Você está na página 1de 2

família

irmãos
para sempre
A relação entre irmãos é peça fundamental na nossa construção psíquica e
história pessoal. Mas nunca é inteiramente fácil ou isenta de conflitos, como
gostaríamos que fosse. O certo é que apesar das zangas, das rivalidades e dos
ciúmes criados entre irmãos desde a mais tenra infância, os laços familiares
permanecem indestrutíveis. Perduram mesmo à distância e as reaproximações
abundam, ainda que às vezes tardias.
Texto de Ana Vieira de Castro

P
orque destruíste e minha vida? perguntava à mãe um O FILHO MAIS VELHO. Profissionais garantem que, na observação
rapazinho precoce, com apenas quatro anos de idade e dos pais que os vêm consultar, é visível que estes se sentem, de facto,
um irmão acabado de nascer. Resumia assim todo o seu muito mais à vontade com o segundo do que com o primeiro filho,
sofrimento e decepção ao ver desmoronar um mundo que o que poderá ter a ver, por exemplo, com as circunstâncias muito
até aí lhe pertencia em exclusivo. Na verdade, não há volta a dar : o específicas em que o primogénito vem ao mundo: «pais inexperientes,
nascimento de um irmão mais novo é sentido pelo mais velho como que vão ser pela primeira vez pai e mãe, com toda a responsabilidade
uma verdadeira intrusão num mundo seguro que assim se vira do psíquica e social que isso acarreta», assegura Otília Monteiro Fernandes,
avesso. Nesse lugar de amor exclusivo de que era o centro, o irmão Professora Auxiliar do Departamento de Educação e Psicologia da
«mais velho» sente perdidas todas as suas referências e armas face ao UTAD. Tudo é diferente e novo, em especial para a mãe que «vive a
minúsculo intruso que lhe rouba a tranquilidade e o sono. Suporta mal sua primeira gravidez e primeiro parto, com os medos, as expectativas,
ver a mãe e o pai debruçarem-se sobre o berço, sente-se dilacerado a curiosidade e as alegrias» que este novo acontecimento implica. Para
com os carinhos e os cuidados dados a esse novo ser que agora ocupa o bebé, «ser o primeiro a «abrir» aquela mãe, pode não ser fácil»,
todo o colo da mãe. acrescenta.
Porém, não é o primeiro nem será o último Acrescente-se que a «inexperiência
no mundo a sofrer este «cataclismo interior»,
que não é mais do que o passaporte para a
A rivalidade é a mola parental» leva a alguns «excessos» o que
se reflecte, por exemplo, na quantidade de
fraternidade e a partilha. É a condição natural que permite à criança «idas a consultas e urgências médicas (e até
de todos os primeiros filhos. Mas até chegar psicológicas) pelas mínimas razões». Os pais
a usufruir plenamente do prazer de socializar, crescer e «vingar» de sentem «necessidade de apoio e de conselhos
o filho mais velho terá que fazer um caminho de outros adultos que já foram pais, ou de
nem sempre fácil, pontuado de rivalidades e uma forma saudável técnicos especializados. Naturalmente, «os
ciúmes, sentimentos indispensáveis para uma
boa construção psíquica apesar da dor que
dentro da fratria. segundos e restantes filhos já desfrutam da
«sabedoria/aprendizagem» parental entretanto
comportam. Senão, vejamos. Longe de ser adquirida através do primeiro filho».
negativa, sublinha o pedopsiquiatra francês Contudo, ao contrário do que alguns
Marcel Rufo, a rivalidade é a mola que permite à criança crescer e possam pensar, o «excesso de atenção e preocupação parentais não é
«vingar» de uma forma saudável dentro da fratria. Não sendo exclusivo dramático nem pernicioso», sublinha Otília Monteiro Fernandes, pela
dos filhos mais velhos, o velho ciúme, dor de cabeça de muitos pais e simples razão de que ter «a devoção e exclusividade dos «dois pares
tormento particular dos primogénitos, não só é natural, como é sinal de olhos» dos pais só fazem bem à criança primogénita, uma vez que
de que tudo «vai bem». Problema seria se uma criança pequena não lhe permitem que ela cresça confiante e segura para explorar o meio
mostrasse nenhuma agressividade em relação ao bebé que acaba de ambiente, o que lhe incrementa o desenvolvimento afectivo-cognitivo»
nascer. O ciúme é também necessário para que o mais velho faça o luto . De facto, alguns estudos revelaram que os filhos mais velhos são
Carla Pott

do sentimento do pleno poder sentido graças à condição de «pequeno «mais inteligentes», revelação que não nos permite, contudo, fazer
rei», o que lhe permitirá aprender o difícil mas necessário exercício demasiadas generalizações. São certamente mais responsáveis, segundo
da partilha. a experiência e a opinião de vários autores, entre os quais a professora

Setembro 2007 I Pais & Filhos I www.paisefilhos.pt 37


família

Filho mais velho


Se foi muito desejado, se correspondeu às ex-
pectativas e se beneficiou de proximidade e Otília Monteiro Fernandes. Fomentada pelos pais atentos e sensíveis, que consigam colocar- que assim é, porque, assegura Otília Monteiro Fernandes a «expressão Amor e singularidade. Se as preferências declaradas geram
exclusividade parentais, tenderá a desenvolver
determinadas características como um certo con-
pais, esta responsabilidade pode surgir «como se na pele da criança e tentar sentir o que ela livre das rivalidades entre irmãos na infância e na juventude, torna graves desigualdades e sofrimento nos filhos, também é verdade que
servadorismo e a comportar-se como «crescido». forma de compensar o primogénito das perdas sente, prepararem-na convenientemente para muito mais fácil a relação quando chegarem à idade adulta». Nessa o amor distribuído por todos os filhos não é, nem pode ser, «igual» em
Os pais são tentados a depositar nele uma série de sofridas aquando da «destronação», quando essa primeira fase de perdas e de confrontos. altura, sentirão menos necessidade de «ajustarem contas com o termos da sua qualidade, mas apenas no sentido em que eles devem
expectativas, especialmente se for rapaz. É «domi- nasce o segundo filho, como a «exclusividade Os pais devem, sobretudo, assegurarem-na passado». Aos pais cabe «não uma ingerência mas uma supervisão, ser amados «na justa medida que cada um necessita», salienta Otília
nante e líder», identificando-se com a autoridade do pais». de que continua a ser amada. Quanto menos ela sem a qual, muitas vezes os mais novos - em princípio fisicamente Monteiro Fernandes. «Se cada um se sentir bem com o que recebe, não
dos pais. Depois do nascimento do irmão mais
novo, os pais «solicitam-lhe que se recoloque na
Estes incentivam o filho mais velho a ajudar a duvidar da capacidade que eles têm de amarem mais frágeis - poderão ficar esmagados sob o peso da tirania dos há reclamações», o que é sinal de «não haver nem se sentir a injustiça»
família e assuma, agora, o papel de mais velho». cuidar do mais novo «não só para minimizarem os dois filhos ao mesmo tempo, menos ansiosa mais velhos». Outros especialistas reforçam esta ideia, chamando a na fratria.
A delegação de cuidados , pretende compensar os conflitos fraternais, se irá sentir. No entanto, atenção dos pais para a importância da vigilância como garantia do As razões de amarmos diferentemente os nossos filhos são múltiplas,
a «destronação. Representa o poder estabelecido como também para, os ciúmes, são, como respeito pelos interditos, da protecção dos mais fracos, do controle mas podemos começar por destacar as diferentes circunstâncias em que
e é o detentor do statu quo familiar. paulatinamente, irem A socialização acima se refere, uma da violência entre os membros da fratria e da necessidade de colocar cada um vai nascendo, e do tipo de disponibilidade parental, física ou
dizendo ao primogénito atitude reactiva normal, limites e referências. Se não o fizerem, reinará a lei do mais forte. psíquica com que as crianças podem contar. Mas não é tudo. Outro factor
Filho do meio
Devido à sua «posição fraternal híbrida», os filhos que, de ora em diante, e a partilha na infância mesmo que a sua Numa outra perspectiva, a hiper-responsabilização do filho mais marcante é o progresso da aprendizagem que entretanto os pais vão
já não é o seu único manifestação se torne velho em relação aos irmãos mais novos, em concreto, é sentida adquirindo em relação às formas de lidar com os filhos, pela oportunidade
do meio têm uma posição indefinida no seio dos
irmãos devido à menor atenção e interacção fami- filho, que tem um são as fundações muitas vezes difícil de com um peso esmagador que muitas vezes resulta num desejo de de aprender, com o tempo, a corrigir erros e práticas. O segundo e o
liar de que dispõem. Podem ter têm baixos índices
de auto-estima, sentimentos de inferioridade, de
irmão com quem terá
de saber (com)partilhar
na nossa vida relacional aceitar e «aguentar»
pelos pais, confusos
perfeição absoluta da parte da criança precocemente investida de
responsabilidades, tal como sentimentos de medo e culpa de não
terceiro filho vão certamente beneficiar dessa experiência.
Contas feitas, o melhor que lhes podem ensinar, é a amarem-se a
insegurança e abandono, sobretudo quando a
diferença de idade relativamente ao irmão mas o espaço familiar». de adultos. e cansados por terem corresponder às expectativas dos pais. Os filhos mais velhos não si próprios, nomeadamente ajudando-os a descobrir e a valorizar a
velho é significativa. Esta situação não se verifica Segundo a psicóloga, de dividir a atenção e devem ter nenhum papel na educação dos mais novos, sublinha Claude sua singularidade. «Não é o lugar ocupado na fratria que importa»,
Classificações obtidas no livro «Ser único ou ser irmão», da autoria de Otília Monteiro Fernandes, Psicóloga. Editora Oficina do Livro.

quando o irmão do meio é o único rapaz ou a a aprendizagem «da o afecto entre o mais Halmos, psicanalista francesa. É aos pais que compete essa tarefa. sublinha Marcel Rufo, mas sim «a própria criança, a sua personalidade,
única rapariga no grupo de irmãos. Porque não partilha e da sociabilidade» é crucial, uma velho e o mais novo, e ainda de prestar cuidados Quando um primogénito tenta compensar a desresponsabilização o seu desenvolvimento, a sua capacidade de adaptação». Os irmãos são
terem as vantagens do mais novo nem os direito
do primogénito, crêem-se «expulsos e abandona-
opinião que, de resto, reúne o consenso a uns e outros. parental, não lhe restam forças para construir a sua própria vida nem forçosamente diferentes, com personalidades, temperamentos e estilos
dos». São solitários, independentes, cooperativos, de todos os especialistas. Em causa está a Mal gerida, a relação entre todos os irmãos, para ajudar os seus irmãos, porque não tem possibilidade de lhes dar próprios. É fundamental «tirar de dentro para fora o que de melhor
bons negociadores, competitivos e adaptáveis, maneira como irão, mais tarde, viver as suas pode trazer mágoas que se arrastam uma vida as referências que os mais novos precisam. Sentindo essa impotência possuem», como talentos, criatividade, competências, capacidades,

.
pouco convencionais, criativos, imaginativos e relações afectivas, amorosas, de amizade e inteira e que atestam do muito sofrimento como uma falha pessoal, facilmente se culpabilizam, com toda a tudo o que é único e singular. É a condição para encarar o mundo com
intuitivos. companheirismo. A socialização e a partilha passado entre sentimentos de rejeição, baixa gravidade que isso implica. optimismo e confiança.
Filho mais novo na infância, são as fundações na nossa vida auto-estima e falta de confiança. Convém
Grosso modo, o irmão mais novo é o oposto do relacional de adultos. que os pais tenham atenção aos sentimentos
primogénito. Embora considerado o bebé da fa- Por isso, mesmo sozinhos, os filhos negativos que os seus filhos desenvolvem sem
mília, mimado e irresponsável, tem que lutar por únicos deveriam viver numa casa aberta ao exteriorizarem. Se cristalizados, eles tornam-
um espaço onde possa «edificar a sua identida- exterior, e manter regularmente contactos se tóxicos, perturbando a vida da família e o
de». São menos convencionais, mais criativos e
sociáveis do que o mais velho e mais seguros
com amigos, primos e primas. Mas atenção, desenvolvimento psíquico da criança que se
que os do meio, porque não foram destronados. alertam psicólogos e pedopsiquiatras, há que sente isolada na sua dor.
Podem sentir-se negligenciados pelos pais ou respeitar a personalidade de cada criança, É preciso, porém, ter a consciência de que
deixados de fora do mundo dos adultos, mas levando em conta as suas paixões, interesses ou «a aprendizagem da convivência e da partilha
se não tiverem apoio suficiente podem vir a ter temperamentos. Alguns são mais selectivos e não se faz de um dia para o outro. Haverá
condutas auto-destrutivas. Estudos confirmam
a maior frequência desta posição fraternal entre
introvertidos, outros preferem a companhia dos episodicamente muitos conflitos entre os irmãos»,
os consumidores de drogas e de álcool. Mas amigos, os desportos colectivos e as colónias assegura Otília Monteiro Fernandes, que são,
também podem ser super-protegidos pelos pais de férias. Uns e outros não devem ser levados de resto, os problemas mais comuns dentro da
que desejam retê-los no núcleo familiar para que à força a mudarem os seus comportamentos família. Desiludam-se os que julgar que os seus
lhes sirvam de amparo na velhice. porque é suposto ser mais saudável, mais filhos, «nascidos no amor», acrescenta Marcel
Filhos únicos apropriado ou mais em conformidade com as Rufo, «se vão entender perfeitamente».
Crescem relativamente isolados, muito próximo do expectativas dos pais.
mundo dos adultos, com sentido das responsabi- Liberdade e supervisão. As
lidades e missão a cumprir, o que também é típico Os perigos da má gestão. Nenhum crianças de hoje não são menos ciumentas que
dos mais filhos mais velhos. São autoritários, líderes filho mais velho está livre de enfrentar a crise as de ontem, nem a sua agressividade é maior.
e pouco sociáveis. A atenção parental exclusiva de
que desfrutam, desde que «cuidadosamente do-
que lhe provoca o nascimento de um irmão mais Na verdade, nos dias que correm é dada mais
seada e, portanto, não sufocante, é-lhes benéfica e novo, mas cabe aos pais geri-lo da melhor forma, atenção a este tipo de manifestações, inteiramente
proporciona desenvolvimento de boa auto-estima», tendo o cuidado de não acirrar as rivalidades «proibidas» em tempos passados, em que os
graças «a intensa e especial valorização da sua e promover desigualdades, manifestando filhos temiam de tal maneira a autoridade dos
pessoa no meio familiar». Isso dá-lhes confiança preferências, fazendo comparações dolorosas, pais que não se atreviam a exprimir as suas
para enfrentar, com sucesso, o mundo. Se forem
educados num ambiente sociável, não serão tão
ignorando a dor da rejeição de alguns filhos, rivalidades e os seus ciúmes. Actualmente, nas
«inadaptados». Mas se são alvo de hiperatenção ou não permitindo que exteriorizem o seu sociedades modernas, eles sentem-se mais à
e hiperpreocupação, poderão ter dificuldade no sofrimento e ciúme, em particular, sublinhe- vontade para o fazer, e as famílias estão cada vez
processo de separação-individuação e indepen- se, o do filho mais velho face ao recém- mais sensibilizadas e atentas ao desenvolvimento
dência. A grande interacção com os pais, favorece nascido. Esta «prova terrível», como alguns a psíquico infantil e aos sinais que os filhos lhes
maior desenvolvimento cognitivo e motor.
qualificam, deve ser inteiramente apoiada por dão sobre o que sentem e pensam. Ainda bem

38 Setembro 2007 I Pais & Filhos I www.paisefilhos.pt Setembro 2007 I Pais & Filhos I www.paisefilhos.pt 39

Você também pode gostar