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RESUMO
As deformidades axiais dos membros inferiores constituem um dos principais motivos de consulta na área de Ortopedia Infan-
til. Esta situação deve-se, por um lado, ao facto de haver uma grande percentagem de crianças (cerca de 20%) que apresentam
uma deformidade fisiológica durante o desenvolvimento e, por outro, à «tradição» existente, segundo a qual estes desvios ne-
cessitam de um tratamento, usualmente por calçado ortopédico.
Torna-se, por isso, imperioso destrinçar o fisiológico do patológico, diferenciar as diferentes etiologias e corrigi-las precoce-
mente medicamente e, ainda, determinar quando uma deformidade é passível de correcção espontânea ou quando exige uma
terapêutica cirúrgica.
B) Geno valgo
Idiopático: é mais frequente em adolescentes; coexis-
te, geralmente, com dor anterior e interna do joelho, as-
sociada a uma marcha com necessidade de um joelho
«contornar» o outro (marcha circundante) e, por vezes,
com instabilidade patelo-femoral.
Trata-se de uma situação habitualmente progressi-
Figura 1. Evolução do eixo mecânico dos membros inferiores va, que não corrige espontaneamente e que requer
durante o crescimento
eventual tratamento cirúrgico.
Secundário: é mais comum dos 3 aos 10 anos e as
versão dos colos do fémur. Nos dois primeiros anos, causas mais frequentemente associadas são:
fruto da acção muscular, estas deformidades vão cor- • Doenças metabólicas: raquitismo
rigindo espontaneamente, ajudadas pelo hiper-cres- • Doenças genéticas: displasias ósseas, Síndroma de
cimento do côndilo femoral interno, o que acontece Down, neurofibromatose, Síndroma de Marfan
cerca dos 2 anos de idade. • Doenças reumatológicas: ex. artrite inflamatória
É, por isso, frequente observar um varismo entre o • Traumatismos: ex. fractura proximal da tíbia*
1º e 2º ano de vida e um valgismo entre o 2º e 6º ano de • Infecções: poliomielite
vida conforme o quadro anexo (Figura 1). É uma situa- • Outras causas: ex. hemofilia
ção geralmente assintomática, simétrica, benigna, de
resolução espontânea, que não precisa de tratamento. SEMIOLOGIA CLÍNICA
• Não fisiológico: resulta de alterações biomecânicas Na avaliação dos desvios de eixo, existem dados que se
mantidas e progressivamente agravadas, que con- devem particularmente evidenciar:
duzem a um desequilíbrio das forças exercidas a ní-
vel do joelho, com sobrecarga, seja do compartimen- História clínica:
to interno (varo), seja do externo (valgo). • Motivo da consulta, história natural das queixas/
/deformidades, início das queixas/deformidades e
A) Geno varo sua progressão.
Idiopático: observam-se casos de geno varo persisten- Refira-se que os desvios de eixo são, habitualmente,
te após o 2º ano de vida, com angulação significativa, assintomáticos, sendo de salientar que as deformida-
mas que corrigem espontaneamente após 1-2 anos de des assimétricas devem ser sempre valorizadas, pois
evolução. Nestes casos as epífises são radiologicamen- traduzem a existência de patologia subjacente. Do mes-
te normais. mo modo, também a progressão de um desvio deve ser
Secundário é mais frequente dos 3 aos 10 anos e com sempre alvo de atenção: um varismo que progride de-
causas semelhantes às do geno valgo secundário, mas pois dos 2 anos não é, com certeza, fisiológico, o mes-
com alterações biomecânicas que afectam preponde- mo se passando com um valgismo que progride depois
rantemente o compartimento interno do joelho. Pode dos 4 anos.
ser causado por:
Doenças de desenvolvimento, das quais a mais fre- * Caso particular do geno valgo pós-traumático: fractura da metáfise proximal da
quente é a Doença de Blount tíbia com ou sem fractura do peróneo ("fractura de Cozen"); neste caso terá um tra-
tamento com gesso cruro-podálico em ligeiro varo do joelho; a máxima deformi-
• Doenças metabólicas: raquitismo dade em geno valgo será evidente depois de um ano e a resolução, espontânea, pode
• Doenças genéticas: displasias ósseas demorar vários anos, sendo controversa a necessidade de cirurgia.2
• Antecedentes pessoais: dieta, doenças prévias, ante- • Rotação externa da tíbia compensada com o geno
cedentes traumáticos valgo
• Antecedentes familiares: factor hereditário (Nota: o geno valgo patológico não corrige com as ró-
tulas ao zénite)
Exame objectivo: A deformidade é avaliada pela distância inter-maleo-
Um exame clínico sucinto informa acerca do morfóti- lar (DIM – o valor normal é inferior a 2 cm), quando os
po da criança: o eixo anatómico de carga do membro joelhos estão em contacto. Pode ser sobre-avaliada em
inferior passa, normalmente, pelas espinhas das tíbias; indivíduos obesos com coxas volumosas, em que os
no caso de um joelho valgo, passa por fora e, num joe- côndilos femorais não se conseguem encostar (nestes
lho varo, por dentro.3 casos, quando uma indicação cirúrgica é ponderada, a
A observação deve ser efectuada com as rótulas ao avaliação deve ser radiológica).5
zénite e uma rotação dos pés para pôr a rótula ao zé-
nite. Factores associados a cada tipo de desvio
Devem, ainda, valorizar-se os seguintes dados: A) Geno varo
• Peso e altura, pois podem agravar as condições me- Habitualmente, crianças com cerca de 2-3 anos e com:
cânicas do eixo de carga • Raquitismo
• Deformidade localizada/generalizada • Doença de Blount: associado ao início precoce da
• Dismetrias dos membros inferiores marcha é a obesidade. Neste caso particular conse-
• Hiperlaxidão ligamentar: geno valgo que aumenta gue-se palpar um «bico» ósseo no lado interno, cor-
em carga respondente à proeminência da metáfise proximal
• Joelhos que «roçam na marcha» → Marcha em «cir- da tíbia.
cundução»
• Gonalgia no compartimento medial e anterior em B) Geno valgo
carga Frequentemente, crianças com cerca de 4-6 anos e com:
• Casos mais graves: luxação da rótula e fracturas os- • Baixa estatura
teo-condrais • Traumatismo prévio
• Avaliação dos desalinhamentos rotacionais dos • História de infecção
membros inferiores: • Doença metabólica
• Aumento da anteversão femoral • Assimetria importante, sugerindo situação patoló-
• Rotação tibial interna (pseudo geno valgo) gica
• Pé plano valgo
imagiológicos:
• RX coxo-femorais AP+P (se o RX extra-longo detec-
tar anomalias da fise femoral proximal)
• RX do punho/mão em AP – lado não dominante, para
determinação da idade óssea
• Outras incidências especiais
• Tomografia axial computorizada (TAC), ressonância
magnética nuclear (RMN)
B) Exames laboratoriais
Perante uma deformidade generalizada, tem indicação
o pedido de exames laboratoriais, em especial o estu-
Figura 4. Eixo mecânico do do metabolismo fosfo-cálcico, para rastreio de uma
doença metabólica que possa estar subjacente (p.e., o
raquitismo); nessas situações, o doente deve, também,
EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO ser referenciado para uma consulta de genética e endo-
A) Imagiologia crinologia.
O diagnóstico de uma deformidade patológica deve ser
imagiológico. CLASSIFICAÇÃO
Os exames a pedir serão: A) Geno varo
• Radiografia (RX) extra-longo em carga dos membros Classificação de Langenskiöld da doença de Blount em
inferiores 6 graus. Trata-se de uma classificação radiográfica que
• RX dos joelhos nos 2 planos (antero posterior (AP) + nos indica o prognóstico. A partir do grau III existem re-
perfil, para definição de eventuais alterações locais) percussões futuras em termos de crescimento,6 pelo
Poderão ser analisados: que esta doença obriga a um tratamento precoce.
• 1. O eixo mecânico (divide o joelho em 2 partes iguais)
• 2. O ângulo femoro-tibial B) Geno valgo: distância intermaleolar normal < 2 cm
• 3. Outras medições: GV LEVE = 2-5 cm
• Ângulo femoral lateral distal (N=94º, valgo=6º) MODERADO= 5-9 cm
• Ângulo proximal medial tibial (N=3º Varo) GRAVE > 9 cm
Acessoriamente, se houver suspeita de outras pato-
logias associadas, poderão ser pedidos outros exames DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Geno valgo/varo
• Fisiológico
Valores normais:
• Ângulo femoro-tibial
N= 6º 8º
– deitado (rótula centrada)
– em carga
• DIM em carga
N <2 cm
– Deitado (rótula centrada)
– Em carga
Figura 5. Valores referência (DIM e ângulo femoro-tibial) Figura 6. Classificação de Langenskiöld da Doença de Blount
• Displasias esqueléticas (condrodisplasia metafisá- • Geno varo não fisiológico: o tratamento é função da
ria, displasia espondilo-epifisária, displasia epifisá- gravidade e/ou da evolução clínica:
ria múltipla, acondroplasia) – Doença de Blount: cirurgia a partir do grau III da
• Doenças metabólicas (osteodistrofia renal, raquitis- doença
mo resistente à vitamina D) • Geno valgo não fisiológico: tratamento em função
• Pós-traumático da gravidade e/ou da evolução clínica:
• Pós-infeccioso – Geno valgo idiopático:
• Displasia fibro-cartilagínea focal – Se sintomático
– Alterações da marcha
Geno varo – Dificuldade na corrida
• Doença de Blount – Gonalgia
– Mau alinhamento patelar
ATITUDE/PROCEDIMENTOS DO MÉDICO – Instabilidade ligamentar
DE FAMÍLIA/PEDIATRA – Preocupação com o aspecto estético
A primeira noção a ter em conta é que as deformidades • Geno valgo secundário: a necessidade de tratamen-
axiais dos membros não se tratam com sapatos correcti- to é frequente
vos, vulgarmente chamados ortopédicos. Há 20 anos atrás,
era comum receitar as ortóteses tipo «talas de sereia» para Tipos de tratamento
correcção destas alterações. Hoje em dia, é difícil conven- A) Conservador
cer uma criança de 8 anos ou uma adolescente a «dormir B) Cirúrgico
de pernas atadas». Por isso, o princípio básico do trata-
mento destas deformidades é a correcção dos factores A) Tratamento Conservador
etiológicos que possam estar subjacentes e, perante a fa- • Isolado
lência da terapêutica conservadora, a cirurgia. – Tratamento dos estados carenciais: ex. défice die-
O geno varo persistente após os 2 anos de idade é tético – raquitismo
uma indicação para o envio à consulta de Ortopedia, – Ortóteses
pois uma deformidade evoluída pode ter repercussões – Fisioterapia
graves na idade adulta. • Associado a tratamento cirúrgico
Quanto ao geno valgo, é uma patologia frequente e – Tratamento de raquitismos não carenciais: altera-
benigna, mas deve ser enviada ao especialista quando ções metabólicas no raquitismo hipofosfatémico
se verifica a presença de: vitamina D resistente (de difícil correcção)
• deformidades múltiplas associadas ao esqueleto – Bifosfonatos (osteogénese imperfeita)
• deformidade progressiva a partir dos 4 anos
• geno valgo grave (mais de 9 cm de distância inter- B) Tratamento Cirúrgico
maleolar) • Hemiepifisiodese temporária: paragem provisória
• geno valgo sintomático do crescimento de um dos lados da cartilagem de
• crianças entre os 6-8 anos com geno valgo sem reso- crescimento (interna ou externa) – cirurgia de mo-
lução espontânea delagem do crescimento ósseo através de grampos
• assimetria ou placas/parafusos7
• Hemiepifisiodese definitiva – paragem definitiva do
PERSPECTIVA DO PLANO TERAPÊUTICO DO crescimento ósseo por brocagem percutânea da car-
CIRURGIÃO ORTOPÉDICO tilagem de crescimento ou cirurgia invasiva
A orientação terapêutica tem indicações em função do • Osteotomia correctiva da deformidade
tipo de geno valgo ou varo:
• Deformidades fisiológicas: não carecem de trata- Discussão em relação às opções cirúrgicas:
mento 1) Localização dos grampos /Placas
ABSTRACT