Você está na página 1de 31

Suicídio na Roma Antiga

Autor(es): Oliveira, Francisco de


Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23985
persistente:
Accessed : 1-Dec-2019 06:19:20

A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis,
UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e
Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de


acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s)
documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença.

Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s)
título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do
respetivo autor ou editor da obra.

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito
de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste
documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por
este aviso.

impactum.uc.pt
digitalis.uc.pt
UNIVERSIDADE
MÁ1HESIS 3 1994 65-93

SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA·

FRANCISCO DE OllVEIRA

Ni l'Ancien Testament, ni le Nouveau, n'ontjamais défendu


à l'homme de sortir de la vie quand ii ne peut plus la supporter.
Aucune loi romaine n'a condamné le meurtre de soi-même.
Voltaire l

I SUICÍDIO NAS SOCIEDADES ClÁSSICAS

Considerar o tema do suicidio na Roma Antiga, e nalguns dos


representantes da cultura romana em particular, supõe traçar, e nalgum
dos representantes da Cultura Romana em particular, um quadro sobre os
conceitos de vida e de morte ao longo da história romana.
Por sua vez. quando se pretende dar ao tema um enquadramento cultural,
falar da civilização romana supõe considerar também as suas grandes fontes de
inspiração, onde a cultura grega assume um lugar de primeiro plano.

1.1 CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE o SUIctoIO

De facto, o pensamento grego foi um importante elemento formador


da mentalidade romana, sobretudo a partir dos séc. ID-I1 ac', com a
chegada da fIlosofia helenística a Roma.

* Com as necessárias correcções e acrescentos, o texto aqui apresentado é o de uma


comunicação que apresentei em Mérida, em Agosto de 1993, no Curso de Verão
sobre Eutanásia e Suicidio promovido pela Universidade Complutense de Madrid.
1 Apud J. Bouineau, Les toges du pouvoir (1789-1799) ou la révo1ution de droit
antique, Toulouse, 1986, p. 429, n ll 197.
66 FRANCISCO DE OI1VEIRA

Quanto à filosofia grega de época anterior, recorde-se que, ao fazerem uma


forte distinção entre a alma, imortal, e o COlpO, os Pitagóricos são levados a proibir
o suicídio. Ao homem não é permitido o suicídio sem permissão divina, o que,
todavia, supõe casos em que essa permissão em dada
Também Platão, especialmente nas Leis, caminha no sentido de
idêntica proibição. No Fédori, e sem prejuízo de Sócrates fazer uma
verdadeira apologia da aceitação da morte que sobrevém na sua hora,
entende-se que o homem não pode dispor arbitrariamente do que lhe foi
dado por um deus sem ter recebido ordem divina2• Esta restrição mais
uma vez reconduz à possibilidade de admitir o suicídio em casos como
decisão de justiça, infortúnio ou vergonha extremos.
Vão mais longe, os Académicos, ao contrndízerem a legitimidade do
suicídio, sejam quais forem os motivos.
Por seu lado, impelido por considemções de ordem social, Aristóteles
condena o suicídio praticado por motivos fúteis, como o furor ou a fuga a
dificuldades, que reputa de verdadeiro acto de cobardia.
Já os Cirenaicos e os Cínicos defendiam abertamente o suicídio e
reputavam de especialmente irrelevantes considemções de ordem sociaP.
Idêntica posição é tomada pela generalidade das ftlosofias helenisticas.
Assim, para o epicurismo, o além não existe, a alma é material, a morte
não tem significado. O suicídio é legitimado por dor e sofrimento, por
doença incurável ou por circunstâncias onde a vida já não fornece prazer
algum. O suicídio de Epicuro, tal como é relatado em Diógenes Laércio,
ilustra bem a posição do epicurismo sobre a matéria4•
Para o estoicismo, o homem não tem o direito de contrnriar a lei da
natureza e o destino. Em consequência, quando surge a ideia de suicídio,
ela só deve ser levada à prática se, de forma racional e pela via do
conhecimento, se reconhecer ter chegado o momento de morrer, pré-
estabelecido na ordem universal. Nesse caso, o suicídio é um acto de

2 Ver PI. Phd.61c e 62a, onde estará presente a proibição geral do suicídio (sobre a
interpretação dos passos, cf. M. T. S. de Azevedo, Platão: Fédon, Coimbra, Minerva,
1988, em esp. n. II); a teoria exposta transparece em Cic.Rep.6.l5: Non estita. Nisi
enim deus is euius hoe templum est omne quod eonspicis, istis te eorporis
eustodiis liberaueri~ hie tibi aditus patere non potest "Não é assim", tornou ele.
"Sem que aquele deus, do qual tudo isto constitui o templo, que avistas, te liberte
dessas cadeias corporais, não pode patentear-se-te a entrada aqui". A tradução é
de M. H. Rocha Pereira, Romana. Antologia da Cultura Latina, Coimbra 21986,
p.42.
3 Ver em especial as teses cínicas do grupo 25,43 e 91 (na seriação de A Oltramare,
Les origines de la diatribe romaine, Genéve, 1926).
4 D.-LlO.l5-16 (Epicuro suicida-se num banho de água quente, bebendo vinho
puro); e Epicuro, fr.l24: "para nós, a morte nada significa".
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 67

razão e liberdade que postula o desenvolvimento de uma arte de bem


morrer, que Séneca, Epicteto e Marco Aurélio se esforçam por desenvolvet.
Ora, como só o sábio conhece as leis da natureza, e como só ele actua
sempre pela razão, teoricamente só o sábio terá justificação para o
suicídio. Este é legítimo em casos de devoção à pátria ou a familiares e
amigos, ou quando a integridade moral e a imperturbabilidade do sábio,
são postas em causa por doença incurável6, dor, velhice 7, por devoção à
pátria ou por alguma circunstância externa que possa impedir a sua
autonomia Entre essas circunstâncias contam-se a pobreza8 ou a opressão
de um tirano. Em consequência, o suicídio pode transformar-se num grito
de revolta política É o caso de Catão Uticense, herói da liberdade e do
republicanismo 9•

5 Sen.Ep.70.6: Citius mori aut tardius ad rem non pertinet, bene mori aut male ad
rem pertinet bene autem mori est effugere male uiuendi periculum "Morrer mais
cedo, morrer mais tarde - é questão irrelevante; relevante é, sim, saber se se morre
com dignidade ou sem ela, pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo
de viver sem ela~; quanto ao suicídio como acto de liberdade, ver Ep.70.l6:
scaJpello aperitur ad illam magnam libertatem uia "um bisturi chega para abrir
caminho à suprema liberdade~ e 21: dum hoc constet, praeferendam esse
spurcissimam mortem seruituti mundissimae "é preferivel o suicídio mais imundo
à mais higiénica servidão~. A tradução, como as restantes da mesma obra, é de J. A
Segurado e Campos (1991).
6 Sen.Ep.70.l5: Ego exspectem uel morbi crudelitatem uel hominis, cum possim per
media exiIe tormenta et aduersa discutere?: "Porque hei-de eu esperar que sobre
mim se abata a crueldade das doenças ou dos homens se posso escapar-me por
entre os tormentos e assim iludir a adversidade?~.
7 Sen.Ep.58.32: itaque de isto feremus sententiam, an oporteat fastidire senectutis
extrema et finem non opperiri, sed manu facere. Prope est a timente, qui fatum
segnis exspectat "Pronunciemo-nos, enfim, sobre esta questão: devemos nós
minimizar a última fase da velhice e, em vez de aguardar o nosso fim, apressá-lo
com as próprias mãos? Esperar passivamente pela morte é atitude quase cobarde ...~.
8 Vide Sen.Ep.l7.9: Sed si necessitates ultimae inciderunt, iamdudum exiliet e uita
molestus sibi esse desinet "Se se vir reduzido às mais extremas carências, nesse
caso abandonará a vida e deixará de ser um fardo para si próprio~; e Ep.58.36: Hunc
tamen si sciero perpetuo mim esse patiendum, exibo, non propter ipsum, sed quia
impedimento mim futurus est ad omne, propter quod uiuitur. "Mas se souber que
tal doença nunca mais me deixará, então sairei eu desta vida, não devido à doença
em si, mas porque ela me será um entrave em relação a tudo por que merece a
pena vivermos~.
9 A van Hooff (1990) 13 observa que, na época de Vespasiano, Flávio José,
sobrevivente da chacina dos Judeus, recusa o suicídio: o homem não pode dispor
do que deus lhe deu; a inexistência de suicídio entre os animais mostra que o
mesmo não está inscrito na lei da natureza; o suicídio é um acto de deserção e
cobardia. Com o Neoplatonismo e, na sua esteira, com o Catolicismo, será
consagrada a identificação entre suicídio e homicídio e, em consequência, negado
ao suicídio o carácter de acto de razão. Sobre o suicídio entre os neoplatónicos,
68 FRANCISCO DE OLIVEIRA

A conclusão impõe dizer que, quanto ao suicídio, não está provado


"that classical civilization as a whole was accustomed to a drastic 'rejec-
tion' of suicides"lO.

1.2 O DESTINO DO CORPO DEPOIS DA MORTE

Nas sociedades clássicas, era também inexistente ou frouxa a distinção


entre morte natural e morte violenta, causada por acidente, assassinio ou
suicídio. Nestas circunstâncias, pode aftrmar-se que se está perante morte
"prematura", o que, independentemente de concepções fIlosóftcas
elaboradas, logo sugere perturbação da ordem natural das coisas. Na
descrição da morte de Dido transparece esta concepção 11:

Tum luno omnipotens longum miserata dolorem


difficilisque obitus Irim demisit Olympo
quae luctantem animam nexosque resolueret artus.
Nam quia nec fato merita nec morte peribat,
sed misera ante diem subitoque accensa furore,
nondum illi flauom Proserpina uertice crinem
abstulerat Stygioque caput damnauerat Orco.

Então Juno omnipotente, de tão longa dor compadecida,


e de tão dificil agonia, Íris despacha do Olimpo,
a libertar a alma atormentada em seus laços corpóreos.
Como não morria segundo o seu destino ou por morte merecida,
mas, infeliz, ante seu dia, de súbito furor tão perturbada,
Prosérpina ainda lhe não cortara uma loura madeixa,
da cabeça que seria ao Estigio e ao Orco consagrada.

Esta ideia, conjugada com a crença em que, nestes casos, a alma se


mantinha próxima do corpo, poderá ter originado, em relação aos suicidas,

ver Porfirio, Abstl.32, 38; 2.47. Quanto ao cristianismo, o martirio, por vezes aber-
tamente procurado, veio a levantar problemas doutrinais graves. Tertu1iano compara
os mártires cristãos a Múcio Cévola, Dido ou Lucrécia; mas já Lactâncio fazia
equivaler suicidio e homicídio; o suicídio será abertamente condenado por Santo
Agostinho, contrariamente à opinião dos donatistas.
10 A van Hooff (I 990) 161.
11 VergA4.693-699.
SUIcíDIO NA ROMA ANTIGA 69

virtuais perturbadores, o surgimento de tabus, como o que, em Atenas,


impunha a sepultura do corpo separadamente da mão, considerada o
instrumento da perturbação l2•
Na fase arcaica de Roma, conforme defenderei posteriormente, a
história da cruciftxão dos suicidas, ordenada por Tarquínio o Prisco, não
significa necessariamente a existência de qualquer sanção legal contra o
suicídio.
E, para o periodo republicano (509-31 aC.), nenhuma fonte literária
contradiz a ideia de que, ressalvando o enforcamento, ao suicida era dada
sepultura com todos os rituais do costume.
Só os enforcados terão sido vítimas de tabus ancestrais, que lhes
negavam sepultura\3. Mas, mesmo para estes, está atestado que, no ano de
172 ac', foi dada sepultura a Quinto Fúlvio Placo, e em 140 aC. a D. Júnio
Silano l4•
As medidas restritivas por parte de collegia do periodo imperial que
negavam sepultura a socii 'associados' suicidas, talvez fossem de natureza
económica 15.
Sob o ponto de vista juridico, a não identificação entre um suicida e
um assassino indica que, ao contrário do homicida, ao suicida não era
negada sepultura 16. De acordo com o Digesto, só se negará sepultura nos
casos de mala conscientia l7 •

12 Sobre os tabus em relação ao enforcamento, ver Ésquines, Oratio 3.244;


Plu.Them.22.2, e PLLg.873c-d.
\3 a ILS 7846.
14 Trata-se de Decimus Iunius Silanus (RE n Il 161), referido por Cic.Tusc.1.24.
15 CIL 14.2112: Item placuit quisquis ex quacumque causa mortem sibi adsciuerit
eius ratio funeris non habebitur. "Do mesmo modo se acordou que quem, por
qualquer razão, se desse a morte, por esse motivo não teria sepultura~. Esta
cláusula sugere-me comparação com as dos actuais seguros de vida e acidentes
pessoais, que negam indemnização em caso de morte por suicídio.
16 QuintInst,7.3.7 refere como tema de controvérsia ... an qui se interficit homicida
est "se quem comete suicídio é homicida~. Discussão emA van Hootf(I990) 160-
166.
17 Digesto, 3.2.11.3. AdInitir a legitimidade não significa necessariamente banalizar o
suicídio. Nesta medida, a cláusula do Digesto traduz, embora de forma radical, as
reservas ao suicídio sem razão justificativa, já expressas, por exempo, no Sonho de
Cipião (livro VI do tratado Da República de Cícero), ou em Séneca, Ep.24.25: Vrr
fortis ac sapiens non fugere debet e uim, sed exire; et ante omnia ille quoque
uitetur aifectus, qui muItos occupaui~ libido moriendi "Um homem corajoso e
sábio não deverá fugir da vida, mas sim sair dela; acima de tudo importa evitar uma
paixão que tem assaltado muita gente: a paixão pela morte~.
70 FRANCISCO DE OUVEIRA

1.3 O ESTADO E O SUICIDA

A este propósito, convém referir a posição do Estado perante o


suicídio.
Atenas parece ser a única grande cidade antiga onde haveria tendência
à limitação do direito ao suicídio: na época clássica e no sistema da pólis
(séc. VI-V aC.), a ideologia oficial de absoluta supremacia do colectivo
sobre o indivíduo certamente levaria à negação desse direito individual.
Em Roma, especialmente na época imperial, o Estado preocupa-se com o
suicídio de incriminados. Procurn salvaguanlar os seus próprios interesses financeiros
e a boa-fé negocial entre particulares, como no caso de venda de escravos com
tendências suicidas. Parn defender os interesses do Estado, impunha-se avaliar se o
suicídio era ou não confissão de culpa, de modo a fazer executar as consequências
legais inerentes à confinnação do dolo ou crime.
Àface da leL havia cinco motivos considerados legítimos - tédio da vida,
dor extrema, vergonha, loucura ou paixão,jactância (taedium uitae, impatientia
doloris, pudor, furor, iactatio) -, os quais, por consequência, dispensavam de
sanções penais. Não se conseguindo provar qualquer destes motivos, podia
supor-se mala conscientia, isto é, confissão de culpa
O problema da legitimação do suicídio não se esgota, porém, no
campo jurídico. No dominio da imagem pública ou do pensamento
filosófico, fora de qualquer contencioso judicial, outros motivos o poderiam
legitimar, os quais, por isso, não aparecem discriminados na lei. Assim, a
posição antiga, em especial a romana, perante o suicídio, era a de o julgar
de acordo com a autonomia do individuo e as suas motivações.
Aceitando a existência de motivos que o legitimavam, nem por isso
os Romanos deixavam de estabelecer critérios de julgamento na matéria:
a retórica defende a necessidade de saber escolher o momento oportuno,
tal como a filosofia impõe aos candidatos ao suicídio as barreiras do
conhecimento, da observância das leis da natureza e do destino, das
ordens da divindade. Por sua vez, e já que havia natural divergência
quanto à sua legitimação, é natural os suicidas em alguns casos procurarem
explicar o seu acto, como se vê na inscrição que transcrevo l8:

VERVM VEXA1VS ANIMI CVRIS


NON NVillS ETIAM CORPORIS DOLORIBVS
VTRVMQVE vr ESSET TAEDIOSVM VLTRA MODVM
OPfATAM MORlEM SVM PETlTVS

18 CIL9.1164, apudA Hoolf, p. 153-154 e p.274 n.46.


SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 71

Com o meu espirito atormentado por preocupações,


e também com não poucas dores fisicas,
e como em ambos os casos passavam do limite,
optei por uma morte desejada.

Repare-se como neste epitáfio de Marco Pompónio Bássulo, datável


de 120-126 de., essa preocupação é notória: os motivos são indicados em
duplicado e reforçados com a superlativação.
Por outro lado, e sem comentários negativos, várias descrições referem
a existência de povos onde o suicídio era voluntariamente assumido
como fim normal da velhice e resposta à decadência (ilha de Céos); como
forma alternativa à execução pública (Etiópia), ou onde era imposto a
quem atingia a velhice (entre os Hérulos).

1.4 O VALOR DA VIDA

A demonstração de que, em Roma, a,posição do Estado perante o


suicídio tem a ver com questões financeiras sugere dissertar com brevidade
sobre o conceito e o valor da vida.
O valor da vida humana em Roma depende da condição juridica do
indivíduo, e um dos factores de valorização é a sua função ou especialização.
Em regra, poderia dizer-se que, enquanto mercadç)lia, o indivíduo não-
livre é financeiramente mais valorizado, porque se trata de um investimento.
A sua morte, por suicidio ou não, constitui uma perda financeira real,
mensuráve1, sobretudo em aquisições recentes.
No caso de indivíduos livres, mas sob servidão militar, embora ao
suicídio consumado fossem aplicados os critérios civis, a tentativa de suicídio
era facilmente entendida como uma atitude de deserção do posto e cobardia,
e, por razões ideológicas, severamente condenada
De modo análogo, a desocupação do posto por captura, isto é, a
passagem à situação de prisioneiro de guerra, não podendo ser directamente
penalizada por ausência do corpo de delito, se não merecia uma real
censura, também não despertava interesse pelo resgate l9. Eram, isso sim,
exaltadas as tentativas individuais de evasão.

19 A van Hootf (1990) 56-57 recorda alguns casos de suicídio entre prisioneiros de
guerra.
72 FRANCISCO DE OliVEIRA

Além disso, a ideologia militar romana, que se baseava na vitória, na


glória e na disciplina militar2°, tinha dificuldade em aceitar a existência de
derrotados sobrevivos, pois perdurava a máxima primitiva de que em
guerra ou se mata ou se morre. Morrer pela pátria e morrer no seu posto,
enfrentando o inimigo sem jamais virar costas, recebendo todos os golpes
pela frente, era de tal modo considerado como prova de coragem que os
Romanos tinham dificuldade em justificar opções estratégicas que
implicassem retirada.
É que, até por razões de terminologia, a proximidade entre os
conceitos de retirada e de fuga tornava suspeita qualquer táctica que não
fosse a permanência fIrme no posto ou a ofensiva De facto, já Énio, um
dos primeiros escritores latinos, recorda a experiência amarga de Quinto
Fábio Máximo, o Contemporizador, o qual, após a severa derrota de
Canas na II Guerra Púnica, empreendeu uma guerra de guerrilha que
despertou os seus detractores21 •
Esta dificuldade de entendimento da deserção ou retirada ainda
encontra eco em Plínio o Antigo, que assim celebra um guerreiro exem-
plar, M. Mânlio Capitolino, cônsul em 392 aC.22:

Ante XVII annos bina ceperat spolia. Primus omnium eques


muralem acceperat coronam, sex ciuicas, XXXVII dona, XXIII
cicatrices aduerso corpore exceperat, P. Seruilium magistrum
equitum seruauerat, ipse uulneratus umerum, femur.

Antes dos dezassete anos já conquistara espólios opimos por


duas vezes. De entre todos os equites, fora o primeiro a alcançar
a coroa mural, seis coroas cívicas e trinta e sete recompensas
militares. Tinha recebido vinte e três cicatrizes na parte da frente
do corpo, e, apesar de ferido no ombro e no fémur, salvara P.
Servilio, chefe da cavalaria.

A transformação da sociedade romana numa sociedade onde as


virtudes militares e a guerra, expansionista ou simplesmente defensiva,
tinham um lugar de destaque, e atendendo à presença dos traços

20 Ver exemplo de suicídio revelador em Tac. Ann.l4.37.7.


21 Énio, Ann.l2.200-202.
22 PlinNat7.l 03.
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 73

ideológicos assinalados, indicia que a morte em combate, e a morte em


geral, eram facilmente aceites e encaradas, e que a vida do cidadão livre
podia ter um preço pouco elevad023.

1.5 VIDA E SUIcíDIO AO LONGO DA HISTÓRIA DE ROMA

As razões desta afirmação podem ainda ser confrnnadas por uma


breve panorâmica da história romana desde os seus primórdios.
A sociedade romana respeitou durante muito tempo algumas das
caracteristicas mais típicas da sua organização patriarcal originária, que,
no dizer de J. Guillén, "era, juridicamente hablando, el más riguroso y
severo que conoce la historia"24. Entre os poderes do pateIfamiliasfIgurava
o de exposição dos seus fllhos, em especial das fllhas 25 , e o direito de vida
e de morte sobre os dependentes, conforme é recordado a propósito do
primeiro rei de Roma: "O legislador dos Romanos concedeu ao paterfa-
milias todo o poder sobre o fllho, e por toda a vida, fosse encerrá-lo num
cárcere, açoutá-Io, ou forçá-lo, acorrentado, a trabalhos rústicos, ou até
decidir matá-Io"26.
A aplicação deste poder de vida e de morte sobre os fllhos impunha-
-se de modo especial para os que nasciam defeituosos, vítimas de verdade-
iros princípios de eugenia e eutanásia A este propósito lembra Cícero
como ... 27:

.... necatus tamquam ex XII tabulis insignis ad deformitatem


puer...

.... a criança portadora de uma deformidade notória era morta de


acordo com o preceituado na Lei das Doze Tábuas ...

23 Não estou a negar a existência de um alto apreço pelo resgate e salvação de vidas
de "cidadãos", ideologia expressa na atribuição da coroa militar OB CIVES
SERVATOS.
24 1. Guillén, Vrbs Roma, p. 119.25 Os casos de exposição de crianças em Roma têm
um exemplo insigne logo na história de Rómulo e de Remo. A evolução dos
costumes levou à repressão desse acto, castigado com a pena de morte no Código
de Teodósio.
26 Dion.2.26.27.
27 CicLeg3.l9; c[ Sen.de ira, 1.15.2 e Liv.2737.
74 FRANCISCO DE OllVElRA

Para· as épocas mais remotas da história romana, os relatos de


suicídio são dificeis de analisar. De facto, em geral as fontes são muito
posteriores e podem, portanto, reflectir concepções anacrónicas.
Caso que merece relevo, pelo elevado número de referências e por
estar ligado ao derrube da monarquia e à criação da República, é o
suicídio de Lucrécia, pelo ano de 509 aC.
Esposa de Tarquinio Colatino, Lucrécia sofreu chantagem e estupro por
parte.de Sexto, sobrinho do monarca reinante, Tarquinio o Sobem. E, depois de
contar ao marido e aos amigos o crime de que fora vítima, e que, numa perspectiva
primitiva, implicava uma mancha a expiar, suicidou-se com um punhal Com este
gesto e com o sangue derramado, Lucrécia selava o juramento que solicitara aos
seus entes queridos: vingança e denube do tirano.
No relato de Tito livío, Lucrécia é isenta de culpa, transfonna-se
mesmo em símbolo de pudor e liberdade, e o seus despojos são expostos no
forum. Com essa distinção, a Lucrécia foi reconhecido o direito fundamental
de dispor do seu próprio COlp028.
Entre as referências de maior antiguidade sobressaem ainda os
suicídios relacionados com derrotas ou feitos militares, e, entre estes, a
deuotio ou o sacrificio da vida pela pátria.
Das estatísticas apresentadas, parece igualmente poder concluir-se que a taxa
de suicidio, até ao séc. I ac., não é significativa29• Em contra-partida, para o período
entre o séc. I aC. e o séc. I dC., verifica-se uma banalização do suicídio, que assume
fonnas específicas de concretização, como o corte das veias30•

1.6 BANALIZAÇÃO DO SUIcíDIO EM ROMA

o incremento da taxa de suicídios durante o Principado tem sido


sociologicamente explicado pela anomia provocada pelo advento do regime
imperial nas classes mais elevadas, que viam no suicídio a única porta de saída31 •

28 livJ.57J -60.4. Pode depreender-se que os familiares procuraram demovê-Ia, sem


todavia tentarem impedi-Ia liminarmente.
29 Uma lista de casos históricos pode ser encontrada em Y. Grisé (1982) p. 34-53; e
emA van Hooff(1990) 198-232. Este regista 960 referências a suicídios, abarcando
9.639 indivíduos. Estão incluídos os suicídios colectivos, que deturpam o sentido
das estatisticas (cf. p. 11).
30 A apologia desterlJ}étodo é feita em SenEp.70J 6.
31 Escreve A van Hooff(1990) 15: "During the Late Republic and the Early Empire
committing suicide becomes something of a moral duty for the nobleman who
loses face or the favour of the emperor".
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 75

Em meu entender, esta explicação, sem dúvida válida, deve ser


complementada com outras, de natureza histórica e cultural: o aumento
do suicídio no séc. 1. aC. talvez fique a dever-se também à influência de
corrente ftlosóficas que advogavam ou banalizavam o fim voluntário da
vida
Essa banalização do suicídio é essencialmente testemunhada por
fontes literárias ligadas à elite social. Para as camadas sociais inferiores,
pouco conhecemos. "Le sole informazioni che si posono ottenere
relativamente alla gente umile, che· costituiva la maggioranza della
popolazione dell'Impero romano, sono quelle ricavabili dalle ricerche
archeologiche sui loro luoghi di sepoltura"32.
Um texto de Séneca dá-nos conta da controvérsia sobre o direito à
morte por parte das camadas mais baixas da população e quase defende a
"democratização" do suicídi033:

... non est quod iudices hoc fieri nisi a Catone non posse, qui
quam ferro non emiserat animam, manu extraxit uilissimae
sortis homines ingenti impetu in tutum euaserunt, cumque e
commodo mori non licuisset nec ad arbitrium suum instrumenta
mortis eligere, obuia quaeque rapuerunt et quae natura non
erant noxia, ui sua tela fecerunt

... não há motivo para pensar que um tal acto só está ao alcance
de um Catão, que para exalar a alma abriu com as mãos a ferida
que o punhal deixara estreita Tem havido homens da mais
baixa condição que num impeto de coragem alcançaram o
porto seguro da morte: impedídos pelas círcunstâncias de morrer
tranquilamente, sem possibilidade de elegerem livremente o
instrumento do suicídio, lançaram mão do que encontraram e,
pela sua coragem, transformaram em armas objectos por natureza
inofensivos.

32 R Jones (1989) 319; A van Hoolf(1990) 16 "ln one respect Greek and Roman
authors share the selective perception. They disregard suicide among common
people, the first of the social groups that deserve a c10ser look"; e, na pJ7, refere
que, na sua contagem, só detectou 87 casos de suicidio de individuos de baixa
condição, ou seja 10% do total, embora, pelo elevado número de suicidios
colectivos, sejam abarcados 2.491 dos 9.639 contados.
33 Sen.Bp.70.19. O passo continua até ao § 27. No § 14 refere a existência de filósofos
contrários ao suicidio.
76 FRANCISCO DE OUVEIRA

Por outro lado, as fontes epigráficas mais antigas, e os epitáfios em


especial, não indicam grande receio ou preocupação com a morte.
Revelam, antes, um especial desejo de fazer perdurar a memória através
do louvor dos vindouros, dos quais se esperava que recordassem o nome
do defunto ali sepultado.

1.7 CONCEPÇÕES DO ALÉM

Ora, quanto a esse desejo de imortalidade e sobrevivência no além,


embora sob forma obscura, sempre terá existido em Roma, a nível popular, a
crença em formas de subsistência depois da morte.
De modo genérico, com base nos testemunhos arqueológicos, pode
afrrmar-se que o além era visto como uma continuação do aquém, e que,
antes do século I ac', os Romanos não tiveram especial preocupação com a
sobrevivência da alma Todavia, como escreve 1. M C. Toynbee quanto aos
epitáfios, ".. ifthey do not definitely aífrrm a future life, do not definitely deny
H

it", e é de aceitar que "H. there persisted and prevailed the conviction that
some kind of conscious existence is in store for the soul afier the death and
that the dead and living can affect one another mutually"34.
Na opinião emitida por R Jones, essas crenças traduzem-se da
seguinte forma: "Si puo dire che iI paganesimo romano aveva una
concezione dell'aldiIà che si esprimeva nel dare alla tomba un corredo di
oggetti che servissero aI defunto"35.
Em consequência, dado o carácter vago e frouxo das crenças rastreadas
nas fontes literárias e epigráficas, é de admitir que os ritos fúnebres se
destinassem a garantir o descanso no além, mas no sentido de assegurar
também que, por falta desses ritos, as almas dos defuntos (Laruae ou
Lemures) não viessem atormentar os vivos36.
Nessa linha deve ser interpretado o facto de, em todo o império ro-
mano, ser respeitado o hábito específico de estabelecer clara separação entre
a cidade e a necrópole, remetendo os mortos para fora dos muros dos vivos 37.
Estas indicações pemitem, pois, asseverar que, para os Romanos, o problema

34 J. M C. Toynbee (1971) 34.


35 R Jones (1989) 324.
36 A ausência de sepultura e dos ritos fúnebres impedia a alma de atravessar o lago
infernal para encontrar a sua morada no além: veja-se a impressiva descrição em
VergA6325-336.
37 R Jones (1989) 320.
SUIcíDIO NA ROMA ANTIGA 77

da morte e da vida era encarado de forma positiva e fila, envolta mais em


considerações sociais e juridicas do que sociológicas e morais.
A avaliar pelos testemunhos literários e arqueológicos, só a partir do séc. I aC.
se generalizou a crença na sobrevivência individual, numa época em que,
simultaneamente, a divulgação do pensamento filosófico grego fomecia argumentos
para os detractores da existência do além, os cínicos, os epicuristas e, em grande
medida, os estóicos. Estas doutrinas tinham, porém, pouca influência sobre as
grandes massas da população, habituadas a conceber o além como transposição
do aquém (como nos Etruscos), e que agora começariam a procurara sobrevivência
em crenças místicas38, a acreditar na existêncÍà de lugares destinados às almas dos
defuntos, como o Tártaro, os Campos Elísios, o Oceano ou as Ilhas dos Bem
Aventurados, e a perfilhar a teoria da imortalidade astral.
A importância dessas concepções está registada no Canto VI da
Eneida, que contém uma descrição do além baseada numa síncrese de
ideias órnco-pitagóricas, platónicas e estóicas, a par com a reiteração de
um registo popular com concepções muito próprias. No além virgiliano
existe um limbo onde são retidas as almas dos que morreram
prematuramente. Os suicidas sem culpa (insontes) encontram-se nas suas
proximidades, e, a seu lado, as mulheres que se suicidaram por amor.
Entre elas está Dido, que no além recupera a sua dignidade quando
recusa falar a Eneias e se recolhe aos braços do marido. Esta redenção
poderá significar a sua passagem a lugares de felicidade, onde Virgilio
coloca outro tipo de suicidas: os Décios, mortos em deuotio, e Catão de
Útica E é de esperar que haja essa possibilidade, pois não se compreenderia
que os guerreiros gregos e troianos que recentemente haviam caído pela
pátria, ficassem interminavelmente retidos nos seus lugares de tristeza39•

2 MORTE E SUIcíDIO EM ROMA.


UMA FONTE PRlVILEGIADA: PLÍNIO O ANTIGO

2.1 MORTE E VIDA EM PLíNIO o ANTIGO

Como meio de encararmos a questão da morte e do suicídio em


Roma numa perspectiva que nem será a estritamente fllosófica de um

38 Na união com a Terra-Mãe (culto de tellus e terra maten, na adesão a doutrinas


que prometiam a sobrevivência, os cultos dos mistérios de Dioniso e de Mitra, no
judaismo e no cristianismo.
39 Pela doutrina pitagórica, seria necessário perfazer o número de anos necessários
para se alcançar a harmonia pré-estabelecida.
78 FRANCISCO DE OliVEIRA

Séneca, nem a essencialmente literária e ideológica de um Tácito, proponho


analisar um autor que, em meu entender, dá voz à ideologia de uma
grande camada de habitantes do império no século I de., sem deixar de
ser permeável ao pensamento ftlosófico, que lhe instila uma posição
muito clara de cepticismo perante a sobrevivência no além. Refiro-me a
Plínio o Antigo, a quem já procurei recorrer privilegiadamente na I parte.
A questão tem logo a ver com o próprio sentido da vida humana, tal
como se expõe no início do livro VII, onde, depois de ser comparado aos
outros animais, que desde o nascimento a natureza dotou com aptidões
inatas, se conclui que o homem lhes é inferior:

.... hominem nihil scire, níhil sine doctrina, non fari, non ingre di,
non uesci, breuiterque non aliud naturae sponte quam flere!
Itaque multi extitere qui non nasci optimum censerent aut
quam ocissime aboleri.

.... o homem nada sabe, nada sabe sem aprendizagem, nem falar,
nem caminhar, nem alimentar-se, em suma, por natureza mais
não sabe do que chorar. Por isso, muitos opinaram que mel-
hor seria não nascer, ou então desaparecer o mais depressa
possível.

Sobre o além e o sentido geral da vida, o Naturalista escreve em


Nat7.l88:

Post sepulturam uariae Manium ambages. Omnibus a supremo


die eadem quae ante primum; nec magis a morte sensus ullus
aut corpori aut animae quam ante natalem. Eadem enim uanitas
in futurum etiam se propagat et in mortis quoque tempora ipsa
sibi uitam mentitur, alias inmortalitatem animae, alias
transfigurationem, alias sensum inferis dando et Manes colendo
deumque faciendo qui iam etiam homo esse desierit. ceu uero
ullo modo spirandi ratio ceteris animalibus distet aut non
diuturniora in uita multa reperiantur, quibus nemo similem
diuinat inmortalitatem. Quod autem corpus animae per se?
Qaue materia? Vbi cogitatio illi? Quo modo uisus, auditus aut
qui tangit? Quis usus ex iis aut quo sine iis bonum? Quae deinde
sedes quantaue multitudo tot saeculis animarum uelut
umbrarum?
SUIcíDIO NA ROMA ANTIGA 79

São várias as dúvidas sobre os Manes após a sepultura. Para


todos, depois do último dia, existe o mesmo que antes do
primeiro. Nem depois da morte existe mais sensibilidade no
corpo ou na alma do que antes do nascimento. É a mesma
credulidade que se projecta para o futuro e até no espaço da
morte procura criar uma vida para si, ora pela imortalidade da
alma, ora pela metempsicose, ora dando sentimentos aos mortos
e venerando os Manes, e transformando em deus quem até já
deixou de ser homem. Como se houvera alguma diferença
quanto à natureza da vida em relação aos outros animais! Como
se muitos destes não tivessem uma vida mais duradoura sem
que alguém lhes atribua essa tal imortalidade! Todavia, qual é a
substância da alma em si mesma? Qual a sua matéria? Que sede
teria o seu pensamento? De que modo teria visão, audição ou
tacto? Que utilidade tiraria desses sentidos, ou qual a sua
utilidade sem eles? E, finalmente, qual a localização ou qual o
número de almas e sombras em tantos séculos?

Neste passo, o Naturalista recapitula as doutrinas filosóficas


que defendiam a imortalidade da alma, e em especial as doutrinas
da metempsicose e da apoteose, que pateticamente ataca com
argumentos dialécticos e com uma ironia e um estilo próprios da
diatribe. Combate do mesmo modo as concepções populares e a
identificação dos Manes com as almas individuais, pressuposto da
ideia de imortalidade pessoal40•
De resto, a exagerada preocupação com o destino do corpo não virá
a ser bem aceite por Plínio o Antigo, que condena o embalsamamento de
Popeia, mulher de Nero, o luxo funerário exorbitante41 , as extravagantes
pirâmÍdes construídas pelos Egípcios e Etruscos42, os monumentos
funerários que revelem uma excessiva preocupação com a sepultura
(sepulturae cura), a qual aparece inclusive como causa de infelicidade,
conforme proclama quando disserta sob a condição humana, com o seu
catálogo de males43 :

40 Segundo J. M C. Toynbee (I 971 ) 35, esta identificação está atestada nos escritores
do séc. I aC.
41 Plin.Nat12.82-83; cf. Cic.Leg.2.54-57.
42 PlinNat36.84-91.
43 PlinNat7.5.
80 FRANCISCO DE OUVEIRA

Vni animantium luctus est datus ... uni immensa uiuendi cupido,
uni sepulturae cura atque etiam post de se futuro .." At Hercule
homini plurima ex homine sunt mala.

o único de todos os seres vivos dotado com sentimento de luto


... o único com um imenso desejo de viver, o único a preocupar-
se com a sepultura e até com o que virá depois de si ... Por
Hércules, os próprios homens são os causadores da maioria dos
seus próprios males.

Na mesma linha, ridiculariza Demócrito enquanto vão defensor da


imortalidade e da conselVação dos corpos, rematando o seu sentimento
sobre a questão, em 7.190, do seguinte modo:

Quae, malum, ista dementia est iterari uitam morti? ... Perdit
profecto ista du1cedo credulitasque praecipuum naturae bonum,
mortem, ac duplicat obituri dolorem etiam post futuri
aestimatione. Etenim si du1ce uiuere est, cui potest esse uixisse?
At quanto facilius certiusque sibi quemque credere, specimen
securitatis antegenitali sumere experimento!

Que loucura querer renovar a vida com a morte! ...


Indubitavelmente esta condescendência e esta credulidade fazem
perder o principal bem da natureza, a morte, e redobra-se ainda
o sofrimento do defunto com a crença num futuro no além. Ora,
se é doce viver, a quem pode ser doce ter vivido? Quanto mais
fácil e certo não seria cada um acreditar em si mesmo, cada um
tirar uma imagem de segurança da sua experiência anterior ao
nascimento!

Em Nat28.9, depois de longamente criticar a utilização excessiva de


remédios tirados do corpo humano, Plínio exalta a morte oportuna, que
cada um pode decidir para si mesmo:

Vitam quidem non adeo expetendam censemus, ut quoquo


modo trahenda sit Quisquis es, talis aeque moriere, etiam quom
obscenus uixeris aut nefandus. Quapropter hoc primum quisque
in remediis animi sui habeat, ex omnibus bonis quae homini
SUIcíDIO NA ROMA ANTIGA 81

tribuit natura nullum melius esse tempestiua morte, idque in ea


optimum, quod illam sibi quisque praestare possit

Não penso que a vida mereça tanto apreço que deva ser
prolongada de qualquer modo. Quem quer que sejas, morrerás
da mesma maneira, quer tenhas vivido em devassidão ou no
crime. Por isso, cada um deve considerar entre os remédios da
sua alma este em primeiro lugar: de todos os bens que ao
homem a natureza forneceu, nenhum é melhor do que uma
morte oportuna, e o que nesta há de melhor é que cada um a
pode a si mesmo ministrar'4.

Neste passo, a fraseologia latina tempestiua morte, conjugada com a


expressão que a concretiza, mortem sibi praestare, designam a realidade
do suicídi045. Em Nat7.l67-168, ao dissertar sobre o que é a vida, Plínio
introduz, de forma velada, os motivos que justificavam o suicídio:

Incertum ac fragile nimium est hoc munus naturae, quicquid


datur nobis, malignum uero et breue etiam in tis quibus largissime
contigit, uniuersum utique aeui tempus intuentibus. Quid, quod
aestimatione nocturnae quietis dimidio quisque spatio uitae
suae uiuit, pars aequa morti similis exigitur aut poena est, nisi
contigit quies? Nec reputantur infantiae anni, qui sensu carent,
non senectae in poenam uiuacis, tot periculorum genera, tot
morb~ tot metus, tot curae, totiens inuocata morte, ut nullum
frequentius sit uotum. Natura uero nihil hominibus breuitate
uitae praestitit melius.

44 o elogio da morte repentina também ocorre em Nat7.l80: ln primis autem mi-


raculo sunt atque frequenti mortes repentinae - hoc est summa uitae felicitas-,
quas esse naturaJes docebimus. "Entre os maiores e mais frequentes milagres estão
as mortes repentinas - máxima felicidade na vida - que mostraremos terem causas
naturais". Os casos que enumera vão desde morrer de alegria ou vergonha, até
acidentes fortuitos, em actos da vida quotidiana ou em situações de duvidosa
moralidade.
45 Não existia em latim um termo como suicídio, sendo numerosas as formas de o
designar, conforme se pode verificar no estudo de Y. Grisé (1982) e de A van Hooff
(1990) 246-250. Uma certa preferência pelo verbo consciscere também é atestada
em Plinio.
82 FRANCISCO DE OIlVEIRA

É incerto e bem frágil este dom da natureza que nos é dado, um


dom maligno e mesmo breve, tendo em conta toda a extensão
da eternidade, inclusive para aqueles a quem foi concedido em
mais profusão. E que dizer do facto de, pelo cálculo do descanso
nocturno, cada um viver metade do espaço da sua vida, e passar
a outra metade numa situação semelhante à morte ou em
tormento, quando não consegue descansar? E não são tidos em
conta os anos de infància, desprovidos de razão, nem da velhice,
atreita a sofrimento, nem os perigos de toda a espécie, todas as
doenças, todas as aflições, todos os cuidados, e a morte tantas
vezes invocada que não há voto mais frequente. Em boa verdade,
a natureza aos homens nada deu de melhor do que a brevidade
da vida.

A clareza deste texto dispensa comentários longos. Nele são


sumariados os motivos justificativos do suicídio: a velhice, a dor, as
aflições e cuidados, os quais, em termos de classificação, se reconduzem a
desperata salus 'desespero', impatientia doloris 'dor extrema', taedium
uitae 'tédio da vida' e pOlVentura pudor 'vergonha'46. Subjaz ao texto uma
reformulação, de cariz cínico, do conceito de vida (uita), que dela exclui
os momentos de sono. De facto, já na tradição grega thanatos 'morte' é
irmão de hypnos 'sono', e a tese 25b da diatribe cínico-estóica aproxima
sono e morte47.
No elogio da terra, no livro II, Plinio celebra-a como mãe que nos
recebe à nascença, nos alimenta durante a vida e nos acolhe depois da
morte. Mas, nesse elogio, não é introduzida qualquer verdadeira sugestão
de real sobrevivência depois da morte48 :

... etiam monimenta ac titulos gerens nomenque prorogans


nostrum et memoriam extendens contra breuitatem aeui...

46 Para a tipologia dos motivos do suicídio, ver Y. Grisé O982) e A van Hoof O990)
cap. 3, que enumera as seguintes causae moriendi: desespero ou desperata saIUli,
necessidade ou imposição (necessitas); loucura ou paixão (furon; pesar e desgosto
(dolon; execração; vergonha e pudor; culpa (mala conscientia); tédio da vida; dor
insuportável (impatientia doloris); sacrificío e dedicação (deuotio e fides);jactância
47 Ver VergA4.244 e 522; PlinNat prae[ 18: profecto enim uita uigi1ia est Sobre a
relação entre sono e morte, cf F. Cumont (966) 359 sq.
48 Nat 2. 154.
SUIcíDIO NA ROMA ANTIGA 83

... <a terra> também suporta os nossos sepulcros e epitáfios, e faz


perdurar o nome ao estender a memória de nós, contra a
brevidade da vida..

Este trecho afirma, portanto, que, depois da morte, nada existe senão
o corpo devolvido à terra, e que, ao assegurar a perduração tisica dos
monumentos funerários aí postos pelo homem, é a terra que garante
alguma esperança de perduração da memória49• De facto, lugar específico
para sede das almas depois da morte, a que os Romanos chamavam inferi,
isto é, mundo subterrâneo, não existe. Se existisse, escreve Plínio com
uma ironia condizente com o estilo da diatribe so:

Si ulli essent inferi, iam profecto lios auaritiae atque luxuriae


cuniculi refodissent

Se existisse mundo subterrâneo, sem dúvida já as galerias


escavadas pela ganância e pelo luxo o teriam esventrado!

Na continuação do elogio da terra, aparece um texto memorável, que


resume toda a problemática do suicídio em Roma, na época do autor, e a
própria posição do Naturalista na questão, em especial quanto aos modos
de suicídioS!:

Quin et uenena nostri miseritam instituisse credi potest, ne in


taedio uitae fames, mors terrae meritis alienissima, lenta nos
consumeret tabe, ne lacerum corpus abrupta dispergerent, ne
laquei torqueret poena praepostera incluso spiritu, cui quaereretur

49 Afinnação contrária à de Cic. Rep. 6.14: .• uestra uero quae dicitur uita mors est "... e
aquilo que vós chamais vida é que é a morte".
50 Nat 2. 158.
51 Para os modos de suicídio, ver Y. Grisé (1982) 93-123: suicídio pelo ferro, por
abertura das veias, por enforcamento, por envenenamento, por afogamento, por
esmagamento, por inanição, por combustão viva; e A van Hooff (1990) cap. 2, que
apresenta os seguintes modi moIiendi abstenção de alimento; por armas; imolação
pelo fogo; envenenamento; outros meios; forca; precipitação (por exemplo, lançar-
-se de uma ponte ao rio).
84 FRANCISCO DE OUVEIRA

exitus, ne in profundo quaesita morte sepultura pabulo fieret, ne


ferri cruciatus scinderet corpUS. Ita est, miserita genuit id, cuius
facillimo haustu inlibato corpore et cum toto sanguine
exstingueremur, nullo labore, sitientibus similes, qualiter
defunctos non uolucres, non ferae attingerent terraeque seruaretur
qui sibi ipsi periisset

E é de crer que a terra criou os venenos compadecida de nós,


para que, por tédio da vida, nos não consumisse a fome em
lenta agonia, um género de morte absolutamente estranho aos
beneficias da terra; para que os precipícios não dispersassem o
nosso corpo dilacerado; para que, impedido o espírito vital de
sair, o imprevisto suplício do laço não atormentasse os que
tentassem pôr fim à vida; para que, em caso de morte procurada
no abismo do mar, o corpo não se transformasse em pasto de
feras; para que o tormento do ferro não desfizesse o corpo.
Assim é, de facto: foi por compaixão que ela gerou aquilo com
que, por meio de uma ingestão muito simples, nos extinguimos,
intacto o corpo e sem perda de sangue, sem qualquer esforço,
como se satisfizéssemos a sede; para que nem as aves, nem as
feras atingissem os que assim morressem, e à terra fosse reselVado
quem a si mesmo pusesse fim 52•

Neste texto, e em nome da providência da natureza, está presente um


claro elogio do suicídio em geral e do suicídio pelo veneno em especial.
Plínio descreve as suas vantagens sobre métodos tradicionais como a
recusa de alimento ou inedia, a precipitação num abismo, a forca, o
afogamento, o suicídio violento pelo ferro, o corte das veias. Este elogio é
ainda mais notável por ser feito contra a tradição romana, e contra Séneca
em especial, a quem não repugnavam nem a forca, nem a asfixia nem o

52 Nat2.156-157.Na sequência do passo transcrito, e contra os que atacavam a terra,


por gerar o mal, Plínio desculpabiliza-a reformulando o conceito de uenenum:
Verum fateamur. terra nobis malorum remedium geI1ui~ nos illud uitae facimus
uenenum: "Digamos abertamente: aquilo que a terra ofereceu como remédio para
os nossos males, nós transformámos num veneno para suprimir a vida". O elogio
da terra e a desculpabilização pela criação do veneno é reiterado em NatI8.l-5, e
passa pela culpabilização do uso que dele é feito pelo homem para matar.
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 85

punhaIS3. Também contrariamente a Séneca, no final do texto é recusado


o corte das veias, provavelmente com base num tabu contra a perda de
sangue. Esta selecção parece indiciar que Plínio dá preferência às formas
de suicídio menos elitistas.
Em defesa do método que propõe, Plínio tem o cuidado de argumentar
com as concepções tradicionais e populares que faziam depender a
felicidade no além da garantia de sepultura, com seus ritos próprios, os
quais eram impossíveis, por ausência do corpo, em caso de naufrágio e,
enquanto persistiram tabus ancestrais, também no de enforcamento. Para
essas mesmas concepções, a qualidade de vida no além era minorada no
caso de mutilaçã054•

2.2 CASOS DE SUIcíDIO EM PLíNIo o ANTIGO

o testemunho de Plínio, bastante virado para a sua época, atesta a


frequência com que a elite romana admitia o suicídio como forma de
resolver os seus problemas. Isso é particularmente notório na referência a
duas tentativas de suicídio por parte do imperador AUgust0 55 :

... Philippensi proelio morbi, fuga et triduo in palude aegroti et


(ut fatentur Agrippa ac Maecenas) aqua subter cutem fusa
turgidi latebra, naufragia Sicula et alia ibi quoque in spelunca
occultatio, iam in nauali fuga urgente hostium manu preces
Proculeio mortis admotae, cura Perusinae contentionis,
sollicitudo Martis Actiaci, Pannonicis bellis ruina et turri ...
incusatae liberorum mortes luctusque ... tot ancipites morbi
corporis ... destinatio expirandi et quadridui inedia maior pars
mortis in corpus recepta.

53 Sen..fu!.3.l5.4;já em Ep.l 2.1 0, parafraseando Epicuro, escreve: .• patent undique ad


liberta tem uiae multae, breues fàciles. Agamus deo gratias quod nemo in uita teneri
potest calcare ipsas necessitates licet "em todo o lado estão patentes as vias para a
liberdade: muitas, curtas e fáceis. Agradeçamos à divindade o facto de ninguém
poder ser obrigado a permanecer vivo: é-nos possível dar um pontapé na própria
necessidade".
54 a episódio de Deífobo em VergA 6.494 sq.
55 PlinNat7.l48-l49. Este exemplo não foi inventariado por A van Hooffnem porY.
Grisé.
86 FRANCISCO DE OUVEIRA

... a doença por ocasião da batalha de Filipos; a sua fuga e os


três dias escondido num pântano insalubre, com o corpo
tumefacto por uma anasarca, segundo escrevem Agripa e
Mecenas; o naufrágio na Sicilia e uma segunda ocultação, neste
caso numa gruta; e, aquando de uma fuga por mar, sob pressão
do inimigo, o pedido a Proculeio para que lhe desse a morte; a
preocupação com a guerra de Perúsia; a inquietação com a
batalha de Áccio; a queda de uma torre na guerra da Panónia; ...
tanta incertas maleitas tisicas; ... a resolução de morrer, com a
morte espalhada na maior parte do corpo ao fim de quatro dias
sem comer ...

o interesse deste passo não decorre somente de se referir ao primeiro


imperador romano, mas também de serem apresentados diversos modos
(suicídio indirecto e por inedia) e motivos de suicídio (doença, pudor
ligado aos revezes militares, preocupações graves).
Plínio apresenta outros relatos de suicídio ou tentativa de suicídio,
como no catálogo de casos de morte infeliz56:

L. Domitius clarissimae gentis apud Massiliam uictus, Corfmii


captus ab eodem Caesare, ueneno poto propter taedium uitae,
postquam biberat, omni opere ut uiueret adnisus est Inuenitur
in actis, Felice russei auriga elato, in rogum eius unum e
fauentibus iecisse se, friuolum dictu, nec hoc gloriae artiftcis
daretur, aduersis studüs copia odorum corruptum criminan-
tibus.

L. Domício, duma ilustre familia, vencido em Marselha e


capturado em Corftnium pelo mesmo Júlio César, tendo bebido
veneno, por tédio da vida, depois de o beber desenvolveu todos
os esforços para sobreviver.

56 PlinNat7.l86. Os exemplos aqui apresentados não constam da lista de Grisé. A


van Hoolf classifica o caso de DoITÚcio como suicídio por pudor, quando Plinio
refere taedium uitae; quanto ao adepto do auriga, inscreve-o na lista de precipitação,
quando se tratou de combustão. O mesmo autor conta Nat14.89 como suicídio
por inedia : na ITÚnha opinião, esse caso deve ser tirado da lista, pois se tratou
simplesmente de castigo aplicado a uma mulher (suis inedia mori coactam) que
desrespeitou a nonna que interditava às mulheres beberem vinho.
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 87

Os arquivos relatam que, nos funerais de Félix, auriga dos


vermelhos, um adepto se lançou sobre a sua pira, e que -
obselVação frívola! - para este acto não reverter em glóría do
cocheiro, os adeptos adversários o acusaram de estar entontecido
pela abundância de perfumes.

Em nenhum destes dois casos se trata de condenar a decisão de


morrer. Pelo contrário: a infelicidade de L Domício, que de facto sobreviveu
à tentativa de suicídio para vir a ser mais tarde morto no seguimento de
derrota militar, consistiu em se ter gorado a tentativa de suicídio.
Quanto ao adepto do cocheiro Félix, a sua infelicidade decorreu de o
seu suicídio, uma imolação pelo fogo que constitui um caso raro nos
levantamentos existentes, não ter sido reconhecido como tal, mas como
puro acidente motivado por !ides ou por amicitia.
Dois outros exemplos ocorrem em Nat7.122, dos quais o primeiro é
de grande interesse cultural:

Gracchorum pater anguibus prehensis in domo, cum


responderetur ipsum uicturum alterius sexus interempto: "Immo
uero, inquit, meum necat, Comelia enim iuuenis est et parere
adhuc potest". Hoc erat uxori parcere et rei publicae consulere;
idque mox consecutum est ... P. Catienus Philotimus patronum
adeo dilexit, ut heres omnibus bonis institutus in rogum eius se
iaceret

Tendo sido apresadas duas serpentes em sua casa, o pai dos


Gracos, quando lhe responderam que ele sobreviveria se se
matasse a fêmea, respondeu: "Pelo contrário, matai o macho,
pois Cornélia é jovem e ainda pode dar ftlhos". Eis como se
poupa uma esposa e se olha pelos interesses do Estado ... P.
Catieno Filótimo tinha tal afeição ao seu patrono que, apesar
de declarado herdeiro de todos os seus bens, se lançou na sua
pira.

Trata-se, no caso de Tibério Semprónio Graco, de um "suicídio"


motivado pela pietas ou amor conjugal, por um lado, e, por outro, como
que de uma deuotio ou sacrificio em favor da pátria, já que, na ideologia
tadicional romana, gerar ftlhos era garantir a continuidade do Estado.
88 FRANCISCO DE OLIVEIRA

Interessante é, ainda, o aparecimento da serpente, como sinal de morte,


tal como acontece na iconografia funerária s7•
No caso de Filótimo, estamos perante um suicído motivado pela
pie tas ou afecto de um liberto para com o seu antigo senhor, e, mais uma
vez, perante um suicídio raro, a imolação pelo fogo s8•
Em Nat9.118, o Naturalista aproveita o suicídio do corrupto M.
Lôlio, caído em desgraça, suicídio classificável entre os casos de desperata
salus, para ironizar com o luxo de Lôlia Paulina:

Ric est rapinarum exitus, hoc fuit quare M. Lollius infamatus


regum muneribus in toto oriente interdicta amicitia a Gaio
Caesare Augusti filio uenenum biberet, ut neptis eius
quadringentiens RS operta spectaretur ad lucemas!

Este é o resultado das rapinas, esta a razão pela qual M. Lôlio,


desonrado com os presentes recebidos dos reis por todo o
oriente, e excluído da amizade de Gaio César, fIlho de Augusto,
ingeriu veneno: foi para que a sua neta se exibisse, à luz das
lucemas, coberta com quarenta milhões de sestércios.

Outro exemplo é dado em Natl9.l1 0, e refere-se a um caso de morte por


veneno, sendo o motivo uma provável questão de honra, senão de necessitas.

Fama est Melam equestris ordinis, reum ex procuratione a


Tiberio accersitum, in summa desperatione suco porri ad trium
denariorum argenteorum pondus hauso confestim expirasse
sine cruciatu.

Consta que o cavaleiro Mela, pelo imperador Tibério citado


como réu no termo de uma procuratela, no auge do desespero,
depois de ingerir o equivalente a três denários de prata de sumo
de alho-porro, teve morte imediata, sem sofrimento.

57 a F. Cumont (1966) 395-396; 1. M. C. Toynbee (1971) 12.


58 Estes casos não são atestados por van HoofI Estatisticamente, o de Filótimo,
juntamente com a reanálise do do adepto do cocheiro, seriam extremamente
importantes, por haver poucos casos registados para morte pelo fogo. Estou em
crer que, apesar da ausência de noticias, seria uma ocorrência frequente.

/
sUIctoIO NA ROMA ANTIGA 89

o envenenamento com ópio referido em Nat 20.199, tem para nós


especial interesse, por se ter passado na Hispânia e o motivo, taedium
uitae, ser especificado como decorrente de doença:

Sic scimus interemptum P. Licini Caecinae praetorii uiri patrem


in Hispania Bauili, cum ualetudo impetibilis odium uitae fecisset,
item plerosque alios.

Sabemos que foi assim que morreu o pai do ex-pretor Licínio


Cécina, em Bavilum, na Hispânia, ele e muitos outros, quando
uma doença insuportável lhe provocou ódio à vida.

Neste passo, facilmente se intui que os exemplos de suicídio de per-


sonalidades - aqueles exemplos que os historiadores relatam - são apenas
um caso entre muitos outros casos anónimos, e que qualquer estatística
com base nas fontes existentes terá sempre um valor muito relativo.
Em Nat36.183, Plinio refere ainda uma personalidade ilustre, do
entourage do imperador Augusto, a qual escolheu uma morte diferente, a
ingestão de gêsso. Este relato dá-nos a conhecer que tipo de dores
podiam levar ao suicídio:

Exemplum inlustre, C. Proculeium, Augusti Caesaris familiaritate


subnixum, in stomachi dolore gypso poto consciuisse sibi mortem.

Um exemplo ilustre, o de Proculeio, que gozava da familiaridade


de Augusto e que, por dores de estômago, se suicidou por
ingestão de gêss0 59•

Plinio recorda também o caso de uma personagem, também ela


célebre, Petrónio 60, que teria sido levado a um suicído por necessitas. A

59 Plin. Nat 25.23: Bt de hoc tamen iudicauere aeui experimenta asperrimi crociatus
esse calculorum a stillicidio uesicae, proximum stomachi, tertium eorom quae in
capite dolean~ non ob alios fere morte conscita: "E acerca deste assunto, a
experiência do tempo determinou que os mais dolorosos sofrimentos são dos
cálculos da estrangúria, a seguir do estômago, em terceitro lugar das dores de
cabeça, e que quase por nenhuns outros sofrimentos se procurou a morte".
60 Nat37.20, passo não referido como atestação nem por Grisé nem por van Hootf. A
minha interpretação contradiz a que ressalta da tradução E. de Saint-Denis, da

/
90 FRANCISCO DE OUVEIRA

sequência do passo indica que os seus bens foram leiloados, e que Nero
adquiriu por um mihão de sestércios o vaso a que o passo se refere:

T. Petronius consularis moriturus inuidia Neronis, ut mensa eius


exheredaret, trullam myrrhinam HS CCC emptam fregit

T. Petrónio, um ex-cônsul que haveria de morrer vítima do ódio


de Nero, para deserdar a mesa deste, partiu um vaso mírrino
comprado por 300.000 sestércios.

Para terminar esta sequência, inscrevo um passo que não se refere a


nenhum indivíduo especifico, mas à existência de suicídios anónimos,
talvez por furor, loucura ou alucinação. Trata-se de Nat24.l63:

Ophiusam in elephantine ieusdem Aethiopiae, liuidam


difficilemque aspectu, qua pota terrorem minasque serpentium
obseruari ita ut mortem sibi eo metu consciscant Ob id cogi
sacrílegos illam bibere.

A ophiusa, de Elefantina, também na Etiópia, é de cor lívida e


de aspecto repelente. Com a sua ingestão, têm-se visões de serpen-
tes tão aterrorizadoras e ameaçadoras que, com o medo, se é leva-
do ao suicídio. Por isso os sacrílegos são condenados a bebê-la.

Em Plínio, a defesa do suicídio como direito especifico do homem é


de tal ordem que se torna verdadeiro apanágio da condição humana,
justificado em casos como o excessivo sofriment061 :

Inperfectae uero in homine naturae praecipua solacia, ne deum


quidem posse omnia - namque nec sibi potest mortem
consciscere, si uelit, quod homini dedit optimum in tantis uitae
poenis...

~
colecção Budé, e baseia-se na classificação do sintagma inuidia Neronis como
genitivo subjectivo.
61 Nat2.27.
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 91

De facto, no homem existe uma insigne consolação para a sua


imperfeita natureza: é que nem deus tudo pode realizar. Ainda
que o quisesse, não poderia, por exemplo, dar-se a morte a si
mesmo, a melhor coisa que ao homem foi concedida no meio
dos inúmeros tormentos da vida...

Quanto à repressão do suicídio, o Naturalista relata um caso célebre


e que tem tanto mais importância quanto se refere ao periodo monárquico
e à construção da Cloaca Máxima62:

... non omittendo memorabili exemplo uel magis, quoniam


celeberrimis rerum conditoribus omissum est Cum id opus
Tarquinius Priscus plebis maníbus faceret essetque labor incertum
maior an longior, passim conscita nece Quiritibus taedium
fugientibus, nouum, inexcogitatum ante posteaque remedium
inuenit ille rex, ut omnium ita defunctorum COlpora flgeret cruci
spectanda ciuibus simul et feris uolucribusque laceranda. Quam
ob rem pudor Romani nominis proprius, qui saepe res perditas
seruauit in proelüs, tunc quoque subuenit, sed illo tempore ui
post uitam erubescens, cum puderet uiuos, tamquam puditurum
esset extinctos.

... não deve ser omitido um memorável exemplo, tanto mais que
foi omitido pelo mais célebres escritores. Como Tarquínio Prisco
recorresse às mãos da plebe para a construir, e não se soubesse
se era mais gigantesca a obra ou infmdável, e como, amiúde, os
Quirites procuravam na morte um refúgio para o tédio, o rei
inventou um novo remédio, nunca imaginado antes nem depois:
mandou crucillcar todos os corpos daqueles que assim tinham
perecido, para serem pelos concidadãos contemplados enquanto
eram lacerados pelas feras e pelas aves de rapina Também
então, o pudor do próprio nome de Romano, que muitas vezes
em combate resgatou situações desesperadas, sobreveio, nessa
altura com a vergonha da violência que sofreria depois de
morto, como se para os mortos houvesse ~ a vergonha.

62 PlinNat36.l 06-108.
92 FRANCISCO DE OLIVEIRA

Contém este controverso trecho um conjunto de infonnações das quais


podemos concluir que, já em épocas recuadas da história de Roma, o
suicídio era tido pelas camadas não necessariamente superiores da população
como uma conduta de evasão nonnal, e que não era nem haveria de ser
costume estabelecer qualquer tipo de sanção por se dispor da vida
A atitude de Tarquínio o Prisco não significava a existência de
qualquer sanção oficial contra o suicídio em si. Era uma decisão pessoal
e arbitrária de um tirano prepotente, que pretendia, com a exposição na
cruz do corpo dos suicidas, desmobilizar um protesto cívic063 •
O efeito dissuasor não foi conseguido por qualquer crença em
efeitos reais da crucifJXão após a morte, mas pela consciência e antecipação
da desonra que o candidato a suicida sabia incorrer.

3 CONCLUSÃO

Concluindo, diremos que, em Roma, o suicídio constituía um direito


de foro íntimo, uma afinnação de autonomia e razão, e, enquanto tal,
devia ser conscientemente assumido 64• Quando havia bons motivos, o
suicídio era não só tolerado como até respeitado.
Em consequência, o pensamento prático romano, mais do que
elaborar uma tipologia do suicídio, procurou tratar racionalmente os
modos de o praticar, como vimos em Plínio o Antigo, e compreender os
motivos que o poderiam legitimar.

63 Relato em PlinNat 106-1 08. A intenção de exemplaridade do castigo é assinalada


pelo próprio Plínio através da utilização do termo exemplum. Este passo merece
ser cotejado com uma anedota referente a leões que, na velhice, incapazes de
perseguirem feras, atacavam seres humanos (8.47, que tem como fonte Políbio):
tunc obsidere Africae urbes, eaque de causa crucmxos uidisse se cum Scipione,
quia ceteri metu poenae simiJis absterrerentur eadem nox ... "então atacavam as
cidades da África, e, por essa razão, ele e Cipião os tinham vistos crucificados, para
que os outros, receosos de pena similar, se abstivessem de semelhante falta". A
discussão sobre este assunto em Y. Grisé (1982) 127-141, longa e informada,
enfatiza o valor vingativo e mágico do enforcamento, mas é, a meu ver, pouco
positiva. Assim, na p. 132, chama a seu favor o exe~o de Lucrécia, que teria
sofrido estupro sob ameaça de ficar sem sepultura, quan no mínimo é legitimo
dizer que a cessação da resistência lhe viria a permitir a ar a sua inocência e
promover a vingança.
64 Ver Sen.Ep.58.34: quanto deinde crudelius iudicas aJiquid ex uita perdidisse quam
ius tiniendae? "como não julgar então que mais duro do que perder uns dias de
vida é perder o direito a pôr-lhe termo?".
SUICÍDIO NA ROMA ANTIGA 93

Nem o Estado nem a sociedade romana penalizavam o suicídio in


limine ou o incitamento à sua prática (veja-se Séneca e o suicídio por
iactado), antes o enfrentavam de forma dinâmica e positiva, alargando os
motivos de legitimação a razões como taedium uitae e furor, menos
apreciadas ou até recusadas pelos fllósofos.
Finalmente, pudemos constatar que Plinio o Antigo é um bom
repositório de toda a problemática do suicídio em Roma.
De facto, o estudo dos casos por ele apresentados permitiu corrigir
algumas das afrrmações e interpretações produzidas por outros estudiosos,
bem como suspeitar de que as estatísticas até aqui apresentadas (ver
notícias de imolações pelo fogo) não podem ser consideradas senão a
título indicativo.

BmUOGRAFlA

J. CROOK, Law and Life ofRome, Comell Univ. Press, 1967.


F. CUMONT, Recherches sur le symbolisme funéraire des Romains, Paris, 1942, reimpr.
1966.
Y. GRISÉ, Le suicide dans la Rome antique, Paris, Les Belles Lettres, 1982.
J. GUILLÉN, Vrbs Roma Vida y costumbres de los romanos. L La vida privada, Salamanca,
Ed. Sígueme, 1977.
A J. L van HOOFF, From autothanasia to suicide. Self-Killing in Classica1 Antiquity,
London, Routledge, 1990.
R JONES, "Le usanze funerarie a Roma e nelle province", in: li mondo de Roma imperiaJe.
m Economia, saciem e religione, a cura de J. Wacher, Roma, Laterza, 1989, p. 319-
347.
J. A SEGURADO e CAMPOS, Lúcio Aneu Séneca: Cartas a Lucílio, Usboa, FCG, 1991.
J. M. C. TOYNBEE, Death and BuriaJ in the Roman World, London, Thames and Hudson,
1971.

Você também pode gostar