Você está na página 1de 10

Paradigmas, Mudanças e Alterações Climáticas

1. Mudança de paradigma e revolução científica

Thomas Kuhn, na sua obra The Structure of Scientific Revolutions, desenvolveu


uma interpretação original sobre o desenvolvimento da ciência ao longo dos tempos,
baseada numa análise centrada em torno da evolução dos conceitos da física teórica,
que era a sua área de formação e actividade académica.
Pese embora toda a polémica que a obra de Kuhn levantou e as fortes críticas que
suscitou (e não foram poucas…), as suas ideias relativamente à “mudança de
paradigma” (paradigm shift) vieram proporcionar uma perspectiva nova que
permite perceber melhor como a comunidade científica e o conhecimento interagem
e se desenvolvem.
Kuhn olhava para a história da ciência como uma grande narrativa onde a
descoberta de paradigmas era inevitável e necessária, sendo dessa forma que os
cientistas progrediam, inexoravelmente, em direcção à verdade e ao conhecimento.
A ciência não estava livre de distorções, ao contrário, era suportada por uma
sucessão de paradigmas que poderiam mudar no futuro.
Mais tarde, no entanto, alterou um pouco a sua posição, assumindo que o
desenvolvimento científico mais actual não seguia uma tradição narrativa tão
romântica mas, em vez disso, avançava em saltos não lineares, com alguns
retrocessos de permeio, moldado pelas dinâmicas sociais e políticas de grupos de
cientistas e patrocinadores e não tanto apenas pelo desenvolvimento racional e
lógico reflexão e experimentação. A ciência não seria, assim, como que uma
acumulação de resultados das pesquisas realizadas ao longo dos tempos, mas
compreendia alterações bruscas que abrangiam um todo.
O conceito fundamental apresentado por Kuhn é, com efeito, o conceito de mudança
de paradigma. Para Kuhn, paradigmas são “(…) universally recognized scientific
achievements that for a time provide model problems and solutions to a community
of practitioners” 1 , ou seja, são uma construção utilizada para descrever os modelos
1
Kuhn, Thomas S. (1970) The Structure of Scientific Revolutions, 2nd. ed., Chicago: Univ. of Chicago Press,
pg. viii.
1
conceptuais compartilhados pelos cientistas mainstream num dado momento, visões
do mundo aceites por toda a comunidade científica. No postscript incluído na
reedição de 1970, Kuhn, que tinha sido muito atacado pela abundante diversidade de
significados com que utilizava o termo “paradigma” na obra em causa, admitiu que
o mesmo é aí utilizado com dois sentidos diferentes:
“On the one hand, it stands for the entire constellation of beliefs,
values, techniques, and so on shared by the members of a given
community. On the other, it denotes one sort of element in that
constellation, the concrete puzzle-solutions which, employed as
models or examples, can replace explicit rules as a basis for the
solution of the remaining puzzles of normal science” 2 .
Esse(s) conceito(s) de paradigma articula(m)-se, no pensamento de Kuhn, com
outros dois, o conceito de “ciência normal” (normal science) e
“incomensurabilidade” (incommensurability).
Kuhn caracteriza a evolução da ciência como decorrendo em ciclos sucessivos que
compreendem três fases distintas ― pré-paradigma, ciência normal e ciência
revolucionária:
Na fase de pré-paradigma, os cientistas, a partir das observações que efectuam
dentro do seu domínio de estudo, colocam hipóteses acerca da natureza das relações
de causa e efeito, a partir das quais constroem proto-teorias. Quando uma teoria em
particular oferece uma explicação ampla do domínio de estudo em causa, com a qual
a maioria concorda de modo a que essa teoria se sobrepõe a todas as outras, passa a
integrar a ciência normal, sendo tomada como novo paradigma.
O paradigma é, assim, como que uma meta-teoria, abrangendo a mais ampla visão
daquele domínio científico, que reúne o consenso sobre a maneira como descreve o
modo como o mundo funciona.
O paradigma evidencia e sistematiza os conceitos, os processos, o estado da arte e
as leis que relacionam causas e efeitos, e fornece perspectivas relativamente a áreas
para pesquisas futuras. Ou seja, o paradigma constitui o corpo do conhecimento
comummente aceite e que qualquer cientista deve dominar para trabalhar um
determinado domínio científico.

2
Idem, pg. 175.
2
Ciência normal é para Kuhn a pesquisa, “(…) research firmly based upon one or
more past scientific achievements, achievements that some particular scientific
community acknowledges for a time as supplying the foundation for its further
practice” 3 .
No decurso da fase da ciência normal, ou seja, da ciência conduzida dentro dos
limites do paradigma, a maioria dos cientistas que trabalham numa dada área
científica compartilham o corpo comum de crenças, valores e técnicas, os problemas
têm solução consensual, e as regras que orientam a pesquisa e as normas pelas quais
os resultados são aferidos são uniformes.
Alguns cientistas, no entanto (usualmente mais jovens e criativos, menos
“formatados” e menos comprometidos com o establishement, ou mesmo mais
contestatários), identificam fenómenos novos ou inesperados, que contrariam as
previsões deduzidas das teorias que constituem o paradigma, criando problemas
para os quais o paradigma não oferece solução ― ocorrências a que Kuhn chama
“anomalias” (anomalies) ―.
Essas anomalias podem ser reconduzidas ao paradigma ou somente encontrar
explicação fora dele, ainda que não coloquem em causa a sua validade. Mas,
segundo Kuhn, quando um número significativo de cientistas concorda com uma
interpretação das anomalias que é coerente e que coloca em causa a validade do
paradigma, oferecendo uma alternativa, esse paradigma entra em crise e entra-se
numa fase dita de “revolução científica” (scientific revolution).
Esta “ciência revolucionária” é uma ciência em que são contestadas as regras
vigentes, de uma forma a que o paradigma de onde essas regras derivam não
consegue dar resposta. É uma fase em que, perdida a confiança no paradigma
vigente, outros paradigmas novos surgem e se confrontam em debates intensos.
Quando um dos novos paradigmas, mais abrangente, com maior profundidade e
mais preciso nas suas previsões acerca dos fenómenos emerge dentre eles e se
afirma como o mais adequado, oferecendo uma alternativa, esse “ paradigma
incomensurável” (incommensurable paradigm) triunfa e assume o domínio sobre
todos os outros.

3
Kuhn, Thomas S. (1970) The Structure of Scientific Revolutions, 2nd. ed., Chicago: Univ. of Chicago Press,
pg.10.
3
Os paradigmas em confronto nesse período de crise apresentam visões do mundo tão
diferentes que não podem sequer partilhar os mesmos conceitos e estão tão
afastados que não podem ser aceites em simultâneo. É a isto que Kuhn dá a
designação de “incomensurabilidade” (incommensurability).
O paradigma vitorioso, escolhido como o mais adequado para ser colocado no lugar
do velho paradigma é desta forma imposto pela “revolução” como a base onde vai
assentar a nova “ciência normal”, seguindo-se o período de estabilidade de um novo
ciclo.

2. Ciência conformada por paradigmas?

Em que medida não será a nossa capacidade de compreender o verdadeiro alcance e


significado das alterações climáticas perturbada pelo facto de a nossa representação
científica da “realidade” estar condicionada a paradigmas de interpretação de largo
espectro e duração?
Como nos foi ensinado por Thomas S. Kuhn, a maioria dos cientistas dedicam a sua
vida a fazer “ciência normal” e muito do seu sucesso depende da confirmação de
que a realidade observada se conforma com o paradigma vigente, suprimindo por
vezes descobertas importantes apenas porque elas subvertem tais compromissos:
“Normal science, the activity in which most scientists inevitably spend
almost all their time, is predicated on the assumption that the
scientific community knows what the world is like. Much of the
success of the enterprise derives from the community’s willingness to
defend that assumption, if necessary at considerable cost. Normal
science, for example, often suppresses fundamental novelties because
they are necessarily subversive of its basic commitments ” 4 .
Kuhn vai mesmo mais longe, dizendo que o que mais mobiliza os cientistas ao
longo das suas carreiras é a realização de operações de “limpeza” e, não medindo
palavras, afirma que são essas “limpezas” que constituem o que ele designa de
“ciência normal”… O trabalho científico da ciência normal seria, assim, conformar

4
Kuhn, Thomas S. (1970) The Structure of Scientific Revolutions, 2nd. ed., Chicago: Univ. of Chicago Press,
pg.10.
4
as observações com as teorias aceites. Os cientistas seriam mesmo avessos à
elaboração de teorias novas:
“Mopping-up operations are what engage most scientists throughout
their careers. They constitute what I am here calling normal science.
Closely examined, whether historically or in the contemporary
laboratory, that enterprise seems an attempt to force nature into the
preformed and relatively inflexible box that the paradigm supplies. No
part of the aim of normal science is to call forth new sorts of
phenomena; indeed those that will not fit the box are often not seen at
all. Nor do scientists normally aim to invent new theories, and they
are often intolerant of those invented by others. Instead, normal-
scientific research is directed to the articulation of those phenomena
and theories that the paradigm already supplies” 5 .
Para Kuhn não se oferecem dúvidas de que a primeira reacção à descoberta de
qualquer coisa nova que coloque em causa o paradigma é ignorar a realidade:
“In science, as in the playing card experiment, novelty emerges only
with difficulty, manifested by resistance, against a background
provided by expectation. Initially, only the anticipated and usual are
experienced even under circumstances where the anomaly is later to
be observed. Further acquaintance, however, does result in an
awareness of something wrong or does relate the effect to something
that has gone wrong before” 6 .
Será assim no caso das alterações climáticas? Estará mesmo a nossa capacidade de
compreender os fenómenos toldada pela visão da “ ciência normal”, rejeitando a
emergência de novas teorias que explicam melhor os fenómenos que observamos no
mundo que nos rodeia? Ou estaremos apenas a assistir à vitória de um “ paradigma
incomensurável”, que inexoravelmente triunfou sobre os outros paradigmas mas
ainda não se estabeleceu verdadeiramente como “ciência normal”?

3. História da Ciência das Alterações Climáticas

5
Kuhn, Thomas S. (1970) The Structure of Scientific Revolutions, 2nd. ed., Chicago: Univ. of Chicago Press,
pg.24.
6
Idem, pg. 64.
5
Quem primeiro procurou interpretar a forma como a atmosfera é aquecida pelo Sol
foi Joseph Fourier, na década de 1820. Em 1859, John Tyndal, que estava
convencido que várias dezenas de milhar de anos antes extensos glaciares cobriam o
norte da Europa, evidência geológica que era amplamente discutida na época,
pensando que poderia ser a atmosfera a responsável por uma mudança do clima tão
radical, realizou as primeiras experiências laboratoriais procurando identificar quais
os gases presentes na atmosfera que podiam reter o calor. Identificou vários,
considerando ser o vapor de água o principal e, também, o dióxido de carbono.
Nessa época, desde os trabalhos de Fourier que os cientistas tinham aceite que era a
atmosfera que retinha o calor solar. É até dessa época que data a expressão “efeito
de estufa”, se bem que a analogia não seja propriamente perfeita.
Foi, no entanto, Svante Arrhenius, quem melhor desenvolveu uma teoria acerca das
passadas idades do gelo 7 e primeiro colocou a hipótese de as variações dos níveis do
dióxido de carbono presente na atmosfera, através do efeito de estufa, poderem
originar alterações radicais do clima. Arrhenius publicou em 1886 o artigo On the
Influence of Carbonic Acid in the Air upon the Temperature of the Ground , onde
formula a sua lei do efeito de estufa da seguinte forma, lei ainda hoje usada:
“Thus if the quantity of carbonic acid increases in geometric
progression, the augmentation of the temperature will increase nearly
in arithmetic progression” 8 .
Estabeleceu-se na época uma intensa polémica que envolveu, entre outros,
Ångström, que contestava os valores considerados por Arrhenius para o CO 2 e que
em 1900 publicou o primeiro espectro de absorção de infravermelhos pelo CO 2 .
Arrhenius foi o primeiro a prever que a queima de combustíveis fósseis iria dar
origem a um aquecimento global, facto que ele considerava positivo pois assim
ficaria afastada a entrada num novo período glaciar. Outros cientistas se dedicaram

7
Hoje é de aceitação generalizada a teoria de Milutin Milankovich, desenvolvida na obra Kanon der
Erdbestrahlung und seine Anwendung auf das Eiszeitenproblem (Lei da Insolação da Terra e sua Aplicação à
Terra e ao Problema das Idades do Gelo), publicada em Belgrado em 1941, obra que viria a ser traduzida
para inglês e publicada nos Estados Unidos em 1969 com o título Canon of Insolation of the Ice-Age
Problem. Na sua teoria Milankovich explicou os ciclos de períodos glaciares como resultando das variações
no movimento da Terra, variações que se verificavam na excentricidade da órbita, na inclinação do eixo e na
precessão e que davam origem a padrões de variação do clima (actualmente designados por ciclos de
Milankovich).
8
Arrhenius, Svante (1896). "On the Influence of Carbonic Acid in the Air Upon the Temperature of the
Ground." Philosophical Magazine 41: 237-76, pg. 267.
6
a pesquisas neste domínio, mas o assunto pouca atenção mereceu dos seus
contemporâneos.
A ideia de que as variações do CO 2 atmosférico podiam conduzir a mudanças no
clima, no entanto, não foi esquecida. Outros cientistas desenvolveram novos
estudos, como Guy Stewart Callendar, que a partir da década de 30 do século
passado estudou a evolução dos níveis de CO 2 na atmosfera 9 e recuperou a ideia de
aquecimento global, ou Hans Suess, que a partir do estudo do carbono 14 detectou o
aumento do carbono com origem nos combustíveis fósseis na atmosfera 10 (1953), ou
Roger Revelle, que, trabalhando com Suess, concluiu que os oceanos tinham limites
como absorvedores do CO 2 atmosférico 11 (1957).
Um marco importante foi a realização das medições dos níveis de CO 2 na atmosfera
realizadas por Charles David Keeling a partir de 1958 em Mauna Loa, no Hawaii,
que proporcionaram a primeira comprovação irrefutável de que os níveis de dióxido
de carbono na atmosfera estavam a aumentar rapidamente. As medições efectuadas
em Mauna Loa constituem a mais longa série contínua de registos de concentração
de CO 2 na atmosfera, mostrando um aumento de 315 ppmv 12 em 1958 para 385
ppmv em 2008.
O desenvolvimento dos modelos de previsão climática, por iniciativa de Von
Newmann em Princeton, que tiveram efectivo início com os trabalhos de Norman
Phillips, que em 1955 desenvolveu o primeiro modelo informatizado, que é
considerado o primeiro verdadeiro Modelo de Circulação Geral (GCM - General
Circulation Model), iria permitir simular os efeitos da variação do CO 2 na
atmosfera.
Os efeitos do dióxido de carbono atmosférico e as possíveis alterações climáticas
resultantes começaram a ter impacto na opinião pública na década de 50, a partir da
divulgação dos resultados dos trabalhos de vários cientistas como Revelle nos
Estados Unidos e os suecos Bert Bolin e Erik Eriksson na Europa. Estes estimavam

9
P. ex., Callendar, G.S. (1938). "The Artificial Production of Carbon Dioxide and Its Influence on Climate."
Quarterly J. Royal Meteorological Society 64: 223-40.
10
Suess, Hans E. (1953). "Natural Radiocarbon and the Rate of Exchange of Carbon Dioxide between the
Atmosphere and the Sea." In Nuclear Processes in Geologic Settings, edited by National Research Council
Committee on Nuclear Science, pp. 52-56. Washington, D. C.: National Academy of Sciences.
11
Revelle, Roger, and Hans E. Suess (1957). "Carbon Dioxide Exchange between Atmosphere and Ocean and
the Question of an Increase of Atmospheric CO2 During the Past Decades." Tellus 9: 18-27.
12
Partes por milhão, em volume.
7
que a produção industrial iria aumentar a quantidade de CO 2 presente na atmosfera
em cerca de 25% até ao ano de 2000, e que os efeitos no clima seriam radicais.
As alterações climáticas adquiriram maior relevância quando foram percebidas
como provocadas por acção humana pelas sociedades contemporâneas. Com efeito,
o aumento do nível de CO 2 na atmosfera, o aquecimento global e, depois, a subida
do nível do mar, constituíram-se como objecto de uma ampla discussão e estudo a
nível global, onde cada fenómeno e interpretação foi somando adeptos e detractores.
As preocupações sobre a evolução futura extravasaram a comunidade científica e,
lenta mas progressivamente, foram alastrando e ocupando espaço na comunicação
social, na opinião pública e na política.
A “ciência normal” em matéria de alterações climáticas assenta agora em previsões
de modelos climáticos complexos, alimentados por medições de parâmetros muito
variados e em muitos locais ao longo do tempo. São modelos que produzem uma
imagem realista da maior parte da atmosfera e evidenciam que o efeito da subida do
nível de CO 2 atmosférico é uma subida rápida da temperatura média global. A
“ciência normal” é agora um conjunto de teorias complexas e multidisciplinares,
que ocupa batalhões de cientistas a nível mundial, que são continuamente ajustadas
mas que mesmo assim amiúde sofrem contestação das interpretações que oferecem
ou quanto à aderência da previsão dos modelos à realidade. Sendo os parâmetros
climáticos de extrema variabilidade geográfica e temporal, a sua correspondência
com as previsões teóricas só pode em geral ser aferida através da comparação, por
processos estatísticos, entre séries temporais longas de observações e as previsões
dos modelos.
As alterações climáticas colocam problemas globais, extravasam fronteiras políticas
e estendem-se para o futuro. São puzzles que muito excedem em complexidade os
puzzles-solutions de que falava Kuhn e para cuja resolução o homem, mais do que
“medida de todas as coisas”, na concepção de Protágoras, terá de ser o “medidor de
todas as coisas”.
Assim, sendo as alterações climáticas um problema global, em 1988 veio a ser
criado por duas organizações das Nações Unidas, a Organização Meteorológica
Mundial (WTO – World Meteorological Organization) e o Programa do Ambiente
das Nações Unidas (UNEP - United Nations Environment Programme), uma
organização científica intergovernamental, o Intergovernmental Panel on Climate
8
Change (IPCC). O IPCC não desenvolve investigação própria, nem monitoriza o
fenómeno das alterações climáticas, apenas congrega a informação oriunda de
diversos organismos a nível internacional, publicando relatórios que reúnem
sobretudo as conclusões de literatura científica peer reviewed e publicada.
Na actualidade verifica-se a tendência para que a validação através da utilização das
descobertas pela comunidade científica, como referia Kuhn, em matéria de
alterações climáticas seja substituída pela validação por peer review prévio à
publicação nas publicações científicas conceituadas. Pela dimensão da tarefa e pelo
crivo que toda a informação passa antes de integrar os relatórios do IPCC, a
inclusão nesse rol passou a constituir o reconhecimento último ou, de certa forma, a
integração no paradigma / ciência normal.

4. Estaremos mesmo condicionados?

As alterações climáticas foram, em primeiro lugar, identificadas através dos


processos científicos: Existe um grande desfasamento temporal entre as causas e os
efeitos, e estes fazem sentir por todo o mundo, mesmo em locais afastados das suas
origens. Por outro lado as alterações são invisíveis aos sentidos, e a sua percepção e
medição, face à lentidão com que as alterações se processam e à sua complexidade,
depende do conhecimento científico, de tecnologias extremamente elaboradas e de
meios extremamente dispendiosos como os satélites científicos.
Como Kuhn mostrou, enquanto os paradigmas se mostram adequados à explicação
dos fenómenos observados e eventuais anomalias observadas se conseguem ajustar
dentro das teorias, os cientistas centram a sua atenção num conjunto de fenómenos e
princípios teóricos, que usam para aprofundar o estudo da natureza.
Nenhuma investigação científica relativa a alterações climáticas pode ser
desenvolvida e ser maioritariamente aceite na ausência de um corpo de princípios
teóricos e metodológicos que permitam seleccionar, avaliar e interpretar
criticamente o que se observa. Para mais, existe uma dimensão temporal que não
pode ser ignorada, uma vez que os processos em mudança se vão reflectir muito
tempo depois e também em locais distantes da sua origem, o que coloca, como foi
referido, o relacionamento de causas e efeitos na dependência de modelos.
9
Numa área de natureza multidisciplinar e tão dependente de meios tecnológicos tão
sofisticados, factos e teorias estão em relação de interdependência constante.
Nenhum investigador pode ter a pretensão de, a cada momento, reequacionar a
validade de princípios básicos, quando muito pode discutir o significado ou
relevância de cada fenómeno observado.
Aparentemente, no entanto, a “ciência normal” não está em crise. As anomalias
detectadas são em número reduzido e não foi ainda evidenciada nenhuma anomalia
que colocasse as teorias fundamentais em crise irremediável. Correntes críticas
como, p. ex., a usualmente referida como “climate change denial” têm sido
conotadas com determinados grupos de interesses, neste caso o lobby da energia
americano.
O episódio mais crítico, o “climategate” de Novembro de 2009, em que os cientistas
da Climatic Research Unit da Universidade de East Anglia teriam, alegadamente,
eliminado os resultados não conformes com as teorias mainstream, poderia
exemplificar a asserção de Kuhn de que quaisquer fenómenos que não se podessem
encaixar nas previsões do paradigma da ciência normal seriam fonte de desconforto
ou passariam despercebidos.
Mas, mesmo que porventura a ciência das alterações climáticas (e o IPCC…)
estivessem em crise, o paradigma adoptado não foi abandonado porque não surgiu
nenhum outro que se revele superior em qualquer aspecto.
A nossa capacidade de compreender o verdadeiro alcance e significado das
alterações climáticas poderá estar perturbada pelo facto de a nossa representação
científica da “realidade” estar condicionada ao paradigma de interpretação de largo
espectro e duração que o IPCC cristaliza. Mas nada restringe o trabalho dos
investigadores verdadeiramente criativos, contestatários e descomprometidos que,
quem sabe quando, irão desenvolver e impor um novo paradigma!

10

Você também pode gostar