, 1996). Isto não é
simplesmente porque sentimos que estamos num jogo de recuperação – mesmo quando os ‘nativos’
usam ‘nossos’ conceitos para ‘seus’ próprios propósitos (representação, explicação, desempenho),
precisamos seguir em frente e encontrar outros conceitos que ainda não entraram na linguagem comum
‘aqui’ ou ‘ali’. Pelo contrário, como Marilyn Strathern, John Peel, Christina Toren e Jonathan Spencer
mostraram na reunião de 1989, consequências importantes resultam da maneira pela qual os conceitos
e análises antropológicos são incorporados em outros tipos de projetos.

Uma pergunta que podemos fazer é: de onde vêm os conceitos antropológicos e quais são os seus
limites? A ‘ontologia’ encontra-se nos limites da ‘cultura’ (isso é abordado na discussão que se segue às
apresentações; para uma discussão sobre os limites dos conceitos, ver também Corsín Jiménez e
Willerslev, 2007)? Strathern (1987) fornece um tipo de resposta a essa questão: as construções e
conceitos analíticos da antropologia vêm da tradição euroamericana da qual a disciplina é um produto
(de fato, é isso que torna o conceito de “antropologia em casa” mais complexo do que é imediatamente
aparente). Ela também levanta nesse mesmo artigo a questão da audiência do antropólogo e por que
isso importa. Em relação a isso, e tendo em mente a identificação de Viveiros de Castro sobre o valor
cardinal da antropologia (discutido anteriormente), podemos ainda perguntar: qual é o propósito da
antropologia e como os tipos de questões que a antropologia coloca diferem das questões dos não
antropólogos? Sykes, em sua apresentação, foca na importância das questões, ou seja, no projeto
interrogativo, e não no projeto representacional ou descritivo da erudição.

Henare et al. (2006) fazem duas sérias reivindicações em sua busca por uma antropologia ontológica.
Primeiro, que o propósito da antropologia é a geração de conceitos. Segundo, que uma abordagem
ontológica, mais do que qualquer outra dentro da antropologia, leva “a sério” as coisas encontradas no
trabalho de campo sem procurar explicá-las ou contextualizá-las. Esta última é simultaneamente uma
reivindicação política e metodológica. Um foco em múltiplas realidades e múltiplas ontologias pode,
afirma-se, gerar novos conceitos que vão além daqueles que vêm da “nossa” ontologia. Esta
reivindicação levanta alguns problemas interessantes sobre a relação entre sistemas de conhecimento,
ideias sobre a natureza da realidade e do ser e formas de fazer.

Em We Have Never Been Modern, Latour (1993) traça a emergência da ontologia moderna que faz uma
clara separação entre pessoas e coisas, e natureza e sociedade. Esta separação, porém, não impede a
proliferação de híbridos, que cruzam categorias e atuam no mundo. A modernidade assenta então em
dois pilares: purificação (ou separação categórica) e tradução ou mediação (onde essas categorias são
violadas). Centrar-se puramente na purificação (o reino ontológico), então, tornaria invisíveis a tradução
e a mediação que são cruciais para agir no mundo. Encontramos dilemas semelhantes em outros
lugares. Goswami (2004) escreve que, na segunda metade do século XIX, a administração colonial na
Índia ficou extremamente surpresa ao encontrar indianos de diferentes castas ansiosos por viajar nos
comboios recentemente introduzidos. Eles tinham assumido que as proibições baseadas em castas
significavam que os trens transportariam principalmente mercadorias em vez de passageiros. As
discordâncias de Louis Dumont e André Béteille sobre castas na Índia giram em torno dessa distinção
entre as bases ideológicas e ontológicas da casta e a prática no solo (ver, por exemplo, Khare, 2006). A.K.
Ramanujam (1989) pergunta: existe um modo de pensar indiano? Pode haver, mas como isso informa as
formas de agir dos “indianos” e o que conta como “uma forma indiana” ou não?

Ontologias, teorias do ser e da realidade têm histórias (e genealogias). Também não são
necessariamente estáveis transcontextualmente. Quem entre nós não gritou com um carro ou uma
impressora por ‘deliberadamente’ quebrar quando alguém está correndo para cumprir um prazo final
(veja-se, por exemplo, Gell, 1998)?

Não obstante, existe uma clara distinção entre pessoas intencionais e coisas inanimadas na ontologia
moderna euroamericana. De fato, como Candea mostra, o próprio Viveiros de Castro não está
entusiasmado com o termo “ontologia”. Da mesma forma, as pessoas que usam o conceito de cultura
também sentem uma certa reserva. Como Sahlins (2002) aponta, no entanto, isso não impede que seja
útil.

Isso nos leva então à moção apresentada na reunião de 2008 do Group for Debates in Anthropological
Theory:

Ontologia é apenas mais uma palavra para cultura.

Trata-se decerto de uma declaração provocativa (especialmente dada a presença e a localização da


palavra ‘apenas’), mas que convida ao engajamento crítico tanto com os termos quanto com o trabalho
que eles fazem na antropologia. Embora eu não queira resumir as apresentações, já que que os
palestrantes o fazem com as suas ideias e palavras com muito mais justiça, farei algumas observações. O
debate é, por definição, uma forma altamente polarizada de engajamento. Apesar disso, houve algumas
semelhanças nas posições opostas. Entre os temas que surgiram consistentemente nas apresentações
estava a questão de como lidamos com a semelhança e a diferença – geralmente reconhecida como uma
preocupação antropológica fundamental. Ambos os termos – “ontologia” e “cultura” – estavam
fortemente relacionados a essa preocupação.

Referências
Corsín Jiménez, A. and R. Willerslev (2007) ‘An Anthropological Concept of the Concept: Reversibility
among the Siberian Yukhagirs’, Journal of the Royal Anthropological Institute (NS) 13: 527–44.

Gell, A. (1998) Art and Agency: Towards an Anthropological Theory of Art. Oxford: Clarendon Press.

Goswami, M. (2004) Producing India: From Colonial Economy to National Space. Delhi: Permanent Black.

Henare, A., M. Holbraad and S. Wastell (eds) (2006) Thinking Through Things: Theorising Artefacts
Ethnographically. London: Routledge.

Ingold, T. (ed.) (1996) ‘1989 Debate: The Concept of Society is Theoretically Obsolete’, pp. 55–98 in Key
Debates in Anthropology. London: Routledge.

Khare, R.S. (ed.) (2006) Indian Critiques of Louis Dumont’s Contributions. New Delhi: Oxford University
Press.

Latour, B. (1993) We Have Never Been Modern, trans. C. Porter. Cambridge, MA: Harvard University
Press.

Latour, B. (2005) Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford
University Press.

Ramanujan, A.K. (1989) ‘Is There an Indian Way of Thinking? An Informal Essay’, Contributions to Indian
Sociology 23(1): 41–58.

Sahlins, M. (2002) Waiting for Foucault, Still. Chicago: Prickly Paradigm Press.

Strathern, M. (1987) ‘The Limits of Auto-anthropology’, pp. 16–37 in A. Jackson (ed.) Anthropology at
Home. London: Tavistock.
Viveiros de Castro, E. (2003) AND. Manchester papers in Social Anthropology, 7, URL (consultado em
julho/2009):

http://abaete.wikia.com/wiki/(anthropology)_ AND_(science)_(E._Viveir

Blog do Sociofilo

DEBATE: Ontologia é apenas outra palavra para cultura (Parte 2) – Moções de Michael Carrithers e Karen
Sykes

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1 semana atrás

malanggan

Tradução: Alberto L.C. de Farias, Diogo Silva Corrêa e Lucas Faial Soneghet

Revisão*: Marília Bueno

Michael Carrithers: A favor da moção (1)

Fiquei satisfeito e lisonjeado por ter sido convidado a falar sobre a resolução “A ontologia é apenas mais
uma palavra para cultura”, que foi proposta por Soumhya Venkatesan como tema para este bem-vindo
renascimento do Group for Debates in Anthropological Theory [Grupo de Debates em Teoria
Antropológica] em Manchester, em 2008. Uma vez que o debate foi, em primeira instância, o debate foi
de fato um debate, gente de carne e osso falando para outros presentes de carne e osso, em vez de uma
apresentação impressa que se pareça com um debate, preparei uma palestra em vez de um documento.
Também me aproveitei de algo que nós, falantes acadêmicos, podemos usar hoje: uma série de slides.
Naturalmente, como Edward Tufte (2006) observou, o gênero padrão do slide talk pode ser mortal para a
expressão e a compreensão, especialmente quando nos permitimos seguir as linhas profundas que
programas como o PowerPoint traçam para nós (Tufte 2006). No que segue, no entanto, tento usar os
slides de outras formas. Às vezes eu os uso para fins exclamatórios! Para enfatizar! Muitas vezes destacar
alguma coisa especial. Às vezes para ornamentação. E, ocasionalmente, por ironia.
No que se segue, vou tentar reproduzir para vocês, na letra fria de um impresso, a palestra que proferi
naquele dia, já que não escrevi um roteiro que eu pudesse apenas entregar. Para me ajudar nisso, eu
possuo os slides, bem como a transcrição da palestra, preparada gentilmente por Will Rollason, que revi
para preservar o sentido, mas para remover as peculiaridades do meu idioleto falado.

O que é você, algum tipo de ontólogo?

E isto foi o que eu disse:

Estava um tanto confuso sobre o que esta moção deveria significar: ‘ontologia é apenas mais uma
palavra para cultura’. Penso que, provavelmente, era mesmo pra ficarmos confusos – e, na verdade,
quero lembrar que a confusão é uma coisa boa.

Uma vez, quando eu estava escrevendo um desses documentos que as pessoas que ensinam nas
universidades têm que escrever sobre os cursos que organizam, eu queria dizer que o propósito do
nosso curso de antropologia era deixar os estudantes mais confusos quando saíam do que quando
chegavam. Pois, em suma, acho que o mundo seria melhor se as pessoas começassem a partir da
confusão, e não da certeza.

Para esclarecer as coisas, pensei em quando eu era estudante de graduação, quando tínhamos um
insulto que usávamos um com o outro: “o que é você, algum tipo de ontólogo ou algo assim?”. Isso pode
parecer estranho, mas era para contrapor a suposição de que estávamos envolvidos em um
empreendimento comum: estávamos explorando um mundo em que havia muitos, muitos pontos de
vista diferentes, muitas, muitas experiências diferentes. Nesse mundo – que, eu gostaria de dizer, é o
nosso mundo aqui hoje também – não havia um único critério, nenhum único ponto de vista que
pudesse oferecer uma forma definitiva e positiva de dar sentido a tudo. Só alguém que fosse, bem, um
ontólogo, acreditaria que havia algum tipo de resposta completa e final. Tudo isso foi no ano de 1968, ou
próximo, e naquela época, quando havia tantas certezas destrutivas como hoje, a nossa incerteza parecia
uma coisa boa. Uma ontologia genuína (passei a refletir) foi descrita muito bem por Hans Blumenberg.

A verdadeira ontologia implica


“(…) o ideal da completa objetificação [Vergegenständlichung], e consequentemente a perfeição da
linguagem. Tendo sido atingido esse ideal, o estado final da linguagem como puramente conceitual, no
sentido estrito, será atingido também. Assim como não haveria mais uma moralidade provisória, não
haveria mais nada de provisório nos conceitos”.

Hans Blumenberg,

Teorie der Unbegrifflichkeit

Sânscrito!

Assim, uma ontologia genuína e adequada implicaria a perfeição da linguagem, de modo que as palavras
que você possui seriam, clara e simplesmente, as palavras para o que é… pois a ontologia é a ciência do
que é. Não haveria mais confusão, ou incerteza, ou debates, sobre moralidade, pois o bem descreveria
claramente o que deve ser feito, e o mal delinearia claramente o que não deve ser feito. Um conceito
não seria, como Wittgenstein sugeriu, como a luz de uma lâmpada, que cai brilhantemente perto da
lâmpada, mas se desvanece lentamente para uma penumbra e depois para a escuridão. Nosso
conhecimento seria nítido, positivo, final. Não nos veríamos imprecisos, aproximados ou vagos em nossa
compreensão, pois nossas palavras seriam as próprias palavras da realidade. E, de fato, acontece que
realmente temos uma linguagem perfeita. Sânscrito. A palavra “sânscrito” significa “concluída”,
“alcançada” ou “perfeita”, e os indianos que escreveram gramáticas para o sânscrito consideraram que
descreve a realidade como ela é. Foram os homens – os nobres, os reis, os sábios, os capazes de
perfeição – que falaram sânscrito nas peças indianas antigas, enquanto as mulheres e as servas falavam
os vernáculos, Prakrits falhos e falidos.

Então, isso resolve o nosso problema. Os pubs estão abertos? Podemos ir tomar um drinque, e depois
dobrar-nos até aprender Sânscrito, e saberemos com certeza o que existe e como falar sobre isso.

Alguns ontólogos selecionados:

Platão

Aquino

Heidegger
Oops! Infelizmente, o Sânscrito parece ter alguma concorrência, outras ontologias e ontólogos. Por
exemplo, se usarmos aqui o medieval São Tomás de Aquino, ele achava que nós somos muito bons em
ser, mas Deus é extremamente; na verdade, Ele é perfeitamente. A existência Dele está no ápice do ser.
Por outro lado, não somos do mesmo modo que Deus é, e por isso somos menos perfeitos, e no entanto
os animais nem sequer são tanto ser como nós somos. De modo que há uma hierarquia, a famosa
Grande Cadeia do Ser, o supremo léxico da existência.

E depois há Platão: ele entendia que, por trás das aparições aqui, havia as coisas reais: Ideias, Formas,
aquilo que realmente é, enquanto que o nosso mundo seria apenas um pálido reflexo, sombras lançadas
por um fogo na parede de uma caverna, enquanto o sol da Realidade brilhava lá fora. Ou então você tem
Heidegger em pé na longa fila de ontólogos, pronto para nos lembrar que fomos jogados em um mundo
de Preocupação (Sorge). Então não apenas estamos em uma caverna, mas também precisamos perder o
sono por causa dela. E assim vai.

Alguns ontólogos selecionados:

Platão

Aquino

Heidegger

Libertação epistemológica!

Visão de mundo → Visões de mundo

Do totalitarismo cosmológico à

Vocês podem dizer: não tanto a Grande Cadeia do Ser como as Grandes Cadeias de Ontólogos. No
entanto, em 1968, pensávamos que havíamos escapado disso, pois você poderia querer escapar das
cadeias. Consideramos que havíamos escapado da ontologia para a epistemologia, o que significa que
não podíamos determinar o que é, mas podíamos determinar que nosso mundo estava cheio de visões
de mundo: diferentes perspectivas, diferentes formas de compreensão, diferentes formas de saber e
diferentes formas – como vou enfatizar – de operar, de agir, de lidar. Então, acreditávamos que havíamos
feito uma mudança, a mudança da cosmovisão para as cosmovisões; que havíamos entrado, pensando
de qualquer maneira, em uma nova dispensação, onde a diferença era uma bênção e nenhuma certeza
homogênea podia nos ameaçar por mais tempo. E acho que esse movimento, da visão de mundo para as
visões de mundo, é o mesmo movimento que foi alcançado na invenção e no crescimento da própria
antropologia. Ao entrar na nova dispensação, descobrimos que qualquer visão hegemônica, qualquer
verdade única e unânime, sempre teve algum tipo de resposta; havia algumas vias de saída; havia uma
maneira de curar os tipos de lesões que ocorrem quando as pessoas dizem: “é assim que eu estou e
estou lhe dizendo como é”.

Alguns ontólogos selecionados:

Platão

Aquino

Heidegger

Libertação epistemológica!

Visão de mundo → Visões de mundo

Do totalitarismo cosmológico à(s)

Irredutível heterogeneidade

Possibilidades emancipatórias

Mobilidade terapêutica

Antropologia! O projeto de cultura!

E então ficamos muito felizes, e ainda hoje estou feliz por ser antropóloga. Pois nessa perspectiva, a
antropologia é emancipatória, oferecendo a percepção de que nosso mundo comum é de
heterogeneidade irredutível, não de certeza homogênea e totalitária. Oferece uma mobilidade
terapêutica, contra qualquer êxtase político, moral ou religioso.

No final deste slide coloquei a frase “o projeto de cultura”, e agora vou abordar meu argumento
principal. O que vou discutir basicamente aqui é que, penso, não podemos mais falar totalmente sobre a
cultura, com “C” maiúsculo, mas que o projeto iniciado por nossos antepassados antropológicos ainda
está prosperando, mesmo que tenha se multiplicado em muitas linguagens conceituais e estilos de
pesquisa. Portanto, há uma série de empresas, subprojetos em que estamos todos envolvidos, e esses
subprojetos são aqueles que implicitamente, e às vezes explicitamente, falam entre si e fazem parte de
uma prática coletiva mais ampla e – quero enfatizar isso – fazem parte de uma consciência mútua do
outro, de modo que trabalhamos, pensamos e escrevemos na atmosfera dessa colegialidade de
antropólogos. Para essa atividade, essa prática e essa constelação de pessoas, darei o nome de “projeto
de cultura”. E então, o que eu vou argumentar é que o projeto de cultura tem um certo tipo de caráter
que é como uma nuvem, se vocês preferirem, de subprojetos mutuamente conscientes. Um
interessante, talvez mesmo esplêndido, conjunto de subprojetos pode se preocupar com as visões das
pessoas sobre o que é. Ou, mais precisamente, os antropólogos que perseguem esse subprojeto podem
fazer afirmações proposicionais positivas sobre o senso de realidade que um grupo ou outro pode ter. E
essas afirmações proposicionais dos antropólogos poderiam equivaler a uma ontologia a ser comparada
com outras ontologias, pois, afinal, uma ontologia nada mais é do que um conjunto de proposições,
insistindo em um ponto de vista particular sobre a realidade. Uma ontologia são palavras e conceitos,
não a própria realidade. Mas esse subprojeto ainda seria apenas um dentre os muitos que constituem
nosso projeto de cultura mais amplo.

Quero acrescentar algo mais a essa ideia do projeto de cultura, ou seja, quero que vocês vejam nosso
projeto coletivo como apenas um projeto entre inúmeros outros, cuja soma total devemos chamar,
suponho, de projeto humano. Lévi-Strauss graciosamente admitiu aqui e ali ao longo de todo o seu
trabalho que seu próprio pensamento, e o de antropólogos e filósofos ou outros estudiosos do Ocidente,
não era diferente do tipo daqueles que ele estudou: todos eram evidências da mente humana. E aqui
quero enfatizar que nosso projeto de cultura tem muito em comum com qualquer outro cenário,
qualquer outro projeto que possamos estudar. E o que todos temos em comum é o seguinte: a vida
humana é uma transação contínua, uma discussão contínua. Estamos sempre a ponto de ter que dar
alguma satisfação; nós temos que explicar algo, temos que agir, temos que reagir, temos que falar ou
exibir, temos que prestar atenção; estamos continuamente em posição de ter que lidar, de ter que
negociar com os outros. Isso foi descrito por Garfinkel na frase “não há tempo limite” – está sempre
acontecendo, temos de tomar a iniciativa ou, senão, reagir. Portanto, não é bem que nós apenas
registramos a verdade; em vez disso, defendemos, exibimos, dirigimos a uma audiência, a um público
leitor. Todos os nossos subprojetos antropológicos são, portanto, de caráter essencialmente retórico,
uma tentativa de argumentar, convencer, mover a mente.

Uma _____________ é um sistema de símbolos que age

para estabelecer poderosas, penetrantes e

duradouras tonalidades afetivas (moods) e motivações nos homens

por meio da formulação de concepções de uma ordem geral


de existência e vestir essas concepções

com uma aura de factualidade tal que as tonalidades afetivas

e motivações parecem excepcionalmente realistas.

Agora, para chegar a uma ideia do projeto de cultura em geral, permitam-me começar por uma versão
anterior, a de Clifford Geertz. Esta é uma das expressões mais poderosas e amplamente citadas sobre o
que a cultura é. É verdade que essa máxima e os argumentos que a acompanham no artigo original de
Geertz (Geertz, 1966) foram originalmente dirigidos à ‘religião’ e não à ‘cultura’ em geral. Mas isso não
impediu ninguém de procurar aí uma definição de cultura, e é um bom ponto de partida para a nossa
compreensão do projeto de cultura. O meu plano é reescrevê-lo: precisa ser reescrito, pois já tem mais
de quarenta anos e o projeto de cultura expandiu-se enormemente desde então. E mesmo na época ele
oferecia apenas uma visão parcial do nosso projeto de cultura.

Então aqui está um slide com os ingredientes de uma reescrita.

O projeto de cultura:

– Encontrar e exibir variação

– Em recursos retóricos culturais, por exemplo:

tipos de pessoa/relação

techniques du corps

Imagens

modelos narrativos

conceitos

ontologias

estilos

capacidades

práticas

procedimentos
sistemas cognitivos

pragmática/semântica [⇒ gramática]

Deixe-me começar com ‘encontrar e exibir variação’. A descoberta da variação é o que fazemos no
trabalho de campo, ou seja, nós obtemos o conhecimento a respeito de como estar no lugar de alguém –
chamei isso de ‘aprendizagem engajada’ (Carrithers, 1992) – e ao aprendê-lo, nós o descobrimos por nós
mesmos: nós encontramos isso. Depois escrevemos isso de uma forma ou de outra, em primeiro lugar
para outros antropólogos, mas também para outras pessoas de modo geral, e ao fazê-lo exibimos essa
variação para um leitor. Construímos um argumento, construímos um caso, tentamos fazer uma magia
retórica, e às vezes essa magia é muito forte, e os nossos leitores, por sua vez, aprendem com ela.
Primeiro nós encontramos, e então mostramos.

Eu disse que nós encontramos variação nos diversos modos de obtenção de conhecimento a respeito de
como estar no lugar de uma ou outra pessoa, mas outra forma de dizer isso é afirmar que encontramos
os “recursos retóricos culturais” que as pessoas utilizam para seguirem suas vidas, para defenderem suas
opiniões, e/ou que as pessoas utilizam para ouvir ou responder apropriadamente quando outros iniciam
uma ação ou uma compreensão. Aqui está novamente a minha ênfase no fato de que as pessoas
trabalham continuamente em si mesmas e em outras; e aqui está a ideia de que o que chamamos de
‘cultura’ equivale a um reservatório de recursos que as pessoas utilizam para trabalhar umas em outras.

E então listei algumas das maneiras pelas quais os antropólogos têm procurado encontrar e explicar a
variação: algumas das sublínguas de nossos subprojetos, por assim dizer. Eu não as coloquei em
nenhuma ordem em particular, e tenho certeza que outra pessoa faria uma lista diferente. As sublínguas
não são reduzíveis entre si, embora sejam reconhecíveis pelos falantes de vários dialetos antropológicos,
e são, até certo ponto, traduzíveis nas expressões idiomáticas de cada um. O estudo das pessoas e das
relações – o que se poderia pensar como o estudo clássico da organização social e do poder – não é o
mesmo que o estudo das techniques du corps, mas ainda assim eles não são alheios um ao outro: como
uma pessoa se move tem relação com a sua pessoidade e seu lugar na ordem das pessoas. As techniques
du corps não são a mesma coisa que as imagens características de um cenário, mas pode-se ver que o
modo como as pessoas se movem pode ser usado no conjunto de imagens. Novamente, os conceitos
característicos entre algumas pessoas não são os mesmos que as proposições de uma ontologia que nós
lhes atribuímos, mas ambos podem se iluminar mutuamente. E assim por diante. Os vários subprojetos,
as várias sublínguas e expressões idiomáticas diferem uns dos outros, mas coexistem com consciência
uns dos outros nas mentes dos seus praticantes. Às vezes essa consciência é amigável e mutuamente
solidária, às vezes é antagônica, opositiva e talvez, portanto, ainda mais mutuamente iluminadora.
Então aqui está a primeira parte da minha reescrita do ditado de Geertz:

O projeto de cultura envolve a descoberta e exibição de variações nos recursos retóricos culturais. . .

E aqui está a próxima parte:

… que as pessoas usam umas em relação às outras e sobre elas próprias para…

pessoas interagindo (Geertz: … um [sistema de símbolos] que age para…)

Então, onde Geertz tinha tido um sistema de símbolos, por assim dizer, funcionando, aqui eu sublinho
que são as pessoas que são os iniciadores e receptores, os agentes e pacientes, e não a sua cultura,
ainda que elas, as pessoas, possam definir a cultura. No slide original eu tinha aqui a famosa foto de
Richard Nixon tocando com o dedo o peito de Nikita Khruschev durante o episódio que ficou conhecido
por Debate da Cozinha na embaixada dos EUA em Moscou, em 1959. Eu tive que substituí-la em razão
dos direitos autorais. Era uma foto que enfatizava um uso assertivo de ferramentas culturais, pois Nixon
parecia claramente ser aquele monopolizava a fala, enquanto Khruschev, o ouvinte, parecia em
desvantagem, com as pálpebras baixas. Nesta foto do slide atual as coisas são mais horizontais: Megan, à
direita, está falando – ela monopoliza a fala; mas Erika, à esquerda, também está ativa, com o gesto
interrompido no meio, rindo em resposta às palavras de Megan, mas claramente pronta para tomar a
palavra. A peculiar janela ornamental dos anos 1960, ao fundo da foto, pode sugerir as ideias e emoções
que Megan está transmitindo para Erika por meio do uso de suas ferramentas culturais, palavras,
significados e gestos; ou pode, melhor ainda, sugerir o que elas conseguem juntas, uma realização
conjunta, mútua, moldada através de seu hábil uso do repertório cultural, uma em relação à outra.

Estamos falando dos “recursos culturais que as pessoas usam umas em relação às outras e em relação a
elas próprias para estabelecer uma cena…”. Eu escolhi esta foto porque ela captura um movimento em
que se podia ver como a criança de joelhos começou a aprender a respeito do cenário social que ela iria
habitar – nesse caso, o Sri Lanka. Sua mãe, a mulher no canto superior direito da foto, havia acabado de
colocá-lo nessa posição e lhe disse que era assim que ele
… estabelecer um cenário…

estabelece uma cena

deveria saudar o venerável monge budista. Não seria, penso eu, correto com a cena atribuir a ela
qualquer conteúdo proposicional, conceitual, ontológico aqui. Isso seria ir muito além do que está
acontecendo. O que a criança está aprendendo nela é uma questão corpórea, postural, uma fatia de
habitus, por assim dizer. Talvez fosse fenomenologicamente útil dizer que a criança está descobrindo um
novo tipo de pessoa em seu mundo, uma pessoa que é abordada dessa forma muito peculiar, em vez da
forma familiar como ele aborda a sua mãe ou, digamos, os seus irmãos ou outros adultos. Tais pessoas
com as cabeças raspadas e com vestimentas peculiares passarão a fazer parte de seu cenário, de seu
mundo, e a criança terá à sua disposição uma postura particular para com essas pessoas, assim como
essas pessoas para com ela, a criança. Pode ser que mais tarde ela mesma possa se tornar altamente
educada, talvez um monge, e então ela poderá ser capaz de falar de tal postura como uma expressão de
‘altivez e baixeza’, usmitikam, como um monge instruído e altamente inteligente uma vez descrito
aparece para mim. E se houvesse um antropólogo próximo que testemunhasse tal performance, esse
antropólogo poderia traduzir usmitikam não como ‘altivez e baixeza’, mas como ‘hierarquia’. E se esse
antropólogo à espreita fizesse parte de um subprojeto particular na antropologia, ele poderia continuar
a falar talvez de uma “ontologia” de hierarquia. Mas o menino pode não ir nessa direção. Ele pode, na
verdade, passar por toda a sua vida sem nunca se deparar com a palavra usmitikam. No entanto, ele
ainda será capaz de agir graciosa e apropriadamente quando encontrar um monge… como antropólogos
em outro subprojeto, aqueles preocupados, digamos, com a fenomenologia da corporeidade,
reconheceriam imediatamente.

… fazer um movimento…

faça um movimento

Esse slide captura o momento exato, em um funeral cingalês budista, em que o chefe de luto entrega
uma oferenda, um conjunto de vestes de monge, aos monges. Este movimento levará, mais tarde, ao
recital de um versículo de Pali no qual o mérito espiritual acumulado por um ato tão generoso é
entendido como capaz de transbordar sobre o morto, e sobre os outros presentes, assim como a água
derramada em um copo pode transbordar – e, na verdade, este derramamento poético é realizado ao
mesmo tempo que o literal, com o auxílio de um bule e de um copo. Esses atos, por sua vez, fazem parte
de uma série maior de movimentos que afastam o cadáver de sua antiga companhia, levando-o para o
túmulo ou para a pira funerária, e a pessoa é afastada da família e da sociedade e é levada para uma
nova condição. Tal cerimônia (James, 2004) é uma das muitas formas em que as pessoas são movidas
umas pelas outras de uma condição para outra. Trata-se da representação de um rico exemplo, que
reúne muitos recursos diferentes da cultura humana e atrai muitos subprojetos da antropologia para a
sua explicação, inclusive o da troca. E, de fato, a complexidade de uma performance como esse funeral
cingalês pode explicar por que existem tantos subprojetos no projeto de cultura, pois apenas um
exercício de muitos pontos de vista poderia fazer justiça a um tema tão complexo.

A formulação aqui adotada, de que as pessoas “usam recursos culturais para realizar uma performance”,
eu tomei emprestada de Jim Fernandez (1986). Ele usa a frase para dizer que as pessoas não apenas
entendem passivamente o que é dito ou expresso de uma forma ou de outra, mas que essa expressão
leva à ação, a formas distintas de performance peculiar em uma ou outra sociedade. Neste slide eu
expunha uma esplêndida estupa budista branca e brilhante do Sri Lanka, mas as questões de direitos
autorais intervieram novamente, então em vez disso eu trouxe para vocês a Catedral de Durham, uma
performance material, emergindo tão magnificamente sobre os feitos dos habitantes da cidade abaixo
dela. E eu escolhi uma catedral para ilustrar meu ponto aqui precisamente por causa de sua
materialidade tão evidente e majestosa. Como uma coisa material, pode parecer que ela nos convida a
pensar nos termos de uma existência brutalmente factual, e assim poderia nos levar de volta a alguma
versão moderna de

… e levar à performance.

e levar a performance

existencialidade, como diria Bruno Latour, onde poderíamos nos encontrar pensando na catedral como
se fosse uma espécie de agente, um actante, e como se a ontologia fosse a melhor maneira de abordá-la.
O edifício tem certamente uma presença fabulosa, aparentemente um poder de provocar assombro e
curiosidade, e pode ter sido, pelo menos para os peregrinos que nele chegaram durante a Idade Média,
um mysterium tremendum et fascinans, um ‘mistério aterrador e fascinante’, como Rudolf Otto poderia
ter dito. Mas ao sublinhar, em vez disso, que se trata de uma performance, consequência de inúmeras
mentes e mãos que trabalharam ao longo de nove séculos, quero também sublinhar que a catedral é
destinada, por aqueles que a fizeram, aos que a veem e usam. Assim, a esse respeito, a catedral, embora
trabalhando a um ritmo muito mais lento, partilha do mesmo caráter das palavras de Megan a Erika,
como a obediência da criança ao monge e como a dádiva das vestes do chefe de luto: ela inclui a
utilização de recursos culturais para fazer coisas acontecerem entre aqueles a quem é destinada.

Tentei captar esse ponto, e o ponto de toda a minha reescrita da máxima de Geertz, neste slide final:

A foto à direita é um detalhe da foto à esquerda. Ela mostra o pináculo da mão direita na extremidade
leste da catedral, a mais próxima do espectador. Como se pode ver, essa característica foi recentemente
renovada, e também é possível ver alguns andaimes nas proximidades, onde estão fazendo outras
restaurações. Portanto, a catedral está, a esse respeito, longe de ser uma coisa única e acabada, é antes
uma performance contínua, ou melhor, um conjunto de performances, que tem durado séculos, e
provavelmente será performado por séculos vindouros. Um subprojeto antropológico, uma etnografia
histórica da catedral, poderia muito bem basear-se na ontologia, e mesmo na ontologia do próprio São
Tomás de Aquino, para captar algumas características deste edifício, tal como foi entendido entre alguns
de seus vários

Praticantes do Projeto de Cultura encontram e exibem variações em coleções de recursos que as pessoas
utilizam consigo mesmas e com as outras para estabelecer um cenário, realizar um movimento e levar a
uma…

imagem da esquerda

imagem da direita

Performance!

projetistas. Mas muitos outros subprojetos antropológicos teriam de ser contratados para dar conta,
digamos, das relações de poder representadas à época, tanto como hoje, no edifício; para dar conta dos
recursos materiais e dos recursos oriundos do trabalho humano, reunidos para a sua construção e para a
sua manutenção; para transmitir uma compreensão das imagens e narrativas das muitas figuras nele
contidas; e para captar os meios pelos quais ele tem qualquer efeito que ainda funcione junto àqueles a
quem ele é destinado.

Portanto, aqui está a afirmação revista como um todo: O projeto de cultura envolve a descoberta e
exibição de variações nos recursos retóricos culturais que as pessoas utilizam consigo mesmas e com as
outras para estabelecer cenário, realizar um movimento e uma performance. A minha preferência por
um estilo, ou estilos, de subprojeto antropológico é escrita através desta afirmação. Suponho que isso
possa ser chamado de análise retórica, desde que a ‘retórica’ seja esticada o suficiente para abranger as
muitas maneiras pelas quais as pessoas se dirigem umas às outras e a si mesmas. Mas meu ponto geral
neste debate é que há muitos subprojetos em nossa disciplina, dos quais a “ontologia” é apenas um. É o
que eu diria:

A ontologia é apenas uma das muitas ferramentas usadas no projeto de cultura para exibir variação.

Ou, para aproximá-la da resolução original:

“Ontologia” é apenas uma outra palavra (entre muitas) para “cultura”.

Referências:

Carrithers, M. (1992) Why Humans Have Cultures: Explaining Anthropology and Social Diversity. Oxford:
Oxford University Press.

Fernandez, J. (1986) Persuasions and Performances: the Play of Tropes in Culture. Bloomington: Indiana
University Press.

Geertz, C. (1966) ‘Religion as a Cultural System’, pp. 1–46 in M. Banton (ed.) Anthropological Approaches
to the Study of Religion. London: Tavistock .

James, W. (2004) The Ceremonial Animal: A New Portrait of Anthropology. Oxford: Oxford University
Press.
Tufte, E. (2006) Beautiful Evidence. Cheshire, CT: Graphics Press LLC.

Karen Sykes: Contra a moção (1)

Fui convidada pela minha colega Soumhya Venkatesan para falar contra a moção e fico honrada em
acompanhar Michael Carrithers, que acaba de falar a favor. Suas palavras iluminam nosso debate e eu
reconheço que minha própria contribuição fica melhor por vir depois de suas palavras cuidadosamente
planejadas. Preparei minha resposta para esta moção na forma de uma série de perguntas que
delineiam uma objeção à afirmação de que ontologia é uma outra palavra para cultura, insistindo na
necessidade de separar as duas formas de experiência. No espírito da investigação antropológica e
mantendo o sentido do debate, escolhi apresentar essas perguntas ao leitor como elas foram escutadas,
ao mesmo tempo em que o convido a focar-se no exemplo de um objeto cultural famoso que criou uma
série de problemas para o estudo da cultura material e da ontologia.

Então, gostaria de começar trazendo uma questão etnográfica do meu trabalho de campo, como uma
antropóloga faria: a intratabilidade da escultura mortuária conhecida como malanggan. Malanggan é
uma escultura entalhada que parece ser uma efígie dos mortos, mas não é. Ela é mostrada num
banquete funeral oferecido pela prole da pessoa morta. Ela é revelada brevemente e depois queimada,
deixando somente uma bela memória. Sendo assim, ela desafia uma “interpretação” porque não é uma
representação do morto, nem representa nenhum outro aspecto da sociedade, como representações
coletivas da vida social representariam. Neoirlandeses[1] dizem que o sentido da malanggan foi
esquecido, mas mesmo assim ainda a esculpem. Alguns sugerem que os escultores especialistas sabem
os significados, mas eles insistem que estão apenas imitando o que viram nas mãos de escultores de
outrora e o que eles viram em seus sonhos. Lewis (1969) sugere que as esculturas evocam aspectos da
condição humana que são tão “mundanos” que nem precisam ser lembrados. São uma resposta para um
enigma, agora há muito esquecido.

Minha posição hoje ecoa a reformulação notória feita por Collingwood (1999) ao trabalho acadêmico
histórico disciplinado que mostra que o registro do passado é uma resposta para questões humanas. A
reformulação é: se a cultura é a resposta, qual era a pergunta?

Aqui está o problema de entender cultura como se fosse a mesma coisa que ontologia. A malanggan é a
resposta para sua própria pergunta, mostrando-nos de uma vez por todas que sua forma e suas relações,
nas quais foi feita, são irreduzíveis a palavras ou a formas diferentes. Malanggan não é uma
interpretação de uma experiência, mas como resultado de um processo cultural, ela coloca questões
ontológicas sobre si mesma. A pergunta “uma vida é um objeto de qual tipo?” é uma pergunta
ontológica, assim como é também a pergunta “uma malanggan é um objeto de qual tipo?”. Se há uma
moral na história dos neoirlandeses sobre seus próprios entalhes malanggan, é que não é muito bom
esquecer suas perguntas. É absolutamente necessário que antropólogos distingam entre a pergunta e a
resposta e não confundam uma com a outra.

Ontologia é uma investigação sobre como estar no mundo. Qualquer um pode fazer uma pergunta
ontológica. Escultores de malanggan, antropólogos e filósofos usam habilidades específicas diferentes
para responder a essas perguntas. Antropólogos estão interessados no processo de chegar a uma
resposta, portanto a cultura é objeto privilegiado de estudo em nossos livros. Para respeitar as
economias envolvidas no exercício da prática antropológica, é sempre necessário lembrar que a cultura é
um processo criativo pelo qual os membros de uma sociedade respondem a perguntas ontológicas
inventivamente; e também que cultura é diferente de antropologia. Dessa posição a respeito da
ontologia resultam três corolários.

– Primeiro, argumento que antropólogos, em suas tentativas de entender a cultura como um processo
criativo, nunca irão capturar qualquer coisa relevante (por exemplo, como as pessoas acham suas vidas
significativas), se não lidarem com o fato de que perguntas ontológicas são o assunto da antropologia e
as respostas a elas, seu objeto de estudo.

– Uma pergunta não é um “objeto” em sentido estrito; ela é aberta e oca e não se rende ao estudo nem
mesmo na tradição das ciências sociais interpretativas, que dirá nas ciências sociais positivas. Não
podemos “estudar” a maioria das perguntas das pessoas, mas podemos tomar o modo como eles
respondem a essas perguntam como nosso objeto de estudo, e assim conhecer melhor as suas respostas
e as nossas.

– Uma malanggan é um objeto apropriado para o estudo antropológico. É uma escultura que, no seu
processo de feitura, responde à pergunta ontológica “o que é uma vida?”, e então provoca o emprego
cuidadoso e rigoroso do nosso trabalho disciplinar.

É o terceiro desses corolários – que a cultura é uma resposta para a pergunta ontológica “o que é uma
vida?” – que vou analisar em três partes: (A) “como a natureza efêmera da condição humana muda o
estudo antropológico?”; (B) “como a intratabilidade do conhecimento sobre outra pessoa modula a
investigação antropológica?” e (C) “fazer antropologia é diferente de fazer cultura?”. Vamos agora para a
primeira parte.
(A) O exemplo da escultura funeral conhecida como malanggan é intrigante porque pede aos
antropólogos que considerem a efemeridade do seu assunto de estudo: a condição humana. Lembremos
que essa é uma peça elegante e elaboradamente esculpida, feita somente para a celebração funeral e
queimada imediatamente depois, deixando somente uma bela memória. Essas qualidades efêmeras têm
intrigado antropólogos e historiadores da arte há muito tempo. As peças que conhecemos em museus
foram “resgatadas” na virada do último século por antropólogos e coletores; elas foram escondidas em
vez de serem queimadas, e é só por isso que as conhecemos.

Uma vida é um objeto de qual tipo? Em parte, a resposta é que é um objeto efêmero. Ela contém a
forma material, física, e a memória imaterial ou a imagem daquela forma. Por exemplo: ao ver uma
malanggan, a pessoa aprende a ver a si mesmo ou a si mesma no olho da escultura. É um confronto com
sua mortalidade e com o conhecimento da nossa mortalidade em geral. A escultura é animada quando a
pessoa vê nela a imagem de seu próprio olho.

Como podemos conhecer um objeto que é tanto uma bela memória como uma evocação de uma
resposta sensorial? Em parte, a resposta é que podemos abordar o objeto através das relações sociais
que as pessoas criam em reação a sua beleza e especialmente em reação à memória de sua presença.
Por exemplo, o conto “Os Mortos” de James Joyce nos fala que a memória do amor perdido, recuperado
como memória nos olhos do “menino”, mostra para um noivo de meia idade em sua noite de casamento
que sua esposa viúva estará sempre indisponível para ele.

Por que a descrição das relações sociais que as pessoas criam em reação à memória da vida humana não
é suficiente? A sociedade continua após a perda de uma pessoa, mas ninguém deveria confundir a
regeneração das relações sociais com a presença do corpo daquela pessoa, assim como ninguém
confunde o filho de um homem com o homem em si.

Por que a resposta “funerais regeneram a sociedade na medida em que as pessoas se conformam com o
que perderam” não é suficiente para entender “o que eles perderam”? O exemplo da malanggan exige
que consideremos o que significa perder um corpo. Em parte, a resposta é que se um acadêmico
confessa a intratabilidade do corpo como objeto de estudo, ou do objeto incognoscível que é uma vida –
incognoscível em sua corporalidade, sua fisicalidade, sua sensorialidade, sua emocionalidade e seu
espírito – então ele fica afinado com a atitude ou a ética pelas quais deve abordar esse objeto. Langton
(2002), em seu estudo único sobre Kant, argumenta contra o entendimento transcendental e diz que
humanos só podem abordar o mundo incerto do objeto com humildade porque ele é incognoscível
enquanto ilusão ou enquanto imagem: Não se conhece uma vida transcendendo-a. Os neoirlandeses
dizem algo similar quando argumentam que uma alma não é uma vida. A consciência continua após a
morte, mas ninguém na Nova Irlanda confunde isso com a vida. O valor de uma vida não é encontrado
nem na transcendência de um corpo nem na saída do mundo físico.
(B) O caso da malanggan nos coloca a maior das questões antropológicas sobre a vida social: é possível
conhecer outra pessoa? A resposta é que a outra pessoa é incognoscível como objeto, mas é
compreendida em seu efeito no mundo. Esse efeito é a cultura, e a cultura é conhecida somente nas
relações sociais, porque não pode transcendê-las. Esse insight na natureza enigmática da vida social nos
coloca mais duas questões:

A cultura necessariamente enreda o pesquisador nela? No processo de entender a cultura como


resposta criativa à pergunta “o que é a vida vivida de uma outra pessoa?”, ou melhor ainda, “qual é o
valor de uma bela memória?”, o antropólogo inventa uma resposta cultural, interpretativa. Esse nó, esse
emaranhado de crença, ação social e reflexões sobre a experiência pode ser conhecido, pelo menos
temporariamente, como uma “configuração”, nome que Ruth Benedict daria.

A cultura transcende ou representa a vida social dos outros? Ela modela a vida social do jeito que o
molde de gesso de Rodin modela uma escultura de bronze, ou é melhor dizer que a escultura de bronze
modela o molde de gesso? Rodin, é claro, é famoso pela qualidade viva de suas esculturas, o bronze
imitando tão bem a carne que não é mais possível pensar nele como metal. O molde, assim como a
imagem, provoca a questão “o que é a vida social, um metal para ser moldado, um corpo para ser
sentido porque não é de plástico?”. O espaço do molde mostra a substância que deve enche-lo, mas a
substância é conhecida no ato da imaginação humana, quando esta encontra o mundo material.

(C) Pode-se conhecer os seres humanos pelo seu engajamento com o mundo material, que inclui seus
engajamentos com o mundo social. Por sua vez, os antropólogos podem perguntar que tipo de pergunta
é a cultura e que tipo de resposta é a antropologia, e inspecionar as diferentes economias envolvidas
nesses trabalhos que visam chegar a uma resposta.

A resposta dada pelos neoirlandeses a essas perguntas é equivalente à resposta dada pelos
antropólogos? Sim e não. Tanto a antropologia quando a escultura malanggan são processos criativos
preocupados com as respostas a uma pergunta ontológica: “uma vida é um objeto de qual tipo?”. Nesse
quesito, as duas são “cultura” e são equivalentes enquanto respostas à pergunta ontológica. Mas parar aí
significa supor que os neoirlandeses fazem antropologia, uma antropologia que é feita deliberadamente
num estudo comparativo com o objetivo de conhecer melhor como as pessoas vivem tipos bem
diferentes de vida. Só antropólogos fazem antropologia, e os neoirlandeses não são antropólogos
quando criam malanggans.

A antropologia pode estudar processos criativos através de insights comparativos em vez de arriscar se
tornar um culto da cultura, ou uma seita religiosa? Filósofos não têm acesso à cultura por meio de sua
própria expertise. Em contraste, o estudo comparativo ajuda os antropólogos a não confundirem a
antropologia enquanto processo criativo com a busca da alma de sua própria sociedade quando buscam
entender como os outros inventam uma resposta cultural à perda de um corpo.
Especialistas como os escultores de malanggan estão buscando uma resposta a sua própria pergunta
“uma vida é um objeto de qual tipo?”. Por contraste, antropólogos buscam entender as maneiras
diferentes pelas quais as pessoas respondem a essa pergunta, e ao valorizar as muitas respostas eles
“tornam o mundo seguro para a diferença”, assim como demonstram que eles têm uma resposta à
questão de como a cultura é um processo criativo.

Diferente de alguns colegas, eu não acho que a comparação permite renovação conceitual; isso é muito
estreito e presume que os conceitos são “nossos” para começo de conversa (um compromisso com um
tipo de conhecimento sistemático que não é típico da sociedade ocidental ou de quaisquer outras). Em
vez de renovação conceitual, eu acho que a comparação permite que os antropólogos coloquem novas
questões sobre a experiência compartilhada num mundo comum.

Em suma, separando cultura de ontologia, antropólogos tornam possível um projeto que honra insights
comparativos. Isso é antropologia, e não é o mesmo que esculpir ou entalhar esculturas malanggan. Ao
fazer um estudo comparativo, antropólogos podem mostrar coisas que escultores malanggan não podem
através de seus próprios processos inventivos. A análise comparativa nos permite perguntar “qual é o
valor de uma bela memória? O que é uma boa vida?”. A antropologia pode colocar novas questões que
são melhor pensadas quando consideradas comparativamente, e eu acredito que a academia se torna
melhor por isso.

Referências:

Collingwood, R.G. (1999) The Principles of History and Other Writings in the Philosophy of History, edited
by W.H. Dray and W.J. Van der Dussen. Oxford University Press.

Langton, R. (2002) Kantian Humility: Our Ignorance of Things in Themselves. Oxford: Oxford University
Press.

Lewis, P. (1969) ‘The Social Contexts of Art in Northern New Ireland Art’, Fieldiana: Anthropology 58(1),
Special Edition. Chicago: University of Chicago Field Museum.

Notas:

[1] Neoirlandês: natural ou habitante da Nova Irlanda, território da Papua-Nova Guiné (N. da R.).
*Uma versão não revisada havia sido publicada e disponibilizada em pdf por engano no dia 28/11/19. A
versão final está disponível desde o dia 30/11. Pedimos que desconsiderem a anterior.

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