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CORPO, AUTODETERMINAÇÃO E PRECARIEDADE:

Uma perspectiva através dos direitos fundamentais e da biopolítica

Laís Pagnoncelli1

Resumo: O presente estudo pretende analisar a disposição sobre o


corpo como forma de autodeterminação e as variadas maneiras de limitação a
este exercício. Serão abordadas questões relativas às formas políticas sobre a
vida e o corpo, por meio do modo que a biopolítica incide sobre o corpo dos
indivíduos. Analisaremos como os direitos fundamentais, em especial o direito
ao corpo, dentro dos direitos da personalidade podem oferecer mecanismos de
proteção, especialmente para vidas que se apresentam mais precárias que
outras. Para tanto, serão apresentados aspectos sobre a teoria dos direitos
humanos, os pensamentos e filosofias sobre o corpo, bem como o limiar do
abuso e da imprescindibilidade da proteção do corpo frente ao próprio
indivíduo, no contexto da sociedade de consumo pós-moderna. Ademais, serão
abordadas questões pertinentes e contemporâneas, que demonstram a
atualidade do debate e as intersecções com as diversas temáticas centrais
para os direitos humanos, as quais são controversas, complexas e inerentes às
relações pessoais. Assim, se visa mostrar a necessidade de proteção como
forma de garantir a própria autodeterminação do indivíduo frente às
vulnerabilidades da vida e frente às formas de controle político-biológico.

Palavras-chave: Direito. Corpo. Autodeterminação. Biopolítica. Precariedade.

1) Introdução

As formas de disposição sobre o corpo, bem como seus efeitos, é tema


controvertido e que ganha pautas importantes no contemporâneo. Por tal
motivo, se mostra indispensável pensar e levantar o questionamento sobre as
limitações e liberdades - “o que posso e o que não posso fazer” - em relação ao
próprio corpo. Ademais, se pode analisar as técnicas, mecanismos e os

1
Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal do Paraná
discursos (na área médica, científica e jurídica) existentes, como meios
legitimadores de intervenção ou abusos na esfera individual, intervindo direta e
subliminarmente nos corpos.

Para isso, serão abordadas questões relativas às teorias dos direitos


humanos e repercussões na esfera da autodeterminação do sujeito, ao lado de
um panorama geral do direito civil brasileiro quanto aos dispositivos
relacionados com a proteção do corpo. Nessa esteira, será proposto algumas
intersecções entre as formas de política sobre o corpo, relacionando estas com
a delimitação e condicionamento das práticas sobre o corpo. E por último,
ponderar como a biopolítica na sua faceta positiva, juntamente com o direito
podem assegurar a proteção sobre o corpo de sujeitos mais expostos à
precariedade da vida, fazendo-se necessário lançar mão de mecanismos que,
por vezes, refreiem a autodeterminação.

Nesse sentido, pressupondo a ideia de proteção estatal (autoritarismo


social), como o discurso protecionista produz sujeitos mitigando sua
autodeterminação? De que modo os mecanismos jurídicos que atuam na
proteção do corpo garantem a autodeterminação? Com relação à autonomia
do indivíduo, se busca analisar como as formas de política incidem sobre o
corpo, limitando essa autonomia. Também trataremos acerca das maneiras
pelas quais a biopolítica interfere nas populações, e se esta possui influência
nas muitas vidas precárias.

Neste intento, propõe-se analisar em linhas gerais os aspectos jurídicos,


biopolíticos e sociais que recaem sobre o corpo, e de que maneira eles
configuram e circunscrevem a autodeterminação. Além disso, se buscará
analisar como o direito pode proteger vidas com maior grau de precariedade
frente às formas de política (especialmente das formas negativas) e frente à
própria autodeterminação do sujeito. Para isso, também será abordado casos
hodiernamente debatidos sobre a temática.
2) Entre o universalismo e o relativismo

Os Tribunais deveriam se mostrar cuidadosos ao intervir a favor


das crianças caso isso contrariasse aos princípios religiosos dos
pais. Às vezes a intervenção seria necessária. Mas quando? Em
resposta, ela invocou um de seus favoritos, o sábio lorde Mumby
do Tribunal de Recursos: ‘A infinita variedade da condição humana
impede qualquer definição arbitrária’ (MCEWAN, p. 52, 2014). 2

O excerto acima foi retirado do romance “A balada de Adam Henry” de


McEwan, o qual gira em torno do embate acerca do jovem oriundo de uma
família de Testemunhas de Jeová e que precisando de uma transfusão de
sangue se depara com a escolha entre autorizar o procedimento ou não fazê-lo
seguindo os preceitos de sua religião. O tema ilustra um choque entre a
liberdade de crença e o direito à vida, assim como a dicotomia entre
autodeterminação e proteção estatal, remontando ao dualismo das teorias dos
direitos humanos – relativismo e universalismo.

Nesse sentido, é importante ressaltar que a questão da transfusão de


sangue ainda é debate atual, como pode ser evidenciado com o caso recente
de abril de 2018, onde houve a desautorização expressa dos pais sobre o
procedimento médico no bebê recém-nascido que precisava urgentemente da
transfusão, caso contrário, poderia falecer. Assim, o caso foi parar na Justiça
de São Paulo, onde o juiz acabou autorizando a transfusão sanguínea, sob o
argumento de que nesses casos, mesmo tendo em mente a liberdade religiosa
como direito fundamental, a vida deve prevalecer.

O tema da disposição sobre o corpo envolve muitos outros casos que


ontem e hoje são pautas de debates jurídicos, filosóficos e éticos. Sobre as
questões culturais e religiosas que impactam nas decisões sobre a disposição
do corpo, percebemos que as peculiaridades e a complexidade de uma vida,
muitas vezes, não conseguem ser abarcadas por concepções jurídicas que se

2
McEWAN, Ian. A Balada de Adam Henry. São Paulo, 2014.
pretendem universais. Quadro esse, que pode ser tido como corolário de uma
percepção que coloca em contraste a perspectiva do universalismo e do
relativismo em relação aos direitos humanos. Para melhor entender essa
dicotomia que ainda hoje permeia questões importantes, é interessante mostrar
rapidamente o processo histórico e filosófico que configura esse debate
contemporâneo.

Primeiramente, vemos que a filosofia sofreu uma passagem (o que não


implica rupturas necessariamente) do paradigma moderno para o pós-moderno
ou contemporâneo3, e essa nova configuração é crucial para a mudança nas
percepções nos diversos âmbitos. O sujeito como indivíduo - sujeito de direito -
emerge na Modernidade, deslocando-se da comunidade, adquirindo caráter
abstrato e passando a ser indivíduo dotado de capacidade e autonomia. Na
teoria contratualista clássica, o pacto social foi “aceito” com fim último de
proteger os interesses individuais e coletivos, mesmo que para isso fosse
necessário abdicar de parcela da liberdade. Em linhas gerais, então, podemos
dizer que o solo foi preparado para a ascensão do direito clássico e privado
que tem por escopo o sujeito e sua condição em meio à sociedade, bem como
sua proteção.

A sociedade moderna, então é marcada pelas revoluções que


conquistaram especialmente direitos de primeira dimensão, entre eles a tão
enaltecida liberdade. Além disso, o período foi marcado pela a ausência de
proteção jurídica, principalmente no que diz respeito às relações de trabalho e
abusos sobre o corpo. Apesar disso, houveram conquistas e foi preparado o
terreno para a instituição dos direitos sociais, guiados pelo princípio da
igualdade, junto com o surgimento do Estado social. Nesse contexto
configurou-se certo paradoxo. Se por um lado havia o desejo de que a
liberdade fosse plena, a mesma, não refreada acabou gerando exploração
econômica sobre os corpos (como na questão da exploração do trabalho,

3
Há ainda outros autores que designam por hipermoderno, como Gilles Lipovetsky, ou como
modernidade líquida em Bauman, ou ainda por transmoderno na ótica dos pensadores das
epistemologias do sul.
jornadas extenuantes e condições insalubres), implicando que a liberdade de
alguns subjugasse a de outros.

Mas, com a emergência dos Estados constitucionais no século XX,


passa-se a criar barreiras a essa liberdade que via o corpo como meio e não
como fim, isto é, como propriedade e não como bem jurídico a ser protegido.
Entretanto, também em meados do século XX insurge a política sobre a vida.
Os discursos jurídico e biológico se coadunam a fim de legitimar, não só
abusos, mas a morte em massa de corpos que não mereciam viver.

Em vista disso, o episódio da 2ª guerra mundial configurou-se como um


marco na humanidade, evidenciando a premência na criação de novos
mecanismos de proteção do ser humano que devia ser visto como cidadão e
sujeito de direito, submetido não somente ao direito interno do Estado, mas
também ao direito internacional com viés humanitário e ético4. Segundo José
Antônio Peres Gediel, a “revitalização ética do direito positivado apresentou-se,
portanto, como um pressuposto de sobrevivência desse mesmo direito” (2000,
p. 47).

Assim, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1945,


emerge na comunidade internacional o paradigma humanitário. Com o fim da
experiência nazista que, segundo Esposito5, representou o paroxismo de uma
forma degenerada de biopolítica, surge uma nova configuração do direito,
ensejando a dignidade da pessoa humana como princípio orientador dos
ordenamentos jurídicos.

4
Em uma perspectiva mais histórica aponta José Antônio Peres Gediel “Os traumas sofridos
pelas sociedades europeias e as consequências planetária advindas da 2ª guerra mundial
demonstraram a insuficiência da tutela jurídica oferecida pela modernidade ao sujeito de direito,
com base no direito subjetivo e nas liberdades públicas” (2000, p. 45).
5
Filósofo italiano que possui obras eminentes sobre filosofia política e moral. Vale destacar
suas importantes contribuições para o debate da biopolítica e questões contemporâneas.
Nesse contexto, com o escopo de proteger indistintamente o direito dos
indivíduos, o caráter universalista6 dos direitos humanos ganha força. Não
obstante, a fim de denunciar a inaplicabilidade universal dos direitos humanos,
os relativistas passam a engendrar uma doutrina que tem por fundamento
basilar a cultura dos povos, e o respectivo respeito ao multiculturalismo.

Como corolário do desenvolvimento e novos olhares sobre a teoria dos


direitos humanos, ganhou espaço embates entre o universalismo e o
relativismo. Boaventura de Souza Santos que propõe a hermenêutica diatópica,
baseada num diálogo intercultural, fala que

É sabido que os direitos humanos não são universais na sua


aplicação. Atualmente, são consensualmente identificados quatro
regimes internacionais de aplicação dos direitos humanos: o europeu,
o interamericano, o africano e o asiático. Mas serão os direitos
humanos universais enquanto artefato cultural, um tipo de invariante
cultural, parte significativa de uma cultura global? Todas as culturas
tendem a considerar os seus valores máximos como os mais
abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los
como universais. Por isso mesmo, a questão da universalidade dos
direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo
como o questiona (...) (SANTOS, p. 19, 1997’.

Se, por um lado, o direito universal instrumentalizado pelo poder estatal


e, de outro, a cultura local tentam ser impostas, como fica a autodeterminação
do indivíduo, e quais as implicações neste, tomado como sujeito de direito?

A ideia do libertarismo clássico7 que consiste na soberania do indivíduo


sobre si e sobre seu próprio corpo, tomado como sua propriedade, já não faz
mais sentido. É fato que não se pode mais falar em autonomia absoluta sobre
si mesmo. Especialmente no século XX, são instituídas normativas e
declarações internacionais, bem como dispositivos de direito interno, que têm

6
Como atenta Flávia Piovesan, parece que a Declaração de Viena de 1993, além de afirmar a
universalidade dos direitos humanos, acolheu fortemente a ideia de universalismo em
detrimento do relativismo.
7
O liberal Stuart Mill dizia "Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é
soberano (1859)”. Sobre o ideal libertário e liberdades sobre o corpo o livro “Justiça, o que é
fazer a coisa certa” de Michael Sandel, aborda casos hipotéticos e verídicos que colocam em
confronto perspectivas filosóficas controversas, e discute quais os limites de uma filosofia
libertária frente à vida como fim em si mesma na filosofia kantiana.
por fim proteger a vida dos indivíduos e coibir práticas abusivas sobre eles.
Então, após a instabilidade causada pelo quadro jurídico do período da
Segunda guerra mundial - caracterizada por terríveis violações aos direitos
humanos -, os direitos, num viés personalista, emergem com nova perspectiva
ética e axiológica:
A assunção de semelhante posição teórica requereu, inicialmente, o
resgate de valores fundantes do Estado de Direito, expressos nas
Declarações jusnaturalistas, mas desvalorizados na construção do
direito positivado, tais como a dignidade humana, a resistência à
opressão e a desobediência civil. Esses valores sugerem a noção de
autodeterminação da pessoa e admitem, até mesmo, a ruptura com o
direito constituído (GEDIEL, p. 34, 2000,).

Nessa esteira, parte da doutrina, como Ingo Sarlet, costuma falar em


direitos humanos para se referir a uma matriz internacional, e direitos
fundamentais seria expressão utilizada na referência ao direito interno, àquele
que se baseia nas Constituições. A seguir, a disposição sobre o corpo e a
autodeterminação serão analisadas sob a ótica dos direitos fundamentais,
perpassando pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2002, no tocante
aos dispositivos que tem por escopo a proteção do corpo.

3) Os direitos da personalidade como possível reduto do corpo no


nosso ordenamento jurídico

Mas se atualmente podemos constatar essa dificuldade de tratamento


do corpo em seu deslizamento nestes diferentes eixos, precisamos
lembrar que até muito recentemente ele era ignorado pelo direito. Os
eventos que perturbam a ordem jurídica em sua estrita ocupação com
o homem abstrato, não pensado em sua corporeidade, precisam ser
levados em consideração para compreender a entrada do corpo na
estrutura jurídica e como esta entrada não significou uma real e
verdadeira preocupação com o corpo, mas, muito mais uma tentativa
de salvaguardar o sujeito mesmo diante das mutações e do desmonte
do corpo (FONSECA, p. 206, 2014).

Ao nascer com vida o ser humano adquire personalidade jurídica e


desenvolve sua individualidade. Os caracteres individuais e as idiossincrasias
dos sujeitos constituem a personalidade. É dessa percepção que oriunda os
bens jurídicos, os quais são protegidos pelo ordenamento jurídico, no caso, à
tutela da personalidade passa a ser importante para o direito. Como
contribuição da doutrina alemã temos a noção de livre desenvolvimento da
personalidade, garantindo o direito a constituição da personalidade individual
de forma livre (MIRANDA, 2013).

Os direitos da personalidade com teoria relativamente recente, consiste


na abordagem dos direitos inerentes à condição humana, com objetivo de
proteger os atributos do ser humano (vida, corpo, imagem e outros atributos
merecedores de proteção do Estado). Englobado pelos direitos da
personalidade, o corpo representa o indivíduo fisicamente na sociedade. O
corpo foi e ainda é usado como meio de exploração, para objetivos defesos
pelo direito, isto é, dispõe-se do corpo para fins ilícitos, usando-o para
obtenção de lucro (como fonte de exploração econômica, o corpo
instrumentalizado). E por isso, o direito constrói modos de proteger os corpos,
com objetivo de assegurar a integridade física e psíquica dos mesmos.

Temos vários exemplos de uso do corpo para obtenção de fins ilícitos,


como no caso da escravidão, que se configura como marca do Brasil colonial, e
ainda não foi extirpada em suas formas análogas e a tortura, que é vedada
pela Constituição em seu Art. 5, inc. III. Não obstante, há outros modos de
exploração, seja no trabalho ou sexual, o tráfico de ilegal de órgão e de
pessoas e até o fenômeno histórico do genocídio8.

Quanto à disposição do corpo pelo próprio titular merecem destaque as


modificações que feitas em seus corpos, a venda do próprio corpo para obter
renda, disposição post morten, e venda ilegal de órgãos. O Relatório Global
sobre o Tráfico de Pessoas de 2016 elaborado pelo Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) estabelece que mulheres e meninas
correspondem a 71% das vítimas do tráfico, sendo entre as mulheres 95%
vítimas de exploração sexual.

8
O genocídio revela uma faceta relevante de como o corpo foi objeto de uma forma política, a
biopolítica que se degenerou em tanatopolítica, com a utilização de técnicas de extermínio, a
fim de levar a cabo os ideais nazistas em prol da “proteção” da nação alemã, dentro de um
paradigma imunitário.
Ao se referir ao crime de tráfico de pessoas seja ele para fins de
exploração sexual ou qualquer outra modalidade, tem-se que o objeto
desta prática é justamente o ser humano, dotado de autonomia e que
deveria ter sua dignidade preservada como determina a Constituição
Federal de 1988. No entanto, trata-se de pessoas que são colocadas
no “mercado de trabalho” não para exercer determinada profissão,
mas para ser o objeto de negociações entre as associações
criminosas e os consumidores e, neste passo, quando uma pessoa é
obrigada a prestar serviços sexuais em troca de alguma
contraprestação, não é apenas a dignidade sexual que é atingida,
uma vez que com a situação precária a que são submetidas, o direito
à saúde, à integridade física e, consequentemente, à vida, também
são violados (SILVA; BIZZOTTO, p. 91, 2016).

Nessa esteira, ficou conhecido o caso em 2012 do pobre jovem chinês,


aos 17 anos se submeteu a retirada de um de seus rins em troca do
recebimento de um IPad e um IPhone e hoje sobre com problemas de
insuficiência renal9. Isso ilustra o grande questionamento de até que ponto o
indivíduo pode dispor do próprio corpo, levando em conta que o direito sobre o
corpo é incluído no grupo de direitos inalienáveis, intransmissíveis e
indisponíveis.

Acerca desse debate, em uma vertente mais filosófica, é interessante a


reflexão que Michel Sandel, faz em seu livro “Justiça, o que é fazer a coisa
certa?” sobre a venda de rins e o caso da barriga de aluguel. O primeiro caso
consiste num camponês muito pobre, que a fim de possibilitar que seu filho
mais velho entre na universidade, vende um de seus rins para alguém que lhe
paga certa quantia que será voltada para o ensino do filho. Porém, chega a
hora do filho mais novo ir para a universidade. Se o camponês quisesse vender
seu rim, mesmo sabendo que poderia morrer em seguida, isso seria permitido?

No segundo caso, um casal contrata uma mulher pobre (que já tinha


dois filhos anteriormente) para fazer o “serviço de barriga de aluguel”. Ela
aceita e tem todas as despesas da gestação arcadas pelo casal, mas no
momento em que deve entregar o bebê, ela é tomada por forte sentimento
maternal e foge para não entregá-lo. A mulher que gestou o bebê teria esse

9
https://www.dn.pt/globo/asia/interior/chines-vende-rim-para-comprar-ipad-e-iphone-
2718496.html. Em 2012, segundo o Ministério da saúde da China 1,5 milhões de pessoas
precisavam de transplantes no país, sendo que apenas 10 mil transplantes são realizados
anualmente na China.
direito? Sendo que o pai biológico foi quem contratou (junto com sua esposa
que não podia ter filho por ter esclerose múltipla).

Ambos os casos, trazem reflexões sobre a disposição sobre o próprio


corpo, com fins diferentes, seja para ajudar um filho ou para obter renda. Sabe-
se que no que diz respeito à doação de órgãos, já que a venda é ilegal, o ato é
guiado pelo caráter de gratuidade e fraternidade, vedando relação de
pagamento. Sendo assim, no em tela a venda do segundo rim, seguindo o
princípio da dignidade da pessoa humana, deve ser vedada, preponderando a
vida em detrimento da liberdade total sobre o próprio corpo. No caso da
“barriga de aluguel”, denominada gestação de substituição, se veda que haja o
chamado “comércio de bebês”. O ato deve ser praticado com base no princípio
da solidariedade.

É notável, que na maioria das vezes, quem se submete a procedimentos


ou atividades que tem na venda do corpo, ou de parte dele o meio de obter
uma renda, são pessoas mais vulneráveis, seja por não terem condições
econômicas razoáveis ou pela falta de informação. É irrefutável que mulheres
que acabam seguindo a prostituição e pessoas que participam ou se submetem
à venda ilegal de órgãos, na maioria das vezes, são indivíduos mais
vulneráveis, inseridos num quadro de condição econômica precária.

Tendo em conta a ocorrência de abusos e disposições ilimitadas sobre o


corpo, se criam meios de proteção. Com o término da Segunda Guerra
Mundial, em âmbito nacional e internacional é criada uma rede jurídica de
aparatos protetivos contra intervenções sobre o corpo, seja de terceiros e até
do próprio indivíduo quando a integridade física for afetada10. Então, a partir
desse momento, se consolidam limitações sobre atos de disposição sobre o

10
A intervenção sobre o corpo se apresenta em duas frentes: a intervenção causada pelo
próprio sujeito (autolesão) ou de um terceiro autorizado devidamente habilitado ou não na sua
profissão. A primeira forma é unilateral, que envolve a disponibilidade sobre o próprio corpo, ou
seja, sobre o alcance da autonomia da vontade no que concerne ao próprio corpo físico. Na
segunda frente tem-se um terceiro autorizado devidamente habilitado ou não na sua profissão,
é bilateral, diz respeito à atuação de uma pessoa sobre um corpo que não é o seu.
corpo, bem como garantias legais, assunto este tratado por Anderson
Schreiber.

O século XX veio reforçar a necessidade de instituir fortes garantias


legais contra inferências externas no corpo humano, especialmente
diante das atrocidades cometidas pelos regimes autoritários, por meio
da tortura e da experimentação científica. Um vasto leque de normas
jurídicas internacionais e nacionais veio assegurar proteção à
integridade física e psíquica do ser humano contra as intervenções do
Poder Público e de outros particulares (SCHREIBER, p. 32 2013).

No direito brasileiro, no que tange à disposição sobre o corpo, há vários


dispositivos que reconhecem o direito à integridade física e psíquica, e traçam
limitações11. Porém, numa visão mais analítica, a codificação cuida apenas dos
atos de disposição sobre o corpo, ou seja, quando o titular pode dispor do seu
corpo ou de parte dele, prescindindo de outros aspectos relevantes.

Sobre o Código civil de 2002, a questão da disposição sobre o corpo é


tratada pelo artigo 1312. Sobre isso, é importante ressaltar críticas feitas a este
dispositivo. No livro “Direitos da Personalidade”13 o Professor de Direito Civil da
UERJ, Anderson Schreiber elenca três pontos de crítica ao artigo 13. A
primeira é sobre a exigência médica como condição de autorização de
disposição sobre o corpo, colocando-se como superior a outras
recomendações ou avaliações (campo jurídico, moral ou ético). A seguir, ao
tratar da “diminuição permanente da integridade física”, a redação traz um
quadro que pode ser bem arriscado, considerando que se poderia autorizar,
então, diminuições não permanentes, por exemplo, implantação de chips.

Por fim, o dispositivo ao aludir aos “bons costumes” traz uma noção
muito ambígua, imprecisa e controversa especialmente em contraste a
mudanças na área da ciência, tecnologia e até mesmo da cultura. Nessa

11
“O sujeito não pode, portanto, dispor livremente de seu invólucro corporal, como se sua
vontade estivesse desvinculada da finalidade sustentada pelo interesse público e social, nem
lhe é permitido pôr em risco sua incolumidade física, contrariando os interesses da coletividade.
Decorrem daí as limitações à liberdade individual, em relação, por exemplo, às autolesões ou
lesões consentidas para realização de cirurgias (...) (GEDIEL, p. 99, 2000).
12
“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando
importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”
13
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade/ Anderson Schreiber. 2. ed. - São Paulo:
Atlas, 2013.
perspectiva cabe destacar as modificações corporais, onde encontramos
práticas de bodyart e bodymodification. Desse modo, pessoas fazem drásticas
alterações em seus corpos relacionados a razões religiosas ou estéticas, as
quais podem entrar em contrassenso com o que se entende por “bons
costumes”, revelando a problemática do Artigo 13 do Código Civil de 2002.

Entrementes, “práticas como o bodyart e o bodymodification não podem


ser tratadas como ameaças capazes de atrair a rejeição do direito, por mais
repulsivas que possam se afigurar ao senso estético dominante (SCHREIBER,
2015). Isto é, tornar a ambígua noção de bons costumes parâmetro de
proibição supõem impedir novas formas de expressões artísticas, culturais e
individuais.

Desse modo, os dispositivos positivados, ao mesmo tempo que, buscam


certa proteção do corpo - que por vezes é premente - muitas vezes não
caminha junto com a real corporeidade, outros direitos dos sujeitos e a
dinâmica social. Ademais, pode-se analisar esse tratamento dado ao corpo
pelo ordenamento jurídico e pelas formas de poder como resultado de uma
biopolítica orientada para o controle de populações, no sentido do homem
como espécie, e não do homem como ser social dotado de peculiaridades num
sentido corpóreo.

4) Disposição sobre o corpo e biopolítica

‘’Qual o efeito da biopolítica? Chegado a este ponto a resposta do


autor [isto é, Foucault] parece bifurcar-se em direções divergentes
que levam em conta outras duas noções, desde o início implicadas no
conceito de bios, mas situada nos extremos de sua extensão
semântica: aquela de subjetivação e aquela de morte. Ambas – no
que diz respeito à vida – constituem mais do que duas possibilidades.
São ao mesmo tempo sua forma e seu fundo, sua origem e seu
destino. Mas em cada caso, segundo uma divergência que parece
não admitir mediação: ou uma ou outra. Ou a biopolítica produz
subjetividade ou produz morte. Ou torna sujeito o próprio objeto ou o
objetiva definitivamente. Ou é política da vida ou sobre a vida
(ESPOSITO, p. 25, 2004).
Especialmente no século passado o corpo passou a ocupar maior
espaço nas discussões filosóficas14 políticas e jurídicas. No pensamento
filosófico da modernidade clássica, prevalecia a dicotomia corpo e alma. Havia
maior ênfase às filosofias da razão, que, por conseguinte deixavam em
segundo plano as questões sobre o corpo, este visto como mera res extensa.
Assim, com o fim do século XIX e a iminência do que se pode chamar de
filosofia contemporânea, o corpo é repensado, criticando o caráter dualista e o
“apagamento” do corpóreo que predominava até então. Posteriormente,
emergem novas formas de reflexão sobre o corpo, que o analisam no sentido
biológico, político e normativo.

Com Michel Foucault, as concepções de poder, sujeito e corpo ganham


destaque e nova percepção. Para o autor, não se deve falar em poder, mas sim
em relações de poder, as quais perpassam o sujeito. Dessa forma, sujeito é um
constructo, constituído por essa rede de relações de poder e pelo discurso.
Disso resulta o corpo visto como objeto de reflexão sobre o qual incide técnicas
de poder. Essas técnicas ou dispositivos são instrumentalizados pela
biopolítica, que consiste na política sobre a vida, o controle de populações.

Ainda hoje recaem sobre o corpo práticas de autocontrole e de uma


lógica instrumental, do corpo-máquina, submetido à razão15. Acerca da
disposição sobre o corpo e as formas de controle mostra Ângela Couto M.
Fonseca

Mesmo que o corpo já não seja mais visto sob as lentes


exclusivamente mecanicistas e hoje já esteja abraçado pelas lentes
biológicas e informacionais, esta modificação da leitura de corpo não
fez cessar, mas apenas incrementou ainda mais as práticas
intervencionistas e controladoras do corpo. A esse controle incisivo

14
O corpo como objeto de reflexão é colocado em evidência no campo filosófico, através da
filosofia da vontade, ainda no século XIX (com destaque ao filósofo Nietzsche), mas avultam os
estudos no século XX, onde se destaque autores como Foucault, Esposito e Agamben. Nesse
sentido, a consciência e a racionalidade tão centrais no pensamento filosófico deixa de ser
objeto quase que único do pensamento, e a ótica sobre o estatuto do ser humano e seu corpo
redesenham novos horizontes ao pensar filosófico.
15
Razão ou substância pensante, como colocou o dualismo cartesiano entre corpo e alma, a
res extensa e res e res cogitans. Seria então, a substância pensante que regeria a matéria, o
corpo, que permitiria manejar suas potencialidades.
das potências do corpo, na busca incessante de promover seu
melhoramento e atingir a perfeição, também surge uma dimensão que
parece pertencer ao universo jurídico, que é a disposição do próprio
corpo. Ainda que seja o direito a pensar pontualmente quais as
formas e os limites de disposição do próprio corpo, não podemos
deixar de notar, por um lado, a herança desta compreensão em
relação ao corpo objeto e máquina e, por outro lado, sua relação com
as práticas atuais de bioascese (FONSECA, p. 62, 2014).

O corpo como “corpo individual” não é o foco principal da biopolítica.


Como faceta mais ampla e contraponto da biopolítica, temos o biopoder16, o
qual consiste em uma anátomo-política sobre o corpo individual (FONSECA,
2016), que segundo Foucault, através da normalização, busca tornar os corpos
dóceis e úteis. Sobre as diferenças entre biopoder e biopolítica Foucault traz
como dois polos do poder. O primeiro seria orientado por técnicas disciplinares
(adestramento, ampliação e extorsão de forças e aptidões), desenvolvendo a
utilidade e a docilidade para o mais eficaz e econômico sistema de controle. Já
o segundo polo de poder, diz Foucault, se formou um pouco mais tarde, por
volta da metade do século XVIII, e centrou-se no corpo-espécie, no corpo
transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos
biológicos (FOUCAULT, 1988, p. 131).

No entanto, o que se percebe é que se a biopolítica - que num primeiro


momento visaria às populações17, o ser humano enquanto espécie, em outra
perspectiva ela também guarda relevante relação com o corpo. E é nesse
ponto que a biopolítica, como política sobre a vida teria possibilidade de ser
vista como uma limitação à autodeterminação do indivíduo.

As ciências, a política e o poder lançam medidas sobre os fenômenos


populacionais. Assim, verificando os corpos em conjunto é possível traçar
regularidades que permitem a intervenção nesses fenômenos coletivos através

16
“(...) o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas
características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política,
numa estratégia geral de poder” (Foucault, 2008, p. 3).
17
Observa-se com Foucault que com a biopolítica o corpo ganha um sentido de multiplicidade,
o corpo visto como população.
de estimativas, previsões e mecanismos de segurança18. Em Segurança,
território e população, Foucault mostra que a população é o objeto dos
mecanismos de segurança que atuam a fim de modificar, acentuar ou diminuir
os efeitos dos fenômenos coletivos.

Infere-se então que a biopolítica gira em torno de questões sobre


longevidade, natalidade, moradia, saúde pública, migração e demais aspectos
que analisam o homem enquanto homem-espécie. Desse modo, ela se destaca
por ser uma política sobre o corpo, e por isso, ao mesmo tempo que, impacta
nas populações também se apresenta como modo de controle e poder sobre
os corpos individuais.

Exemplo disso pode ser visto na ideia dos corpos degenerados, criação
do discurso nazista. Nesse contexto foi elaborado todo um discurso médico-
jurídico sobre o corpo daqueles que deviam ser exterminados (judeus,
homossexuais, ciganos, negros) a fim de legitimar a tanatopolítica, que dita que
para que alguns possam viver é preciso que outros deixem de viver. Aí temos a
experiência histórica de uma política da morte, do extermínio. Essa é a lógica
do paradigma imunitário, concepção trabalhada por Esposito, buscando
mostrar as formas pelas quais se configurou a ideia da imunização de uma
comunidade, como meio necessário para garantir própria sobrevivência. Nesse
sentido, será que ainda hoje vivemos sob a lógica do paradigma imunitário? A
precarização da vida, a exclusão de alguns mais que de outros - as mortes por
racismo, homofobia, religião -, não seriam maneiras sutis dessa lógica?

Disso tudo, denotamos a biopolítica inerente ao contemporâneo, seja


em suas faces negativas (quando assume forma de política do “fazer morrer”,
que mitigam a vida) seja na sua face positiva. Esta última consistiria em um
controle voltado para o “fazer viver”, mecanismos que propiciam o

18
Os mecanismos de segurança incidem na população, podem ser vistos como forma de
tecnologias de poder, que seriam orientadas pela governamentalidade, conduzindo condutas. E
seria aí que o Estado moderno utilizaria os mecanismos de segurança na condução dos
fenômenos populacionais, juntamente com os saberes da estatística, previsões e meios de
comunicação. Assim esses mecanismos de segurança acabam por legitimar a soberania dos
Estados.
desenvolvimento da vida e fornecem condições mais humanas nos diversos
processos biológicos e sociais.

A questão do parto humanizado, por exemplo, pode ser vista sob essa
ótica. A proposta da humanização do parto vem à tona com a premência em se
garantir tratamentos menos invasivos que respeitem as particularidades do
corpo e da vontade da mulher. Também se busca assegurar a qualidade da
assistência e capacitação da equipe médica. Reivindicam-se partos em
ambiente hospitalar, o direito a ter um acompanhante durante o trabalho de
parto, e procedimentos adequados à situação da mulher, fundamentados em
comprovações médicas e numa conduta guiada pela ética. Essa reivindicação
de movimentos pelo parto humanizado19 emerge devido às condições
praticamente desumanas e absurdas e o precário atendimento que ocorre
durante o parto.

Portanto, a humanização do parto tem por escopo melhores condições


para esse processo biológico essencialmente feminino. Nesse aspecto, a falta
de humanização dos partos não seria corolário dessa biopolítica sobre as
populações, que coloca uma padronização até no procedimento do
nascimento? Os procedimentos médicos padronizados – vistos como
mecanismos de poder –, envoltos no discurso médico-jurídico, no contexto da
sociedade misógina e religiosa, acabam sendo impostos, coibindo as
peculiaridades de cada corpo. Tendo isso em mente, talvez pensar uma
biopolítica voltada para o corpo em sua complexidade e especificidade, poderia
fomentar um novo paradigma não só sobre o parto, mas também sobre as
diversas formas de políticas sobre o corpo da mulher.

5) A proteção do corpo e a precariedade

19
“O parto humanizado compreende o atendimento centrado na mulher, individualizado,
fundamentado na medicina baseada em evidências, no respeito à evolução fisiológica do parto
e, portanto, na indicação criteriosa dos partos cesáreos, que não deve ultrapassar a taxa de
15%, conforme recomenda a World Health Organization” (Nagahama, Elizabeth Eriko Ishida ;
Santiago Silvia Maria. Rev. Bras. Saude Mater. Infant. vol.11 no.4 Recife Oct./Dec. 2011).
(...) Nós não nascemos primeiro e em seguida nos tornamos
precários; a precariedade é coincidente com o próprio nascimento (o
nascimento é, por definição, precário), o que quer dizer que o fato de
uma criança sobreviver ou não é importante, e que sua sobrevivência
depende do que poderíamos chamar de uma “rede social de ajuda”. É
exatamente por que um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar
dele para que possa viver. Apenas em condições nas quais a perda
tem importância o valor da vida aparece efetivamente. Portanto, a
possibilidade de ser enlutada é um pressuposto para toda a vida que
importa (...). De forma mais geral, pode-se argumentar que os
próprios processos da vida envolvem destruição e degeneração, mas
isso não nos diz, de modo algum, qual tipo de destruição é
eticamente relevante e qual não é. Determinar a especificidade
ontológica da vida nessas circunstâncias nos levaria, de modo mais
geral, a uma discussão de biopolítica, preocupada com as diferentes
maneiras de apreender, controlar e administrar a vida, e como essas
modalidades de poder se infiltram na definição da vida propriamente
dita (...) (BUTLER, p. 32-34, 2009).

Quando falamos em corpo também pensamos nas vidas dos sujeitos


que regem e “possuem” este corpo. Por isso, analisar a situação dessas vidas
pode nos levar a compreender melhor as circunstâncias, os motivos, e as
vicissitudes que ensejaram que indivíduos dispusessem “desta ou daquela”
forma sobre seu próprio corpo.

Seguindo a vertente foucaltiana, pensando as relações de poder, o


discurso e a (des) construção de concepções tidas por naturais, Judith Butler20
é proeminente pensadora contemporânea. Suas considerações no dão aporte
filosófico e sociológico para ponderar a questão da vida na condição de
precariedade e vulnerabilidade.

Com o pensamento de Butler, observamos a condição de precariedade


como elemento que constitui as noções de subjetividade e de sujeito. Perceber
a precariedade seria pressuposto para o reconhecimento do outro. Nesse
sentido, levantam-se questões acerca do que seria uma vida. O que levaria
uma vida a ser passível de luto e outras a serem configuradas como precárias
e abjetas?

20
Na linha do pensamento de Michel Foucault e Jacques Derrida, Judith Butler se destaca por
ser uma das principais expoentes da teoria queer e dos estudos pós-feministas, e nos últimos
anos, tem lançado o seu olhar sobre o debate político contemporâneo, especialmente no que
diz respeito ao esgotamento das políticas de identidade como forma de obter reconhecimento,
e aos mecanismos de poder “mediante os quais a vida é produzida” (2015)
Com esses questionamentos que são objeto de parte do pensamento de
Butler, percebemos a relação entre uma política sobre os corpos e a situação
em que eles são encontrados ou colocados pelo discurso político. Nessa ótica
Butler entende que todas as vidas são precárias, mas umas são mais que
outras, e que essa condição não se dá apenas pela carência social e material,
mas também por configurações políticas, econômicas, discursivas e de poder.
Assim, por exemplo, se consolidou o papel e o protagonismo subjugado da
mulher na sociedade. Por conseguinte, essa condição, muitas vezes enseja a
submissão a própria venda do corpo da mulher como forma de obter renda.
Este é o caso das mulheres que se prostituem, que especialmente na Europa
são predominantemente oriundas de países subdesenvolvidos e vítimas do
tráfico ilegal de pessoas.

A precariedade atinge a maioria dos estratos sociais, entretanto há


posições que constituem lugares completamente inviáveis para o
desenvolvimento de uma vida. Para a filósofa quando menos uma vida é
passível de luto (sobre quem vai lamentar a sua perda) mais precária essa vida
se apresenta. Nessa perspectiva, uma importante categoria nas teorizações e
problematizações de Butler é a representação, junto com as ideias de
reconhecimento e aparição. Se fazem necessários esquemas de visibilização
para que haja possibilidade de ser representado, por isso há diversas vidas
apagadas, que não conseguem aparecer. Quando aparecem é porque foi
deixado escapar o que não era pra ser visto, como a imagem do menino sírio
morto numa praia da Turquia que ficou famosa em 2015, mostrando a crise
imigratória. Pensa-se então nessas vidas em meio a guerras e conflitos pelo
mundo que cotidianamente assolam vidas precárias, que nem serão
percebidas se deixarem de existir, pois nunca existiram para a maioria da
sociedade.

Então como pensar uma vida boa, não precária para aqueles indivíduos
que sequer tem sua vida reconhecida, não no sentido de ser reapresentada,
mas de ter sua existência reconhecida? Dessa maneira, depreendemos com
auxílio de Butler que as vidas que existem são as vidas organizadas
biopoliticamente, enquanto outras não são nem consideradas como vidas, e
assim não podem ser representadas.

Dessa maneira, podemos perceber formas políticas, abrangendo aqui a


biopolítica - através de técnicas de governo - produzindo insegurança
econômica, a regulação de subjetividades, e, por fim a precariedade. Como
Butler aborda em sua obra “Quadros de guerra - quando a vida é passível de
luto?”, haveria um enquadramento que qualifica vidas de acordo com molduras
epistemológicas. Há corpos expostos à essa precariedade, outros não
reconhecidos, outros jogados na margem, outros abjetos e outros nem
enlutados. Sobre isso, considera Greyce Falcão

O corpo é constituído social e politicamente, através da linguagem, do


trabalho e do desejo. Ao mesmo tempo em que o corpo pode estar ou
não, exposto a precariedade. Só reconhecendo a precariedade, é que
podemos proteger a vida contra a violência. Os enquadramentos
atuam para diferenciar as vidas, através de condições normativas que
definem as condições de reconhecimento. Percebemos, no entanto,
que as normas operam para tornar certos sujeitos pessoas
“reconhecíveis” e tornar outros difíceis de reconhecer. Essas normas
preparam o caminho para o reconhecimento. Não há vida nem morte,
sem relação com um determinado enquadramento. Quem está fora
da normatividade se torna um problema. (FALCÃO, p. 6, 2015).

Por dependermos de uma rede de cuidados, de ajuda e de condições


sociais e políticas desde o nascimento se consideram todas as vidas como
precárias. Apesar disso, com as guerras, conflitos armados e atentados se
evidenciam vidas que parecem não serem dignas de proteção. Depreende-se
na guerra, que há vidas que devem ser destruídas sem que alguém as lamente
e outras devem ser preservadas.

Perpassando em linhas gerais sobre o tema da precariedade em Butler,


podemos inferir intersecções entre a ideia de vidas precárias e a maior
necessidade de proteção sobre elas, e, por conseguinte, sobre seus corpos. É
notável que vidas mais precárias serão mais propensas a submeter-se a
situações de exploração, onde precisam dispor do próprio corpo ou de parte
dele, ou são ilegalmente submetidas por terceiros.
Tratando-se das mulheres,21 sobre as quais incide mais fortemente o
biopoder e a precarização, por meio de restrições aos direitos e liberdades
reprodutivas, podemos observar a questão da prostituição e das “barrigas de
aluguel”. Quais as chances de uma mulher de classe alta, com bom acesso à
educação se prostituir? Com que frequência uma mulher assim serve de
“barriga de aluguel”, em casos de pagamento por meio de contratos?
Pensando sobre isso, é fácil concluir que quanto mais precária é uma vida
maior será a exposição desta aos atos de disposição sobre o corpo, praticados
pelo próprio indivíduo ou aliciados por terceiros, que possam colocar em risco
sua integridade física.

Aqui vale destacar o caso da legalização da prostituição em alguns


países da Europa, como Holanda e Alemanha. Apesar da regulamentação da
atividade das profissionais do sexo como alguns chamam, os efeitos da nova
regulamentação não se mostram satisfatórios. O que aconteceu foi o estímulo
da ‘’comercialização’’ de corpos, fomentado o mercado do sexo e o grande
aumento de mulheres de outros países, especialmente do Leste Europeu e
Norte da África. Estima-se que, na Alemanha22 em torno de 70% das pessoas
(mulheres, transexuais, homens) que se prostituem são estrangeiros, e grande
parte deste percentual advém do tráfico ilegal de pessoas praticado entre os
países. Muitas vezes, quem se submete a essa vida, ou que são vítimas do
tráfico são pessoas com baixa renda e socialmente desprotegidas

6) Conclusão

É incontroverso que não há autonomia absoluta dos indivíduos sobre


seu próprio corpo. Vários casos demonstram a ingerência sobre a
autodeterminação, e por conseguinte, sobre o corpo, seja por parte do poder
político, estatal, médico, jurídico, social e cultural.
21
Sobre as mulheres e o controle reprodutivo, o poder sobre o corpo feminino é palco de
discussões pela controversa questão do aborto. O mesmo se mostra como um verdadeiro
problema entre mulheres onde a precariedade é mais presente, porque para as mulheres com
boas condições sociais e econômicas o aborto provavelmente será praticado e escondido dos
olhos da sociedade.

22
Ver mais em: https://br.boell.org/pt-br/2014/05/09/prostituicao-na-alemanha-e-legal
No primeiro caso abordado, sobre o bebê filho de Testemunhas de
Jeová, cabe analisar se foi idônea a decisão do juiz ao autorizar a transfusão
de sangue. Existiu uma escolha entre princípios, um choque entre direitos
fundamentais, priorizando a sobrevivência do recém-nascido, que por ser
incapaz estava sob poder dos seus pais. Mas, nesse caso a autodeterminação
foi ferida? Pressupondo que o bebê - uma vida precária por excelência na
concepção trazida por Butler -, será no futuro um indivíduo autônomo e
plenamente capaz, podemos pensar que garantir a vida do bebê nesse
momento é um pressuposto para assegurar sua autodeterminação.

No aspecto histórico, foi uma forma extrema de biopolítica – a ideologia


nazista -, que fez o direito enxergar a necessidade de construir mecanismos de
proteção do indivíduo em sua corporeidade. Por isso o direito, tanto
internacional, quanto interno passou a se preocupar com as limitações da
disposição sobre o corpo, colocando vedações. Porém, no que se refere aos
dispositivos do direito privado no Brasil, ainda há insuficiência de mecanismos
que deem conta de proteger o corpo e a autonomia, levando em conta a
dinamicidade social.

Nesse sentido, a biopolítica como limitação da disposição sobre o corpo,


ao mesmo tempo que, se apresenta como controle biológico e domina os
corpos (sentido do corpo múltiplo, a população) pode ser vista como ingerência
protetiva. Ou seja, na sua faceta positiva, do “fazer viver”, a biopolítica pode ser
mecanismo que circunscreva a liberdade sobre o próprio corpo.

Os valores da sociedade de consumo, fazem com que no anseio por


alçar melhores condições, pessoas vendam seus corpos ou parte deles para
obter uma renda. As pessoas que se submetem a isso, frequentemente são as
que possuem maior precariedade de condições. Por isso, essas vidas estão
mais expostas a abusos e acometimento da integridade física, como podemos
ver através do perfil das mulheres que se prostituem, nas pessoas que são
exploradas no trabalho, em quem “aceita” vender seus órgãos e assim por
diante. Dessa maneira, a autodeterminação como expressão de liberdade do
indivíduo é um valor a ser respeitado. Porém, quando práticas relacionadas às
questões culturais ou pessoais colocam em risco a integridade física de
sujeitos, se discute se o Estado precisa sempre intervir.

Conclui-se, portanto, que a precariedade da vida denuncia a


necessidade de proteção. Por isso, há situações em que devem haver óbices à
autodeterminação, porque existem vidas tão precárias que quando pensam
estar exercendo sua autonomia, na verdade é sua própria autodeterminação
que está sendo lesada. Ou seja, a autodeterminação não pode mascarar
abusos, porque há vidas em que a proteção é necessária para que possam se
autodeterminar. Sendo assim, quando se acomete a integridade física da
pessoa, talvez seja necessário observar se realmente há uma determinação
autônoma ou o que existe é a falta de escolha.

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