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Laís Pagnoncelli1
1) Introdução
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Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal do Paraná
discursos (na área médica, científica e jurídica) existentes, como meios
legitimadores de intervenção ou abusos na esfera individual, intervindo direta e
subliminarmente nos corpos.
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McEWAN, Ian. A Balada de Adam Henry. São Paulo, 2014.
pretendem universais. Quadro esse, que pode ser tido como corolário de uma
percepção que coloca em contraste a perspectiva do universalismo e do
relativismo em relação aos direitos humanos. Para melhor entender essa
dicotomia que ainda hoje permeia questões importantes, é interessante mostrar
rapidamente o processo histórico e filosófico que configura esse debate
contemporâneo.
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Há ainda outros autores que designam por hipermoderno, como Gilles Lipovetsky, ou como
modernidade líquida em Bauman, ou ainda por transmoderno na ótica dos pensadores das
epistemologias do sul.
jornadas extenuantes e condições insalubres), implicando que a liberdade de
alguns subjugasse a de outros.
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Em uma perspectiva mais histórica aponta José Antônio Peres Gediel “Os traumas sofridos
pelas sociedades europeias e as consequências planetária advindas da 2ª guerra mundial
demonstraram a insuficiência da tutela jurídica oferecida pela modernidade ao sujeito de direito,
com base no direito subjetivo e nas liberdades públicas” (2000, p. 45).
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Filósofo italiano que possui obras eminentes sobre filosofia política e moral. Vale destacar
suas importantes contribuições para o debate da biopolítica e questões contemporâneas.
Nesse contexto, com o escopo de proteger indistintamente o direito dos
indivíduos, o caráter universalista6 dos direitos humanos ganha força. Não
obstante, a fim de denunciar a inaplicabilidade universal dos direitos humanos,
os relativistas passam a engendrar uma doutrina que tem por fundamento
basilar a cultura dos povos, e o respectivo respeito ao multiculturalismo.
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Como atenta Flávia Piovesan, parece que a Declaração de Viena de 1993, além de afirmar a
universalidade dos direitos humanos, acolheu fortemente a ideia de universalismo em
detrimento do relativismo.
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O liberal Stuart Mill dizia "Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é
soberano (1859)”. Sobre o ideal libertário e liberdades sobre o corpo o livro “Justiça, o que é
fazer a coisa certa” de Michael Sandel, aborda casos hipotéticos e verídicos que colocam em
confronto perspectivas filosóficas controversas, e discute quais os limites de uma filosofia
libertária frente à vida como fim em si mesma na filosofia kantiana.
por fim proteger a vida dos indivíduos e coibir práticas abusivas sobre eles.
Então, após a instabilidade causada pelo quadro jurídico do período da
Segunda guerra mundial - caracterizada por terríveis violações aos direitos
humanos -, os direitos, num viés personalista, emergem com nova perspectiva
ética e axiológica:
A assunção de semelhante posição teórica requereu, inicialmente, o
resgate de valores fundantes do Estado de Direito, expressos nas
Declarações jusnaturalistas, mas desvalorizados na construção do
direito positivado, tais como a dignidade humana, a resistência à
opressão e a desobediência civil. Esses valores sugerem a noção de
autodeterminação da pessoa e admitem, até mesmo, a ruptura com o
direito constituído (GEDIEL, p. 34, 2000,).
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O genocídio revela uma faceta relevante de como o corpo foi objeto de uma forma política, a
biopolítica que se degenerou em tanatopolítica, com a utilização de técnicas de extermínio, a
fim de levar a cabo os ideais nazistas em prol da “proteção” da nação alemã, dentro de um
paradigma imunitário.
Ao se referir ao crime de tráfico de pessoas seja ele para fins de
exploração sexual ou qualquer outra modalidade, tem-se que o objeto
desta prática é justamente o ser humano, dotado de autonomia e que
deveria ter sua dignidade preservada como determina a Constituição
Federal de 1988. No entanto, trata-se de pessoas que são colocadas
no “mercado de trabalho” não para exercer determinada profissão,
mas para ser o objeto de negociações entre as associações
criminosas e os consumidores e, neste passo, quando uma pessoa é
obrigada a prestar serviços sexuais em troca de alguma
contraprestação, não é apenas a dignidade sexual que é atingida,
uma vez que com a situação precária a que são submetidas, o direito
à saúde, à integridade física e, consequentemente, à vida, também
são violados (SILVA; BIZZOTTO, p. 91, 2016).
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https://www.dn.pt/globo/asia/interior/chines-vende-rim-para-comprar-ipad-e-iphone-
2718496.html. Em 2012, segundo o Ministério da saúde da China 1,5 milhões de pessoas
precisavam de transplantes no país, sendo que apenas 10 mil transplantes são realizados
anualmente na China.
direito? Sendo que o pai biológico foi quem contratou (junto com sua esposa
que não podia ter filho por ter esclerose múltipla).
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A intervenção sobre o corpo se apresenta em duas frentes: a intervenção causada pelo
próprio sujeito (autolesão) ou de um terceiro autorizado devidamente habilitado ou não na sua
profissão. A primeira forma é unilateral, que envolve a disponibilidade sobre o próprio corpo, ou
seja, sobre o alcance da autonomia da vontade no que concerne ao próprio corpo físico. Na
segunda frente tem-se um terceiro autorizado devidamente habilitado ou não na sua profissão,
é bilateral, diz respeito à atuação de uma pessoa sobre um corpo que não é o seu.
corpo, bem como garantias legais, assunto este tratado por Anderson
Schreiber.
Por fim, o dispositivo ao aludir aos “bons costumes” traz uma noção
muito ambígua, imprecisa e controversa especialmente em contraste a
mudanças na área da ciência, tecnologia e até mesmo da cultura. Nessa
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“O sujeito não pode, portanto, dispor livremente de seu invólucro corporal, como se sua
vontade estivesse desvinculada da finalidade sustentada pelo interesse público e social, nem
lhe é permitido pôr em risco sua incolumidade física, contrariando os interesses da coletividade.
Decorrem daí as limitações à liberdade individual, em relação, por exemplo, às autolesões ou
lesões consentidas para realização de cirurgias (...) (GEDIEL, p. 99, 2000).
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“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando
importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”
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SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade/ Anderson Schreiber. 2. ed. - São Paulo:
Atlas, 2013.
perspectiva cabe destacar as modificações corporais, onde encontramos
práticas de bodyart e bodymodification. Desse modo, pessoas fazem drásticas
alterações em seus corpos relacionados a razões religiosas ou estéticas, as
quais podem entrar em contrassenso com o que se entende por “bons
costumes”, revelando a problemática do Artigo 13 do Código Civil de 2002.
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O corpo como objeto de reflexão é colocado em evidência no campo filosófico, através da
filosofia da vontade, ainda no século XIX (com destaque ao filósofo Nietzsche), mas avultam os
estudos no século XX, onde se destaque autores como Foucault, Esposito e Agamben. Nesse
sentido, a consciência e a racionalidade tão centrais no pensamento filosófico deixa de ser
objeto quase que único do pensamento, e a ótica sobre o estatuto do ser humano e seu corpo
redesenham novos horizontes ao pensar filosófico.
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Razão ou substância pensante, como colocou o dualismo cartesiano entre corpo e alma, a
res extensa e res e res cogitans. Seria então, a substância pensante que regeria a matéria, o
corpo, que permitiria manejar suas potencialidades.
das potências do corpo, na busca incessante de promover seu
melhoramento e atingir a perfeição, também surge uma dimensão que
parece pertencer ao universo jurídico, que é a disposição do próprio
corpo. Ainda que seja o direito a pensar pontualmente quais as
formas e os limites de disposição do próprio corpo, não podemos
deixar de notar, por um lado, a herança desta compreensão em
relação ao corpo objeto e máquina e, por outro lado, sua relação com
as práticas atuais de bioascese (FONSECA, p. 62, 2014).
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“(...) o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas
características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política,
numa estratégia geral de poder” (Foucault, 2008, p. 3).
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Observa-se com Foucault que com a biopolítica o corpo ganha um sentido de multiplicidade,
o corpo visto como população.
de estimativas, previsões e mecanismos de segurança18. Em Segurança,
território e população, Foucault mostra que a população é o objeto dos
mecanismos de segurança que atuam a fim de modificar, acentuar ou diminuir
os efeitos dos fenômenos coletivos.
Exemplo disso pode ser visto na ideia dos corpos degenerados, criação
do discurso nazista. Nesse contexto foi elaborado todo um discurso médico-
jurídico sobre o corpo daqueles que deviam ser exterminados (judeus,
homossexuais, ciganos, negros) a fim de legitimar a tanatopolítica, que dita que
para que alguns possam viver é preciso que outros deixem de viver. Aí temos a
experiência histórica de uma política da morte, do extermínio. Essa é a lógica
do paradigma imunitário, concepção trabalhada por Esposito, buscando
mostrar as formas pelas quais se configurou a ideia da imunização de uma
comunidade, como meio necessário para garantir própria sobrevivência. Nesse
sentido, será que ainda hoje vivemos sob a lógica do paradigma imunitário? A
precarização da vida, a exclusão de alguns mais que de outros - as mortes por
racismo, homofobia, religião -, não seriam maneiras sutis dessa lógica?
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Os mecanismos de segurança incidem na população, podem ser vistos como forma de
tecnologias de poder, que seriam orientadas pela governamentalidade, conduzindo condutas. E
seria aí que o Estado moderno utilizaria os mecanismos de segurança na condução dos
fenômenos populacionais, juntamente com os saberes da estatística, previsões e meios de
comunicação. Assim esses mecanismos de segurança acabam por legitimar a soberania dos
Estados.
desenvolvimento da vida e fornecem condições mais humanas nos diversos
processos biológicos e sociais.
A questão do parto humanizado, por exemplo, pode ser vista sob essa
ótica. A proposta da humanização do parto vem à tona com a premência em se
garantir tratamentos menos invasivos que respeitem as particularidades do
corpo e da vontade da mulher. Também se busca assegurar a qualidade da
assistência e capacitação da equipe médica. Reivindicam-se partos em
ambiente hospitalar, o direito a ter um acompanhante durante o trabalho de
parto, e procedimentos adequados à situação da mulher, fundamentados em
comprovações médicas e numa conduta guiada pela ética. Essa reivindicação
de movimentos pelo parto humanizado19 emerge devido às condições
praticamente desumanas e absurdas e o precário atendimento que ocorre
durante o parto.
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“O parto humanizado compreende o atendimento centrado na mulher, individualizado,
fundamentado na medicina baseada em evidências, no respeito à evolução fisiológica do parto
e, portanto, na indicação criteriosa dos partos cesáreos, que não deve ultrapassar a taxa de
15%, conforme recomenda a World Health Organization” (Nagahama, Elizabeth Eriko Ishida ;
Santiago Silvia Maria. Rev. Bras. Saude Mater. Infant. vol.11 no.4 Recife Oct./Dec. 2011).
(...) Nós não nascemos primeiro e em seguida nos tornamos
precários; a precariedade é coincidente com o próprio nascimento (o
nascimento é, por definição, precário), o que quer dizer que o fato de
uma criança sobreviver ou não é importante, e que sua sobrevivência
depende do que poderíamos chamar de uma “rede social de ajuda”. É
exatamente por que um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar
dele para que possa viver. Apenas em condições nas quais a perda
tem importância o valor da vida aparece efetivamente. Portanto, a
possibilidade de ser enlutada é um pressuposto para toda a vida que
importa (...). De forma mais geral, pode-se argumentar que os
próprios processos da vida envolvem destruição e degeneração, mas
isso não nos diz, de modo algum, qual tipo de destruição é
eticamente relevante e qual não é. Determinar a especificidade
ontológica da vida nessas circunstâncias nos levaria, de modo mais
geral, a uma discussão de biopolítica, preocupada com as diferentes
maneiras de apreender, controlar e administrar a vida, e como essas
modalidades de poder se infiltram na definição da vida propriamente
dita (...) (BUTLER, p. 32-34, 2009).
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Na linha do pensamento de Michel Foucault e Jacques Derrida, Judith Butler se destaca por
ser uma das principais expoentes da teoria queer e dos estudos pós-feministas, e nos últimos
anos, tem lançado o seu olhar sobre o debate político contemporâneo, especialmente no que
diz respeito ao esgotamento das políticas de identidade como forma de obter reconhecimento,
e aos mecanismos de poder “mediante os quais a vida é produzida” (2015)
Com esses questionamentos que são objeto de parte do pensamento de
Butler, percebemos a relação entre uma política sobre os corpos e a situação
em que eles são encontrados ou colocados pelo discurso político. Nessa ótica
Butler entende que todas as vidas são precárias, mas umas são mais que
outras, e que essa condição não se dá apenas pela carência social e material,
mas também por configurações políticas, econômicas, discursivas e de poder.
Assim, por exemplo, se consolidou o papel e o protagonismo subjugado da
mulher na sociedade. Por conseguinte, essa condição, muitas vezes enseja a
submissão a própria venda do corpo da mulher como forma de obter renda.
Este é o caso das mulheres que se prostituem, que especialmente na Europa
são predominantemente oriundas de países subdesenvolvidos e vítimas do
tráfico ilegal de pessoas.
Então como pensar uma vida boa, não precária para aqueles indivíduos
que sequer tem sua vida reconhecida, não no sentido de ser reapresentada,
mas de ter sua existência reconhecida? Dessa maneira, depreendemos com
auxílio de Butler que as vidas que existem são as vidas organizadas
biopoliticamente, enquanto outras não são nem consideradas como vidas, e
assim não podem ser representadas.
6) Conclusão
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Ver mais em: https://br.boell.org/pt-br/2014/05/09/prostituicao-na-alemanha-e-legal
No primeiro caso abordado, sobre o bebê filho de Testemunhas de
Jeová, cabe analisar se foi idônea a decisão do juiz ao autorizar a transfusão
de sangue. Existiu uma escolha entre princípios, um choque entre direitos
fundamentais, priorizando a sobrevivência do recém-nascido, que por ser
incapaz estava sob poder dos seus pais. Mas, nesse caso a autodeterminação
foi ferida? Pressupondo que o bebê - uma vida precária por excelência na
concepção trazida por Butler -, será no futuro um indivíduo autônomo e
plenamente capaz, podemos pensar que garantir a vida do bebê nesse
momento é um pressuposto para assegurar sua autodeterminação.
Referências Bibliográficas: