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(c.1780-c.1830)
São Paulo
2012
1
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................... 04
2
Capítulo 6 - O Brasil encontra o México: um episódio paradigmático das independências
(1821-1822), em coautoria com Camilla Farah................................................................ 120
6.1 – Apresentação................................................................................................. 120
6.2 - A exposição dos deputados de Nova Espanha............................................... 122
6.3 - A publicação do Revérbero............................................................................ 129
6.4 - Brasil e México em uma perspectiva integrada............................................. 134
Fontes e Bibliografia...........................................................................................................179
3
Introdução
seu objetivo último: elucidar a posição específica que o Brasil ocupa, nas primeiras décadas
premissa, contudo, não passa pela reiteração de uma tradicional ênfase na especificidade
dessa posição como emblema distintivo, a fazer o sobressair o Brasil, ou até mesmo a isolá-
lo, em relação a esse contexto. Pelo contrário: tudo o que aqui se lerá concebe que algumas
das características principais do que se observa com o Brasil nessa época, mais
Bem se vê que, de um modo geral, o problema a que nos referimos não é novo. Há
acontecimentos como aqueles que resultaram nas rupturas entre colônias americanas e suas
respectivas metrópoles europeias, desde finais do século XVIII até princípios do XIX, bem
como dos primeiros momentos de Estados nacionais que a eles deve sua existência, em
perspectivas temporais e espaciais amplas. Diversas tem sido, desde então, as maneiras
4
outro, o fato de que muitos dos próprios agentes históricos da época pensavam desse modo,
etc. Estas são talvez suas formas dominantes, a variarem nos tempos e nos espaços das
Pode-se dizer que a perspectiva dominante nos textos aqui apresentados vincula-se
aos últimos dois pontos acima mencionados. Neles, veremos tratados casos em que a
América portuguesa viveu sua política em função do que a ela chegava advindo de outros
cantos do mundo, em geral daqueles mais próximos a ela. São pessoas que cruzaram
espaços estabelecendo relações entre eles; ideias, textos, notícias e boatos que de parte a
aqui apresentado, por si só, pareceria justificar sua observação; de nossa parte, porém, só os
consideramos relevantes uns em relação aos outros, e, claro, estes em relação a muitos
outros analisados ou apenas mencionados por outros estudiosos. Se a partir daí se desenha
uma unidade histórica a ser sempre levada em conta, também se revela em alguns
estabelecer relações uns com os outros? Quais os mecanismos a permitirem que assim o
interpretação total do contexto ocidental – cada vez mais mundializado e em relação com a
décadas do século XIX; apenas propor uma interpretação dessa inserção, sem nos
esquivarmos de uma necessária discussão teórica que, no entanto, não possui aqui qualquer
5
pretensão à autonomia: trata-se, puramente, de teoria aplicada, isto é, tendo no trabalho
lugar, vivemos tempos bastante favoráveis a diálogos e concepções não limitadas aos
nacional. Não que tais tradições tenham deixado de existir; não que comodidades de língua,
historiadores; não que os temas relativos a espaços hoje identificados como nacionais
tenham sido expropriados dos historiadores daquela nação respectiva, que, desde sempre, a
eles se dedicaram preferencialmente (claro, desde que tais nações possuam um número
razoável de historiadores). Tudo isso continua de pé; mas parece-nos inegável que, muito
mais do que a vinte, trinta ou quarenta anos atrás, hoje é mais fácil propor abordagens de
em termos espaciais, mas também temporais (pois não existe um sem o outro), ainda
encontra, nas ciências humanas, os sinais vitais de uma crise de paradigmas que custa em
desaparecer, que nos dá a impressão de ser perene. Nela, é frequente que empiria e teoria
surjam como rivais, e não como parceiras. Talvez isso ajude a explicar o fato de que, não
pelos historiadores, nem sempre tais abrangências são, de fato, praticadas; e menos ainda
6
problematizadas. No tocante aos estudos da Independência do Brasil, a situação não parece
continua de pé. No caso de nossas ofertas específicas nessa direção, elas se valem
América Espanhola, manancial de muitas ideias sugestivas e que até mesmo resultaram, nos
uma experiência histórica; isto é, que resulta de um conjunto de elaborações realizadas por
meio de leituras da história, de leituras do mundo, que forneceram aos partícipes daquele
processo – e não apenas aos seus protagonistas mais destacados - parâmetros de ação,
situações a exigirem ações para além do pensamento (que também é ação): intervenções e
conduções práticas que tocavam desde a alta política estatal até uma vida cotidiana que se
1
Mencionarei algumas dessas obras e seus autores ao longo dos próximos capítulos, incorporando e
discutindo, sempre que me foi possível, suas propostas.
2
Reinhart Koselleck, “Modernidad”. Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos.
Barcelona: Paidós, 1993, p.287-332.
7
de tempos históricos que, como nos ensina Fernand Braudel, tipifica toda e qualquer
sociedade3. O tempo curto se sobressai como manancial de concepção de uma história que
se torna progressivamente aberta, sem, contudo, deixar de sê-lo também cíclica. Fenômeno,
aliás, que não deve ser estranho ao que vivem nos dias de hoje.
décadas do século XIX, bem como o caráter abrangente dos mesmos 4, vai perfeitamente ao
encontro do que, em determinado momento, István Jancsó assinalou como uma das mais
fundamentais marcas de uma crise que condicionava as formas de fazer política da época, e
da qual resultariam soluções dentre as quais as mais importantes viriam a ser, sem dúvida, a
e magnitude5. É nos interstícios dessas modificações, mais do que nos grandes solavancos
eventos capazes de, modificando-se até mesmo em suas essências, representar algo na
posteridade6. Não buscamos, na maior parte das vezes - que fique bem claro - relações
diretas entre fatos e ideias, “chegando” ao Brasil ou dele “partindo”; não é isso o que
subsidia o que aqui chamamos de experiência, embora por vezes tais relações diretas sejam
3
Fernand Braudel, “História e Ciências Sociais: a longa duração”. Escritos sobre a história. São Paulo:
Perspectiva, 1976, p.41-78.
4
João Paulo G. Pimenta, O Brasil e a América espanhola (1808-1822). São Paulo: FFLCH/USP, 2004
(doutorado); João Paulo G. Pimenta, Brasil y las independencias de Hispanoamérica. Castelló: Publicacions
de la Universitat Jaume I, 2007.
5
István Jancsó, “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. In: F.
Novais (dir.), História da vida privada no Brasil v.I: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.388-437.
8
e recriação, cuja síntese é sempre algo singular, algo novo. Algo muito mais complexo,
Conectada” ou uma “História Global”. O contexto de que aqui tratamos envolve o Brasil e
uma experiência hispanoamericana a marcar a trajetória do Brasil entre 1808 e 1822. Nas
próximas páginas, ainda perseguimos tal fenômeno, dando-lhe mais concretude específica e
América Espanhola, o Brasil se fez presente. Com isso, damos prosseguimento a uma
bem como discutir uma experiência revolucionária mais ampla, a envolver tanto o Brasil
como a América espanhola. Caso contrário, estaríamos diante de uma aberração: uma
América portuguesa que, como uma espécie de buraco negro da história, seria capaz de
absorver energias ao seu redor sem, no entanto, liberar nada para fora dela7.
Dos nove textos aqui reunidos, três ainda são totalmente inéditos; cinco foram
em português e no Brasil. Desse total, dois foram escritos em coautoria com historiadoras
que, à época, desenvolviam investigações acadêmicas sob nossa orientação. Todos foram
6
William Sewell Jr., Logics of History: Social Theory and Social Transformation. Chicago/London:
University of Chicago Press, 2005
7
Aqui temos apenas alguns sinais positivos dessa interação de experiências. Outros poderão vir de pesquisas
promissoras, como as atualmente desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em História Social da
9
revistos, sofreram acréscimos de ideias, informações e bibliografia, e tiveram eliminadas ou
reduzidas passagens que, em função de sua reunião neste volume, pareceriam redundantes
ao leitor; não obstante, algumas foram mantidas com o intuito de preservar parte da
América hispânica”, encontra-se em: María Teresa Calderón & Clément Thibaud (coords).
Brasil e o Rio da Prata”, foi escrito em coautoria com Adriana Salay Leme, e encontra-se
na Revista USP v.79, 2008. O Capítulo 4, “Resistindo à revolução: o Brasil em 1810”, foi
episódio paradigmático das independências”, também foi elaborado em coautoria, desta vez
com Camilla Farah, e editado em 20/10. Memoria de las Revoluciones en México. México
D.F.: RGM Medios, 2010, v.9; os dois capítulos seguintes (“Independências cruzadas do
Universidade de São Paulo por Maria Júlia Neves, Camilla Farah, Edú Trota Levati, Carlos Augusto Bastos e
Adílson Júnior Ishiaia Brito.
10
realizado em Paris, em 2010, e no congresso Entre Imperio e nacións: Iberoamérica e o
Caribe ao redor de 1810, realizado em La Coruña, também em 2010. Por fim, o Epílogo
“experiências”. Pode-se dizer que os dois primeiros capítulos expõem a proposta analítica
geral e seus argumentos centrais por meio de um trabalho empírico indicativo. Os capítulos
foram muito importantes para a consecução dos resultados que aqui apresento. Rafael
Marquese e Valdei Lopes de Araújo foram dois interlocutores fundamentais e, junto com
Juan Ortiz Escamilla, Javier Fernández Sebastián, María Dolores González-Ripoll e Inés
aqui apresentados, contribuindo para melhorá-los. Alejandro Gómez, Alfredo Ávila, André
Roberto Machado, Beatriz Rojas, Clément Thibaud, Fabio Wasserman, Federico Navarrete,
Gabriel Di Meglio, Gabriel Torres Puga, Guillermo Zermeño Padilla, Gustavo Paz, Ivana
Frasquet, Jeremy Adelman, Luiz Geraldo Silva, Marco Antônio Pamplona, Marco Morel,
11
María Teresa Calderón, Roberto Breña e Wilma Peres Costa me ajudaram, diretamente, a
pensar naquilo que ia escrever (e que finalmente escrevi), bem como o professor Fernando
Novais, e István Jancsó (in memoriam), meu mestre, ainda muito presente. Sarah Tortora
Boscov prestou um solícito auxílio na formatação desta obra, bem como no acesso a fontes
12
Capítulo 1
décadas finais do século XVIII e das primeiras do seguinte, costumeiramente desperta nos
historiadores inquietações que gravitam em torno da relação das mesmas com outros
espaços que, pela mesma época, conheciam importantes convulsões políticas e sociais.
Com frequência, tais inquietações incidem mais precisamente em torno das relações entre
em parte de modo justificável, a uma comunhão de significados entre o que elas poderiam
8
Para uma discussão em torno da história de tais propostas analíticas, dentre muitos: Eric Van Young, “Was
There an Age of Revolution in Spanish America?”. In: Victor Uribe-Urán (ed.), State and Society in Spanish
America during the Age Of Revolution. Wilmington: Scholarly Resources, 2001, p.219-246; Roberto Breña,
“Los procesos emancipadores americanos y la revolución hispánica hoy: revisionismos y debates”. In: 20/10 –
Memoria de las revoluciones en México 9, 2010, p.80-97; Ian Steele, “Bernard Bailyn’s American Atlantic”.
In: History and Theory 46, 200; Maria Elisa de Sá Mäder, “Revoluções de independência na América
13
razoável: pois ela indica esforços equivalentes de posicionamento próximo entre
e ampla realidade. E nesse ponto preliminar, estamos todos de acordo. Partindo, assim, do
Para além de uma discussão de ordem terminológica, portanto, o que se segue é uma
nacional do Brasil – e que nos permitem subsidiar a concepção de algo que aqui
Inevitavelmente. Mas que enseja um olhar pouco usual - quiçá útil – para histórias que
morfologias e comparações entre fatos e processos, ainda que reconheçamos a utilidade que
hispânica: uma reflexão historiográfica”. In: Revista de História (USP) 159, 2º. semestre de 2008, p.225-241;
e Jeremy Adelman, “An Age of Imperial Revolutions”. In: American Historical Review, v.113, n.2, april
2008, p.319-340.
9
Dentre vários autores, poderíamos mencionar: Richard Graham, Independence in Latin America: a
Comparative Approach. 2a.ed. McGraw-Hill, 1994 (a primeira edição é de 1972); Tulio Halperín Donghi,
Reforma y disolución de los imperios ibéricos (1750-1850). Madrid: Alianza, 1985; Lester D. Langley, The
Americas in the Age of Revolution 1750-1850. New Haven/London: Yale University Press, 1996; e Anthony
McFarlane, “Independências americanas na era das revoluções: conexões, contextos, comparações”. In:
Jurandir Malerba (org.), A Independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006,
p.387-417.
14
Anteriormente, a categoria analítica experiência, elaborada por Koselleck10, foi-nos
um rol de situações concretas que fizeram das independências da América hispânica uma
hispanoamericana se sobressaiu para o Brasil, apenas por surgir de uma realidade mais
Em relação aos termos gerais que Koselleck parece propor para o mundo ocidental
dos séculos XVIII e XIX, aqui teríamos, então, um certo deslocamento de ênfase: pois para
maior peso àquilo que era mais recente. A história curta passara a pesar de modo
10
Reinhart Koselleck, “‘Espacio de experiencia’ y ‘horizonte de expectativa’, dos categorías históricas”:
Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993, p.333-357.
15
diferenciado em relação à história longa 12. De todo modo, tratar-se-ia de uma experiência
delas só pôde existir por estar embasada em outras a ela pretéritas, com elas perfazendo
uma unidade dinâmica sem começo ou fins precisos. É dessa unidade que trataremos agora.
políticos de peso; contudo, cada vez mais nos últimos anos, a historiografia vem se
encarregando de prestigiar o estudo das formas específicas pelas quais as partes dessa
conjuntura se ligam umas a outras; o que tem contribuído para uma mirada mais complexa
– porque matizada – em torno das feições do que ali ocorre. Nossa proposta é integralmente
eventos – aqui entendidos como acontecimentos cuja ocorrência mostra-se capaz de alterar
coincidentes, de modo semelhante ao que Sewell Jr. chamaria de path dependency (um
11
Desenvolvemos o tema pormenorizadamente em: O Brasil e a América espanhola (1808-1822). São Paulo:
FFLCH/USP, 2004 (tese de doutorado); de modo sintético, em Brasil y las independencias de
Hispanoamérica. Castelló: Publicacions de la Universitat Jaume I, 2007.
12
Encontramos forte convergência entre esta ideia e as expostas, para o mundo hispânico, por Javier
Fernández Sebastián, “‘Cabalgando el corcel del diablo’: conceptos políticos y aceleración histórica en las
revoluciones hispânicas”. In: Lenguaje, tiempo y modernidad. Ensayos de historia conceptual. Santiago de
Chile: Globo Editores, 2011, pp. 21-59.
16
encadeamento de eventos que, na sua origem, são abertos, e que influenciam no advento de
tampouco lega a outro seus conteúdos essenciais; mas cria-se entre eles um elo, cuja
resolução é incerta, porque sempre suscetível de alterações a partir de novos eventos 13. Ou
políticas, uma espécie de elo entre realidades distintas que contribui distintivamente para
torná-las, contraditoriamente, uma única 14. Nesse plano – certamente, não só nele -
poderemos discernir, no que respeita aos eventos aqui abordados, os caminhos pelos quais
um se tornou outro; isto é, pelos quais uma determinada leitura de um evento implica em
representado não de modo idêntico ao anterior, mas em uma chave discursiva parcialmente
homogeneizadora. E daí, criar meios de ação e reconfigurar a própria realidade social mais
Português, bem como ao mundo ocidental que os envolvia, Hipólito José da Costa
13
William Sewell Jr., Logics of History: Social Theory and Social Transformation. Chicago/London:
University of Chicago Press, 2005, em especial cap. 3.
14
Cf. as reflexões de Elías J. Palti. El tempo de la política: el siglo XIX revisitado. Buenos Aires: Siglo XXI,
2007, esp.p.21-56.
17
“É sem dúvida crueldade mostrar a um homem que tem sofrido muito, quanto a
improvidência tem sido causa de seus males, e opor ao sonho de suas agradáveis
posto que seja esta uma penosa tarefa, é contudo não somente útil, mas até
necessária a um povo inteiro, o qual não pode remediar nem impedir os males
condição para administração de um futuro melhor. Aqueles que viveram esse tempo de
profundas alterações na vida política disso estavam bem cientes. Como nós devemos nos
Na segunda metade do século XVIII, a posição ocupada por Portugal e seu império
imperial portuguesa em escala global, aos domínios americanos foi sendo atribuída,
18
América eram vistas como um trunfo16. Ao mesmo tempo, puderam ser vistas – fenômeno
inusual até então – como uma unidade; limitada e circunstancial, é verdade, mas uma
unidade que, sem ignorar a heterogeneidade dos objetos por ela abarcados, permitisse um
manejo adequado desse potencial por parte da alta esfera imperial lusa e de gente a ela
relacionada17.
regime monárquico e das relações entre as partes que compunham a totalidade do Império.
continuava a ser um ambiente permeado por influências externas, singrado por fluxos de
15
Correio Braziliense, v.VII, Londres, 09/1811.
16
Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Hucitec, 1979; T.
Halperín, Reforma y disolución..., cit.; Kenneth Maxwell, O marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; e Stefan Rinke, Las revoluciones en América latina: las vías a la
independencia, 1760-1830. México, D.F.: El Colegio de México, 2011.
17
Iris Kantor - Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São
Paulo/Salvador: Hucitec/UFBA, 2004.
18
Sobre o sistema mundial, a bibliografia referencial é ampla. Para efeitos da composição das ideias aqui
apresentadas, temos em mente, sobretudo, Fernand Braudel, Civilização material, economia e capitalismo,
séculos XV-XVIII. Lisboa: Teorema, s.d., 3 v.; Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial. 12ª.ed.
México/Buenos Aires/Madrid: Siglo XXI, 2007, 3 v.; Terence Hopkins (et.all.), World-Systems Analysis:
Theory and Methodology. Beverly Hills/London/New Delhi: Sage, 1982; e Giovanni Arrighi, O “longo
século XX”. Rio de Janeiro/São Paulo, Contraponto/EDUNESP, 1996 (não é nossa intenção sequer esboçar o
necessário inventário das diferenças entre as propostas contidas em tais obras, ou de seus problemas
interpretativos). Para as trocas de mercadoria no Império Português, dois bons repertórios de contribuições
variadas encontram-se em: João Fragoso/Maria Fernanda Bicalho/Maria de Fátima Gouvêa (orgs.), O antigo
regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001; e João Fragoso/Manolo Florentino/Antonio Carlos Jucá/Adriana Campos (orgs.), Nas rotas
do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: EDUFES, 2006 (parte
19
O diagnóstico da normalidade das transformações em curso – isto é, de seu
assentamento sobre bases tradicionais ainda estáveis – não deve, contudo, ignorar o peso de
outros quadrantes do sistema mundial, parte delas adquire capacidade, de alguma maneira,
colônia.19 Antes mesmo das primeiras incisivas manifestações que produziriam brechas
informações iam e viam, expectativas moviam pessoas e ação política efetiva resultava de
contextos que uniam e articulavam impérios uns a outros e as partes de cada qual 20.
dos próprios organizadores destas obras, em suas contribuições autorais específicas, pretendem a “descoberta”
de “uma certa” ou “relativa” autonomia dos espaços lusoamericanos perante os demais envolvidos pelo
mercado mundial em formação; essa autonomia parece-nos, por princípio, óbvia). Finalmente, para livros e
leituras, mais especificamente: Diogo Ramada Curto, Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a
XVIII). Campinas: EDUNICAMP, 2009.
19
Ótimas demonstrações do que afirmo são proporcionadas por: Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos
mazombos: nobres contra mascates. Pernambuco, 1666-1715. 2ª.ed. revista. São Paulo: Editora 34, 2003; e
Maria Fernanda Bicalho, A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. A melhor análise de conjunto dos conflitos coloniais é a de Luciano Figueiredo, “O império
em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial
português, séculos XVII e XVIII”. In: Júnia Furtado (org.), Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas
abordagens para uma história do Império ultramarino português. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001 p.197-254.
20
Vide, por exemplo, as movimentações políticas ocorridas entre escravos do Brasil em decorrência do alvará
de 1773 que estabelecera a gradual abolição da escravidão em Portugal (mas não na América),
magnificamente estudadas por Luiz Geraldo Silva, “‘Esperança de liberdade’. Interpretações populares da
abolição ilustrada (1773-1774). In: Revista de História, n.144, 2001, p.107-149. Não conheço nenhum estudo
aprofundado sobre o que se passou nos territórios portugueses da América em decorrência das rebeliões
indígenas de Tupac Amaru e Tupac Catari (1780-1782), e que não parecem nada desprezíveis, de acordo com
Carlos Augusto de Castro Bastos. Entre o Amazonas e o Marañón: territorialização e relações sociais na
fronteira Maynas/Grão-Pará (c.1780-c.1820). São Paulo: FFLCH/USP, 2011 (qualificação de doutorado).
Vale lembrar que, a caminho do desterro, um dos filhos do primeiro, Mariano, morreu no Rio de Janeiro,
enquanto que outro, Fernando, salvou-se de um naufrágio nas costas de Portugal. Ao pai deles foi dedicado
um soneto de José Basílio da Gama, um dos grandes poetas lusos do século XVIII (Daniel Valcarcel, La
20
movimento, já estabelecidas, por novos e dominantes conteúdos, mas sim a introdução, nas
senão de equívoco grosseiro - pretender que o peso das inovações em seus epicentros
tenderia a se replicar, de modo idêntico, em outras partes 21. Mais promissora do que a
procura alhures por regimes, programas políticos, ações e conceitos equivalentes aos dos
partes. O que urge, então, seria a compreensão daquilo que as realidades de cada uma
dessas partes apresenta como deslocamento parcial, como alteração limitada na ordem das
coisas em seus próprios nichos sociais, em seus próprios espaços, em sua própria realidade.
1788 e 1789 é paradigmático. Pois ali, as investigações que se sucederam logo após a
parte dos quais indubitavelmente tributários dos eventos angloamericanos de uma década
antes. Projetos difusos de criação de uma “república” restrita às Minas Gerais (sem
difusas limitadas por um raio de ação pragmático que gravitava em torno de demandas
rebelion de Tupac Amaru. Reimpr. México: FCE, 1996, p.16; Ivan Teixeira [org.], Obras poéticas de Basílio
da Gama. São Paulo: EDUSP, 1996).
21
Nas palavras acertadas de Koselleck, “las experiencias se superponen, se impregnan unas de otras. Aún
más, nuevas esperanzas o desenganos, nuevas expectativas, abren brechas y repercuten em ellas. Así pues,
también las experiencias se modifican, aun cuando consideradas como lo que se hizo en una ocasión, son
siempre las mismas. Ésta es la estructura temporal de la experiencia, que no se puede reunir sin una
expectativa retroactiva” (R. Koselleck, “‘Espacio de experiencia’... In: Futuro passado..., cit., p.341).
21
como a amortização de tributos, a suspensão de sua cobrança acumulada e o impedimento
de autoridades locais tidas por incompetentes... Tais elementos, dentre outros, implodem a
autoridades que longe estavam de serem ingênuas ou puramente paranóicas: tudo isso
mostra claramente uma situação onde a política, se não era subvertida ou radicalmente
repensada, já não era mais a mesma de antes24. Algo começara a ocorrer. Mas exatamente o
quê?
América portuguesa das últimas décadas do século XVIII, denunciada não apenas pela
violenta reação das autoridades de Minas Gerais, mas pela própria política reformista
22
Vide, por exemplo, as palavras de Carlos G. Mota a esse respeito: “a propriedade é o suporte das
manifestações nacionalistas, sendo que o nacionalismo emergente no final do século XVIII no Brasil é, na
base anti-colonialista. A consciência nacional começa a despertar, e passa a não ser contida pela natureza do
Estado dentro do qual emerge. Para o Brasil, há que levar sempre em conta a variação regional dessa tomada
de consciência, que não se submete a uma linha rígida e coerente: os exemplos de Minas Gerais e Bahia
[1798] são expressivos para mostrar tal variação” (Atitudes de inovação no Brasil, 1789-1801. Lisboa:
Horizonte, s.d., p.125-126, grifo do autor). Para uma crítica historiográfica ampla dessa e de outras posições
semelhantes: João Pinto Furtado, O manto de Penélope: História, mito e memória na Inconfidência Mineira
de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, em especial cap.1.
23
Analisados sobejamente por Roberta G. Stumpf, Filhos das Minas, americanos e portugueses: identidades
coletivas na capitania da Minas Gerais (1763-1792). São Paulo: Hucitec, 2010. Este trabalho, enquanto se
gestava, forneceria algumas das bases para o de István Jancsó & João Paulo G. Pimenta, “Peças de um
mosaico (ou apontamentos para um estudo da emergência da identidade nacional brasileira)”. In: Revista de
História das Idéias, v. 21, Universdade de Coimbra, 2000, p.389-440.
24
Consideramos a obra de Pinto Furtado (cit. nota 14, supra) mais bem sucedida em sua análise da memória
do movimento de 1788-89 do que de sua história propriamente dita. Para uma explicitação do quanto suas
posição se distanciam das nossas, vide, do mesmo autor: “Das múltiplas utilidades das revoltas: movimentos
sediciosos do último quartel do século XVIII e sua apropriação no processo de construção da nação”.In: J.
Malerba (org.), A independência brasileira..., cit., p.99-121. A obra clássica a respeito continua a ser a de
Kenneth Maxwell, A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal, 1750-1808. 2ª.ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
22
ambientes porosos à recepção de conteúdos novos. Não porque estes irão solucionar
que escapa aos ritos ordinários da coletividade25. Não bastaria que um acontecimento como
o de 1776 ocorresse: o mesmo teria que encontrar outro ambiente que por ele se
interessasse. É por isso, então, que várias testemunhas ouvidas durante a investigação que
associavam república com uma situação nova, a ser criada em um futuro próximo, e com a
antes de sua eclosão, radicalizaria alguns dos elementos presentes no imaginário e na ação
dos conspiradores de Minas Gerais. É o caso de seu mais bem definido esboço
programático, que agora gravitava em torno de uma ideia de “república” de clara inspiração
francesa; do maior espectro social dos envolvidos, a incluir agora mais gente de mais baixa
condição, inclusive homens “de cor” (como se dizia à época); de uma apresentação pública
dos intentos subversivos de amplitude bem maior do que no caso anterior; e, finalmente, da
25
Conforme a definição de: István Jancsó, Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798.
São Paulo: Hucitec, 1996, p.203.
26
Como bem definiu Jancsó (Na Bahia, contra o império..., cit.), e ao contrário do que pretendeu Maxwell (A
devassa da devassa...,cit.). Sobre a produção de manuscritos e circulação de ideias nesse evento: Marcello
Moreira, “Cultura escribal e o movimento sedicioso de 1798: A Pecia”. In: Leila Mezan Algranti & Ana Paula
Megiani (orgs.), O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico. São
Paulo: Alameda, 2009, p.495-504.
23
“O poderoso e magnífico povo bahiense republicano desta Cidade da Bahia
imposturas, tributos e direitos que são cobrados por ordem da Rainha de Lisboa e no
que respeita a inutilidade da escravidão do mesmo povo tão sagrado e digno de ser
livre, com respeito à liberdade e igualdade ordena, manda e quer que para o futuro
seja feita nesta cidade e seu termo a sua revolução para que seja exterminado para
Cremos que os fenômenos que distinguem os eventos da Bahia dos de Minas Gerais
podem ser bem compreendidos como reconfiguração, em uma nova situação, de elementos
sucessão de eventos se tornou possível porque pôde a ela agregar a França revolucionária
(1789-) e a grande revolta de escravos de Saint-Domingue, iniciada em 1791, que por seu
turno – e como todos sabemos - irradiariam influência também em muitas outras direções
do mundo ocidental28.
Estes dois últimos eventos já não eram estranhos às autoridades reais portuguesas
27
Extraído de Inês da C. Inácio & Tânia R. de Lucca, Documentos do Brasil colonial. São Paulo: Ática, 1993,
p.167-168
28
Sobre o haitianismo, vide: Alejandro E. Gómez, Le syndrome de Saint-Domingue: perceptions et
répresentations de la Révolution haïtienne dans le Monde Atlantique (1790-1886). Paris: EEHSS, 2010 (tese
de doutorado). Para o Brasil: Marco Morel, “O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do
século XIX”.In: Almanack Braziliense, v. 2, n. 2, 2005; ponderações quanto ao alcance do mesmo em: Rafael
Marquese, “Escravismo e independência: a ideologia da escravidão no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos
nas décadas de 1810 e 1820”. In: István Jancsó (org.), Independência: história e historiografia. São Paulo:
Hucitec/FAPESP, 2005, p.809-827. Sobre livros e leituras em circulação, ligando o Brasil a outras partes:
Luiz Carlos Villalta, “Libertinagens e livros no mundo luso-brasileiro”. In: L. Algranti & A. P. Megiani
(orgs.), O império por escrito..., cit., p.523-563.
24
Gerais.29 Anos depois, na Bahia, ambos iam de encontro a novos elementos: o fato da
do Diretório francês31 que, se não chegaram a resultar em medidas práticas de ajuda destes
reproduzem, cada qual, de forma singular, única e incomparável, mas que o são na justa
medida em que compõem, todos, uma única experiência, envolvendo o Império Português e
linguagem em relação a outras (o que seria absurdo), tampouco a existência de uma ligação
29
Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como “Tiradentes”, foi enforcado e esquartejado no Rio de
Janeiro em 21 de abril de 1792. Pedaços de seu corpo foram expostos publicamente em várias localidades
entre esta cidade e as Minas Gerais. No caso da Bahia, os que pagaram pena capital (em 1799) foram Luís
Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, João de Deus e Manuel Faustino, também enforcados e esquartejados,
mas em Salvador.
30
Como bem mostrou Kátia de Queirós Mattoso, Presença francesa no movimento democrático baiano de
1798. Salvador: Itapuã, 1969.
25
direta entre emprego dessa linguagem e prática revolucionária; mas, simplesmente, de
de um mundo que continuava a mudar32. Para onde, exatamente, ninguém poderia saber, e
poucos eram os que se aventuravam a elaborar prognósticos taxativos e seguros 33. Palavras
XIX continham muitos indivíduos que tinham vivido as tentativas de subversão de fins do
século anterior.35 Ao terem que lidar com eventos impactantes – como a transferência da
31
István Jancsó, “A hipótese do auxílio francês ou ‘a cor dos gatos’”. In: Júnia Furtado (org.), Diálogos
oceânicos..., cit., p.361-387; também Marco Morel & István Jancsó, “Novas perspectivas sobre a presença
francesa na Bahia em torno de 1798”. In: Topoi, v. 8, 2007, p. 206-232.
32
Charles Tilly poderia se referir a algo muito semelhante ao que aqui descrevemos como típico processo de
desenvolvimento de um contentious reperoire. Há, contudo, que se destacar que os movimentos que Tilly
estudou parecem dotados de um padrão de ação e emergência pública que os até aqui analisados não
guardavam. De todo modo, suas reflexões são sugestivas. Charles Tilly, “Contentious Repertoires in Great
Britain, 1758-1834”. In: Social Science History, v.17, n2, 1993, p.253-280.
33
Como os abades Raynal e De Pradt, ambos presença frequente nos círculos letrados e politizados das
colônias portuguesas da América de fins do século XVIII e começos do seguinte. A respeito de ambos e o
Brasil: Marco Morel, “Independência no papel: a imprensa periódica”. In: I. Jancsó (org.), Independência...,
cit., p.617-636; e João Paulo G. Pimenta, “De Raynal a De Pradt: apontamentos para um estudo da ideia de
emancipação da América e sua leitura no Brasil”. In: Almanack Braziliense, v.11, p.88 - 99, 2010.
34
Daí, a nosso ver, uma frequente confusão em torno do enquadramento dos acontecimentos de Minas Gerais
e Bahia com os do Rio de Janeiro em 1794, quando o governador local, temeroso de uma conspiração que, em
realidade, não existia, mandou fechar a Sociedade Literária e Científica, e perseguiu seus membros. Alguns
autores se empenharam em defini-los como supostas ante-salas da independência do Brasil (casos de Carlos
G. Mota, Atitudes de inovação..., cit.; e Afonso C. M. dos Santos, No rascunho da nação: inconfidência no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes, 1992), outros em dissociá-los completamente da independência (João P. Furtado, “Das
múltiplas utilidades...”, cit.). Ambas as posturas podem obscurecer uma realidade importante do episódio: o
claro temor das autoridades reais, a denunciar um acúmulo de conteúdos característico da experiência
histórica aqui caracterizada.
35
István Jancsó, “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. In: F.
Novais (dir.), História da vida privada no Brasil v.I: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.388-437. Caso individual exemplar é o de Cipriano Barata, biografado
por Marco Morel, Cipriano Barata na sentinela da liberdade. Salvador: Academia de Letras da
Bahia/Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2001.
26
Corte portuguesa para o Brasil (1807-1808), a abertura de seu comércio ao mercado
em torno da rejeição do termo república como referido aos variados projetos políticos que
novo, mas não exclusivamente novo: afinal, eventos pretéritos ocorridos na América ou na
e que se desdobra ativamente nas feições doravante assumidas pela sucessão de eventos
uma renovação da ideia setecentista de unidade dos vários “brasis” com uma sensação
tipificar um panorama de crise política, agora mais aguda do que nunca – as referências aos
pela expansão napoleônica que, à época, era comumente vista como da própria revolução
composição dessa conjuntura, cada vez mais marcada pela sucessão de novos eventos
27
transformados em uma experiência política ampla: a atribuição de destaque ao que passara
sobre os domínios americanos, muitos dos quais contíguos ao Brasil e com ele
estabelecendo fronteiras mais (Rio da Prata e Alto Peru) ou menos (Peru, Nova Granada e
direções, a América espanhola se fará presente de modo intenso. Enquanto jornais, cartas
serviço da Corte do Rio de Janeiro tentavam dar conta do que ocorria entre a Espanha e
tipo - autoridades de fronteira e das principais cidades portuárias do Brasil recobravam sua
36
João Paulo G. Pimenta & Valdei Araújo, “História – Brasil”. In: Javier Fernández Sebastián (dir.),
Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Madrid: Fundación Carolina/Sociedad Estatal de
Conmemoraciones Culturales/Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009, p.593-604.
37
Sobre o Rio da Prata, a bibliografia é imensa. Destaco, dentre muitos possíveis: Jeanne Lynn Friedman,
Free trade and Independence: The Banda Oriental in the World-System, 1806-1830. The Ohio State
University, 1993; Helen Osorio, Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço
platino. Porto Alegre: UFRS, 1990 (dissertação de mestrado); Helga Iracema L. Piccolo, “O processo de
independência numa região fronteiriça: o Rio Grande de São Pedro entre duas formações histórias”. In: I.
Jancsó (org.), Independência..., cit., p.577-579; Márcia Eckert Miranda, A estalagem e o império: crise do
Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009; e
Tau Golin, A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e
a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002. Sobre o Peru: Carlos Augusto Bastos, Entre o Amazonas e o
Marañón..., cit.; sobre o Alto Peru: E. Just Lleó, Comienzo de la independencia en el Alto Peru: los sucesos
de Chuquisaca. Sucre, Editorial Judicial, 1994; sobre a Venezuela: Arthur Cezar F. Reis, “Neutralidade e boa
vizinhança no início das relações entre brasileiros e venezuelanos. Documentário”. In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, v.235, abril/junho de 1957, p.3-84; e Ana Cláudia Fernandes, Revolução
28
atenção em relação aos estrangeiros que quisessem ingressar nos territórios bragantinos,
dos intentos inovadores da América espanhola podia, com frequência, ser associada com a
França revolucionária, como lemos em uma nota de fevereiro de 1813 publicada pela Idade
terremoto, devia afinal ser este [a queda da República] o resultado. Não nos
como um admirado rasgo da política. Ele diz, com bem razão, que princípios gerais
de política não valem nada em mil casos particulares; e que o Francesismo que tem
esquentado alguns cérebros está tão longe de gerar a felicidade dos povos, que antes
americana de Pernambuco, e que por três meses – entre março e maio – logrou constituir
uma junta de governo contrária à Corte portuguesa e ao governo monárquico então sediado
modo inédito na história das contestações políticas até o momento ocorridas no mundo
em pauta: o debate Correo del Orinoco-Correio Braziliense. São Paulo: FFLCH/USP, 2010 ( dissertação de
mestrado)
38
Idade do Ouro do Brasil n.10, suplemento extraordinário de 02/02/1813 (grifos originais). Devo a Sarah T.
Boscov a obtenção desta notícia.
29
também, envolver politicamente uma grande diversidade de representantes de estratos que
iam desde as partes mais baixas até as mais altas das hierarquias sociais39. Além disso,
dentre as quais se sobressaía a francesa; mesmo assim, os Estados Unidos, o Haiti (tornado
modalidade específica de expressão da cadeia de eventos que, até aquele momento, vinha
pernambucanos contribuíram para uma melhor definição da negatividade que termos como
liberdade e povos teriam caso se associassem a república; pelo menos, do ponto de vista
ser considerados excessos destrutivos das revoluções políticas daquele tempo. Este
políticos tradicionais ameaçados na Europa e também na América era cada vez mais
39
Denis de Mendonça Bernardes, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo:
Hucitec/FAPESP/EDUFPE, 2006; e Luiz Geraldo Silva, “O avesso da independência: Pernambuco (1817-
24)”, in: J. Malerba (org.). A Independência brasileira..., cit., p.343-384.
40
Como bem assinala Kirsten Schultz, “A era das revoluções e a transferência da Corte portuguesa para o Rio
de Janeiro (1790-1821)”. In: J. Malerba (org.), A Independência brasileira..., cit., p.125-151.
30
suficientemente moderada e capaz de resultar em uma ordem política estável e modelar 41;
espanhola parecia seguir o mesmo passo. Logo, porém – e como veremos melhor no
porque capaz de fornecer igualmente exemplos desejáveis de ruptura bem sucedida entre
viáveis de total ruptura entre Brasil e Portugal. Os Estados Unidos e a América espanhola
meio a ela, porém, a experiência hispanoamericana se destacava, por ser mais recente do
que outras a ela semelhantes (resultado da sensação de aceleração do tempo), e também por
tempo e no espaço, a América espanhola estava mais próxima do Brasil 43. E tal
proximidade se constituía em apenas uma, dentre várias ligações estabelecidas por essa
41
Para o espraiamento de paradigmas estadunidenses, centrado no ato de “declarar independência”: David
Armitage. Declaração de independência: uma hstória global. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Uma
crítica às posições do autor em: J. Adelman, “Na Age of Imperial Revolutions”, cit., p.331 e segs.
42
Para “América”, vide: João Feres Jr. & Maria Elisa Mäder, “América – Brasil”. In: J. Fernández (dir.),
Diccionario político y social..., cit., p.80-90; para a conversão do conceito em paradigma positivo baseado
nos eventos da América espanhola: João Paulo G. Pimenta, Brasil y las independencias de Hispanoamérica,
cit., cap.2. Sobre “revolução”: Lúcia Pereira das Neves, “Revolução: em busca de um conceito no império
luso-brasileiro (1789-1822)”. In: J. Feres Jr. & Marcelo Jasmin (org.), História dos Conceitos: diálogos
transatlânticos. Rio de Janeiro: EDPUC-RJ/Loyola/IUPERJ, 2007, p.129-140; e João Paulo G. Pimenta, “La
independencia de Brasil como revolución: historia y actualidad sobre un tema clásico”. In: Nuevo Topo.
Revista de historia y pensamiento crítico, v. 5, p. 69-98, 2008.
43
Oferecemos sustentação documental a essa observação em O Brasil e a América espanhola..., cit.
31
mesma vizinhança, bem como por suas partes europeias, com outros espaços politicamente
independência dos Estados Unidos de 1776 até a revolução de Pernambuco em 181746. Pari
tornam, eles mesmos, protagonistas da política. Nos dias de 1822 em que a separação
definitiva entre Brasil e Portugal vinha sendo viabilizada nos principais centros políticos da
América, Cipriano Barata, representante pela Bahia nas Cortes de Lisboa, envolvido nos
discurso notável:
“[...] Ninguém pode possuir o país alheio se os seus habitantes e naturais senhores
não lho permitem. Breno invadiu Roma com numerosos exércitos, foi derrotado
44
Uma recente interpretação de peso, que concebe a formação de unidades sistêmicas a partir de conexões
hispano e lusoamericanas estabelecidas em torno da escravidão africana e dos vários escravismos por ela
engendrados é: Márcia Berbel/Rafael Marquese/Tamis Parron, Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-
1850. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2010.
45
Kirsten Schultz, “A era das revoluções...”, cit., p.132 e 147.
46
Sobre tais linguagens: Iara Lis C. Souza, Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo. São
Paulo: EDUNESP, 1998; I. Jancsó & J. P. G. Pimenta, “Peças de um mosaico...”, cit.; Lúcia Pereira das
Neves, Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência. Rio de Janeiro: Revan/FAPERJ,
32
igual sorte debaixo da espada de Mário. Quando o Conde Julião, para se vingar de
El-Rei Rodrigo de Espanha entregou baixa e perfidamente sua Pátria aos Mouros,
expulsos por Espanhóis que guerrearam sempre até de todo limparem o seu país de
poucos e mal armados, depois de porfiada guerra, recobraram seu país e sua
inimigos. Bonaparte invade tudo, mas todos lhe tomam tudo. Os Ingleses acometem
Buenos Aires com treze mil combatentes e são desfeitos num instante. Os Franceses
conquistam Espanha e Portugal: Espanha lança-os fora, depois de lhes matar mais
e exterminou mais de 40 mil dos seus conquistadores. E que direi eu dos Espanhóis
2003; Marco Morel, “Independência no papel...”, cit.; e Cristiane C. dos Santos, Escrevendo a história do
futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil. São Paulo: FFLCH/USP, 2010.
33
Holandeses conquistaram Pernambuco e Bahia quando eram pequenas, mas foram
que a independência não era; mas também sabemos que, de fato, ela ocorreu.
e Bahia – tomados como exemplares de um processo do qual eles são parte - e destes, com
seguinte modo: não há nenhum acontecimento ou evento desse tipo que possa ser
curto onde, não obstante, encontramos algumas de suas determinações fundamentais 48. Isso
implicaria em ignorar a trajetória que vimos explicitando até o momento: desde fins do
47
Sessão de 22/07/1822 (grifos originais), extraída de Cipriano Barata, Sentinela da liberdade e outros
escritos (1821-1835). São Paulo: EDUSP, 2008 (organização e edição de Marco Morel), p.96-97.
48
É o que sugere, por exemplo, Valentim Alexandre, em seu influente livro: Os sentidos do império: questão
nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1993.
34
eventos, isto é, capazes de alterar estruturas da própria realidade que os fez surgir; nessa
condição, tais eventos se espraiaram em tempos e espaços variados, onde eles se fizeram
lógica desse movimento caracteriza, então, uma cadeia, uma sucessão não linear de
ser bem compreendidos por meio de sua apreciação como uma experiência histórica. Caso
movimento? Ou então estaria completamente à sua margem e, nesse caso, a despeito do que
moderna, parece-nos ainda mais evidente a dependência de sua dinâmica histórica de uma
variedade de espaços que não se confundem com os largos limites do próprio sistema
mundial, pois estão encerrados apenas em regiões cujas conexões recíprocas ordinárias são
suficientemente intensas de modo a permitir trocas de caráter político. Nem todo o mundo
está próximo dessa maneira. Há, portanto, uma espacialidade específica onde essa
experiência pode existir; seus contornos, porém, são muito variáveis, e não são
formais49. Seus limites são dados por apropriações, leituras e releituras concretas de
acontecimentos abertos, jamais portadores de resultados a posteriori, e que por isso mesmo
49
Não cremos que a tíbia noção de conexão, proposta por autores como Subrahmanyam e Guzinski, resolva
satisfatoriamente este problema. Por isso, nossa afirmação dista fortemente do que parecem pretender os
organizadores de uma recente (e muito meritória) coletânea: David Armitage & Sanjay Subrahmanyam,
“Introduction: The Age of Revolutions, C.1760-1840 – Global Causation, Connection, and Comparison”. In:
The Age of Revolutions in Global Context c.1760-1840. London: Palgrave, 2010, p.xxii-xxxii. Perguntamo-
nos o que fundamentaria a chamada “transitive global history”, a que os autores se referem para justificar o
estudo integrado de manifestações “revolucionárias” em espaços tão díspares como América espanhola,
África, Europa e sudeste asiático. Apenas o nosso atual interesse em tais manifestações?
35
se modificam no tempo e no espaço. Nesse caso, estamos diante de uma unidade
Por fim, resta fundamentar, ainda que de maneira meramente indicativa, o que
envolver o Brasil: seu caráter moderno. Seguimos novamente a senda aberta por Koselleck,
XVIII e XIX, associada, por seu turno, com uma aceleração, também progressiva, do tempo
temporalidades anteriores ao século XVIII são reais, e não serão aqui evitados por uma
corroborar o caráter inovador do que se observa no período aqui tratado agregando, grosso
recentes. Nesse tocante, não vemos a inserção do Brasil no contexto mundial como uma
diretamente, seja em ações, seja em discursos e linguagens que não deixam dúvidas sobre a
50
Por exemplo: Guillermo Zermeño Padilla, La cultura moderna de la historia. Una aproximación teórica e
historiográfica. México: El Colégio de México, 2002, cap.2; Javier Fernández Sebastián, “Hacia uma historia
atlántica de los conceptos políticos”. In: Diccionario político y social..., cit., p.25-45; e Valdei Lopes de
Araújo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São
Paulo: Hucitec, 2008.
51
Bases para uma tarefa dessa magnitude são estabelecidas por Zermeño, La cultura moderna de la
historia…, cit., p.43-56.
36
manifestação do fenômeno. Contestadores, repressores ou até mesmo simples testemunhas
mais remotos. Juntos, todos eles, porém, compõe uma mesma experiência, multifacetada
em seus tempos.
aceleração do próprio tempo, não nos parece suficiente para planetarizar o escopo
seu papel nessa direção. Quando isso estiver consolidado, estaremos diante de uma nova
uma hipótese.
52
F. Braudel, Civilização material..., cit., v.1, 1ª. parte.
37
Capítulo 2
do século XIX impele o seu observador a uma conclusão aparentemente inequívoca: dentre
exceção, quase que uma anomalia. Afinal, seus desdobramentos estruturais acabaram por
configurar uma solução política de feições muito distintas daquelas que sustentaram o
surgimento da grande maioria dos Estados nacionais oriundos dos antigos domínios
escravismo colonial foi mantido (e reinventado) e também o único que logrou construir
uma unidade territorial nacional correspondente à dos próprios domínios coloniais que sua
singularidades pareceu encorajar ainda mais o seu distanciamento face a ela, com o quê o
Brasil acabou por ser “retirado” do quadro político americano. E, mais grave ainda, o
38
historiadores a menosprezar a profundidade das transformações acarretadas pela
independência do Brasil, assim como ignorar uma parte daquelas que a explicam.
história política na produção brasileira, indicam para a necessidade de uma revisão dessa
postura53. Nosso propósito aqui é oferecer uma contribuição nesse sentido, analisando, em
capítulo anterior, tipificado o quadro mais geral a envolver tal movimento. Revoluções
A expansão militar francesa sobre a península Ibérica teve violento impacto nos
sabido que a solução provisória para esse vazio - a formação por todo o território peninsular
53
Um exemplo muito positivo dessa historiografia é: Ilmar Rohloff de Mattos, “Construtores e Herdeiros: a
trama dos interesses da construção da unidade política”. In: Almanack Braziliense, n.01, maio de 2005.
39
de juntas de governo leais a Fernando VII – contribuiu para agravar ainda mais a crise,
como bem demonstram reações americanas: ainda que as notícias das abdicações de
impedido, a ruptura unilateral do pacto entre monarca e povos que sustentava a unidade
peninsulares, por isso jamais plenamente reconhecidas na América.54 Face a esse dilema,
definitivamente a posição neutral que Portugal se esforçava por manter em meio a um jogo
político que tinha na França e na Grã-Bretanha seus dois principais polos de definição.56 A
medida resultara da percepção, da parte dos estadistas portugueses, de que o avanço francês
poucos meses depois pelo colapso da autoridade monárquica espanhola. A curto-prazo, não
54
Miguel Artola, La burguesía revolucionaria (1808-1874). Madrid: Alianza, 1990, p.17-34; François-Xavier
Guerra, “Dos años cruciales (1808-1809)”. In: Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones
hispánicas. 2º ed. México: FCE, 1993, p.115-148. Uma releitura da questão em: José María Portillo Valdés,
Crisis atlántica: autonomía e independencia en la crisis de la monarquía hispana. Madrid: Marcial Pons,
2006.
55
A comitiva real portuguesa abandonou Lisboa em 29 de novembro de 1807, um dia antes da entrada na
cidade das forças francesas. Em 24 de janeiro de 1808 ela aportou em Salvador, e em 08 de março instalou-se
no Rio de Janeiro.
40
territórios lusos se atrelavam aos dos territórios hispânicos, dando início a um cruzamento
Português.
como bem sabiam alguns de seus protagonistas. Poucas semanas após a instalação da Corte
política externa voltada com especial interesse para a América espanhola. Justificava sua
recomendação pela possibilidade de que “os domínios espanhóis vizinhos e confinantes dos
Estados de V. A. R. [...] caiam nas mãos dos Franceses, e de que resultem daí males
portugueses, de agentes franceses cuja presença na América espanhola era assaz conhecida.
A crise de autoridade que recaía sobre os domínios borbônicos oferecia assim à Corte
tornara, desde já, condição sine qua non para o bom-sucesso da tarefa de preservação da
Uma das faces mais visíveis dessa nova política portuguesa, que desde 1808 voltava
seus olhos e atenções para a vulnerável América espanhola, é o projeto carlotista, que
56
Valentim Alexandre, Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
Regime português. Porto: Afrontamento, 1993, p.167-180.
57
Além de D. Rodrigo, compunham o Ministério D. Fernando José de Portugal e Castro, marquês de Aguiar
(Negócios do Reino), e D. João Rodrigues de Sá Meneses, visconde e conde de Anadia (Marinha e Ultramar).
58
João fora elevado à condição de príncipe-regente em 1792, quando do impedimento da mentalmente
incapaz rainha D. Maria I. Seria aclamado rei somente em 1818, já no Brasil, dois anos após a morte da mãe.
59
“Representação a S.A.R. o Príncipe Regente sobre a política relativa aos domínios espanhóis”, 21/07/1808.
Publicada por Andrée Mansuy D. Silva (dir.), D. Rodrigo de Souza Coutinho: textos políticos, econômicos e
financeiros (1783-1811). Lisboa, Banco de Portugal, 1993, t.II, p.365-368.
41
buscou viabilizar o reconhecimento de Carlota Joaquina, esposa espanhola do príncipe
João, como legítima sucessora de seu irmão impedido, Fernando VII de Espanha. Enquanto
teve fôlego, sobretudo entre os anos de 1808 e 1809, o projeto foi considerado pela Corte
América espanhola, e por isso mesmo, também como ferramenta de defesa e fortalecimento
benefícios diretos da situação vivida pela América espanhola agora destituída de um centro
unânime de reconhecida coesão política, a Corte portuguesa temia que ela própria
A política desde então seguida pela Corte portuguesa, tantas vezes referida pela
também lhe dizia respeito. Se essa política implicava a possibilidade de intervenções diretas
seria o Correio Brasiliense, que trazia notícias, boatos, documentos e análises a respeito
dos assuntos ligados ao Império Português, dentre os quais mereciam grande destaque os
e reservados eram enviados aos vice-reinos hispânicos; desde maio de 1808 o Brasil
contava com sua primeira imprensa, a Imprensa Régia e, desde setembro, com seu primeiro
Se entre 1808 e 1809 o interesse estratégico (que era também pedagógico) pelos
60
No Correio Brasiliense n.16, de 09/1809, por exemplo, há uma referência aos “nossos leitores no Brasil”;
no n. 25, de 06/1810, lemos que “destinando nós o nosso Periódico a conter uma coleção de todas as notícias
importantes do tempo, que dizem respeito a América, para onde principalmente se dirige o Correio
Brasiliense...”. O Correio Brasiliense traria artigos extraídos de gazetas de todas as partes dos continentes
americano e europeu, e suas matérias reverberariam em importantes periódicos hispano-americanos como a
Gazeta de Buenos Aires e o Correo del Orinoco. A seu respeito, ver: István Jancsó & Andréa Slemian. "Um
caso de pariotismo imperial". Correio Brasiliense, ou, Armazém Literário, vol.XXX. São Paulo/Brasília,
Imprensa Oficial do Estado/Correio Brasiliense, 2002, Tomo I, p.605-667 (reimpressão facsimilar); e João
Paulo Garrido Pimenta, Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo,
Hucitec/Fapesp, 2002, cap.3.
61
Sobre a Gazeta do Rio de Janeiro ver: Marco Morel, “La génesis de la opinión pública moderna y el
proceso de independencia (Rio de Janeiro, 1820-1840)”. In: F.X. Guerra & A.Lempérière (et.al.), Los
espacios públicos em Iberoamerica: ambiguedades y problemas. Siglos XVIII-XIX. México D.F.: F.C.E.,
1998, p.300-320.
43
em territórios americanos – inclusive em centros administrativos como Caracas, em 19 de
– somadas aos movimentos de Quito e de Nova Espanha, representavam, aos olhos dos
Espanhol, e de que o Brasil recebesse influências vizinhas que pudessem ser nocivas à
escravos.62 Outro escrito de teor semelhante era uma folha impressa em Buenos Aires em
português intitulada Fala aos americanos brasilianos em nome da América por seus irmãos
habitantes das vastas províncias do Rio da Prata.63 Se nos anos de 1808 e 1809 foram os
viajantes franceses que mereceram maior vigilância por parte das autoridades portuguesas
do Rio de Janeiro, a partir de 1810 essa ênfase é claramente deslocada para os espanhóis,
62
Valemo-nos de uma edição do Plan de las operaciones que reafirma a clássica versão de que seu autor foi
Mariano Moreno, Plan revolucionario de operaciones. Buenos Aires, Perfil, 1999 (prólogo de Martín
Caparrós). Uma bem-resolvida análise dessa controversa questão se encontra em Noemí Goldman. “Utopía y
discurso revolucionario (El plan de operaciones de M. Moreno)”.In: Espacios n.6. Buenos Aires: Facultad de
Filosofía y Letras/Universidad de Buenos Aires, octubre- noviembre/1987, p.52-56. Um exemplar do Plan
anotado pela Corte do Rio de Janeiro está publicado em Política Lusitana en el Río de la Plata, II Buenos
Aires, Archivo General de la Nación, p.104-140.
63
Fala aos americanos brasilianos em nome d’América por seus irmãos os habitantes das vastas províncias
do Rio da Prata. Buenos Aires, 08/1811. Política Lusitana..., cit., II, p.301-303.
64
Entre 1808 e 1822 foram registrados no Rio de Janeiro 975 ingressos de estrangeiros provenientes de
Buenos Aires, Montevidéu, Colônia do Sacramento, Maldonado, Ilha de Martim Garcia, Corrientes, Córdoba,
Paraguai, Chiquitos, Santa Cruz de la Sierra, Chile, Peru e Cuba. Registro de estrangeiros (18081-1822). Rio
44
palavras do intendente Geral de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana, tais indivíduos
eram “perigosos para a segurança pública”, pois poderiam “propalar [...] pestíferos
política como o Plan e a Fala pareça ter despertado, na Corte, antes prudência do que
abundância, a Gazeta do Rio de Janeiro tenha praticamente se calado diante do que ocorria
princípios de lealdade dinásticas – isto é, de lealdade dos súditos espanhóis para com
Fernando VII - tivessem sido reafirmados. Dizemos “sintomático”, pois era esse mesmo
jornal que, em certa ocasião, afirmou que noticiaria tudo o que ocorresse na vizinhança do
Brasil “por ser muito interessante a todo bom Vassalo Português conhecer o espírito
público da Nação Espanhola na presente crise, pois que do Estado daquela Nação depende
portuguesa corria riscos de seguir os mesmos caminhos da América espanhola. Por isso, a
Corte do Rio de Janeiro era uma Corte amedrontada, o que ademais se refletia em sua
política externa. Em 1810 ela engrossou seus agentes diplomáticos em Buenos Aires, ponto
da América espanhola onde o projeto carlotista encontrara maior respaldo. Em 1811 foram
ofereceriam suporte à luta dos grupos que rejeitavam a autoridade pretendida pelas juntas
de Janeiro, Arquivo Nacional, 1960. Além destes, deve-se considerar o grande número de indivíduos que
chegaram ao Brasil por zonas de fronteira ou portos de contato com a América espanhola, como Santa
Catarina e Rio Grande. Somente para o ano de 1814, uma testemunha coeva pôde estimar o número de
refugiados espanhóis no Rio Grande - a maioria hispano-americanos - em 1500.
65
Códice de 1811 do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, citado por Andréa Slemian. Vida política em
tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.
66
Gazeta do Rio de Janeiro extra n.01, de 22/02/1810.
45
de governo.67 Na banda oriental, esse suporte se fez, de início, com o fornecimento de uma
Corte finalmente decidiu por uma invasão da Província. Com isso, ela aumentava ainda
mais as tensões em sua delicada inserção geopolítica americana que, conforme afirmamos
conjunto cada vez mais variado de agentes políticos: o governo peninsular de Cádiz, a Grã-
Bretanha, as juntas de governo americanas e os grupos que a elas se opunham, além de José
Gervasio Artigas, a quem a Corte acusava de, por meio de agentes enviados ao Brasil,
rurais da capitania do Rio Grande.68 A guerra nas províncias do Rio da Prata posicionava
levante do Rio Grande que, como não poderia deixar de ser, por esta época sempre
carregava consigo a expectativa de que contasse com a participação dos escravos daquela
capitania, aliás muito mal guarnecida militarmente.69 Essa situação se complicaria ainda
67
Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. 3.ªed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.210-212; Julio Cesar Chaves,
El supremo dictador: biografia de Jose Gaspar de Francia. 3ª.ed. Buenos Aires: Nizza, 1958, p.94; V.
Alexandre, Os sentidos do império..., cit., p.248-249.
68
Exemplos de “agentes” artiguistas referidos pela documentação são José María Caravaca, José Bonifácio
Redruello, Antonio Gonçalves da Silva, Francisco de Borja de Almeida Corte Real, Miguel Barreiro,
Francisco de Paula Bersane, Lucas Obes e Luiz Albin. Vide: Aurélio Porto, “Influência do caudilhismo
uruguaio no Rio Grande do Sul”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano
IX, 3ºtrimestre, Porto Alegre, 1929, p.382-387; Ana Frega, “La virtud y el poder: la soberanía particular de
los pueblos en el proyecto artiguista”. In: N. Goldman & R. Salvatore (comps.), Caudillismos rioplatenses:
nuevas miradas a un viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 1998, p.125-126. E também os informes de
Possidônio da Costa (Santa Catarina, 13/11/1814) e Manuel Marques de Souza (Rio Grande, 1814),
publicados em Política Lusitana..., cit., III, p.198-203 e p.213.
69
Nota de Paulo Fernandes Viana ao Príncipe regente, Rio de Janeiro, 13/07/1814. Política Lusitana..., cit.,
III, p.186-188.
46
Fernando VII protestaria veementemente contra essa política, considerada excessivamente
permissiva para com governos que Madri considerava insurgentes. Contra eles, começaria a
organizar uma grande armada para a reconquista da América cujas notícias davam conta da
Qual a relevância de se aferir até que ponto esse quadro, que nos é oferecido por
ocorridos na América de finais do século XVIII, afirmava que fosse ou não verídica a
ameaça que surgia de todas essas notícias, “ela me faz tremer e tremer”.70 O que importa
que, por seu turno, revela um dos tipos de consciência possível, por volta de 1814, da
espanhola.
Por essa época, já estava cristalizada, nos espaços públicos de discussão política
70
Carta de Possidônio da Costa, cit. A referência histórica mais antiga nesse documento é a do movimento
intentado na cidade de Salvador (Bahia) no ano de 1798, conhecido na historiografia como “Conjuração dos
Alfaiates”. Evocando princípios revolucionários franceses e republicanos, contou com a participação de uma
considerável gama de setores sociais da colônia.
47
chefiada por Pablo Morillo, finalmente destinada a Venezuela e Nova Granada.71 No
entanto, o conhecimento dessa realidade – assim como a tomada de atitudes diante dela -
não oferecia somente exemplos negativos, ameaças e temores. Ele oferecia também
pretextos cada vez mais fortes para a elaboração de críticas internas ao governo bragantino
e, a partir daí, à própria ordem monárquica vigente. O Correio Brasiliense, por exemplo,
independente, como fez Caracas, e nesse caso é muito natural que estabeleça um Governo
livre; e basta esta palavra, para que o Governo do Brasil não deseje intrometer-se com ela.
princípios aos vizinhos; logo a tranquilidade do Governo do Brasil pedia que se não dessem
Brasil”.72
Essa ainda era uma crítica circunscrita ao exercício do poder político; ao mesmo
tempo, outras começavam a tocar diretamente na forma desse poder. Para isso contribuía o
fato da guerra peninsular contra as forças francesas que ocupavam Portugal ter se encerrado
em abril de 1814 e, mesmo assim, a Corte insistir em continuar no Brasil, de onde pretendia
assegurar o domínio sobre aquela que era considerada a parte mais importante de seus
domínios. Tal condição, reconhecida já com a transferência de 1808 e reforçada diante das
ameaças impostas pela vizinhança da América espanhola, foi oficializada pela carta de lei
71
Exemplos das muitas expressões desse tipo se encontram no ofício de Francisco das Chagas Santos ao
capitão general do Rio Grande (San Miguel, 08/10/1813), publicado em Política Lusitana..., cit., III, p.122-
125; nos ofícios do representante português em Madri José Luiz de Souza ao ministro marquês de Aguiar n.
23 (12/03/1815) e n.39 (24/05/1815), existentes no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores
do Brasil, Legação em Madri; e no Correio Brasiliense n.81 (02/1815), n.88 (09/1815), n.92 (01/1816), n.93
(02/1816) e n.95 (04/1816).
72
Correio Brasiliense n.43, 12/1811.
48
conferindo à América portuguesa um estatuto político equivalente ao da antiga metrópole.
do Brasil e no fim dos privilégios comerciais desde sempre usufruídos pelos comerciantes
portugueses não uma estratégica reorganização política de um Império combalido, mas uma
simples inversão de papéis. Portugal teria se tornado “colônia” do Brasil, que agora
Brasil, bem como a sua preocupação com os assuntos da América espanhola significariam,
na ótica desses descontentamentos, uma política “americanista” que, segundo eles, era
O ano de 1817 é, nesse sentido, crucial, porque ele trouxe para dentro do Reino
Unido português a materialização dos espectros criados pela América espanhola. No mês
atitude que reafirmava a percepção da Corte do Rio de Janeiro de que a América se tornara,
de vez, o espaço fundamental de definição do complicado jogo político em meio ao qual ela
com forças tanto revolucionárias como realistas em luta na Venezuela, mereceram alarme e
73
Ana Cristina B. de Araújo, “O ‘Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves’ 1815-1822”. In: Revista de
História das Ideias, v.14, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1992; V. Alexandre, Os sentidos do império...,
cit., parte III, cap.3.
49
políticas entre portugueses e o governo de Buenos Aires. 75 Os boatos não eram infundados.
Enquanto em Portugal era abortada a conspiração liderada por Gomes Freire de Andrade,
abrangência social que contou com a participação desde grandes fazendeiros até escravos.
Por três meses, de março a maio de 1817, foi instaurado um governo regional republicano
Janeiro no Reino Unido e que ensaiou a busca por apoios na Grã-Bretanha, nos Estados
Unidos e em Buenos Aires. A dura repressão a esse movimento deu início a uma fase de
quebra da ordem vigente. Mas essa quebra só se consumaria no início da década seguinte,
remessa para o Brasil de alguns milhares de homens [...] que foram continuar na América
do sul os duros trabalhos de guerra que, fazendo-se a tamanha distância de Portugal, parece
que somente sobre este reino tem descarregado seus pesados golpes, atacando por muitos
74
A documentação a respeito desse episódio, localizada no Arquivo Público do Pará, foi publicada por Arthur
Cézar Ferreira Reis, “Neutralidade e boa vizinhança no início das relações entre brasileiros e venezuelanos.
Documentário”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro v.235, abril/junho de 1957, p.3-84.
50
regulares que se faziam para o Brasil com diferentes motivos e aplicações”, além das
exigia-se o retorno imediato do rei e de toda a família real à Europa, bem como a reunião,
em Lisboa, de Cortes que se encarregariam de elaborar uma Constituição para toda a nação
longo do ano de 1821 várias juntas de governo independentes leais às Cortes foram se
1821 esse movimento se tornou vertiginoso: dos três periódicos regularmente editados no
75
Citado por Carlos G. Mota. “O processo de independência no Nordeste”. In: C.G. Mota (org.), 1822:
dimensões. São Paulo, Perspectiva, 1972, p.220-221.
76
Citado por V. Alexandre, Os sentidos do império..., cit., p.473.
77
As primeiras juntas se formaram no Pará (1o. de janeiro), na Bahia (10 de fevereiro) e no Rio de Janeiro (26
de fevereiro); a elas se seguiram as juntas de Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Província Oriental,
chamada de Cisplatina (março); Maranhão, Goiás e Rio Grande do Sul (abril); Rio Grande do Norte e Piauí
(maio); Alagoas (junho); Espírito Santo e Mato Grosso (julho); Ceará (novembro); e finalmente a Paraíba
(fevereiro de 1822). A esse respeito, vide: Márcia R. Berbel, A nação como artefato: deputados do Brasil nas
Cortes portuguesas 1821-1822. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999, p.57-65; e os vários estudos específicos
reunidos em Sérgio Buarque de Holanda (dir.), História geral da civilização brasileira. 3ªed. São Paulo:
Difel, 1972 (t.II, v.II, “Dispersão e unidade”) e C. G. Mota (org.), 1822..., cit. Não encontramos em nenhum
deles a data de adesão do Rio Negro.
51
Pernambuco, Maranhão, Pará e a Província Oriental.79 Esse grande crescimento da
Que realidade era essa? Em 1821, ela era a do triunfo da revolução na Venezuela, a
No Brasil, tudo isso foi acompanhado em detalhes. Além de extensivamente cobertos pela
provenientes do Peru, a esposa do almirante Thomas Cochrane (que prestava seus serviços
78
O decreto de liberdade de imprensa é de 21/09/1820, ao qual foi acrescido o de 13/10 que permitia
oficialmente a circulação de impressos portugueses fora de Portugal. Em 02/03/1821 João VI assinou, no Rio
de Janeiro, o decreto de suspensão provisória de toda e qualquer censura sobre a imprensa em geral.
79
Marco Morel & Mariana M. de Barros, Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do
século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.23-24; Andréa Slemian & João Paulo G. Pimenta, O
”nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003,
p.68-73. No caso da Província Oriental, referimo-nos a periódicos portugueses.
80
Ofícios do representante austríaco no Rio de Janeiro barão Wenzel de Marschall ao príncipe Metternich,
27/06/1821 e 12/07/1821 (Jerônimo de A. Figueira de Mello. “A correspondência do barão Wenzel de
Marschall”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 77, parte 1a, p.193-195). Ofício do
representante espanhol no Rio de Janeiro, conde de Casa Flores, a Eusebio de Bardaji y Azara, 09/10/1821
(Documentos para a História da Independência. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1923 p.358).
52
América como palco de destruição e anarquia. Esse novo paradigma se tornou possível
somente em 1821 por que o triunfo geral da independência da América concebido pelos
espanhola) do caráter de valorosa arma disponível aos propósitos de alguns dos grupos que
representantes locais que deliberasse, livremente, acerca dos destinos políticos da Província
independência da Província em relação ao Brasil, e que com isso ela deixasse de ser
locais que desde 1817 vinha lhe dando sustentação, e manipularam um congresso que entre
Província ao Reino do Brasil, com o nome de “Província Cisplatina”.82 Ficava claro que, no
seio do Reino Unido, se esboçava uma divergência de interesses tanto em relação à Corte
81
Obra fundamental a respeito é a de Cecília de S. Oliveira, A astúcia liberal: relações de mercado e projetos
políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista: Edusf, 1999.
82
Rosa Alonso (et al.), La oligarquia oriental en la Cisplatina. Tacuarembó/Colonia: Pueblos Unidos, 1970;
J. A. Soares de Souza. “O Brasil e o Prata até 1828”. Holanda (dir.), História geral da civilização brasileira.
cit.. 3ªed. São Paulo, Difel, 1970. (t.II “O Brasil monárquico”). Um amplo e valioso repertório documental
sobre o congresso se encontra em Juan E. Pivel Devoto. “El congreso cisplatino (1821)”. In: Revista del
Instituto Historico y Geografico del Uruguay, tomo XII. Montevideo, 1936.
53
O foco dessa divergência estava no continente americano, e o seu desenvolvimento
representações, não constituindo, portanto, grupos articulados tampouco opostos entre si, os
efetivamente, para que antagonismos de posições colocassem uns contra outros. Uma das
manutenção para a segurança territorial do Reino do Brasil não era concebida apenas por
Diplomática das Cortes em sessão de 02 de maio de 1822, foi amplamente rejeitada por 84
nação portuguesa foi encampada somente por representantes peninsulares. Além disso, em
Cisplatina passaram a ser amplamente difundidas por uma imprensa periódica americana
cada vez mais indisposta em relação a medidas tomadas pelas Cortes de Lisboa em relação
Cortes, além das constantes ameaças de envio ao Brasil de expedições militares de sujeição.
83
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, sessão de 02/05/1822.
84
Já em 09 de janeiro de 1822 o príncipe Pedro oferecera significativa demonstração de força ao declarar a
sua permanência na América à testa da regência. Em 16 de fevereiro convocou um Conselho de Procuradores
das províncias americanas destinado a analisar as decisões das Cortes em relação ao Brasil. Em 3 de junho,
convocou uma assembleia constituinte, e em 06 de agosto tornou público um manifesto dirigido às nações
estrangeiras no qual justificava sua conduta à frente do governo do Rio de Janeiro. Seis dias depois, nomearia
54
Tudo isso ressuscitava a ideia de “colonização”, só que agora com sinais invertidos: seria
Portugal – por meio das Cortes – que pretenderia “recolonizar” o Brasil. A evacuação da
Cisplatina aparecia como uma das medidas concebidas com esse propósito. “Medita o
desmembração do Brasil pelo Sul, cedendo a Buenos Aires Montevidéu, e deixando assim
abertas e vulneráveis as fronteiras do Rio Grande, o que sem dúvida é grande calamidade
para o Brasil, e de manifesta injustiça aos povos de Montevidéu, que já se declararam parte
integrante do Brasil.” Advertia que, se o Brasil decidisse por iniciativa própria fazer-se
independente, nada o impediria de, nesse ponto, seguir a mesma trajetória que a América
grupos aos quais cada vez mais interessava a criação, na América, de um centro de poder
Brasil e as Cortes de Lisboa acabaram por criar uma própria ideia política de Brasil até
separação de Portugal.
legitimação a esse projeto, e com isso aquilo que durante um bom tempo fora concebido
históricos dos Estados Unidos e das “vastíssimas províncias dos Americanos Espanhóis,
encarregados de Negócios junto à Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, incumbindo-lhes de obter destes o
reconhecimento internacional formal da independência de seu governo no Brasil.
55
que já sacudiram, e para sempre o jugo e os prejuízos de Madri e de Cádiz”, indicariam que
a independência do Brasil – por ele defendida - era somente uma questão de tempo.86 O
Conciliador Nacional recorreu ao abade de Raynal para legitimar a separação das colônias
e a justiça falam, pugnam, clamam em nosso favor, em favor da santa causa que
abraçamos” [isto é, a independência do Brasil]”, pois “as luzes do século a protegem [e] os
nossos vizinhos ensinaram-nos com seu exemplo”.88 Mais eloquentes ainda talvez sejam as
palavras do próprio Pedro em uma proclamação dirigida aos povos do Brasil poucos dias
antes de sua aclamação como Pedro I, o primeiro imperador do Brasil,89 segundo as quais a
85
Correio Brasiliense n.165, 02/1822; Revérbero Constitucional Fluminense extra n.01, 12/05/1822.
86
Revérbero Constitucional Fluminense n.23, 16/04/1822.
87
Conciliador Nacional n.4, reproduzido no Volantim n. 28, 03/10, e n. 29, 04/10/1822.
88
Papagaio n.06, 12/06/1822.
89
Realizada em 12 de outubro de 1822.
56
permanentemente reelaborados pelos homens e mulheres que viviam um tempo presente
tinha significado especial. Em primeiro lugar, por se tratar de uma realidade recente e ainda
porque esse acompanhamento era facilitado pela contiguidade territorial entre as duas
de uma crise que era comum a ambos os impérios, impor uma intervenção direta naquela
nacional brasileiro. O que implica, retomando nossas proposições iniciais, considerar esse
processo menos como uma “exceção” do que como uma das manifestações singulares no
90
Proclamação datada de 16/09/1822, transcrita em Francisco Adolfo de Varnhagen, História da
independência do Brasil. 7a.ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981 (revisão e notas de Hélio
Vianna), p.140, nota n.29.
91
R. Koselleck. “Espacio de experiencia” y “Horizonte de expectativa”, dos categorías históricas. Futuro
pasado: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Paidós, 1993, p.333-357.
57
Capítulo 3
Rio da Prata*
americano, as possessões portuguesas tiveram, na extensa região banhada pelo Rio da Prata
e nas terras a ela imediatamente contíguas, seus pontos de contato mais intensos e
Buenos Aires já desde o século XVI, entreposto de rotas comerciais que interligariam,
outra direção, entre a capitania de São Vicente (tornada capitania de São Paulo em 1709) e
colonização extensiva de toda a banda oriental do Rio Uruguai e das capitanias de Rio
espanhola remontem já aos primórdios da colonização, foi nas últimas décadas do XVIII
que elas se intensificaram, sobretudo com os vice-reinos do Peru e do Rio da Prata, a ponto
*
Em coautoria com Adriana Salay Leme.
58
legal e ilegal de homens e mercadorias, mas também de notícias, boatos, informações,
originada pelo apoio desta aos recém-criados Estados Unidos, o comércio entre os
aqueles do Rio de Janeiro envolvidos no tráfico de escravos. Embora toda essa atividade
tenha conhecido contração após 1783, no início da década seguinte ela voltou a crescer,
portugueses radicados no Brasil. Alguns números fornecidos por uma especialista no tema
Buenos Aires, 54% eram portugueses – a grande maioria negociantes que mantinham
agentes nos portos lusoamericanos -, cifra que atingiria 63% em 1807.93 A despeito de
alguns recuos - como durante a chamada “Guerra das Laranjas” entre Portugal e Espanha
de onde foram expulsos por milicianos locais em 1806 e 1807 - as ligações entre o Brasil e
92
Marcela Tejerina, Luso-brasileños en el Buenos Aires virreinal: trabajo, negocios e intereses en la plaza
naviera y comercial. Bahía Blanca: Ediuns, 2004, p.72-108. Trata-se do mais consistente estudo a respeito das
relações comerciais entre o Brasil e o Vice-Reino do Rio da Prata
93
M. Tejerina, Luso-brasileños en el Buenos Aires virreinal ...cit., 113 e 145, respectivamente.
59
o Rio da Prata jamais cessaram, chegando inclusive a crescer daí em diante. Em 1808, a
depois, que “houve, é verdade, uma época em que [...] até os gêneros que passavam de um
para outro porto do próprio rio, Buenos Aires e Montevidéu, eram transportados via Rio de
Janeiro”.95
índigo, erva-mate e arroz, provenientes do Rio Grande, Santa Catarina, Santos, Parati, Rio
para a América portuguesa seguiam, por mar ou terra, carne, couro, farinha de trigo,
animais e peles.96 É relevante destacar que portos como os de Buenos Aires, Montevidéu,
Rio de Janeiro, Salvador e Recife possuíam estreitas vinculações também com muitas
outras praças americanas, africanas e europeias, o que os tornava não apenas centros
94
A abertura total dos portos platinos ao comércio estrangeiro seria decretada em 02 de novembro de 1809,
regulamentada quatro dias depois. John Street, Gran Bretaña y la independencia del Rio de la Plata. Buenos
Aires: Paidós, 1967, p.151-165.
95
John Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/ São
Paulo: Edusp, 1975 (Londres 1820). p.393.
96
Elena Beatriz Torre, “Aspectos en torno al comercio marítimo Buenos Aires – Brasil 1810-1816”. In:
Hernan A. Silva (dir.), Navegacion y comercio rioplatense II. Bahia Blanca: Universidad Nacional de Sur,
1998, p.314-359; José Pedro Barrán & Benjamín Nahum, Bases económicas de la revolución artiguista. 2ªed.
Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1964, cap.III.; B. J. Barickman, A Bahian Counterpoint: Sugar,
Tobacco, Cassava, and Slavery in the Recôncavo, 1780-1860. Stanford: Stanford University Press, 1998;
Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. 3° ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.109; Catherine
Lugar, The Merchant Community of Salvador, Bahia, 1780-1830. State University of New York at Stony
Brook, 1980 (tese de doutorado), p.85; Augustín Beraza. La economía en la banda oriental durante la
revolucíon (1811-1820). 2°ed., Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1964. p.19; e Jeanne Lynn
Friedman , Free trade and Independence: the Banda Oriental in the Word System, 1806-1830. The Ohio State
University, 1993.
60
de 1808, encontrariam uma demanda cada vez mais intensa da parte de todos aqueles que,
em ambos os impérios ibéricos, se viram envoltos pelos assuntos da política. Isso sem falar
no Rio Grande de São Pedro que, dentre todas as capitanias do Brasil, era sem dúvida a
mais suscetível às trocas com a América espanhola, possuindo inclusive produções locais,
estrutura fundiária e dinâmica demográfica muito semelhante aos territórios a ela imediatos,
simbioses, a crise política das metrópoles ibéricas entre 1807 e 1808 se desdobraria em
respectivos impérios na América, bem como das nações independentes a partir deles
mundo ocidental; mas no Rio da Prata, sem dúvida, seus impactos foram especiais,
fronteira.
97
Helen Osorio, “La capitanía de Río Grande en la época de la revolución artiguista: economía y sociedad”.
In: Ana Frega & Ariadna Islas (coord.), Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevideo: Facultad de
Humanidades y Ciencias de la Educación/Universidad de la República, 2001, p.163-178; A. Beraza, La
economía en la Banda Oriental..., cit., p.20-21; e Márcia Eckert Miranda, A estalagem e o império: crise do
Antigo Regime, fiscalidade e fronteria na província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009.
61
Família Real portuguesa abandonara Lisboa e se dirigira ao Rio de Janeiro.98 Diante de uma
notícia tão importante, o governador local decidiu agir: comunicou o fato ao vice-rei do Rio
al Rio Grande para que con la cautela correspondiente se impusiese de tanto quanto alli
Nele, Larrobla dá conta das forças militares da capitania do Rio Grande, embora
“preparatibos por hora absolutamente ningunos”, tampouco “esperan Tropas del Janeyro”.
Quanto ao desembarque da Família Real, até o dia 14 de fevereiro “aun no havia llegado el
Principe Regente al Rio, el que entró en la Bahia de Todos Santos con dos Navios
nenhuma providência parecera tomada no Rio de Janeiro para sua entrada lá. A presença
dos britânicos ao lado dos portugueses é digna de nota, resultado de uma aliança recém-
Larrobla, ainda “no se habla, y se ignora de rompimiento de guerra con los Españoles,
aunque se sospecha mucho”. A seguir, destaca aquele ponto que lhe parece mais
98
O comboio que levou a Família Real portuguesa à América deixou Lisboa em 29 de novembro de 1807; o
príncipe João e uma pequena comitiva desembarcariam primeiro na Bahia, em 22 de janeiro do ano seguinte,
enquanto o restante seguiria para o Rio de Janeiro. Os demais para lá seguiriam em 26 de fevereiro, chegando
à nova sede da sede da Corte em 07 de março.
99
Nota do Cabildo de Montevidéu ao Cabildo de Buenos Aires, 02/03/1808. Política lusitana en el Río de la
Plata – Coleccion Lavradio, I, 1808-1809 (doravante PLRP). Buenos Aires: Archivo General de la Nación,
1961, p.7-9. O informe de Larrobla foi redigido em 24/02/1808.
62
“el Pueblo le apellidó Emperador de toda la America del Sur, a lo que respondia,
que seria lo que quisieran”, ao que acrescenta: “la opinion bulgar es, que dicho
Principe pasará letras a la america Española del Sur para titularse Emperador de
toda ella.”100
príncipe João e sua alcunha de “Imperador de toda a América do Sul” como um fato,
embora logo a seguir considerasse seus supostos procedimentos para oficializar tal
condição como um boato, baseado apenas na “opinião vulgar”. Desse modo, em seu
inglês John Luccock, acima mencionado, escreveria, poucos anos depois, que logo à sua
aparentemente insuspeitas, a ideia coeva – que era também uma constatação – do príncipe
100
Idem, p. 7-8.
101
J. Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro... cit., p.163.
63
português como único chefe de uma dinastia europeia instalado em terras do novo mundo,
Assim, naquele contexto, a expressão único monarca da América do Sul podia ser
novo. Assim, em 02 de março, dois dias depois de tomarem ciência do que seu informante
Aires que “la família Real de Portugal havia venido de Lisboa al Janeyro”; por isso haviam
quantas ocurriesen en aquella banda sobre el estado de esta nación con la nuestra por los
“Con estas noticias aunque hasta ahora no tengamos otras que confirmen los recelos
compatible con su celo y con el de este Exmo. Cabildo recordarle lo expuesta que
está toda esta campaña en caso de un rompimiento de Guerra con aquella nación
fronteriza, por las ningunas fuerzas que hay en ella para contener la ambición de
tales vecinos”.
64
O Cabildo de Montevidéu pedia ao de Buenos Aires gente, armas e dinheiro para o
caso de um ataque português, em função dos recentes serviços à causa espanhola prestados
por seus homens, o que evocava o espectro das invasões ao Rio da Prata em 1806 e 1807,
comandadas por súditos de uma Grã-Bretanha que, agora, era aliada de Portugal. Um
“V. E. no puede ignorar que este Pueblo [de Montevidéu] debe precisamente
profesar un perfecto amor a estos cortos Infantes veteranos [de Buenos Aires] por
que han sido en todas las turbulencias pasadas sus mas llegados compañeros, y por
lo tanto no duda este cabildo que V. E. sabrá con su influjo facilitarle el gusto de
que se reboque la orden dada por la capitanía general para la ida de estos pocos
soldados, y que se conceda la subsistencia de ellos aquí para en cualquier caso que
Gutiérrez, com advertências sobre os riscos que corria aquela fronteira com o Brasil.103
Agora, quase um mês depois, na correspondência com o Cabildo de Montevidéu, o tom era
102
Nota do Cabildo de Montevidéu ao de Buenos Aires, 02/03/1808. PLRP , p. 5-7.
103
Os dados estão presentes no Ofício do Governador D. Manuel Gutiérrez ao vice-rei Liniers, de 17/03/1808,
em resposta à nota de 19/02/1808 sobre as dificuldades existentes em proteger as fronteiras com o Brasil.
PLRP, cit. p. 23.
65
mais cauteloso. Dando-lhe “las debidas gracias por el celo con el que le imparte avisos tan
interesantes como oportunos para nuestra respectiva seguridad en las criticas actuales
circunstancias,” informava que nesse meio tempo outras notícias tinham chegado a Buenos
Aires: pela sumaca Rivera Nova, que saíra do Rio de Janeiro em 18 de fevereiro e aportara
ocurrencias en las Colonias Portuguesas”. E quais seriam estas? A de que era “problemático
[duvidoso] el arribo del Príncipe Regente a la Bahia, creyéndose política del Gobierno la
propagación de esta noticia”, que era opinião dominante nos círculos dirigentes portugueses
“conservar la mayor armonía y relaciones mercantiles con las colonias Españolas”, e que
não apenas essas notícias “persuaden no tan próximas las hostilidades” como também estas
francamente improvável.104
Em 13 de março de 1808, apenas cinco dias após a chegada do príncipe João ao Rio
ameaças francesas que pairavam sobre o continente, bem como uma intermediação da
nova investida desta contra os portos do Rio da Prata. Não se tratava apenas de oferta de
proteção e intermediação, mas também de uma ameaça: no caso de negativa por parte das
autoridades portenhas, “Sua Alteza Real se veria obrigado a obrar, de concerto com o seu
104
Nota do Cabildo de Buenos Aires ao de Montevidéu, 05/03/1808. PLRP, cit. p. 9-11.
66
poderoso aliado, com os fortes meios que a Providência depositou em suas mãos”. 105 Em
Olaguer Feliú, que “se ha sabido en esta Província que el dia 19 de Enero último llegó al
Janeyro en dos Navios y dos Bergantines de Guerra Portugueses y en [...] tres Navios
Ingleses la Família Real de Portugal, excepto el Príncipe Regente, su Mujer e hijos, que
arribaron a la Bahia de Todos Santos y aun nos se sabe que hayan seguido al Janeyro”. 106
do Rio de Janeiro encarregava o brigadeiro Joaquim Xavier Curado de uma missão especial
ao Rio da Prata. De acordo com as instruções lavradas por Sousa Coutinho em 15 de março
de 1808, Curado deveria ir ao Rio Grande para daí, com o apoio do governador desta
capitania, Paulo José da Silva Gama, “conseguir ser admitido em Montevidéu e Buenos
Aires [...], propondo a negociação de que vai encarregado para segurar a continuação do
Comércio”; em seguida, deveria trabalhar junto aos governadores daquelas praças para
“unir aqueles Países ao Real Domínio, o que seria muito feliz, pois evitaria toda ulterior
105
A íntegra do ofício em espanhol se encontra publicada em PLPR, I, op. cit. p. 12-14.
67
chegar a vias de fato, que se conheça a força real dos Espanhóis sobre todos os
mas sem lograr obter qualquer manifestação formal de apoio à política portuguesa. Em
Buenos Aires, nem isso: sob pretextos de ordem burocrática, o vice-rei Liniers evitou tratar
com o agente português, a despeito de, por meio dele, “manifestar à S.A.R. el alto respeto
que me merece, y poder acreditar mis vivos deseos de estrechar mas los vinculos de
amistad, y alianza tan recomendada por nuestros Augustos Soberanos”, inclusive dirigindo-
se diretamente ao príncipe João em pelo menos uma ocasião.108 A situação era delicada, e
governador de Montevidéu, Liniers lhe recomendaria, no trato com Curado, “la precaución
Vice-Reino do Peru, manifestando seus “justos recelos” de que “aquel Principe no obra de
buena feé, y que si al presente no opera hostilmente contra estos Dominios por falta de
106
Nota do Governador de Buenos Aires ao Ministro da Guerra da Espanha, Antonio Olaguer Feliú,
17/03/1808. PLRP, cit., p. 21-23.
107
Instruções de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Joaquim Xavier Curado, Rio de Janeiro, 15/03/1808.
Transcritas por Walter A. de Azevedo. A missão secreta do marechal Curado ao Rio da Prata (1808-1809). In:
Revista do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro, v.192, jul./set./1946, p.174.
108
Ofício de Liniers a Joaquim Xavier Curado, Buenos Aires, 26/04/1808. PLRP cit., p.43. O ofício de
Liniers a D. João é de 28/07/1808. PLRP, cit., p. 20. A correspondência trocada entre Curado, Liniers e o
governador de Montevidéu, entre 26/04/1808 e 06/07/1808, encontra-se em PLRP cit. p.42-54.
109
Nota do vice-rei ao governador de Montevidéu, 30/04/1808. PLRP, cit., p.45.
68
Tropas Nacionales, no dejará de hacerlo luego que tenga, como se cree al auxilio
E assim, em setembro de 1808 Curado retornou ao Rio Grande sem obter grandes
resultados. O que não deve ter surpreendido Sousa Coutinho, que ao mesmo tempo em que
despachara seu agente mantivera, entre 23 e 26 de março, conversas pessoais com o conde
chegaria inclusive a, em diversas ocasiões, empregar a força militar para além de suas
fronteiras americanas, mas ela também receava as convulsões de seus vizinhos, temendo
conflituosa das relações que, desde então, se estabeleceriam entre os mundos luso e
espraiamento dos assuntos políticos pelos espaços públicos, espaços estes que se viam cada
110
Nota do Cabildo de Buenos Aires ao Cabildo de Lima, 27/04/1808. PLRP cit., p. 54.
111
Em PLRP, p.31-39, há uma memória escrita pelo conde de Liniers, datada do Rio de Janeiro em
20/03/1808, bem como uma síntese de suas conversas com D. Rodrigo travadas entre os dias 23 e 26 do
mesmo mês.
69
Sobretudo quando começaram a chegar à América, em tempos distintos e graus de
precisão variáveis de parte a parte, as notícias dos acontecimentos da Espanha de 1808, que
levaram à prisão da família real espanhola, à substituição do rei Fernando VII por José
Bonaparte e ao início dos levantamentos populares contra aquilo que era considerado como
junta regional de Sevilha, José Goyeneche, dando conta do início da resistência armada na
praticamente todos eles, por fidelidade e união em torno do rei impedido, da dinastia e dos
agosto de 1808, Carlota Joaquina, princesa do Brasil, esposa do príncipe João e irmã mais
velha de Fernando VII, assinou um Manifesto dirigido à los fieles vasallos de Su Magestad
Católica El Rey de las Españas e Indias por su Alteza Real Doña Carlota Juaquina Infanta
pretendia ser reconhecida, por todas as autoridades políticas espanholas (da Europa,
112
PLRP, cit., p.157-159. A proclamação do Cabildo, de 22/08/1808, e de idêntico teor, encontra-se à p.159-
160.
113
François-Xavier Guerra, “Dos años cruciales (1808-1809)”. In: Modernidad e Independencias. Ensayos
sobre las revoluciones hispánicas. 2° ed. México: FCE, 1993, p. 115-148.
70
América e Filipinas) como legítima sucessora do monarca impedido. Junto com o
complexas e ainda pouco estudadas pela historiografia. Porém, é sabido que em geral foi
que, em meio a uma crise da qual não se tinha, ainda, uma visão detalhada e segura,
e continuístas, o projeto foi veiculado de modo a ser percebido, efetivamente, como tendo
Brasil”, respaldados explicitamente pelo Príncipe Regente, publicados pela Imprensa Régia
do Rio de Janeiro e encaminhados por via de seu principal ministro. Assim, a articulação
historiografia, de que o projeto era apenas uma espécie de empreitada pessoal de Carlota
114
Os três documentos foram impressos na Imprensa Régia do Rio de Janeiro; encontram-se publicados em
PLRP, cit., p.105-115. Sobre D. Carlota e o carlotismo: Sara Marques Pereira, D. Carlota Joaquina e os
“espelhos de Clio”: actuação política e figurações historiográficas. Lisboa: Horizonte, 1999; Francisca L. N.
de Azevedo, Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; Roberto
Etchepareborda, Qué fue el Carlotismo. Buenos Aires: Plus Ultra, 1971; Julián María Rubio, La infanta
Carlota Joaquina y la política de España en América (1808-1812). Madrid: 1920; e Laura de Mello e Souza,
“Prefácio”. In: José Presas. Memórias secretas da princesa do Brasil. 3ª.ed.revista. São Paulo: Phoebus, 2008.
71
Joaquina; da parte dos coevos, a percepção dessa articulação era pautada pelo clima de
pouco depois, chegaria à cidade uma nota direta de Sousa Coutinho ao Cabildo de Charcas
e a várias outras autoridades locais e que também trazia, além dos três documentos, notícias
peninsulares. Aqui, uma anterior e persistente disputa por espaços de poder, travada entre a
115
Nota do ministro secretário de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho ao Cabildo de Buenos Aires, Rio de
Janeiro, 24/08/1808 (PLRP, cit., p.103-104); a carta de D. Carlota a Liniers é citada por E. Just Lleó,
Comienzo de la independencia en el Alto Peru: los sucesos de Chuquisaca. Sucre: Editoea Judicial, 1994,
p.73; sua recusa, de 13/09/1808, em PLRP, cit., p.142-146; a do Cabildo de Buenos Aires, também de
13/09/1808, em PLRP, cit., p.139-141.
116
Na administração imperial espanhola, as audiencias eram uma das instituições encarregadas pela justiça,
cuja jurisdição se estendia por uma porção de território que não necessariamente coincidia com a de vice-
reinos, capitanias ou províncias. A cidade de Charcas, sede de uma dessas instituições, estava no Vice-Reino
do Rio da Prata, e hoje corresponde a Sucre, na Bolívia.
72
portugueses, polarizando antigas rivalidades (no ano seguinte, essa situação conduziria à
espanhóis da América o projeto carlotista despertou tanto entusiasmo como nas praças
portuárias do Rio da Prata. Em Buenos Aires, ele agregou poderosos comerciantes cada
América portuguesa, como Juan José Castelli, Antonio Luis Beruti, Hipolito Vieytes,
Joaquina atesta que, em 1808, a região platina realmente deveria merecer, por parte do
Estado português da América, uma atenção muito especial, ponto de convergência que era
de uma crise política não só espanhola, mas também portuguesa. Uma crise que, se no
momento não acenava para a possibilidade dos domínios lusos sofrerem um golpe de
hipótese, exigindo uma pronta mobilização da qual a política externa da Corte do príncipe
117
J. Lleó, Comienzo de la independencia..., cit., p.72-77 e p.376-389. A nota de Sousa Coutinho ao Cabildo
de Chuquisaca se encontra publicada em PLRP, cit., p.105; a recusa deste (25/12/1808) à p.141-142. Também
João Paulo G. Pimenta, O Brasil e a América espanhola (1808-1822). São Paulo: FFLCH/USP, 2004
(doutorado), p.53-64.
118
A confiarmos no diagnóstico não de todo isento de deformações de Felipe Contucci, encaminhado a Sousa
Coutinho em novembro de 1808, o número de pessoas “confiáveis” (entenda-se: leais ao projeto carlotista) no
interior do Vice-Reino do Prata e capitania do Chile chegaria a 123; destas, 99 em Buenos Aires (Contucci a
Coutinho, Rio de Janeiro, 16/11/1808. In: Tulio Halperin Donghi, Revolución y guerra: formación de una
élite dirigente en la Argentina criolla. 3°ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 1994. p.157-157). Também Ariosto
Fernández. “Manuel Belgrano y la Princesa Carlota Joaquina (1808)”. In: Historia, ano I, n.º3, Buenos Aires,
jan.-mar./1956, p.79-88 (primeira parte).
73
Ao longo daquele ano, a instabilidade que perpassava a relação, no Rio da Prata,
governava com uma frágil base de apoio, costumava ser acusado por seus opositores de
francófilo, dada sua ascendência francesa; agora, o era também de colaborador da Corte
Liniers teve de lidar, a partir de 20 de setembro, com tumultos populares, com a resistência
do governador local, Francisco Javier de Elío, de cumprir a ordem de Liniers para ceder seu
VII e que ignorava a autoridade do vice-rei. Em Buenos Aires, em fins do ano foi tramada
uma conspiração liderada pelo poderoso comerciante Martín de Álzaga – cujos negócios
para 01 de janeiro de 1809.119 A presença no Brasil da Corte portuguesa era apenas um dos
muitos problemas com os quais as autoridades espanholas do Rio da Prata tinham que lidar,
119
Ana Frega Novales, “Tradicion y modernidad em la crisis de 1808. Una aproximacion al estudio de la
Junta de Montevideo”. In: Oribe Cures & Luis Ernesto Behares (orgs.), Sociedad y cultura en el Montevideo
colonial. Montevideo: Universidad de la Republica/Intendencia Municipal de Montevideo, 1997, p. 283-294;
também Noemíl Goldman, “Crisis imperial, Revolución y guerra (1806-1820)”. In: Noemí Goldman (dir.),
Nueva Historia Argentina Tomo III. Revolución, República, Confederación (1806-1852). Buenos Aires:
Sudamericana, 1998; e Geneviève Verdo, L’indépendance argentine entre cités et nation (1808-1821). Paris:
Publications de la Sorbonne, 2006.
74
intrínsecas à constituição do próprio Vice-Reino, em 1776, agravadas com as invasões
em continente americano. Conforme vimos acima, as expectativas por ela criadas desde
domínios espanhóis da América, como implicariam que, desde então, essa instabilidade
novas nações, começou a se delinear com a crise das metrópoles em 1807 e 1808, a partir
de condições dadas por uma rede, longamente maturada, de trocas, informações, notícias e
inclusive porque o acontecimento, em si, dizia respeito a uma conjuntura mundial, pelo
menos ocidental, onde muita coisa importante se passava em relações de causalidade direta
ou indireta; em suma, por meio de experiências como as que analisamos nos dois capítulos
aquelas focadas no Rio da Prata, verdadeiro ponto de intersecção entre os impérios ibéricos
na América, tinham atributos especiais. Como aqueles que permitiram que as intenções do
único monarca da América do Sul fossem lidas como a de ser tornar Imperador de toda a
América do Sul.
75
Capítulo 4
escritor inglês Robert Southey. Nessa obra, que gozaria de notável prestígio dentre todos
aqueles que, doravante e por todo o século XIX, se interessassem intelectualmente pelo
Brasil, podia-se ler um prognóstico acerca do futuro daquele país: um dia ele deveria se
tornar independente e, com isso, grandioso. Prever o futuro de colônias europeias não era
exclusivo de Southey era o diagnóstico de que o Brasil tinha, como uma das características
dos de outras histórias os seus materiais; aqui não temos enredos de tortuosa política
revoluções que comemorar, nem de celebrar vitórias, cuja fama vive ainda entre nós
muito depois de já se lhes não sentirem os efeitos. Descoberto por acaso, e ao acaso
abandonado por muito tempo, tem sido com a indústria individual e cometimentos
76
particulares, que tem crescido este império, tão vasto como já é, e tão poderoso
poderia parecer fortemente atual. Pois uma observação preliminar e superficial do estado
primeira parecia reinar uma calmaria, com as coisas aparentemente seguindo seu curso
normal sem grandes convulsões (o que, a confiarmos em Southey, seria uma marca da
permitindo ao fragilizado governo luso atingir plenamente seus objetivos mais imediatos.
enfrentamento direto – nem o príncipe regente nem seus ministros e conselheiros poderiam
confiar nos confusos relatos que, por vezes, lhes indicavam o pauperismo das forças
preservava sua autonomia, garantia a unidade de alguns de seus mais importantes domínios
120
Robert Southey. História do Brasil. São Paulo, Melhoramentos, 1977, v. I, p.39 (1810).
77
Ao observarmos com atenção dados da conjuntura que englobava os territórios
ibero-americanos em 1810, a constatação do que era aquela realidade torna-se outra. É bem
real, que os súditos portugueses continuavam a ter para onde convergirem suas lealdades, e
que nada parecido com as convulsões políticas hispânicas se observava em seus territórios
(embora toda a península ibérica estivesse em guerra). Nem por isso, contudo, as coisas no
crise política que, tendo atingido em cheio Portugal e seu império poucos anos antes, ainda
demonstrando como este não era, em absoluto, um ambiente isento de convulsões como
aquelas que singravam a Espanha e seus domínios americanos; mais: veremos como tal
ambiente devia sua condição diretamente ao que ocorria alhures, constituindo-se parte de
intensidades e feições ao longo das últimas décadas do século XVIII, e à qual suas
respectivas monarquias procuraram fazer frente por meio de políticas globais voltadas a
diversos quadrantes das realidades por eles abarcadas, adentra o século XIX e impede
78
resistência militar ao cataclismo político que se seguirá entre 1807 e 1808. 122 A invasão
passagem da primeira para o Brasil que lhe confere uma energia de que a segunda não
desdobramento do que ocorrera dois anos antes; portanto, o fator a precipitar a crise política
foi o mesmo, para Espanha e Portugal. Os resultados dos distintos caminhos trilhados por
Segurança, aliás, que dependeria de sua capacidade de isolamento diante dos efeitos diretos
funcionários do príncipe regente João, tampouco sua família, tinham condições de garantir.
O Brasil era, desde 1808, um ambiente fortemente propício ao contágio das influências
Isso se traduzia em uma política externa voltada com especial atenção à América,
iniciada desde o momento em que esta se tornara sede do Império Português, e que tinha
nas fronteiras – físicas ou não - com o Vice-Reino do Rio da Prata seus principais espaços
de definições. Tratamos disso nos capítulos anteriores. Mas essa política externa não se
Unidos e, claro, a Europa, onde Portugal ainda interessava, a França era a grande inimiga e
121
Vimos nos capítulos anteriores a matriz koselleckiana da categoria experiência, tal qual por nós elaborada.
122
Tulio Halperin Donghi, Reforma y disolución de los imperios ibéricos (1750-1850). Madrid: Alianza,
1985; István Jancsó, Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec,
79
a Grã-Bretanha a poderosa aliada recém adquirida. Internamente, os territórios
condição por uma medida emergencial que, tendo implicado em uma fuga da Corte diante
dos franceses era, para muitos súditos, também um abandono, não era aceita por todos. No
Brasil, as coisas ofereciam uma parcial compensação a este enfraquecimento das lealdades
muitos a experiência inédita de proximidade física com o soberano, bem como a atuação
tradicionais em relação ao monarca123 e que, ademais, poderia lhes render títulos; por outro
africanos, etc. –, algumas anteriormente existentes, outras agora criadas, e que interligavam
capitanias como o Rio Grande, São Paulo e Minas Gerais. 124 Mas se muita gente da
América ganhava com a Corte no Rio de Janeiro, esse desfrute não era universal, e os
1996; Stefan Rinke. Las revoluciones en América latina: las vías a la independencia, 1760-1830. México,
D.F.: El Colegio de México, 2011
123
Emilio Carlos R. Lopez, Festas públicas, memória e representação: um estudo sobre manifestações
políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo: Humanitas, 2004.
124
O trabalho mais importante a esse respeito continua sendo o de Maria Odila Leite Dias, “A interiorização
da metrópole (1808-1853)”. In: Carlos G. Mota (org.), 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.160-
184. Não obstante, conforme se verá a seguir, nosso argumento central não se coaduna com a ênfase na
ruptura supostamente promovida pela transferência da Corte em 1808 e que, segundo a autora, esvaziaria o
sentido revolucionário da independência do Brasil formalizada em 1822. Pelo contrário, parece-nos evidente
que, em muitos aspectos, 1808 prepara 1822, inclusive na configuração de um ambiente que propiciará, e
somente neste último momento, a emergência e consecução de um projeto revolucionário.
80
O novo Império Português era, assim, ao mesmo tempo dinâmico e conflitivo,
permeado por fissuras que se agravariam com o tempo. Embora em 1810 a geopolítica do
Império fosse ainda muito confusa do que antes, começava a se esboçar uma dualidade que,
até então, existira apenas em momentos pontuais, de modo efêmero e incapaz de pautar
americanas do Império, entre Portugal e Brasil (ademais, esboçada por olhares “externos”,
incertezas. Estas estavam cada vez mais organizadas em torno da pergunta: como impedir
que o Império Português sofresse os efeitos negativos das grandes convulsões políticas que
lhe afligiam diretamente na Europa, mas que na América, até aquele momento, tinham
Aqui, já se fazia sentir uma contradição básica daqueles tempos, derivada do fato
frágil e, à maneira do que ocorria em outras partes do mundo, acabava por tornar tal
equilíbrio ainda mais improvável; por vezes, até mesmo implicava no aprofundamento da
português uma vez instalada sua Corte no Rio de Janeiro. Consideremos apenas parte do
125
Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. 3.ªed. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p.210-212; Sérgio Buarque de
Holanda, “A herança colonial – sua desagregação”. In: História geral da civilização brasileira t.II v.1: o
processo de emancipação. São Paulo: Difel, 1962, p.09-39; Maria de Lourdes Vianna Lyra. A utopia do
poderoso império - Portugal e Brasil: bastidores da política 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994;
81
como a criação da comarca do sertão na capitania de Pernambuco, a concessão de forais de
vila a Flores do Pajeú (na mesma capitania), Pilão Arcado e Vila Nova do Príncipe (ambas
como, no Rio de Janeiro, a Real Biblioteca, a Real Academia Militar e o Real Teatro de São
Rio de Janeiro e em Salvador, onde foi inaugurado o passeio público. No mesmo ano,
nele fabricados; à chegada, ao Rio de Janeiro, de colonos chineses para início do cultivo de
que ainda se encontravam em áreas próximas ao Rio de Janeiro e aos fluxos mercantis por
pouco antes, continuavam em 1810, principalmente nos sertões de Mato Grosso e São
Maria de Fátima Gouvêa, “As bases institucionais da construção da unidade. Dos poderes do Rio de Janeiro
joanino: administração e governabilidade no Império luso-brasileiro”. In: István Jancsó (org.). Independência:
história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, p 707-752; e Andréa Slemian & João Paulo G.
Pimenta, A Corte e o mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São
Paulo: Alameda, 2008.
126
Roberto Simonsen, História econômica do Brasil (1500/1820). 8a.ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1978 (1937); I. Jancsó (et al.), Cronologia de história do Brasil colonial (1500-1831). São Paulo:
FFLCH-USP, 1994; I. Jancsó (et al.), Cronologia de história do Brasil monárquico (1808-1889). São Paulo:
82
Paulo, no sul de Minas Gerais e no Espírito Santo.127 Paralelamente, estava em curso um
Salvador, o que talvez ajude a entender a continuidade da ocorrência (ou o ensaio) de várias
que resultou em duras penas aos envolvidos, considerando, nas palavras do próprio príncipe
regente, que “os trabalhos forçados aos quais estes escravos acorrentados foram
condenados não são uma punição suficiente pelo crime atroz perpetrado por estes negros
pelas autoridades reais conheciam, ainda, inquietações de outros tipos, as quais mesclavam
que naturalmente feria aspectos que até aquele momento distinguiam tais terras das do
FFLCH-USP, 2000; e Maria Aparecida Silva de Sousa, Bahia: de capitania a província, 1808-1823. São
Paulo: FFLCH-USP, 2007, p.107-108 (doutorado).
127
Fernanda Spósito, Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e
conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012; Maria Regina C. de Almeida,
“Os índios no tempo da corte: reflexões sobre política indigenista e cultura indígena no Rio de Janeiro
oitocentista”. In: Revista USP no. 79, 2º semestre de 2008, pp. 94-105; Rosângela F. Leite, “A política joanina
para a ocupação dos sertões (Guarapuava, 1808-1821)”. In: Revista de História 159, 2º semestre de 2008,
p.167-187.
128
Maria Aparecida Sousa. Bahia..., cit., p.77.
83
conduzir o Império Português ao mesmo tipo de convulsões que até então suas principais
Agora, se lhe concedia uma redução da taxa alfandegária a ser paga nos portos portugueses,
criava-se uma instância jurídica para dirimir questões entre súditos portugueses e
britânicos, convertia-se Santa Catarina, mais ao sul, em porto livre para facilitar a atividade
lanifícios britânicos (no tratado anterior, ingleses) em troca da recíproca preferência por
vinhos portugueses.
eram expressamente proibidas. Por fim, Portugal comprometia-se com a abolição gradual
129
Andréa Slemian, Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.
84
do tráfico de escravos africanos, o que, graças aos interesses portugueses habilmente
defendidos por tanta gente, seria postergado muito além do que esperava a Grã-Bretanha.130
comércio e a indústria britânicos, auxiliados por uma marinha mercante também muito
português Manoel Luís da Veiga que, radicado no Brasil, se queixaria às autoridades reais
das vantagens concedidas aos britânicos em detrimento dos interesses dos nacionais.132 As
insatisfações se fizeram notar também na Bahia, cujos comerciantes não apenas perderiam
130
Valentim Alexandre, Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
Regime português. Porto: Afrontamento, 1993, p.209-232; do mesmo autor: “O império luso-brasileiro face
ao abolicionismo inglês (1807-1820)”. In: Velho Brasil, novas Áfricas. Porto: Afrontamento, 2000, p.66-72;
Maria Cândida Proença, A independência do Brasil. Lisboa: Colibri, 1999, p.18-19.
131
Ana Cristina B. de Araújo, “O ‘Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves’, 1815-1822”. In: Revista de
História das Idéias, 14. Coimbra, 1992, p.244-246. Vide também as observações coevas de John Mawe,
Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1978; e de John Luccock, Notas
sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975.
132
Do descontentamento de Veiga surge um ensaio de atuação política sediciosa, conforme analisa A.
Slemian, Vida política..., cit., cap.II.
133
Maria Aparecida Sousa, Bahia..., cit., p.84 e p.169.
85
Foi nesse ambiente que a Gazeta do Rio de Janeiro, periódico oficial da Corte
especialista em silenciar sobre questões delicadas, fez uma primeira menção aos tratados
mais livre do que a Gazeta, confirmou os acordos já em seu número de julho de 1810, e
segundo caso, as autoridades centrais peninsulares, que desde 1808 vinham se empenhando
sua ingerência naquelas questões e até mesmo negociaria diretamente com as juntas recém-
134
Gazeta do Rio de Janeiro (doravante GRJ) n.76, de 22/09/1810.
86
Em setembro de 1810, o encarregado de negócios de Portugal na Espanha, Pedro de
Coutinho, informando-lhe das queixas a ele dirigidas pelo secretário espanhol Eusebio de
Bardaxi, de que “o Porto Franco estabelecido na Ilha de Santa Catarina tendia claramente a
encher de contrabando as Colônias Espanholas”, com o que o diplomata português teria lhe
fundamento à sua queixa, não podia já agora de modo nenhum subsistir”. Por fim, fazia
uma ameaça ao colega espanhol: “ou as Cortes que iam a reunir-se adotariam um sistema
seguirão todas indubitavelmente umas depois das outras o exemplo dado por Caracas e por
Buenos Aires.”136
claramente propenso à revolução. O que nela ocorria era de várias maneiras acompanhado
de perto pelo governo do Rio de Janeiro, e despertava interesse também em uma cena
publicações de outros países, informações e boatos trazidos por várias fontes, todos eles
135
CB v.V, n.26, 07/1810. Uma vez ratificados, os tratados seriam alvo de seguidas críticas no Correio
Brasiliense.
136
Ofício n.11 de Palmela a Linhares, Cádiz, 23 de setembro de 1810. AHI.
87
As primeiras notícias acerca dos sucessos de Caracas em 1810 chegaram às páginas
do Correio Brasiliense em sua edição de maio, segundo a qual “os últimos acontecimentos
esperar”; as notícias davam conta de que os habitantes de Caracas haviam proclamado sua
resistência, e alguma efusão de sangue”. No entanto, tudo indicaria que o movimento nada
mais seria do que a formação de uma junta de governo leal a Fernando VII, no que os
1808; desse modo, dizia que “a justiça deste modo de proceder nos parece evidente”, já que
“faltando o Soberano, a nação devia escolher um Governo”. 137 Em seu número seguinte, de
junho de 1810, o mesmo jornal publicou vários documentos a respeito, e referiu-se aos
A “revolução” de Caracas aparecia assim como um movimento justo e que obrava “de
maneira que Fernando VII voltando, e tomando posse de seu legítimo Poder, constitua para
próprio Correio indicado no número anterior: a formação do novo governo “fez-se [...] com
tumulto do povo, é verdade; porque não havendo remédio legal, para a opressão que
sofriam, não restava outro meio senão o da força; mas não houve efusão de sangue”.138
137
CB v.IV, n.24, 05/1810. Os dados que se encontram nos próximos parágrafos desenvolvemos com mais
detalhamento em O Brasil e a América espanhola (1808-1822). São Paulo: FFLCH/USP, 2004 (doutorado).
88
de governo, a consumação da mesma, nomes dos membros dela integrantes, a deposição do
circunstância de se fazer esta revolução [de Buenos Aires] sem efusão de sangue, como em
Caracas”, provaria “que não só a grande maioridade do povo era a favor desta mudança;
mas que havia para isto um plano premeditado”. Por fim, indicava a resistência de Guayana
em aderir ao movimento de Caracas, trazendo uma lista dos componentes daquele governo,
organizadas, que se acha mais contígua ao Brasil, julgamos, que será interessante aos
metropolitana.141
138
CB v.V, n.26, 07/1810.
139
CB v.V, n.27, 08/1810.
140
CB v.V, n.27, 08/1810.
141
CB v.V, n.28, 09/1810.
89
Buenos Aires e as adesões de Salta e Tucumán;142 a confirmação do envolvimento de
1810. Em função de todos esses acontecimentos, o Correio expressava pesar pelo panorama
de desordem e conflito que agora, claramente, grassava por quase toda a América
“a guerra civil, que nós sempre tememos na América Espanhola, está efetivamente
qual se lia o clamor de “Levante-se em Armas toda a América; e una-se em um grito geral
142
CB v.V, n.29, 10/1810.
143
CB v.V, n.30, 11/1810.
90
autoridades cordobesas, dando assim o tom da evolução de um quadro que, aos olhos do
Correio, era cada vez mais grave (“os procedimentos em Quito são de um caráter feroz, e
produzirão consequências terríveis”). Notícias não confirmadas indicavam que Lima, assim
ano de 1810 foram tratados pelo Correio Brasiliense,145 difundidos por uma vasta rede de
circulação atlântica da qual ele era parte. O Correio circulava na Europa, nos Estados
Unidos e na América espanhola; na América portuguesa, era lido até mesmo pelos
1810 não poderiam prescindir do seu riquíssimo manancial de informações, essencial como
maior que a de Buenos Aires” - pois era “fundada em princípios perigosos” - ao passo que a
144
CB v.V, n.31, 12/1810.
145
Os acontecimentos de Nova Espanha só mereceram destaque na edição de fevereiro de 1811, quando o
movimento de Hidalgo já se encontrava praticamente extinto. (CB v.VI, n.33, 02/1811).
146
Outra demonstração é a proposital e estratégica reserva com a qual a Gazeta do Rio de Janeiro tratou,
publicamente, os acontecimentos hispano-americanos de 1810: não noticiou quase nada, destacando apenas
coisas favoráveis à manutenção do realismo espanhol. Preocupava-se, evidentemente, com os imprevisíveis
efeitos que o conhecimento das convulsões políticas vizinhas ao Brasil poderiam gerar neste. Analisamos
pormenorizadamente a questão em “La política hispanoamericana y la crisis del Imperio portugués:
vocabulario político y coyuntura”. In: Brasil y las independencias de Hispanoamérica. Castelló: Publicacions
de la Universitat Jaume I, 2007, 51-74.
91
segunda “mostra ser nascida da incerteza em que se acharam aqueles habitantes sobre o
estado da Metrópole”, não havia dúvidas de que “ambas devem dar cuidado” 147.
chegava ao Brasil via Europa, às vezes por intermédio dos Estados Unidos; mas também
havia comunicação direta com a própria América, pois a Corte do Rio de Janeiro usufruía
respectivamente, e foi neles que o projeto carlotista, fomentado pelos gabinetes português e
britânico entre 1808 e 1809, conheceu maior respaldo dentre todos os domínios espanhóis
Fernando VII estivesse cada vez mais distante, as articulações de Carlota Joaquina estavam
americana.
possível adesão de Mendoza e Salta à Junta de Buenos Aires, e a partida do exército desta
favorável aos objetivos de Carlota.148 Outra fonte proveniente de Buenos Aires, e cujas
informações também seguiram para a Corte do Rio de Janeiro, assegurava que o Chile
147
Ofício n.11 de Palmela a Linhares, Cádiz, 23/09/1810. AHI, Documentos Avulsos, Legação em Cádiz.
148
Notícias provenientes de Buenos Aires, 07/1810. Política Lusitana en el Río de la Plata, II, p.61-63.
92
trilhava o mesmo caminho que Buenos Aires, mencionava o envio de um exército para
brasileiros, pardos, e negros para a independência”. Por fim, remetia exemplares da Gazeta
de Buenos Aires.149
nos territórios do vice-reino, seu ideário e projeto político. Segundo suas palavras, “el fin
de los periódicos es generalizar las ideas, consolidar la opinión por la repetición de las
altura: naquela data, veio à luz o primeiro número da Gazeta de Montevideo, voz do
governo realista daquela cidade. A posição legitimista tradicional mantida por Montevidéu,
amplamente expressa na sua gazeta, contou com o apoio aberto da Corte portuguesa do Rio
“Los Pueblos, como los hombres, se hacen ilustres por sus virtudes. El amor
España habría dictado leyes á la Grecia, ni Roma se hubiera titulado la Capital del
mundo conocido.
149
Nota de Manuel Francisco de Miranda ao brigadeiro Antônio Correa da Costa, Buenos Aires, 24/10/1810
(PLRP, II, p.148-149).
150
Gazeta de Buenos Aires, 05/11/1811
93
Montevideo, á quien debemos aun considerar en el estado de su infancia, ha
manifestado con rasgos heroicos la posesión de los más nobles deseos á la verdadera
generosa”.151
consumo de informações, temores e expectativas. Era ali que, de modo mais acintoso, o
banda oriental). Inclusive por que se sabia, dentre as autoridades do Rio de Janeiro, da
gobierno provisional de las Províncias Unidas del Río de la Plata debe poner en práctica
para consolidar la grande obra de nuestra libertad e independencia. Seu autor nos é
desconhecido, mas seu conteúdo está muito bem afinado com a política “morenista” da
151
Gazeta de Montevideo, prospecto, (p.03)
94
junta portenha, coerente com as ideias e as práticas de um dos grupos mais atuantes no
portenha por todo o território do Vice-Reino do Rio da Prata, mas incluía algumas
sublevação e conquista da realista banda oriental, até então apoiada pelo governo do Rio de
Janeiro, tratava da conduta a ser observada com Grã-Bretanha, Portugal e Brasil. Uma das
ideias do Plan era que Buenos Aires deveria conceder a estes governos todas as vantagens
comerciais possíveis e tratar seus negócios no Rio da Prata muitíssimo bem; igualmente,
tornaria público seu apoio à adoção do projeto carlotista em Montevidéu, auxiliando-o com
dificuldades, bem como aos avanços e movimentações aos exércitos portugueses que se
encontravam no Rio Grande de São Pedro (capitania vizinha à banda oriental), cujo
comandante Diogo de Souza poderia vir a ser cooptado. Tudo isso dependeria, porém, do
diplomáticas, bem como de uma declaração formal de que esta não se encontraria
voltá-la contra aquele. Configurado esse quadro, o passo seguinte seria trabalhar no Brasil
152
Noemí Goldman, Historia y lenguaje: los discursos de la Revolución de Mayo. Buenos Aires: Editores de
America Latina, 2000, p.62-67; da mesma autora: “Utopía y discurso revolucionario (El plan de operaciones
de M. Moreno)”. In: Espacios n.6. Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras/Universidad de Buenos Aires,
octubre- noviembre/1987, p.52-56.
153
Mariano Moreno, Plan revolucionario de operaciones. Buenos Aires: Perfil, 1999 (prólogo de Martín
Caparrós). Para o artigo 4º, p.82-90. Os próximos parágrafos estão baseados em: J. P. G. Pimenta, O Brasil e
a América espanhola..., cit.
95
“por medio de la introducción de la rebelión y guerras civiles; combinando al
mismo tiempo, por medio de tratados secretos con la Inglaterra, los terrenos o
provincias que unos y otros debemos ocupar, y antes de estas operaciones hemos de
emprender la conquista de la campaña del Río Grande del Sud, por medio de la
insurrección”.154
Aires. Por isso são detalhados os meios de sublevação do Rio Grande de São Pedro, cuja
Catarina e Bahia – que mantinham relações mercantis com o Rio da Prata. O objetivo final:
que pretendera – e a curto-prazo lograra – a Corte portuguesa com sua instalação no Rio de
Janeiro. Aqui, o Plan lidava com uma hipótese aparentemente lógica: se à Grã-Bretanha
Em uma empresa que poderia durar de seis até oito anos, concomitante à pacificação
Rio Grande de São Pedro deveria começar pela manutenção de contingentes militares de
Paraguai, além de dez mil em Montevidéu e sua campanha. Após firmar tratados de
96
comércio com Portugal, assegurando-lhe uma falsa amizade, Buenos Aires enviaria a toda a
esses agentes, bem como aos comandantes militares de fronteira, seriam remetidos
“debiéndose tratar en sus discursos de los principios del hombre, de sus derechos, de
del nuevo sistema, y de cuanto sea capaz y lisonjero, y de las ventajas que están
naciones que, envilecidas por el despotismo de los reyes, no procuran por su santa
libertad”.
mesmo para com contrabandistas e ladrões, que sofreriam somente penas brandas; sempre
que necessário, deveriam fornecer aos portugueses “pobres e medianos” grãos e demais
locais. Por fim, outra frente de propaganda seria aberta, com a introdução na capitania de
154
M. Moreno. Plan revolucionário..., cit., p.108.
97
“pasquines y otras clases de papeles escritos en idioma português, llenos de mil dicterios
contra el gobierno y su despotismo”. Depois de tudo isso ter criado um clima favorável, o
Rio Grande seria invadido e conquistado por um exército de 18 ou 20 mil soldados. 155
estéril e renitente ao emprego desses métodos? Certamente, não. Nesse ponto, o autor do
Plan se mostra bem municiado de uma visão de conjunto da realidade sobre a qual
pretendia atuar. Ao menos dois exemplos nos parecem claros. Em primeiro lugar, ao
tocar todavía, hasta su debido tiempo, la libertad de los esclavos en aquellos destinos, sino
Grande, poderia se constituir numa arma contrária aos seus propósitos. Recomendável
seria, portanto, sondar a disposição local em relação a essa questão, ao invés de dispor
da situação do Brasil:
155
Idem, p. 109-137.
156
Idem, p.119.
98
“Últimamente, nos es muy constante por las noticias que nos asisten, que en toda la
América del Brasil no hay casi un solo individuo, a proporción, que esté contento
con el gobierno ni sus gobernantes, tanto por lo mal pagados, como por el
atención a las que las naciones libres y más generosas observan; nos consta
asimismo que los clamores y quejas contra diversos particulares son infinitos, que
esclavizarlo por toda la vida; últimamente, no hay ninguno que desesperado de la vil
real”.157
Ainda que esse diagnóstico possa ser exagerado em alguns de seus termos, em
essência ele era próximo da realidade. Realidade da qual desde 1808 os próprios estadistas
157
Idem, p.123-124.
158
Uma cópia manuscrita foi feita em Buenos Aires, com resumos em português de cada um dos parágrafos
dos artigos 4o, 7o e 8o, nas quais se leem referências a “nossas [de Portugal] relações com a Espanha”, “nosso
[de Portugal] governo”, “nos [a Portugal] dissuadir”; tudo indica que essas anotações foram obra de um dos
agentes portugueses no Prata, possivelmente remetida aos seus superiores (PLRP, II, cit., p.104-140).
Ademais, há uma carta posterior de Carlota Joaquina a seu irmão Fernando VII, quando este se encontrava
restabelecido no trono da Espanha, na qual se refere ao Plan: “Es bonito... pero nada nuevo para nosotros que
los conocemos” (Carta de D. Carlota a Fernando VII, 30/11/1814. Citada por N. Goldman. Historia y
lenguaje..., cit., p.65).
99
4.3 – Conclusão: sinais de novos tempos
matizada. Ela não estava, é verdade, no primeiro plano do cenário aqui observado; mas uma
vez constatado que estava nesse cenário, revela-se justamente um esforço generalizado para
confiná-la a lugares onde ela pudesse ser inofensiva ao Império Português. Em 1810, isso já
era difícil. Não que fosse inevitável a ocorrência, no Brasil, do que estava em curso na
anteriores; mas na medida em que a política se pautava por um paradigma negativo a ser
evitado, e que essa própria política contribuía para aprofundar fissuras e tensões na unidade
da dinastia e dos territórios portugueses na Europa e na América, tornava-se cada vez mais
evidente que algo deveria se passar. Ao menos, criavam-se condições para que as projeções
ideal inatingível.
Em 1810, isso podia ser percebido até mesmo por serenos espectadores de um
Rio de Janeiro conheceu a apresentação do Triunfo da América, uma curiosa peça onde a
100
principal personagem, a metafórica América, se mostra em condições de bater sua inimiga,
É bem provável que a imagem desse “abutre cruel” não tenha em nada abalado a
enaltecer a suposta pacificação do Brasil propiciada pelo príncipe regente. Mas como uma
ave que voa nos céus, em 1810 os sinais de novos tempos estavam no ar.
159
Triunfo da América. Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1810 (disponível em:
www.iar.unicamp.br/cepab/libretos/triunfo.htm).
101
Capítulo 5
começava a desenhar, com uma clareza até então inédita, o triunfo de uma delas: a
partir de 1808.
Portugal e seus domínios no concerto europeu, a busca pela reconfiguração e reforço dos
laços que teciam a urdidura da nação portuguesa – e que tornava os vassalos do rei de
peninsular se deram por toda parte, mas o início do funcionamento das Cortes constituintes,
102
reunindo lado a lado representantes de províncias americanas e europeias, criaria condições
antagonismos.160 Nesse processo, as determinações das Cortes para que o príncipe Pedro
seguisse o exemplo de seu pai, o rei João VI, e abandonasse o Rio de Janeiro rumo a
grupos políticos que viam na liderança americana do príncipe uma alternativa interessante,
provinciais de Lisboa para o Rio de Janeiro.161 A ampla repercussão que à época tiveram
sensos de distinção até então inexistentes e, para finalmente, conceber a viabilidade política
“Manifesto” no qual explicitava tal propósito. Dirigindo-se aos povos “deste Reino” [do
160
Valentim Alexandre, Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
Regime português. Porto: Afrontamento, 1993, parte V; Márcia R. Berbel, A nação como artefato: deputados
do Brasil nas Cortes portuguesas 1821-1822. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999; István Jancsó & João Paulo
G. Pimenta, “Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional
brasileira)”. In: Revista de História das Ideias, v.21, Universidade de Coimbra, 2000, p.389-440.
161
Francisco J. Falcon & Ilmar R. de Mattos, “O processo de independência no Rio de Janeiro”. In: Carlos G.
Mota (org.), 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.292-339; Roderick J. Barman, Brazil: the
Forging of a Nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University Press, 1988, p.94; Andréa Slemian & João
103
todo o vasto território “do Amazonas ao Prata” e à “união” de “todas as nossas
internacional formal de seu governo, tarefa para a qual nomeava encarregados de Negócios
junto aos governos de Londres, Paris e Washington. 163 Encontrando crescente respaldo a
tais propósitos em diversas províncias do Brasil – sobretudo Rio de Janeiro, São Paulo,
brasileiro, para cujo comando seria aclamado imperador no dia 12 de outubro – logo
Foi em meio a esses momentos decisivos que um dos principais jornais da época, e
publicado na Espanha dois anos antes: a Solución a la cuestión del derecho sobre la
acresciam-se vinte e nove notas de rodapé traçando comparações entre as situações dos
mundos espanhol e português.164 Notável sob muitos aspectos, o documento que resulta
Paulo G. Pimenta, O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
162
Gazeta do Rio de Janeiro suplemento ao n.94, 06/08/1822; Correio do Rio de Janeiro n.96, 08/08/1822.
163
Gazeta do Rio de Janeiro n.100, 20/08/1822.
164
Revérbero Constitucional Fluminense n.17, 17/09/1822; n.18, 24/09/1822; n.19, 01/10/1822; e n.20,
08/10/1822. O Revérbero encerrou suas atividades neste número, deixando inconclusa a publicação do texto
de Infante. Tudo indica que as notas ao texto são de autoria do próprio jornal. Suas ideias gerais, os
argumentos apresentados, a linguagem empregada, tudo condiz com o que o Revérbero escrevia e defendia
por esta época. Além disso, não há menção a quaisquer autores das mesmas, prática comum já nos primeiros
momentos de existência de uma imprensa periódica no Brasil. No entanto, não podemos afirmar
categoricamente que o Revérbero não tenha se valido de um documento “pronto”, isto é, que não tenha
publicado uma tradução do texto de Infante que já carregava consigo tais notas (o que também era prática
comum). De qualquer modo, o que importa é que, quem quer que seja o autor das mesmas, seu conteúdo
104
dessa publicação chama atenção para questões importantes e ainda pouco estudadas dos
processos de independência política da América ibérica, e que podem ser esboçadas a partir
formação, em 1811 integrou uma conspiração política organizada a partir de uma loja
proprietários de terras liderados por Román de la Luz Sánchez Silveira, foi rapidamente
sufocada. Infante foi o único dos envolvidos a escapar com vida, e em 1812, quando na
autoria, uma Constituição para a ilha de Cuba. Em 1815 esteve com Simón Bolívar na
Espanha liderada por Francisco Xavier de Mina 165. Em 1820 se encontrava exilado na
Espanha, onde publicou sua Solución a la cuestión del derecho sobre la emancipación de
corresponde à própria argumentação do jornal, que por meio delas expõe seus pensamentos. Doravante,
quando utilizar a expressão “notas do Revérbero”, estaremos plenamente ciente dessa questão.
165
Eduardo Torres Cuevas, “De la Ilustración reformista al reformismo liberal”. In: Historia de Cuba – La
colonia: evolución socioeconómica y formación nacional de los orígenes hasta 1867. La Habana: Editora
Politica, 1994, p.330-332; Silvio A. Zavala, “México. A revolução. A independência. A Constituição de
1814”. In: Ricardo Levene (dir.), História das Américas v.VII. 3a.ed. Rio de Janeio/São Paulo/Porto Alegre:
W. M. Jackson, 1954. p.58-61. David Pantoja Morán & Jorge M. García Laguardia, Tres documentos
constitucionales en la América española preindependiente. México: Unam, 1975. Aqui, retificamos a
hipótese levantada na publicação original deste capítulo: Joaquin Infante não deve ter estado em Pernambuco
por volta de 1818, no contexto da repressão à revolução do ano anterior: o “Joaquim Teófilo Infante” a que se
referiam autoridades locais, ao que tudo indica, era um homônimo.
105
A América que Infante tinha diante dos olhos, em 1820, oferecia um quadro de
Nova Espanha, Cuba e Puerto Rico mantinham-se firmemente realistas, ainda que a
Quito, Alto Peru e o principal bastião espanhol do continente, o Peru, que, no entanto, via a
aproximação das poderosas forças conjugadas de San Martín e lord Cochrane, bem
República da Colômbia uma realidade cada vez mais próxima. No Rio da Prata, a
completamente impensável, pudesse ser obtida com o auxílio de uma poderosa armada que
vinha sendo preparada no porto peninsular de Cádiz. 166 Porém, justamente em meio aos
preparativos dessa expedição, eclodiu uma nova leva de protestos contra Fernando VII que
constitucional na Espanha.
166
John Lynch, Las revoluciones hispanoamericanas 1808-1826. 8ª.ed. Barcelona: Ariel, 2001; Tulio
Halperin Donghi, Reforma y disolución de los imperios ibéricos (1750-1850). Madrid: Alianza, 1985, p.150-
186; Stefan Rinke, Las revoluciones en América latina: las vías a la independencia, 1760-1830. México, D.F.:
El Colegio de México, 2011. Dois documentos coevos atestam a vigência da ideia de que, em 1820, o Rio da
Prata poderia retornar a uma ordem monárquica e, eventualmente, ao domínio espanhol: As províncias de La
Plata, erigidas em Monarquia. Considerações políticas pelo C. de S. 166. Paris, 1820 (título em português da
tradução publicada pelo Correio Brasiliense v.XXIV, 02/1820); e Miguel Cabrera de Nevares, Memoria
sobre el estado actual de las Américas y el medio de pacificarlas. Madrid:Imprenta de don José del Collado,
1821 (devo à gentileza de Ivana Frasquet a indicação e disponibilização de um exemplar desta obra).
106
A Solución de Infante carrega consigo muitas das expectativas criadas em torno
desse regime. Em linhas gerais, trata-se de uma obra bastante típica dos espaços públicos
ocidental desde fins do século XVIII, quando a independência das colônias inglesas da
universo tinha nas reflexões do abade De Pradt um de seus elementos mais destacados,
que a separação entre a América e a Espanha era legítima porque fundada numa ordem de
tradicional metáfora do filho que, criado pela mãe para se tornar adulto, atingiria
de sua progenitora. Assim, para Infante, em 1820 era chegada a hora da América se
167
Reinhart Koselleck, Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro:
EdUerj/Contraponto, 1999; François-Xavier Guerra & Annick Lempérière (et.al.), Los espacios públicos em
Iberoamerica: ambiguedades y problemas. Siglos XVIII-XIX. México D.F.: F.C.E., 1998; Para a América
portuguesa os estudos são muitos, podendo-se apontar, dentre eles: Luis Villalta, “O que se fala e o que se lê:
língua, instrução e leitura”. In: Laura de Mello e Souza (org.), História da vida privada no Brasil v.1:
cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.331-385; Luciano
Figueiredo & Oswaldo Munteal Filho, “Prefácio: a propósito do abade Raynal”. In: Abade Raynal, A
revolução da América. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1993, 1-48; Roberto Ventura, “Leituras do abade
Raynal na América Latina”. In: O. Coggiola (org.), A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina.
São Paulo: Nova Stela, 1990, p.165-179; István Jancsó, “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação
política no final do século XVIII”. In: L. Souza (org.), História da vida privada..., cit., p.387-445; Marco
Morel, “Independência no papel: a imprensa periódica”. In: I. Jancsó (org.), Independência: história e
historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, p.617-636; Andréa Slemian. Vida política em tempo de
crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006; Marco Morel & Mariana M. de Barros, Palavra,
imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; Lúcia
Pereira das Neves, Corcundas, Constitucionais e Pés-de-Chumbo: a cultura política da independência (1820-
1822). São Paulo : USP, 1992 (doutorado).
168
Dominique-Georges-Frédéric de Riom de Prolhiac de Fourt de Pradt, Lês trois ages dês colonies, ou de
leur état passe, présent et à devenir. Paris: 1801-1802. No mesmo ano da Solución de Infante, De Pradt
publicou sua De la revolución actual de la España y de sus consecuencias. Valencia: José Ferrer de Orga,
1820.
107
igualmente tradicionais – Grécia, Roma, Estados Unidos, Haiti – a Solución de Infante
maneira cabal já pela Ilustração europeia de meados do século XVIII. No entanto, em meio
afinal, segundo Infante, as relações longamente estabelecidas entre ambas teriam sido
dificuldade de estabelecer vínculos entre dois espaços tão diferentes, a Espanha ignorara a
isso tivesse sido observado antes, afirma Infante, a emancipação da América já teria
ocorrido, e de maneira bem mais suave do que começara a ocorrer com a invasão francesa
Dentre suas “razões políticas”, Infante destaca a ideia de que, em 1820, havia um
que a decadência espanhola, fruto da dinastia dos Habsburgo, da Santa Inquisição, de uma
má legislação e das seguidas guerras contra outros Estados europeus, sempre tivera na
108
exploração da América um mero paliativo: durante muito tempo, o ultramar servira à
Espanha com remessas anuais de rendas e tributos, com espaços de oferecimento de graças
“ilusão” de que as coisas iam bem para o conjunto da Monarquia. A atual “revolução”,
teria desfeito tal ilusão e mostrado como a Espanha jamais lograra jamais fincar-se em
América. Para Infante, desse modo, o argumento de que a Espanha deveria empenhar-se em
recobrar sua presença na América pela dependência que tinha de seus gêneros equivaleria a
ambas as partes. Por fim, afirmava que atualmente, para além da produção americana se
encontrar cada dia mais arruinada pelas guerras – impossibilitada, portanto, de servir à
Espanha – qualquer tentativa de recomposição das tradicionais relações entre as duas partes
Quito, Chile e Rio da Prata eram totalmente independentes, e caminhavam, ainda que em
109
sede de um débil governo revolucionário, ainda conheceria uma restauração realista até sua
definitiva queda em dezembro de 1824, mesmo mês em que o Alto Peru daria lugar à
(doravante confinado a pequenos enclaves sem grande importância até 1826). Ou seja: aos
coevos observadores políticos, com exceções de Peru, Alto Peru, Cuba e Porto Rico, a
independente da Espanha.
Revérbero representa uma recorrência consciente e deliberada a um texto que, não obstante
ter sido produzido originalmente em outro contexto, servia, com suas notas de rodapé, aos
propósitos do jornal em meio a uma situação que, ao mesmo tempo em que mostrava o
Uma direção para a qual, aliás, o Revérbero prestava ativos serviços. Editado por
excelentes oportunidades para a mobilização, nessa esfera, em defesa de seus interesses, 169
169
Um estudo clássico dessa associação, centrado no Rio da Prata é o de autoria de Tulio Halperín Donghi,
Revolución y guerra: formación de una élite dirigente en la Argentina criolla. Buenos Aires: Siglo XXI, 1972.
110
decretos lisboetas de liberdade de imprensa. 170 Monarquista constitucional, o Revérbero
união entre Portugal e Brasil, mas passou a acompanhar e sustentar, já a partir de janeiro de
1822, o projeto de um governo do Brasil sediado no Rio de Janeiro e chefiado pelo Príncipe
regente. Era, portanto, uma espécie de “porta-voz” dos interesses políticos e econômicos
processos políticos em curso na América espanhola, e tendo em mente o que era essa
“Todas as razões que se dão [na Solución] sobre a Independência da América são
aplicáveis, quer ao Meio-Dia, quer ao Norte dela; assim, o que se diz nas Tribunas de
primeira das notas. Lidando com as ameaças feitas nas Cortes de Lisboa de envio de tropas
contra províncias do Brasil – o mesmo tipo de arma de que a Espanha se valia em 1820
170
José Tengarrinha, Da liberdade mitificada à liberdade subvertida: uma exploração no interior da repressão
à imprensa periódica de 1820 a 1828. Lisboa: Colibri, 1993; Morel & Barros, Palavra, imagem e poder..., cit.,
p.21 e segs.
171
A melhor obra sobre o Revérbero e a atuação política de seus editores é a de Cecília de S. Oliveira, A
astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista:
Edusf, 1999.
111
De Pradt, segundo a qual “o espírito de Independência é inato nas Colônias, [e] chegando o
período de sua virilidade não há forças que empeçam o seu necessário desenvolvimento”,172
inocentes vítimas, [que] pagaram com ferros a hospitalidade generosa que haviam
caminho da Ásia, possuindo os melhores Portos, cortado dos maiores rios, coberto das mais
preciosas Florestas, poderoso com opulentas Minas, sem par pela fertilidade do seu Solo,
apreciável pela salubridade e doçura do seu Clima”, a séculos de opressão e atraso. Por fim,
também Portugal teria impedido o acesso de naturais da terra aos principais cargos
trilhado pelo Brasil a partir de 1808 se diferenciaria do da América espanhola num ponto:
ao atingir sua “virilidade”, aquele não teria soltado seu grito de “independência” porque
naquele ano, ao se instalar na América, o então Príncipe regente e futuro rei de Portugal
“mudou inteiramente o regime Colonial” e “fez partir do Trono aquela obra [da
emancipação], que sem isso partiria da Revolução”. Nesse ponto, a argumentação presente
172
Idem. O “imortal De Pradt” é evocado também mais adiante quando, comentando as “razões políticas” de
Infante na parte relativa à necessidade de tempo para recuperar a exaurida América, uma longa nota
transcreve um trecho do Reconhecimento da Independência das Colônias da América pelos Estados Unidos
(título em português).
173
Revérbero Constitucional Fluminense n.17, 17/09/1822. Neste ponto, vale destacar que as notas utilizam o
termo “brasileiro” para identificar “nascidos no Brasil”, revelando um desenvolvimento identitário importante
em relação ao tradicional “brasílico”, vigente quando “brasileiro” identificava aquele que comercializa
“gêneros do Brasil” (procedia assim do mesmo modo que o “Manifesto” de D. Pedro, citado à nota n.3, supra,
aliás redigida pelo mesmo Gonçalves Ledo do Revérbero). No entanto, a palavra “brasileiro” ainda não surge
em termos absolutos como aquela que, apenas futuramente, designará o portador da nacionalidade brasileira
(Jancsó & Pimenta. “Peças de um mosaico...”, cit.).
112
sustado a “revolução” no Brasil, mantendo-o como parte de seus domínios, ao obedecer às
essencial: o breve período em que o Rio de Janeiro foi sede da Corte teria sido suficiente
América espanhola uma “emancipação menos violenta”, bem como um poderoso centro de
morte”, que “tem soado felizmente do Norte ao Sul da América [espanhola]”, seria, em
de correlação entre situações. Também a Portugal, a América teria fornecido uma ilusão,
Douro, dos Ferreiros de Braga e Guimarães, ou dos Fabricantes de Lisboa e Porto”, para
cujas “fortunas [é] que se equipam armadas, e se remetem tropas comandadas por Monstros
para queimar nossas Cidades”.176 Aqui, a questão da existência dos “ódios recíprocos”, que
para Infante tornariam a conciliação entre os espanhóis uma realidade cada vez mais
distante, o que recomendaria uma pronta substituição das ameaças militares contra a
174
Revérbero Constitucional Fluminense n.17, 17/09/1822. Não se trata, evidentemente, de reiterar a
tradicional explicação historiográfica que eleva as diferenças entre os processos de independência hispano e
lusoamericano à condição de distintivos absolutos. Como sempre ocorre com dois fenômenos históricos
distintos, as diferenças entre eles são reais, e algumas das mais importantes foram tão bem analisadas, à
própria época, pelo Revérbero e outros analistas, que a historiografia brasileira do século XIX foi seduzida a
encontrar aí elementos de constituição de uma “História Nacional” brasileira que coroasse tais diferenças.
113
América pelo estabelecimento de relações comerciais de recíproca utilidade, as notas do
inexistente:
“De nada lhe [a Portugal] servirão as lições da História? De nada a experiência dos
males alheios? [...] Os Escravos têm repartido o nosso ódio para com elas [as
Cortes]; escusam, portanto, de nos estar ameaçando com este mal, nem mesmo de
interesses dos brasileiros e dos portugueses, base política para a consecução do projeto de
175
Revérbero Constitucional Fluminense n.18, 24/09/1822.
176
Revérbero Constitucional Flumiense n.19, 01/10/1822.
114
magnificamente bem aos propósitos políticos do jornal, permitindo uma análise da
durante a crise e dissolução do Antigo Regime foram, desde 1808, ampla e detalhadamente
por tais informações, de início aparentemente circunscrita aos âmbitos da direção política
dos negócios da Corte do Rio de Janeiro, foi potencializada pelo rápido alargamento e
adensamento de espaços públicos de discussão política, nos quais tornava-se cada vez mais
espanhola revelavam uma espécie de antevisão do que poderia ocorrer também com a
Monarquia portuguesa. Foi assim que o mundo espanhol, sobretudo a América, constituiu-
se – para voltarmos aos termos emprestados de Koselleck - num espaço de experiência para
177
Revérbero Constitucional Fluminense n.20, 08/10/1822.
115
projeção e consecução de horizontes de expectativa na América portuguesa, dos quais
português nas primeiras décadas do século XIX. Com ele, conviviam outros de variada
partir de rupturas entre colônias americanas e metrópoles europeias. Nesse sentido, pode-se
dizer que a “experiência hispano-americana” se inscreve num espaço mais amplo, o das
concretos pelos quais tais experiências históricas funcionavam: uma obra escrita por um
aproxima realidades como as de Cuba, Venezuela, Nova Espanha e Espanha178; uma obra
propaganda na qual esses conteúdos eram difundidos, lidos e relidos de acordo com os
interesses específicos de cada qual; uma obra capaz de suscitar apaixonadas comparações
entre a América espanhola e o Brasil, numa série de paralelismos onde, não obstante haver
realidade política que em 1822, não obstante suas muitas indefinições, caminhava de modo
116
No entanto, o Revérbero publicou a Solución de Infante também por outro motivo.
O fato de, não obstante tratar-se de uma obra “antiga” quando de sua aparição no periódico,
subsidiar comparações entre as Américas portuguesa e espanhola, mostra que ela foi
libelos políticos como esse. Aparentemente banal, tal observação nos conduz a outra
menos: no bojo da crise geral do Antigo Regime na América ibérica, há uma defasagem
relação ao Brasil. Uma diacronia dentro de uma mesma conjuntura, na medida em que essa
defasagem representa um intervalo curto, variando de alguns meses a poucos anos, mas
suficiente para estabelecer uma dinâmica de superação da ordem colonial no Brasil que, ao
primeira metade do século XIX, com a América portuguesa deixando de ser portuguesa, e o
178
Novamente retificamos a informação equivocada relativa à presença de Infante em Pernambuco.
117
As feições dessa experiência são, evidentemente, tão variadas quanto o são as
situações vividas pelos homens e mulheres que, no universo político português, tinham nas
províncias do Brasil a base de sua atuação. Afinal, não obstante constituir uma força real,
disponibilizada aos agentes desse projeto, ela pôde servir também, como nos mostram as
mas as lições dela extraídas não asseguraram a estabilidade política do Estado nascente.
Afinal, suas fissuras seriam suficientemente fortes para implicar um conjunto de coisas
a independência não garantira, desde seus primórdios o Estado brasileiro empregou a força
179
Cabe lembrar que o jornal interrompeu bruscamente sua publicação em 08/10/1822, deixando inclusive,
conforme já assinalamos, incompleto o comentário à Solución de Infante. Imediatamente, em meio a um
complicado jogo de interesses conflitivos e de delimitação de novas posições que se configuravam com a
formalização da independência (C. S. Oliveira, A astúcia liberal..., cit.), seus editores e várias personalidades
118
processo de independência da América espanhola, como “desordem” e “guerras civis”, não
políticas a eles ligados passaram a ser perseguidos pelo regime de Pedro I. Gonçalves Ledo foi um dos que
conseguiu exilar-se em Buenos Aires, cidade com a qual possuía relações comerciais.
119
Capítulo 6
independências (1821-1822) *
6.1 - Apresentação
longo documento - nas suas palavras um “belo discurso” - cujo conhecimento seria muito
interessante para o Brasil. Tratava-se da exposição, lida na sessão das Cortes espanholas de
Espanha, na qual estes manifestavam seu descontentamento com a conduta dessas Cortes
principais centros urbanos da América portuguesa, propiciado pela extensão a esta dos
decretos lisboetas de liberdade de imprensa, 181 muitas das novas publicações transcreviam
*
Em coautoria com Camilla Farah.
180
Revérbero Constitucional Fluminense n. 05, 15/11/1821; e n. 06, 01/12/1821. O trecho do Revérbero reduz
o conteúdo original da exposição presente no Diario de las Sesiones de Cortes, Legislatura de 1821, Tomo
III, n. 118, 25/06/1821, p. 2471-2477. No Revérbero a exposição se encerra na 10ª linha, de baixo para cima
da p.2475, de modo que, ali, o texto é um pouco menor do que o original.
181
Decreto de 21/09/1820, ao qual se seguiu o de 13/10, que permitia oficialmente a circulação de impressos
portugueses fora de Portugal. Em 02/03/1821, João VI assinou, no Rio de Janeiro, o decreto de suspensão
provisória de toda e qualquer censura sobre a imprensa em geral. José Tengarrinha, Da liberdade mitificada à
liberdade subversiva: uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828. Lisboa:
Colibri, 1993.
120
palavra impressa era veiculada de muitas e variadas formas, 182 resultando em um
apenas para o processo de independência do Brasil, mas também para o de todo o mundo
Fluminense realizou daquela exposição dos deputados de Nova Espanha, considerando três
movimentos em questão, mas sim tomá-los como parte de uma mesma (ampla,
diversificada) realidade política, estruturada por pontos de relação por vezes sutis, mas
muito importantes. Se assim o são, é de esperar que tais movimentos guardem entre si
182
Marco Morel & Mariana Monteiro de Barros. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; e Lúcia P. das Neves, “Os panfletos políticos e a cultura
política da Independência do Brasil.” In: István Jancsó (org.). Independência: história e historiografia. São
Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, p.637-675.
121
fundamentais para a aquisição de suas respectivas feições históricas. Nesses termos,
Espanha.183
Quando a exposição dos deputados americanos foi lida nas Cortes de Madri, em 25
caminho da definitiva ruptura política com sua metrópole. O Paraguai era independente de
fato há dez anos; a banda oriental era formalmente controlada pelos portugueses, mas
dissidências por toda parte tornavam-na um território cujo futuro indicava muitas
constituição em 1819 e agora, em 1821, conheciam a separação política entre elas com a
julho daquele ano. Mais ao norte, os exércitos de Bolívar lograriam o triunfo de Carabobo,
183
Virginia Guedea, “La Historia Política sobre el Proceso de la Independencia”. In: Alfredo Ávila & Virginia
Guedea. La independencia de México. Temas e interpretaciones recientes. México: Universidad Nacional
Autónoma de México, 2007, p. 64; Johanna von Grafenstein, “La independencia de México Fuera de sus
Fronteras”. In: Ávila & Guedea. La independencia de México…, cit., p. 85-86 e 115-116; Wilma Peres Costa,
“A independencia na historiografia brasileira”. In: Jancsó (org.). Independência: história e historiografia...,
cit.; e Jurandir Malerba, “Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil (c.1980-
2002)”. In: A Independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 19-52. O único
estudo de que temos conhecimento a articular a política de México e Brasil do século XIX é o de Guillermo
Palacios, Intimidades, conflitos e reconciliações. México e Brasil, 1822-1993. São Paulo: Edusp, 2008.
122
em 24 de junho de 1821 – no dia anterior, portanto, à sessão das Cortes de Madri, onde
obviamente o fato ainda não era conhecido -, o que garantiria a independência tanto de
Nova Granada quanto da Venezuela. Fortemente realistas mantinham-se Cuba, Porto Rico,
O antigo Vice-Reino de Nova Espanha, durante séculos o ponto mais nevrálgico dos
constitucional espanhola, eclodida em janeiro de 1820, e que levaria à reunião das Cortes
em Madri (em 09 de julho). Por decreto de 08 de maio de 1821, à Nova Espanha foram
México, Puebla, Veracruz, Oaxaca, Michoacán e Guanajuato (todas estas antes formavam,
Oriente, Províncias Internas do Ocidente, Zacatecas, San Luís Potosí, Yucatán, Sonora y
Sinaloa, e Chiapas. Foram estas intendências que elegeram seus representantes às Cortes
madrilenhas, e que comporiam, com os representantes de Cuba, Porto Rico e Filipinas, uma
Algumas das questões que, a seus olhos, materializavam esse desprezo, eram reedições de
184
Nem todos os eleitos se dirigiram à Espanha. Os primeiros a tomar assento foram dois de Vera Cruz, em
fins de 1820. Nettie Lee Benson, Mexico and the Spanish Cortes, 1810-1822: Eight Essays. EUA: Printing
Division of The University of Texas, 1966; da mesma autora: The Provincial Deputation in Mexico.
Harbinger of Provincial Autonomy, Independence, and Federalism. Texas: University of Texas Press, 1992;
Ivana Frasquet, “El Liberalismo Gaditano en el México Independiente, 1821-1824”. In: Manuel Chust e Ivana
Frasquet (eds.), La transcendencia del liberalismo doceañista en España y en América. Valência: Generalitat
Valenciana, 2004, p.144; Alfredo Ávila, En nombre de la nación. La formación del gobierno representativo
en México (1808-1824). México: Taurus, 2002, p. 203; e Manuel Ferrer Muñoz, La Formación de un Estado
123
problemas enfrentados já nas Cortes de Cádiz, entre 1810 e 1814, notadamente o da
Vice-Reino, prevendo a formação de um novo Império, sediado no México, regido por uma
descendente direto dos Bourbons da Espanha. O alcance do plano era ainda uma incógnita,
embora certo que Iturbide e outro chefe militar, Vicente Guerrero, estavam à frente de
forças armadas - o Exército Trigarante – que buscavam sua aceitação em várias partes do
nacional en México. El Imperio y la República federal: 1821-1835. México: Universidad Nacional Autónoma
de México, 1995, p. 76.
185
Manuel Chust, La cuestión nacional americana en las Cortes de Cádiz. Valencia: Centro Francisco Tomás
y Valiente UNED Alzira, 1999.
186
A. Ávila, En nombre de la nación…, cit., p.204-206; e Muñoz. La Formación de un Estado nacional en
México…, cit., p.59, p.63-64 e p.78.
187
N. L. Benson, Mexico and the Spanish Cortes…, cit.; da mesma autora: The Provincial Deputation in
Mexico…, cit. Um acompanhamento minuciosos desta e subsequentes sessões, em: Ivana Frasquet, Las caras
del águila: del liberalsmo gaditano a la república federal mexicana (1820-1824). Castelló: Publicacions de la
Universitat Jaume I, 2008, p.68-76.
124
território, onde os ecos da “insurgência” recente ainda se faziam ouvir. 188 Assim, se Nova
Espanha se mantinha realista, ainda vinculada à Espanha peninsular e aos seus territórios
era, claramente, de que também ela logo seguisse o caminho de ruptura com Madri.
Disso bem sabiam os representantes reunidos nas Cortes. No dia 24 de junho, uma
peninsulares, apresentou às Cortes uma declaração, preparada e lida por José Maria Queipo
de Llano, conde de Toreno. Ao lado de uma apologia dos feitos dos colonizadores
que, nesta altura, contavam com o apoio de alguns representantes ultramarinos. Com
parlamentar, estes logo se mobilizariam, redigindo outra versão dos fatos. 189
conciencia, si dejasen pasar los pocos días que restan de la presente legislatura sin
188
Ernesto de la Torre Villar, La Independencia de México. México: Mapfre. Fondo de Cultura Económica,
1992, p.128-129; Marco Antonio Landavazo, La máscara de Fernando VII. Discurso e imaginário
monárquicos en una época de crisis. Nueva España, 1801-1822. México: El Colégio de México/Universidad
Michoacana de San Nicolas de Hidalgo/El Colegio de Michoacán, 2001, p.296 e segs.;A. Ávila, En nombre
de la nación…, cit., p .196-201. Segundo Rafael Rojas, “entre 1810 e 1820, se articulan dos políticas
paralelas que convergerán en el Plan de Iguala: la de los insurgentes separatistas y la de los diputados
autonomistas. Cada sociabilidad, la de la guerra y la de la representación, fue moldeando los valores políticos
de los actores involucrados en ella hasta el punto de hacerlos casi irreconciliables”. Rafael Rojas, La escritura
de la independencia. El surgimiento de la opinión pública en México. México: Taurus/CIDE. 2003, p. 33. As
Cortes foram oficialmente informadas do Plano de Iguala em 03 de junho de 1821, por meio da Secretaría de
Gobernación de Ultramar, A. Ávila. En nombre de la nación…, cit., p. 205.
125
instruir al Congreso del estado de las provincias que tienen el honor de representar,
“Buenos Aires, Chile, Santa Fé y una gran parte de Venezuela están emancipados de hecho;
el Peru invadido; Quito turbado, y una nueva revolución de un carácter mucho más temible
que la anterior ha estallado ultimamente em Méjico”. Diante desse quadro, afirmava que “si
no se extingue el motivo del descontento, éste se mostrará siempre que encuentre ocasión;
Cortes:
“¿Qué desean, pues? Nosotros lo diremos, Señor: desean esa misma Constitución
que debe hacerlas felices, pero que en el estado actual de cosas consideran como
una bellísima teoría que solo en la Península puede reducirse á práctica. Los
americanos son hombres libres; son españoles; tienen los mismos derechos que los
189
A. Ávila, En nombre de la nación…, cit., p. 206; e Ferrer Muñoz, La Formación de un Estado nacional en
México…, cit, p.59 e segs.
126
¿cómo, pues, podrá esperarse que prescindan de ellos y que permanezcan en paz sin
su posesión?”
mutua separación. Las Américas, bajo el pie en que están, no pueden subsistir en paz, y se
puede asegurar por todo lo que hemos dicho é insinuado, que es imposible que la tengan.
Caminan velozmente á su desolación, siendo como es inasequible apagar el espíritu que dan
las luces del siglo”190. A exposição terminava com 15 propostas, que versavam sobre: o
(proposta 10); o pagamento gradual de dívidas com a Espanha (propostas 11, 12, 13 e 14);
espaços de forte autonomia política. O que fora esboçado há pouco pelo Plano de Iguala,
agora era redesenhado de modo menos radical (e mais abrangente), embora sua concepção
no bojo da unidade da monarquia espanhola estabelecesse limites muito tênues entre essa
190
Diario de las Sesiones de Cortes, Legislatura de 1821, Tomo III, n. 118, 25/06/1821, p. 2471-2477.
191
A. Ávila, En nombre de la nación…, cit., p. 201-207; I. Frasquet, “El Liberalismo Gaditano en el México
Independiente…”, cit., p.146-147; I. Frasquet, Las caras del águila…., cit., p.68-76; e Ferrer Muñoz, La
Formación de un Estado nacional en México…, cit., p. 60-62.
127
documento, bem como a subsequente evocação a uma “nova” e “temível” “revolução” em
dias seguintes), e o conjunto de situações criadas pelo embate de posições entre deputados
que vinha sendo moldado a partir de vários fatores, em vários tempos e espaços distintos.192
Esse projeto logo passaria a conceber não apenas a concessão de autonomia política local,
recesso. Retomadas suas sessões semanas depois, a situação em Nova Espanha se mostraria
O’Donojú, que fora designado negociante das Cortes por influência dos deputados Ramos
atuar quase que por conta própria. Nessa ocasião, assinaram os Tratados de Córdoba, e em
192
A despeito de fortes divergências centrais em suas interpretações, nisso estão de acordo, dentre outros: N.
L. Benson, Mexico and the Spanish Cortes…, cit.; e da mesma autora, The Provincial Deputation in
Mexico…, cit.; Manuel Chust, “Federalismo avant la lettre en las Cortes Hispanas, 1810-1821”. In: Josefina
Zoraida Vázquez (coord.), El establecimiento del federalismo en México (1821-1827). México: El Colegio de
México, 2003, p. 77-114; I. Frasquet, “El Liberalismo Gaditano en el México Independiente…”, cit.; da
mesma autora, Las caras del águila…, cit.; e A. Ávila, En nombre de la nación…, cit. Para um balanço
crítico e geral da historiografia sobre o tema, vide c, p.456 e segs.
128
Regência executiva; logo em seguida, declarou formalmente a independência e a criação do
Após sua leitura nas Cortes de Madri, a exposição dos deputados de Nova Espanha
foi publicada naquela cidade, e também na do México, ainda em 1821. 195 Não sabemos os
caminhos que ela percorreu, mas de algum modo chegou ao Brasil. O Revérbero
parte do texto, mas manteve intactos os pontos referentes ao seu conteúdo programático: o
histórico das relações entre a Espanha e a América, o estado político geral desta, as
argumentos.
193
E. Villar, La Independencia de México…, cit, p. 121 e segs; M. A. Landavazo, La máscara de Fernando
VII…, cit., p. 334-335; Ferrer Muñoz, La Formación de un Estado nacional en México…, cit., p.89-90 e p.98;
e A. Ávila, En nombre de la nación…, cit., p. 214-215.
194
A. Ávila, En nombre de la nación…, cit., p. 207.
195
Exposición presentada á las Cortes por los Diputados de Ultramar en la sesión de 25 de Junio de 1821,
sobre el estado actual de las provincias de que son representantes, y medios convenientes para su definitiva
pacificación; con una noticia de los trámites que la precedieron y motivaron. Madrid: Imprenta de Don Diego
García y Campoy, 1821. No México, o mesmo texto foi publicado como Nada hay que esperar de España, ó
exposición que leyó el Sr. D. José Miguel Ramírez en la sesion del 25 de Junio de 1821. México, Imprenta
Imperial de D. Alejandro Valdés, 1821.Ferrer Muñoz, La Formación de un Estado nacional en México…, cit.,
p. 60.
129
Muito se tem escrito sobre a presença do Revérbero no jogo político lusoamericano
entre os anos de 1821 e 1822, sempre reconhecendo seu papel destacado como, primeiro,
Nova Espanha, entre novembro e dezembro de 1821, o jornal ainda operava de acordo com
uma lógica de interesses fundados naquela união. Nesse momento, a independência geral e
alguns até mesmo antes disso, não era, ainda, uma certeza (aliás, vivia-se um ambiente
pouco propício a elas). No caso específico dos acontecimentos de Nova Espanha, é muito
modo, o discurso dos deputados de Nova Espanha soava, nas páginas do Revérbero, como
uma defesa sincera da manutenção da unidade da monarquia espanhola. Por que ele
196
O Revérbero Constitucional Fluminense (doravante RCF) inicia sua publicação em 15/09/1821 e a encerra
em 08/10/1822, com um total de 20 números. Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil. Rio de
Janeiro: Mauad, 1966; Morel & Barros. Palavra, imagem e poder..., cit.; Cecília Helena Oliveira, A astúcia
liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista:
Edusf/Ícone, 1999; mais recentemente: Virgínia Rodrigues da Silva, O Revérbero Constitucional
Fluminsense: constitucionalismo na imprensa do Rio de Janeiro à época da independência. Niterói: UFF,
2010 (mestrado).
197
O Correio Brasiliense publicou a notícia referente aos Tratados de Córdoba somente em novembro de
1821 no número 162, de modo que, por meio desta fonte, a notícia só poderia chegar ao Brasil, no mínimo,
seis semanas depois. Ignoramos se ela chegou antes, proveniente de outra fonte. Os tratados foram publicados
no Papagaio, n.08, 06/07/1822. Neste, lia-se ademais que “Já no nosso n.[anterior] expendemos algumas
reflexões sobre o Império do México. É este o País cujo aspecto político maior analogia tem com o Reino do
Brasil: os dois Governos devem, de necessidade, examinarem-se reciprocamente; e os nossos Políticos tem ali
um campo vasto para trabalharem a prol dos seus respectivos países.” O mesmo jornal publicaria vários
documentos relativos aos tratados em seus números: n. 05, 07/06/1822 e n. 09, 13/07/1822.
130
Na edição de 01 de novembro de 1821, o Revérbero evocava a posição do conde de
Toreno em defesa da união entre as partes até aquele momento constitutivas da monarquia
espanhola:
Assim, o jornal anunciava a publicação da exposição dos deputados de Nova Espanha para
“O Mundo instruído espera ver tratado este negócio com toda a possível delicadeza
pelos nossos Deputados Brasileiros no Augusto Congresso das Cortes [de Lisboa].
É bom, por isso mesmo, que nele se fale, se pense, se escreva. Os Deputados da
deste objeto a benefício das suas Províncias, dando razões (que transcreveremos no
198
RCF, n. 4, 01/11/1821.
199
Idem.
131
Finalmente, na referida edição, de 15 de novembro, justificava a publicação da
exposição porque “ele nos pareceu muito interessante, aplicável às circunstâncias do Brasil,
e próprio para nele se prevenirem os males que há onze anos oprimem as Américas
e Algarve continuava a denunciar essa possibilidade, mas não havia ainda um projeto
político consistente e bem configurado nessa direção. Vimos anteriormente como isso só
para o Brasil (em 03 de junho). Tudo atendendo a uma complexa dinâmica política onde se
possibilidade de ruptura entre Brasil e Portugal ainda não embasava um projeto firme.
200
RCF, n. 5, 15/11/1821.
132
consideráveis, e em várias partes do Brasil já se falava da estabilização do governo
portanto, temia-se que o Brasil seguisse o mesmo curso que a maioria da América
partes distintas sob esse tipo de regime; agia em meio ao mesmo contexto de politização
a partir da elaboração de prognósticos: o que iria acontecer no futuro? Como era desejável
que esse futuro fosse? O que era possível extrair de lição do passado e do presente? Mais
precisamente: o que a América espanhola ensinava à América portuguesa, que esta deveria
aprender?
201
Cecília Oliveira, A astúcia liberal..., cit.; e Andréa Slemian & João Paulo G. Pimenta. O “nascimento
político” do Brasil: origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
133
6.4 - Brasil e México em uma perspectiva integrada
objeto é condição de análise do mesmo. No entanto, por vezes, estudamos gente que
tomava a análise de seu próprio presente (nosso passado) como pressuposto de atuação e
relação ao tempo em que viviam são perspicazes não apenas como subsídio à sua própria
ação, mas também de um ponto de vista analítico posterior: de fato, a América espanhola
histórica. Isso se devia a uma pequena – mas fundamental - diferença temporal da posição
daquele ano, a de Nova Espanha estava mais próxima de se concretizar, e isso pôde dizer
algo ao Brasil.
anteriormente, deve-se perguntar: qual a posição específica de Nova Espanha diante desse
quadro? A publicação do Revérbero não nos permite, até o momento, uma resposta cabal;
torno dela se organiza uma demanda de pesquisa ainda não contemplada 202. Uma demanda
pela análise integrada não só dos processos de independência de México e Brasil, mas
também dos resultados políticos mais imediatos deles: o Império Mexicano e o Império do
202
Sobre ela está debruçada, no momento, Camilla Farah.
134
Brasil. Resultados que guardam entre si grandes semelhanças e vários pontos de contato.
sendo até hoje presentes em obras a elas dedicadas. Ora, de variadas formas, elas têm
origem em meio aos próprios movimentos históricos que pretendem qualificar, plasmadas
doravante uma imagem pouco se ateve à outra – consequência, aliás, natural dos
explicita uma incongruência: dentre aquelas duas independências, qual teria sido a “mais
De todo modo, não convém diminuir o fato de que, uma vez independentes, Brasil e
relação à ordem do Antigo Regime. Conforme vimos acima, tanto os deputados de Nova
tinham muita clareza de alguns desses elementos, logo bastante disseminados em outros
“As vantagens do Sistema Monárquico tem sido reconhecidas por muitos: Buenos
Aires desejou erigir uma Monarquia; o Peru propende tanto para a mesma opinião
criação de uma Dinastia nova, pela emulação e interesses dos particulares que se
julgam na mesma linha de direito e de mérito que o novo Monarca, e apesar da falta
daquele prestígio em favor dele, que tão necessário se torna para a obediência dos
pois ali não teria sido necessária a fundação de uma nova dinastia, apenas a continuação da
136
anterior – a de Bragança. Assim, segundo o Diário do Governo, se esboçava um sistema
“À vista, pois, do que fica exposto, podemos concluir com segurança que se a
Trono a todo o custo uma Personagem de qualquer das Dinastias Reinantes, para
poderosos, a cujos caprichos tem sido até agora sacrificada, e segurar ao mesmo
tempo a contemplação das Nações Estrangeiras, não só poderá contar com um mais
sociais; perfis econômicos, etc. Mesmo assim, semelhanças e pontos de encontro seguem
chamando a atenção, embasados pela própria autoimagem de cada império forjada à época.
pouco duradoura em comparação com a do brasileiro). O abade De Pradt, cujo ideário tinha
137
trechos de suas obras – já tocava na questão há alguns anos, sugerindo às colônias ibéricas
espanhola e, de certo modo, teria se reconfigurado a partir desta e por trezentos anos. Um
amálgama entre essa referência política, e outra, de base geográfica – América – contribuía
para sua disseminação, e não era estranha até mesmo a destacados agentes políticos
inclinados à defesa de formas de governo republicanas, como frei Servando Teresa de Mier
e Carlos Maria Bustamante205. Na síntese do historiador Rafael Rojas, “en México la idea
No Brasil esse imaginário era fundado em elementos mais recentes, mas igualmente
às políticas reformistas promovidas pelo Império Português desde as últimas três décadas
português) que poderia estar sediado no Brasil 207. A exemplo do que ocorria em Nova
203
Diário do Governo, n.28, 05/02/1823.
204
Manuel Aguirre Elorriaga, El abate De Pradt en la emancipación americana. Caracas: Universidad
Católica Andrés Bello, 1983; e Marco Morel, “Independência no papel: a imprensa periódica”. In: I. Jancsó
(org.), Independência: história e historiografia..., cit.
205
Rafael Rojas, La escritura de la independencia…, cit., p.66-72; e Ferrer Muñoz, La Formación de un
Estado nacional en México…, cit., p.25-34.
206
Rojas, La escritura de la independencia..., cit., p.82.
207
Maria de Lourdes Vianna Lyra, A utopia do poderoso império - Portugal e Brasil: bastidores da política
1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994; e Guilherme Pereira das Neves, “Del Império lusobrasileño al
Império del Brasil (1789-1822)”. In: Antonio Annino & François-Xavier Guerra (coord.), Inventando la
nación. Iberoamérica, siglo XIX. México: FCE, 2003, p.221-252.
138
geográfica América. No Brasil, isso só se acentuaria com sua transformação em capital
restauração legitimista entre 1814 e 1816, sendo por vezes usado por analistas externos
modo, em 1822, era com esse termo, sui generis em relação aos adotados em outras partes
políticos, que primeiro o México, logo depois o Brasil, começaram a se organizar como
Quais os alcances dessa relação, ainda não sabemos. Sua pertinência, porém,
congresso mexicano se reuniu, para logo emitir uma declaração formal de que ele era o
portador da soberania nacional, a religião oficial era a católica, e o Império uma monarquia
Gubernativa esperaram por Fernando VII ou algum outro Bourbon que se dispusesse a
assumir tal condição e a personificar uma continuidade dinástica recomendada pela cautela
em tempos tormentosos. Essa alternativa, aventada desde antes na mesma medida em que
ganhava força a própria ideia de um império mexicano, não ignorava a proximidade entre
Nova Espanha e Brasil, dois ambientes que, para todos os efeitos, mantinham-se fortemente
mexicana, afirmava:
208
Robert Southey, História do Brasil. 3° V. Rio de Janeiro: Garnier, 1981. Hipólito da Costa no seu Correio
Braziliense, editado em Londres entre 1808 e 1822, faz seguidas referencias à mesma ideia. Nada disso
parece-nos justificar, todavia, a excessiva liberdade e imprecisão com que muitos historiadores insistem
empregam o termo “império luso-brasileiro” para qualificar uma realidade que ainda não está bem tipificada
139
“Déjanos pues, oh España!, déjanos gozar de nuestra libertad: si nos has hecho
renuncia siquiera reconocer a su hijo como hombre, sería injusto porque no se crece
ademais contava com forte apoio militar; no dia seguinte, o congresso proclamou-o
uma nova Constituição - era preciso, claro, alijar a de Apatzingán, de 1814, considerada
de oposição - dentre os quais figurava gente como Michelena e Ramos Arizpe, os mesmos
como tal. Quais os significados de época dos termos nela implicados, e quais os termos dos quais queremos,
nós, nos valer para entendê-la?
209
R. Rojas, La escritura de la independencia..., cit., p.83.
210
E. T. Villar. La Independencia de México…, cit., p.134-135; e R. Rojas. La escritura de la
independencia..., cit., p.70.
140
da sessão madrilenha de junho de 1821211 - foram acompanhadas no Brasil. Inclusive a
substituição por uma junta menor, a reinstalação forçada do Congresso (07 de fevereiro de
exemplo, um dos mais influentes publicistas do Brasil daquele período, tratou amplamente
Deus queira que o enforquem para exemplo daqueles que não querem Constituição
melhor, expressaria temor de que o que ocorrera lá, ocorresse aqui, onde estavam em curso
qual começava a anunciar um conflito em torno dos espaços formais de soberania nacional
211
E. T. Villar. La Independencia de México…, cit., p.135.
212
Idem, p.136-138.
213
Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco. Alerta!¸n. 27, 05/06/1823. In: Marco Morel (org. e
notas), Cipriano Barata. Sentinela da Liberdade e outros escritos (1821-1835). São Paulo: EDUSP, 2009.
141
“Rio de Janeiro. O estado daquela Província como Capital do Império
Congresso esteve quase a ser dissolvido dentro de poucos dias do mês de Setembro,
Pedro I: “bom será que o nosso Imperador tenha diante dos olhos o quadro do México, para
ver que as imprudências de Iturbide o precipitaram como a Dédalo” 215. Suas palavras
tiveram impacto. Sabemos que exemplares da Sentinela de Barata, com suas posturas
republicanas e tiranicidas, viajaram por muitas partes, do Rio da Prata (onde eram bem
acolhidas por governos locais a elas afeitos) ao Pará. Nesta província do Império do Brasil,
seu comandante de armas testemunhou que soldados diziam que Pedro I teria o mesmo
destino que Iturbide, com um agravante: em 1824, quando desses rumores, provavelmente
Pedro I parece ter levado a sério tais ameaças. De fato, procedeu de maneira idêntica
214
Idem, n.53, 04/10/1823. In: M. Morel (org. e notas), Cipriano Barata..., cit., p.481-482.
215
Idem, n.60, 29/10/1823. In: M. Morel (org. e notas), Cipriano Barata..., cit., p.518.
216
Após abdicar, Iturbide deixou o México e rumou à Europa, onde tentou articular junto a potências
legitimistas seu retorno. Declarado traidor pelo congresso mexicano, tentou voltar no ano seguinte, mas após
desembarcar em Soto la Marina em 15 de julho, foi preso e fuzilado. E. T. Villar, La Independencia de
México…, cit., p. 136-138. Devemos a indicação relativa ao Pará a André Roberto Machado, ao qual
142
convocou um conselho fechado para elaborar a nova Constituição. Ordenou ainda a prisão
de vários deputados e publicistas, dentre os quais o próprio Cipriano Barata. Dias depois,
em pronunciamento oficial, o monarca justificava sua atitude como um meio “seguro” para
periódicos para atacar a “força moral do Governo, e ameaçar a Minha Imperial Pessoa, com
agradecemos imensamente. Suas pesquisas indicam documentação a respeito guardada no Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro, Cód. SDE 002, Caixa 742, “Confederação do Equador”.
217
Diário do Governo, n.117, 18/11/1823.
143
Capítulo 7
7.1 - Apresentação
que cada um desses processos não pode ser devidamente compreendido em separado dos
outros; o que, ademais, se coaduna perfeitamente com algumas condições evidentes que o
tempo em que vivemos oferece ao nosso ofício, seja em termos da escolha de temas e
serem iluminadas justamente quando consideradas como soluções próprias que cada
contexto formulou para situações comuns. E que essas situações comuns implicaram, por
seu turno, desenvolvimentos ulteriores desiguais, que acabaram por criar padrões de
144
Essa ideia começou a se despir de seu caráter puramente hipotético com a
demonstração parcial de como funcionaram alguns dos vetores desse movimento geral de
determinações recíprocas: em primeiro lugar, e com muito mais ênfase de nossa parte,
modo apenas indicativo, como o inverso também se deu. Por seu turno, ambos os
fenômenos se relacionam a uma conjuntura mais ampla, na qual vetores advindos de outras
moderna, a envolver o Brasil e a América espanhola, bem como muitos outros espaços do
focado exclusivamente nas influências de uma parte sobre outra, há que se investigar,
impactos exercidos pelo curso da política no Brasil não só no mundo hispânico, mas
tenham construído fenômenos históricos da magnitude dos aqui identificados por aquela
disponibilizadas por historiadores, como aquelas que, igualmente na esteira de alguns dos
pressupostos estabelecidos por Koselleck, salientam uma marca temporal do contexto aqui
própria vida social218 que, a nosso ver, seria uma modalidade historicamente específica (dos
séculos XVIII e XIX) da simultaneidade de tempos históricos desde há muito sinalizada por
Braudel219.
dimensões se separam. Pois para que haja “aprendizados políticos” nos termos dessas
partir de seus ritmos próprios de desenvolvimento histórico. Tentando ser mais preciso: é
necessário que tais realidades possuam diferenças que pautem não a configuração imediata
de uma mesma e mais abrangente realidade unificadora, mas sim que permitam a
formulação intelectual de situações percebidas como ainda afastadas, e cujo encontro passa
a ser desejável. Diferenças, portanto, que são – ainda que não exclusivamente - de natureza
temporal.
um modelo de interpretação, mas sim, retomar situações históricas concretas que, lidas à
luz de um problema de ordem temporal como o aqui proposto, podem se revelar dotadas de
218
Algumas das firmes elaborações da questão nesses termos encontram-se nos trabalhos de Javier Fernández
Sebastián, como, por exemplo, “‘Cabalgando el corcel del diablo’: conceptos políticos y aceleración histórica
en las revoluciones hispânicas”. In: Lenguaje, tiempo y modernidad. Ensayos de historia conceptual, Santiago
de Chile: Globo Editores, 2011, pp. 21-59.
219
Na mesma linha de trabalhos como o de Rafael Marquese, “Comparando impérios: o lugar do Brasil no
projeto escravista de Francisco de Arango y Parreño”. In: María Dolores González-Ripoll & Izaskun Álvarez
Cuartero (eds.), Francisco Arango y la invención de la Cuba azucarera. Salamanca: Ediciones Universidad
Salamanca, 2009, p.67-84. Também: Márcia Berbel/Rafael Marquese/Tamis Parron, Escravidão e política:
Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2010, esp. cap.1.
146
significados importantes. É por isso que a trivialidade da constatação de que cada fenômeno
histórico ocorre, simplesmente, em seu devido tempo, não é obscurecida pela tentativa de
diacrônicas, uns em função dos outros, de acordo com seus ritmos de desenvolvimento
próprios.
estabelecimento de relações entre eles, das quais podem surgir sugestões de adendos
entre 1807 e 1808, com o clímax de uma crise política e militar comum a ambas, é
eloquente. Enquanto a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, entre fins de 1807 e
rapidamente, condições imediatas para a desagregação daquela autoridade real. Como todos
sabemos, a formação de juntas de governo por todo o território hispânico, desde 1808 e
147
independências americanas220. No entanto, merece atenção o ritmo pelo qual se processou
uma experiência de governos locais, regionais e nacionais que, não obstante em muitos
fundamentalmente inovadores em termos de sua natureza política. Essa atenção pode ser
interesse pela alta política imperial portuguesa, quase toda ela sediada na América desde
da Corte do Rio de Janeiro, a Gazeta do Rio de Janeiro, de que esse acompanhamento seria
feito, e em público, “por ser muito interessante a todo bom Vassalo Português conhecer o
espírito público da Nação Espanhola na presente crise, pois que do Estado daquela Nação
depende em grande parte a sorte da Nossa”.222 Não havia no mundo português nada
semelhante ao que se passava no mundo hispânico; mas tudo o que fosse possível era ali
Bayona (abril) e Madri (primeiros dias de maio), por exemplo, foram conhecidas antes no
220
Manuel Chust (org.), La eclosión juntera en el mundo hispánico. México: FCE, 2008; Alfredo Ávila &
Pedro Pérez Herrero (orgs.), Las experiencias de 1808 en Iberoamérica. México/Madrid: UNAM/
Universidad de Alcalá, 2008.
221
Valentim Alexandre, Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
Regime português. Porto: Afrontamento, 1993; Maria de Fátima Gouvêa, “As bases institucionais da
construção da unidade. Dos poderes do Rio de Janeiro joanino: administração e governabilidade no Império
luso-brasileiro”. In: I. Jancsó (org.), Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp,
2005, p 707-752; e Kirsten Schultz, “A era das revoluções e a transferência da Corte portuguesa para o Rio de
Janeiro (1790-1821)”. In: J. Malerba (org.), A Independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006, p.125-151.
148
Espanhol: no Caribe, na Venezuela e em Nova Espanha as notícias tardaram para chegar
cerca de dois meses depois dos acontecimentos, e no Chile e no Peru de quatro a cinco
meses223; no Rio de Janeiro e Bahia, porém, esse tempo não ultrapassou três meses, um
procurando uma política voltada com especial interesse para o continente de sua nova sede,
adentravam à cena pública que, também como já vimos, por aquela época se alargava e
jamais seria ignorado ou tratado com frieza pela alta cúpula imperial portuguesa, ou pelos
mais empenhados agentes políticos que teciam redes de interesses políticos e econômicos
do português.
222
Gazeta do Rio de Janeiro extra n.01, de 22/02/1810. Mesmo assim, a Gazeta sabia muito bem silenciar
sobre acontecimentos que fossem considerados como exemplos perniciosos. Tratei a questão em Pimenta, cit.,
cap.III.
223
Simon Collier, Ideas and Politics of Chilean Independence, 1808-1833.Cambridge: Cambridge University
Press, 1967; Allan J. Kuethe. Cuba, 1753-1815 : Crown, Military, and Society. Knoxville: The University of
Tennesse Press, 1986; Alfredo Ávila, En nombre de la nación. La formación del gobierno representativo en
México (1808-1824). México: Taurus/Cide, 1999; Marco Antonio Landavazo, La máscara de Fernando VII.
Discurso e imaginário monárquicos em uma época de crisis. Nueva España, 1808-1822. México: El Colegio
de México/Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo/El Colegio de Michoacán, 2001; Victor
Peralta Ruiz, En defensa de la autoridad. Política y cultura bajo el gobierno del virrey Abascal. Peru 1806-
1816. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/Instituto de Historia, 2002; e Ines Quintero,
La Conjura de los Mantuanos. Caracas: Universidad Católica Andrés Bello, 2002.
149
A criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, em dezembro de 1815,
Congresso de Viena, principalmente aquelas que compunham a Santa Aliança, pode ser lida
reconquista da América espanhola, levadas adiante por Fernando VII desde sua recondução
América que, desde então, como é sabido, passariam a sediar projetos cada vez mais claros
de independência.
1811, ou as projetadas também em outras partes – fosse na Espanha, com a reunião das
Cortes que, em Cádiz, elaborariam uma Constituição supostamente válida para todos os
224
Ana Cristina B. de Araújo, “O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, 1815/1822”. In: Revista de
História das Ideias, n.14, 1992; Valentim Alexandre, Velho Brasil, novas Áfricas. Porto: Afrontamento, 2000;
e Cristina Nogueira da Silva, “Nação federal ou Nação bi-hemisférica? O Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves e o modelo colonial português do século XIX”. In: Almanack Braziliense n.9, maio de 2009.
150
Assim, é significativo que o mundo português conhecesse um movimento
americanas225. Pois naquela ocasião ficava evidente o grau de contenção que a Corte do Rio
contexto político ocidental, e que buscavam sintonia com o que ocorria alhures. Em
Pernambuco, foi criada uma junta de governo, ao mesmo tempo em que se esboçava a
advindos da recente trajetória do mundo hispânico seria capaz de, ao mesmo, aproximar e
1820, foi precipitado, dentre outros, fatores, pela leitura do que se passara na Espanha em
janeiro daquele mesmo ano, e que, de certo modo, reeditava o constitucionalismo gaditano
interior deste. É por isso que a generalização de juntas de governo, a exemplo do que
225
Luiz Geraldo Silva & João Paulo G. Pimenta, “Pernambuco, Rio da Prata e a crise do Antigo Regime na
América ibérica: o “caso” de Félix José Tavares Lira”. In: Estudos ibero-Americanos, v.23, n.02, jul.-
dez/2011, p.312-342.
226
Denis de M. Bernardes, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo/Recife:
Hucitec/Editora UFPE, 2006; Luiz Geraldo Silva, “O avesso da independência: Pernambuco (1817-24)”. In: J.
Malerba (org.). A Independência brasileira..., cit., p.343-384.
151
ocorrera no mundo hispânico a partir de 1809, e do que fora ensaiado no português em
Brasil sob a égide de uma monarquia constitucional, e não de uma ordem republicana.
monarquia nas juntas, monarquia ou república nos constitucionalismos, com variáveis graus
Essa observação preliminar pode ser completada com a inclusão do advento das
227
Márcia Regina Berbel, A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822.
São Paulo: Hucitec/Fapesp 1999.
152
constitucionalismos228. Algumas das razões para isso são assaz conhecidas; cabe apenas
1811) esse movimento tendeu a se processar de modo mais lento, embasado em uma
trajetória errática que, pelo contrário, a presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro fora
capaz de evitar.
que a celeridade com que a trajetória política lusoamericana processou e fundiu elementos
oriundos da América espanhola (e que nesta conheceram um ritmo mais lento), pode ser
bem entendida de duas maneiras: em primeiro lugar, como resultado da oportunidade aberta
pela diferenças de circunstâncias criadas entre 1807 e 1808, e que permitiram ao Império
dimensão concreta daquilo que, genericamente, têm sido referido por vários estudiosos
228
Essa modalidade de ação política específica foi estudada, em perspectiva abrangente, por David Armitage.
Declaração de independência: uma história global. Companhia das Letras, 2011.
229
Para o contexto geral, novamente a referência central é Koselleck, Futuro pasado: para una semántica de
los tiempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993; para a América ibérica: Javier Fernández S., “‘Cabalgando el
corcel del diablo’: conceptos políticos y aceleración histórica en las revoluciones hispânicas”. In: Lenguaje,
tiempo y modernidad. Ensayos de historia conceptual. Santiago de Chile: Globo Editores, 2011, pp. 21-59;
Guillermo Zermeño Padilla, “História, experiência e modernidade na América ibérica”. In: Almanack
Braziliense n° 07, maio de 2008; várias contribuições em: Javier Fernández S. (dir.), Diccionario político y
social del mundo iberoamericano. Madrid: Fundación Carolina/Centro de Estudios Políticos y
153
precipitados não necessariamente por um movimento geral de aceleração, mas pela
histórico voltado a um futuro concebido como aberto, recriados tais ritmos pelos próprios
eventos, e que imbricariam uns com os outros, estabelecendo sincronias e diacronias ? Não
obstante esta discussão já ter sido esboçada anteriormente por vários autores, em contextos
historiográficos distintos, creio que sua renovação, tendo por base a apreciação dos
dos mesmos.
Constitucionales, 2009; para o Brasil: Valdei Araújo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na
formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. Afirmações semelhantes, ainda que não
tributárias de Koselleck, se encontram em: Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema
Colonial. São Paulo: Hucitec, 1979; e: István Jancsó, “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação
política no final do século XVIII”. In: F. Novais (dir.), História da vida privada no Brasil v.I: cotidiano e vida
privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.388-437.
154
Capítulo 8
revolucionário hispanoamericano
qualquer paralelo com outros casos. Aqui, desempenham papel de protagonistas a criação
uma territorialidade definidora do espaço de jurisdição do novo Estado que, em suas linhas
no continente americano.
mesmo contexto geral ocidental. A revolução brasileira implicaria, desde seu início, uma
155
contradição de termos, e legaria à posteridade um ideário temático incômodo e
desafiador230.
O fato desse tipo de interpretação ter sido esboçado já por alguns dos próprios
independência do Brasil, se não fosse por uma questão: a de que o fato de ter sido
mecanismo comum a toda e qualquer formação nacional daquela mesma época; isto é, ao
formulações intelectuais que, visando justificar tais movimentos, pintavam-nos, cada qual à
sua maneira, como únicos, distintos dos outros, e por isso mesmo legítimos e desejados 231.
singularização de cada quadrante do mesmo cenário por ela integrado; mesmo que, em
alguns casos, tais quadrantes fossem pintados com cores idênticas, como as do
casos, como o chileno e o mexicano, para citar apenas dois dos mais evidentes.
230
Wilma Peres Costa, “A independência na historiografia brasileira”. In: István Jancsó (org.),
Independência: história e historiografia. São Paulo, Hucitec/FAPESP, 2005, p. 53-118; João Paulo G.
Pimenta, “A independência de Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico”. In:
História da historiografía n.3, setembro/2009, p.53-82.
231
Uma excelente análise da questão focada no Rio da Prata encontra-se em: Fabio Wasserman, Entre Clio y
la Polis: conocimiento histórico y representaciones del pasado en el Río de la Plata (1830-1860). Buenos
Aires: Teseo, 2008.
156
formular originalmente as bases de tal modelo, ele jamais prescindiu de outro elemento, a
justificaria, então, sua separação de Portugal - ele também seria semelhante a outros países
que, pela mesma época, ou já eram ou estavam se tornando independentes. Era o que
tipificação.
modo privilegiado uma de suas dimensões materiais mais concretas, isto é, a sua
inescapável que, a partir de 1808, o fez sede da Corte portuguesa e, ao mesmo tempo,
vizinho continental de territórios que, como todos sabemos, logo naquele ano começariam a
conhecer convulsões políticas de natureza até então inédita? Esse ineditismo dizia respeito
a todos, não apenas porque – como também sabemos - cada parte reagiria de uma maneira à
crise política geral, mas porque o estabelecimento de bases comuns de reação passava pelo
232
Marco Morel, “Independência no papel: a imprensa periódica”, en: I. Jancsó (org.), Independência..., cit.,
pp.617-636; J. P. G. Pimenta, “Portugueses, americanos, brasileiros: identidades políticas na crise do Antigo
Regime luso-americano”. In: Almanack Braziliense n°3, mayo de 2006.
157
circulação de análises, informações, notícias e rumores que subsidiavam a formação de
mercadorias e outros artefatos culturais; também com uma alta política que se conjugava
com um cotidiano cada vez mais politizado em várias esferas sociais, e modificando-se em
suas relações de temporalidade. Em suma, eis aí toda uma base material que não se deve
desconsiderar. Uma cultura política ampla, compartilhada por territórios e agentes luso e
para fins aproximativos, de maneira algo imprecisa: 1) os territórios que até 1810
compunham o Vice-Reino do Rio da Prata, sediado em Buenos Aires, e que incluíam, além
da embocadura do Rio da Prata, a chamada “banda oriental”, o litoral dos rios Uruguai e
portuguesas do Rio Grande de São Pedro, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso; 2) as
vastas áreas do Alto Peru, que até então também integravam o Vice-Reino do Rio da Prata,
mas que desde 1810 tornaram-se alvo de conflitos em torno do seu controle, até a década
integram este segundo conjunto espacial as outras terras orientais do Vice-Reino do Peru.
Todas elas terminavam nas porções ocidentais das capitanias portuguesas de Mato Grosso e
Rio Negro, esta correspondente a amplos territórios amazônicos que, vez por outra, eram
233
Para que tal síntese fosse mais completa, seria necessário nela incluir a fronteira do Brasil com o território
francês de Caiena; porém, de momento não temos elementos suficientes para tratar do tema.
158
Vice-Reino de Nova Granada e da capitania geral da Venezuela fronteiriças aos demais
vastas e diversificadas áreas é muito discrepante: muito foi escrito sobre a primeira, ainda
assim, o que existe, assim como uma parcial investigação empírica própria, nos permite
234
Helen Osório, Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. Porto
Alegre: UFRS, 1990 (mestrado); Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, O Horizonte da Província: a República
Rio-Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845). Río de Janeiro: UFRJ, 1998 (doutorado); Helga
Iracema L. Piccolo, “O processo de independência numa região fronteiriça: o Rio Grande de São Pedro entre
duas formações histórias”. In: I. Jancsó, Independência..., cit., pp. 577-613; Tau Golin, A fronteira: governos
e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre:
L&PM, 2002; Fábio Ferreira Ribeiro, O General Lecor e as articulações políticas para a criação da
Província Cisplatina: 1820-1822. Río de Janeiro: UFRJ, 2007 (mestrado); Ana Frega, “La virtud y el poder.
La soberanía particular de los pueblos en el proyecto artiguista”. In: Noemí Goldman & Ricardo Salvatore
(comps.), Caudillismos rioplatenses: nuevas miradas a un viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 1998,
pp.101-133; A. Frega & Ariadna Islas (coord.), Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevideo: Facultad
de Humanidades y Ciencias de la Educación/Universidad de la República, 2001; Roberto Schmitt, Ruina y
resurrección en tiempos de guerra: sociedad, economía y poder en el oriente entrerriano posrevolucionario,
1810-1852. Buenos Aires: Prometeo, 2004.
235
Artur Cezar Ferreira Reis, “O Grão Pará e o Maranhão”. In: Sérgio Buarque de Holanda (dir.), História
geral da civiliação brasileira. 3ªed. São Paulo, Difel, 1972, pp. 71-172. (t. II, v. II, “Dispersão e unidade”);
Ana Cláudia Fernandes, A Revolução em pauta: o debate Correo del Orinoco - Correio Braziliense (1817-
1820). São Paulo: FFLCH-USP, 2010 (mestrado); Newman di Carlo Caldeira, “À procura da liberdade. Fugas
internacionais de escravos negros na fronteira oeste do Império do Brasil (1822-1867)”. In: Nuevo Mundo.
Mundos Nuevos, debates 2009. Para o tema específico das relações internacionais, as principais obras são as
de Luís Cláudio Villafañe G. Santos, A invenção do Brasil: o Império e o interamericanismo. Brasília: UnB,
2002; e O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e
Colômbia. Curitiba: Ed.UFPR, 2002.
159
8.2 - O Brasil e o Vice-Reino do Rio da Prata
século XVI, por conta do comércio legal e ilegal com o Rio da Prata, que conectava as
regiões mineradoras do Peru com os portos escravistas da África ocidental, via costa do
Brasil. No começo do século XIX, as trocas comerciais eram especialmente intensas por
capitanias lusoamericanas do Rio Grande, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia,
entre 1808 e 1809, esses fluxos aumentaram. Em 1809, os barcos portugueses só eram
no comércio da região a partir daquele ano, o movimento português caiu, em 1810, para um
pouco modesto terceiro lugar (10% das embarcações), atrás apenas de Grã-Bretanha e
236
Elena Beatriz Torre, “Aspectos en torno al comercio maritimo Buenos Aires – Brasil 1810-1816”. In:
Hernan Asdrúbal Silva (dir.), Navegacion y comercio rioplatense II. Bahia Blanca: Universidad Nacional del
Sur, 1998, pp.181-201; B. J. Barickman, A Bahian Counterpoint: Sugar, Tobacco, Cassava, and Slavery in
the Recôncavo, 1780-1860. Stanford: Stanford University Press, 1998; Oliveira Lima, D. João VI no Brasil.
3ªed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.109. Para referências a alguns dos comerciantes platinos metidos
nestas actividades, como Tomás Antonio Romero: Tulio Halperín Donghi, Revolución y guerra. Formación
de una élite dirigente en la Argentina criolla. Buenos Aires: Siglo XXI, 1972., p.46. Um “Mapa de los navíos
que entraron y salieron del puerto de la capitanía de Bahía en 1810” indica vinte embarcações provenientes de
Buenos Aires, oito de Montevideo, uma do “Río de la Plata” (provavelmente Maldonado ou Colonia), uma de
Callao (Peru), e uma de Havana (Cuba); no contrafluxo, uma com destino a Buenos Aires, cinco a
Montevidéu, duas ao “Río de la Plata” e uma a Havana. Correio Brasiliense, v. VII, n.39, 08/1811.
Estatísticas para o ano de 1816 indicam uma presença, no porto do Rio de Janeiro, de 100 navios envueltos no
comércio com o Rio da Prata; e 24 no porto de Salvador; para o mesmo ano, de 519 embarcações que
entraram no porto de Salvador 7 eram provenientes da América espanhola, e para esta eram destinadas 17.
“Exportações e importações da Capitania da Bahia”: GRJ n.32, 19/04/1817, e CB v.XIX, n.110, 07/1817;
John Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/ São
Paulo: Edusp, 1975 (Londres, 1820), p.425. Também: Catherine Lugar, The Merchant Community of
Salvador, Bahia, 1780-1830. State University of New York at Stony Brook, 1980 (doutorado), p.85; e,
Agustín Beraza, La economía en la banda oriental durante la revolución (1811-1820). 2ª ed. Montevideo: Ed.
de la Banda Oriental, 1969, p.19.
160
Espanha, respectivamente, posição mantida até 1813, quando ocuparia a segunda posição,
tornava a capitania do Rio Grande de São Pedro a mais importante dentre todas as
do século XVIII. Como resultado de uma dinâmica que articulou guerra, ocupação
dinamizado pelo crescimento da produção local do movimento portuário (que cada vez
mais incluía o comércio de escravos africanos, uma mercadoria cara)238. Nesse cenário, as
suas respectivas campanhas, tão comumente acarretadas pelas guerras, agora tendiam a
diminuir, por vezes até mesmo promovendo o desenvolvimento da região. De Porto Alegre,
oriental239. A partir de 1810, circulavam livremente nesta região três moedas: a espanhola, a
237
Dados extraídos de Elena Torre, “Aspectos...”, cit., tabelas às páginas 195 e 196. É importante salientar
que o reforço dessas ligações muitas vezes se dava em detrimento das tradicionais estabelecidas entre Buenos
Aires e as demais províncias do Prata, cujas distâncias terrestres impediam que seus produtos competissem
com aqueles estrangeiros chegados a Buenos Aires por via marítima; incapazes portanto de sobreviver ao
livre-cambismo. José Pedro Barrán & Benjamín Nahum, Bases económicas de la revolución artiguista. 2ªed.
Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1964, cap.III.
238
H. Osorio, Apropriação da terra..., cit., da mesma autora, “La capitanía de Río Grande en la época de la
revolución artiguista: economía y sociedad”. In: A. Frega & A. Islas (coord.), Nuevas miradas…, cit., p.163-
178; também Fernando H. Cardoso, “Rio Grande do Sul e Santa Catarina”. In: Sérgio B. de Holanda (dir.),
História geral da civilização brasileira. 2a.ed. São Paulo, Difel, 1967, t.II, 2o.vol., p.473-505.
239
Também A. Beraza, La economía... , cit., p.20-21. A agricultura do Rio Grande, porém, sofreu graves
prejuízos pelo estado de beligerancia, inclusive pelos recrutamentos cada vez mais intensos de trabalhadores
locais incorporados aos exércitos portugueses de fronteira (H. Osório, “La capitanía de Río Grande...,” cit.,
pp.172-173). As comunicações entre São Paulo de o Rio Grande de São Pedro foram melhoradas com o
estabelecimento, por decreto real de 24/09/1817, de un correio regular entre as duas capitanías (publicado no
161
recém-criada pelas Províncias Unidas do Rio da Prata e, na fronteira de Iguarão, Lagoa
Mirim, Santa Teresa e Rocha, também a portuguesa 240. Com tudo isso, segundo o
comerciante inglês John Luccock, em atividade na América daquela época, a região oriental
Toda essa intensa atividade econômica, compartilhada para além dos imprecisos
limites sulinos das terras americanas de Portugal com o Vice-Reino do Rio da Prata, se
linhagens dessa articulação, bem como a fenômenos a ela relacionados e que se mostrariam
guerra entre o Império do Brasil e o governo de Buenos Aires, travada entre 1825 e 1828, e
Correio Bresiliense v.XX, n.119, 04/1818); ainda: Jeanne Lynn Friedman, Free trade and Independence: The
Banda Oriental in the World-System, 1806-1830. The Ohio State University, 1993.
240
A. Beraza, La economía…, cit., p.83.
241
J. Luccock, Notas..., cit., p.393.
162
Em última instância, poder-se-ia afirmar que, para o Brasil, a fronteira platina só
seria estabilizada em fins do século XIX, isto é, muito tempo depois da criação do Estado
foco de sua inserção em um contexto específico – o das independências – que deve ser
tão intensos como aqueles com o Vice-Reino do Rio da Prata, mas já existiam desde o
século XVI. Desprovidos de grandes rios navegáveis, mais distantes do litoral, e com uma
seguida, com as políticas imperiais ibéricas de acordos e delimitações territoriais, e que por
vezes levariam à incorporação orgânica dessas áreas aos respectivos domínios reais.
Nos primeiros anos do século XIX, essa incorporação seria potencializada pela
iniciativa do governo do Rio de Janeiro de abrir novos caminhos entre o litoral atlântico e o
apenas incipientes - entre essas partes. Luccock assevera que, nesta época, dois frades
242
Como bem nos mostra Wilma Peres Costa, A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a
crise do império. São Paulo: Hucitec, 1996.
163
preferido fazê-lo por Goiás e Mato Grosso “a incorrer no risco de, no mar, caírem nas mãos
dos corsários do Prata”243. Visando aprimorar a melhoria da raça cavalar no Rio de Janeiro,
vicunhas e alpacas dos Andes, e em 1809 tratou da abertura de uma estrada na capitania de
Goiás para facilitar o correio entre o Rio de Janeiro e o Pará, com o que se pretendia
incrementar também a comunicação terrestre com Caiena, ao norte. Entre 1807 e 1811,
interessante Rio Tietê” como potencialmente “a grande via de comunicação entre o Rio de
Janeiro, Santos e São Paulo e outros lugares, bem como para os importantes distritos de
Cuiabá, Mato Grosso, todo o Paraguai, Rio da Prata, Potosí, Chuquisaca, e uma grande
parte do Peru”244.
É sabido que a chegada ao Alto Peru dos documentos que oficializavam, junto às
243
J. Luccock, Notas..., cit., p.328, 390 e 394
244
Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, cit., p.106 e 131; John Mawe, Viagens ao interior do Brasil. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978, p.205. Segundo Estanislao Just Lleó, pela fronteira mato-
grossense eram comuns os contatos com os espanhóis do Alto Peru (Comienzo de la independencia en el Alto
Peru: los sucesos de Chuquisaca, 1809. Sucre: Editorial Judicial, 1994, p.227).
245
J. Lleó, Comienzo de la independencia..., cit.
164
Entre 1814 e 1815, por exemplo, autoridades administrativas de São Paulo e a Corte
do Rio de Janeiro tiveram que lidar diretamente com incidentes provocados pelo
acirramento das guerras no Alto Peru, após a restauração de Fernando VII. Nessa ocasião,
onde permaneceram sob proteção oficial até obterem confirmação do declínio das
português, José Luiz de Souza, comunicava que “na suposição de que a sua conduta [a dos
circunstâncias, houve S. A. R. por bem condescender com as Suas Súplicas para serem
príncipe João “nesta como em todas as ocasiões, mostra os seus sinceros desejos de
proteger os vassalos fiéis de seu Augusto Irmão [o rei da Espanha] contra os Rebeldes, e de
“esta protección dispensada por el S.r Principe Regente, como una nueva señal del
246
Ofício de Souza a D. Pedro Cevallos, Madri, 08/07/1815. AHI, Legação em Madri.
247
Ofício de Cevallos a Souza, Madri, 21/07/1815. AHI, Legação em Madri.
165
As escaramuças dessa fronteira, porém, foram constantes desde 1808, e embora
tenham sido pouco estudadas até o momento248, indicam uma constância até pelo menos
1822, quando o Brasil se tornou independente de Portugal. Com a continuação das guerras
conflitos com o Brasil se mantiveram até 1825, ano em que autoridades imperiais deste, de
baixa estatura, deram início a uma temerosa empresa, veementemente condenada pelo
governo central do Rio de Janeiro e logo abortada, mas reveladora da intensidade das
Esta era uma fronteira marcada por regiões menos densamente povoadas que as
outras duas, com densidade da floresta amazônica mais intensa do que a fronteira peruana,
assim mesmo, de uma fronteira considerada importante pelos impérios ibéricos, sobretudo
248
Uma exceção: Romyr Conde Garcia, Mato Grosso (1800-1840): crise e estagnação do projeto colonial.
São Paulo: FFLCH-USP, 2003 (doutorado). No momento, pesquisas ligadas ao tema vêm sendo
desenvolvidas pela historiadora peruana Scarlett O’Phelan.
249
Ilmar Rohloff de Mattos, “Construtores e herdeiros: a trama dos interesses da construção da unidade
política”. In: Almanack Braziliense N°1, mayo de 2005; Thomas Millington, Colombia’s Military and
Brazil’s Monarchy: Undermining the Republican Foundations of South American Independence. Westport:
Greenwood, 1996; Ron L. Seckinger, The Brazilian Monarchy and the South American Republics 1822-1831:
Diplomacy and State Building. Baton Rouge & London: Louisiana State University Press, 1984.
250
O que vem sendo analisado por Carlos de C. Bastos, Entre o Amazonas e o Marañón: territorialização e
relações sociais na fronteira Maynas/Grão-Pará (c.1780-c.1820). São Paulo: FFLCH/USP, 2011 (qualificação
de doutorado).
166
do ponto de vista militar, e porque tocava também em territórios de outros impérios: dos
manteriam ocupada em 1809 e 1817); além, claro, de estar próxima aos territórios
litorâneos do Caribe, que tinham se constituído no século XVII como uma vasta região de
revolucionárias.
da Costa, recebeu recomendações expressas para zelar pelas fronteiras portuguesas com
Nova Granada e Venezuela; dois anos depois, esse zelo seria reforçado pela política externa
“americanista” da Corte do Rio de Janeiro. Agora, além dos perigos de “contágio” do Brasil
por sua proximidade com um território francês, temia-se aquele decorrente da proximidade
observa-se em 1817. Desde fins daquele ano, Pedro Miguel Ferreira Barreto, comandante
revolucionário hispanoamericano que, como sabemos hoje, era aquele criado em torno de
Angostura e do rio Orinoco por Bolívar e seus partidários – na verdade, muito mais do que
transferência para uma prisão portuguesa de Francisco Orosco, acusado de tentar sublevar a
167
fortaleza espanhola que aquele dirigia; finalmente, solicitou um reforço militar de quinze
Rio Negro e no Pará, pois era sabido que a Corte do Rio de Janeiro mantinha uma política
depois, Barreto receberia um comunicado direto de José Antonio Páez, sabidamente um dos
principais generais revolucionários da Venezuela, de mesmo tom. 253 Teve início, então,
uma ativa correspondência de parte a parte254, bem como uma troca de jornais, e que
“tratado de amizade” entre os dois povos, assegurando boas relações entre ambos na
251
Os pedidos de barco e pólvora foram feitos em duas cartas separadas de mesma data: San Carlos de Rio
Negro, 13/11/1817 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.20-21 e p.17-18, respectivamente). Só é conhecida a
recusa, por parte de Barreto, da pólvora: Marabitanas, 16/11/1817 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.18).
252
Hipólito Cuevas a Barreto, San Fernando de Atabapo, 21/12/1817 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.39).
A resposta de Barreto é de 10/01/1818 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.46-47).
253
Páez a Barreto, Isla de Achaguas, 18/01/1818 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.41-42).
254
Barreto respondeu a Páez (Marabitanas, 07/02/1818. A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.42-43) afirmando
sua disposição em libertar Orosco mas pedindo um tom cortês para a mesma, o que seria logo foi feito por
Hipólito Cuevas. Com as novas respostas de Barreto e de Páez (22/07/1818) ficou de vez entabulada a
correspondência (Cuevas a Barreto, Caribene, 07/02/1818. A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.47; Barreto a
Cuevas, Marabitanas, 04/03/1818. A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.47-49; Barreto a Páez, Marabitanas,
26/09/1818.A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.53).
168
fronteira. Por isso, o comandante português seria julgado pelas autoridades do Pará,
pelo menos sete espanhóis fugiram das forças da revolução, logrando asilo na capital do
Rio Negro, Lugar da Barra.256 Deles, diria o então governador daquela capitania que “a
linguagem destes homens é Realista, ainda mesmo entre o Vulgo. Ainda que queiram ser
traidores ou Espiões não podem. Estão prontos a jurar fidelidade às Leis de Nosso
definitiva da banda oriental (no Rio da Prata), ao Brasil, que em troca entregaria à Espanha
Amazonas, ficando a navegação deste rio comum a ambas as nações” 258. Naquele mesmo
ano, outro importante jornal da época, o bolivariano Correo del Orinoco, publicou
que o que ocorria também naquela fronteira amazônica do norte do Brasil criava uma
255
Pará, 03/09/1819 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.79).
256
Sobre os quatro, ver seus depoimentos em Reis, cit., p.69-74. Por Tabatinga chegaram em Lugar da Barra
outros dois: Justo Pastor García, natural de Cádiz, e Paulo Rico, natural da Andaluzia. Sobre eles, dois ofícios
de Paço a Vila Flor, Rio Negro, 31/07/1819 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit., p.77-79). Deve-se lembrar que
os espanhóis das Canárias sofreram durante a guerra de independência da Venezuela uma perseguição
bastante particular, conforme destacou John Lynch,” Spanish America’s Poor Whites: Canarian Immigrants in
Venezuela, 1700-1830”. In: Latin America Between Colony and Nation: Selected Essays. Hampshire:
Palgrave, 2001, p.58-73.
257
Vitório da Costa a Vila Flor, Lugar da Barra do Rio Negro, 30/07/1818 (A. F. Reis, “O Grão Pará...”, cit.,
p.43-46).
258
CB v.XXIII, n.135, 08/1819.
259
Tema analisado por Ana Cláudia Fernandes, Revolução em pauta..., cit.
169
articulação entre os mundos luso e hispanoamericano que repercutia fortemente na
nacionais, suficiente, a nosso ver, para confinar a tradicional concepção do Brasil como
suposto “herdeiro” das fronteiras coloniais, como um Estado a “manter” a integridade dos
avanço na questão.
contexto independentista americano, ao Rio da Prata, embora esta seja a mais densamente
outras, não apenas porque estas são menos conhecidas: principalmente, porque todas
integram uma mesma unidade que, sendo territorial, é aqui também uma unidade histórica.
Estado e da nação brasileiros, a recíproca deve ser verdadeira. Também o curso das coisas
na América espanhola foi determinado, em alguma medida (essencial?), pelo Brasil. Afinal,
260
João Paulo G. Pimenta, Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo:
Hucitec/Fapesp, 2002, cap.2.
170
as zonas de fronteira são, por excelência, zonas de reciprocidade, onde os lados que as
mão única.
em fronteiras como as aqui tratadas implica um processo de politização que não é restrito à
cena pública típica de centros urbanos das Américas ibéricas de começos do século XIX,
embora esta possa se estender sua influência a regiões mais longínquas 261. Há um processo
de politização das próprias fronteiras, a fazer com que delas surjam elementos
– em sua totalidade. O que implica, por outra parte, que tais fronteiras iam se tornando
menos fronteiriças na medida em que passavam a integrar uma unidade histórica mais
ampla, com a qual se relacionavam a partir de formas políticas e econômicas muitas vezes
artefatos culturais e de ideias que, entre fins do século XVIII e começos do XIX
humana pelo planeta. Esse “mundo ocidental”, esse mundo em politização, esse mundo das
261
Para a politização das sociedades como um atributo muito marcante do século XIX ocidental: Elías J. Palti,
El tempo de la política: el siglo XIX revisitado. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007.
171
importância ao que se observa nas fronteiras ibero-americanas em meio aos processos de
independência referenda essa cautela, pois a contiguidade territorial impõe o seu peso.
Talvez possamos afirmar mais: se tais espaços já eram fronteiriços há tempos, o que
que ali se passa? Certamente, que os contatos de fronteira tendem a se intensificar, movidos
menos fronteiriços – sem deixar de sê-lo por completo - também por estarem mais
espaços e dos tempos nas regiões de fronteira, resultado de sua politização em escala
que a aceleração dos tempos históricos em curso simultâneo e articulado nesse mundo
ocidental, também marcam – e à sua maneira específica – essas regiões de fronteira, então
marcado por uma diminuição de suas distâncias, que em última instância é a própria criação
de uma unidade histórica de ação que não existia antes do século XVIII. Um espaço-tempo
172
Epílogo
americanas das primeiras décadas do século XIX legaram à posteridade grande quantidade
como articulados entre si; também, de como os viam tributários de movimentos anteriores,
mas que ainda se faziam fortemente presentes na América enquanto exemplos históricos de
estruturas políticas e sociais. Nesse contexto e de variadas formas, a história podia ensinar,
não como modelo de repetição previsível, mas como provedora de parâmetros de ação
coletivos. E não era nada difícil identificar que o que ocorria em uma parte da América
ibérica não poderia encontrar correspondência direta em outra, mas similitude de situações
Não é nosso propósito esboçar um panorama desse tipo de percepção coeva das
autores políticos da época, de visões bastante largas. Recorreremos a apenas uma dessas
los pueblos de Colómbia”, de autoria de Francisco Antonio Zea, lido por ocasião do
173
união política, e a seus respectivos concidadãos a sustentarem a recém-criada República da
“Colombia ocupa el centro del nuevo continente con grandes e numerosos puertos
en uno y otro océano – rodeada por un lado de todas las Antillas, y por el otro
igualmente distante de Chile que de México – cruzada toda ella por caudalosos ríos,
encadenan unos con otros, y extenderán un día la navegación interior desde las
costas opuestas hasta el centro de la República, y aun los nuevos Estados del sur,
desde Guayana hasta el Perú, desde Quito y Cundinamarca hasta el Brasil, y tal vez
genio de la libertad!”262
262
Francisco Antonio Zea, “Manifiesto a los pueblos de Colombia”, 1820. In: José Luis Romero & Luis
Alberto Romero (dirs.), Pensamiento político de la emancipación (1790-1825). Caracas: Ayacucho, 1977,
v.2, p.130. Sobre Zea: Diana Soto Arango, Francisco Antonio Zea. Un criollo ilustrado. Madrid: Doce Calles,
2000.
174
Aqui, Zea formula uma percepção que bem sintetiza várias ideias típicas da época:
suas respectivas soberanias; Estados e nações seriam legítimos, pois nasciam supostamente
feições geográficas que, desse modo, se tornavam imediatamente políticas (no que se
eventos responsáveis pelos adventos pontuais de tais Estados nacionais se articulariam com
um contexto mais amplo, um movimento geral, irresistível e que ademais impunha o pronto
velhas, americanas ou europeias. Tudo plasmado pela ideia de liberdade, associada com o
históricas que pudessem “ensinar” a Colômbia a construir uma alternativa de futuro ainda
fortemente prático, mas embasado em elementos históricos bastante concretos, os quais nós
263
George Lomné, “América - Colombia”. In: Javier Fernández Sebastián (dir.), Diccionario político y social
del mundo iberoamericano. Madrid: Fundación Carolina/Sociedad Estatal de Conmemoraciones
Culturales/Centro de Estudios Políticos y Consttucionales, 2009, p.101-115.
264
José Carlos Chiaramonte, “La dimensión atlántica e hispano-americana de la Revolución de Mayo”. In:
Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr, Emilio Ravignani n.33, 3ª. serie, 2º. semestre de
2010, p.13-19. Este trabalho motivou três comentários (além do nosso), publicados no mesmo volume:
Alfredo Ávila, “Tradiciones atlánticas, tradiciones hispánicas”, p.20-23; Ana Frega, “Comentarios a ‘La
175
problema da abrangência espacial (e, portanto, dos fundamentos lógicos) das
Alguns dos marcos referenciais de tal discussão parecem bem definidos, sendo há
décadas bem trabalhados pela historiografia, por vezes criticados, é bem verdade, mas em
geral bastante referendados pela mesma265. Propomos, agora, apenas uma questão: se as
independências (seja no seu conjunto, seja em cada um de seus “casos”) devem ser
o quão ampla essa perspectiva deve ser), como avançar para além de uma assertiva que,
repetida à exaustão por tanta gente nas últimas três, talvez quatro décadas, tem se mostrado,
Valorizemos duas maneiras profícuas de tratar a questão, mas que não parecem
suficientes para resolver o problema de modo satisfatório. Claro, comparações podem ser
176
mente características básicas das grandes unidades políticas imperiais que, de muitas e
reconfiguração dessas mesmas unidades pelos novos Estados nacionais americanos267. São
dois caminhos importantes, e que a despeito de muitos esforços (dentre os quais nos cabe
citar novamente os empreendidos por José Carlos Chiaramonte), não foram ainda
suficientemente tratados pelos estudiosos da matéria. No entanto, cremos que algo tão
importante quanto estas duas possibilidades foi ainda menos considerado até o momento.
independências, em espaços e tempos variados, e que não apenas integraram uma mesma
conjuntura. Integraram, isto sim, uma mesma unidade histórica de média duração, e que
em nosso entender só pode ser tratada em uma concepção sistêmica. O que implica que tais
Americas North and South”. In: A. McFarlane & E. Posada-Carbó (eds.), Independence and Revolution in
Spanish America: perspectives and problems. London: Institute of Latin American Studies, 1999; Federica
Morelli, “El trienio republicano italiano y las revoluciones hispanoamericanas: algunas reflexiones en torno al
concepto de ‘revolución pasiva’. In: María Teresa Calderón & Clément Thibaud (coord.), Las revoluciones en
el mundo atlántico. Bogotá: Taurus, 2006, p.81-99; José Carlos Chiaramonte, “La comparación de las
independencias íbero y anglo americanas y el caso rioplatense”. In: Calderón & Thibaud, Las
revoluciones...,cit., p.121-141; Anthony McFarlane, “Independências americanas na era das revoluções:
conexões, contextos, comparações”. In: Jurandir Malerba (org.), A Independência brasileira: novas
dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.387-417; Marco Antônio Pamplona, “Considerações e
reflexões para uma história comparada”. In: Almanack Braziliense n.4, noviembre/2006; e Guillermo
Palacios, “Brasil, 1808: una re-invención imperial en los trópicos”. En: Ávila & Pérez (comp.), Las
experiencias…, cit.
267
Tulio Halperin Donghi, Reforma y disolución de los imperios ibéricos, 1750-1850. Madrid: Alianza, 1985;
José Carlos Chiaramonte, “La formación de los Estados nacionales en Iberoamérica”. In: Boletin del Instituto
de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani 3ª.serie, 1º.sem./1997; Jeremy Adelman,
Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic. Princeton: Princeton University Press, 2006; e Stefan
Rinke, Las revoluciones en América latina: las vías a la independencia, 1760-1830. México, D.F.: El Colegio
de México, 2011.
177
estabelecendo pontos de encontro e de determinações recíprocas; seja estabelecendo suas
realizados pelos historiadores das independências de toda parte, em uma tarefa que implica
críticas desde há muito realizadas também em toda parte frutificaram ainda pouco em
reciprocamente? Creio que a resposta a tal pergunta – que, repito, se reporta ao problema
das mediações - estaria na proporção inversa do quanto seus historiadores conseguiram, até
época que queremos compreender, como Francisco Antonio Zea, talvez tenham se
268
José Ribeiro Jr., “O Brasil monárquico em face das repúblicas americanas”. In: Carlos G. Mota (org.),
Brasil em perspectiva. Rio de Janeiro: Bertrand, 1968, p.146-161; Ron L. Seckinger, The Brazilian Monarchy
and the South American Republics 1822-1831: Diplomacy and State Building. Baton Rouge & London:
Louisiana State University Press, 1984; Thomas Millington, Colombia’s Military and Brazil’s Monarchy:
Undermining the Republican Foundations of South American Independence. Westport: Greenwood, 1996;
João Paulo G. Pimenta, Brasil y las independencias de Hispanoamérica. Castelló: Publicacions de la
Universitat Jaume I, 2006; Márcia Berbel & Rafael Marquese, “La esclavitud en las experiencias
constitucionales ibéricas, 1810-1824”. In: Ivana Frasquet (coord.), Bastillas, cetros y blasones: la
independencia en Iberoamérica. Madrid: MAPFRE, 2006, p.347-374; e Rafael Marquese, “1808 e o impacto
do Brasil na construção do escravismo cubano”. In: Revista USP n.79. 2º. sem./2008.
269
Veja-se: Manuel Chust & José Antonio Serrano (eds.), Debates sobre las independencias
iberoamericanas. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2007. Para uma crítica desta obra e de algumas
de suas proposições: Elías Palti, “Revisión y revolución, rupturas y continuidades en la historia y en la
historiografía”. In: Historia Mexicana, v.58, n.3, 2009.
178
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