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I – Introdução
Ralph Keyes descreve como sendo uma das marcas gerais da era da pós-verdade
a naturalização da mentira. “Vivemos em uma era da pós-verdade. A pós-veracidade (...)
permite-nos dissimularmos sem nos considerarmos desonestos.” (Keyes, 2018, p. 20).
Além da naturalização do ato de mentir, uma das marcas dos tempos que vivemos é o
descaso para com a verdade. Em outras palavras: a era da pós-verdade é marcada pela
naturalização de um genuíno desinteresse pela verdade, uma falta de preocupação sobre
se aquilo que dizemos e acreditamos tem alguma base na realidade ou se é
adequadamente apoiado pelas evidências disponíveis. Não se trata apenas de a mentira
estar se tornado aceitável – trata-se sobretudo de a verdade estar deixando de gozar de
qualquer privilégio em relação à mentira. A verdade está deixando de ser considerada
superior à mentira, ou mesmo importante.
Uma das formas como esse descaso se manifesta é através de nosso
comportamento relativamente a investigações. Investigações são tentativas de
“descobrir as coisas, alargar o nosso conhecimento levando a cabo procedimentos que
visam responder a questões” (Hookway, 1994, pp. 211). Investigar é uma atividade e, tal
como qualquer outra atividade humana, é algo que pode ser bem feito ou mal feito. Para
muitos autores, a qualidade de uma investigação é, ao menos em parte, uma função das
atitudes do agente – Cassam (2016), por exemplo, atribui a qualidade de uma
investigação aos traços de caráter do investigador, isto é, àquelas suas características
duradouras que, manifestas em suas condutas, norteiam e balizam a tarefa investigativa.
Um investigador cujas atitudes permitem ou favorecem a realização de uma
investigação efetiva e responsável constitui-se como um investigador virtuoso. Um
investigador não-virtuoso (ou portador de vícios epistêmicos), por sua vez, é aquele
cujas atitudes impedem ou dificultam a realização de uma investigação efetiva e
responsável. Podemos dizer, sem maiores problemas, que investigações efetivas e
responsáveis saíram de moda na era da pós-verdade. Isso quer dizer que não se trata
somente de o vício intelectual ter se disseminado e elas estarem sendo mal-feitas – trata-
se sobretudo de elas não estarem sendo feitas (quando deveriam estar).
Uma das hipóteses que explicam como e porque investigações acabam não
sendo feitas quando deveriam ser é uma espécie de falta de força de vontade para (ou
falta de interesse efetivo de) descobrir a verdade. Ou seja, é a prevalência de uma forma
de akrasia. Nas últimas décadas têm-se discutido bastante sobre certa conduta
epistêmica que pudesse ser chamada com justiça de akrasia intelectual. Conquanto a
variante prática do fenômeno da akrasia venha intrigando pensadores desde a
antiguidade, a variante intelectual não recebeu atenção especial até muito recentemente,
só tendo começado a ser discutida nos anos finais do século XX. Simplificadamente,
akrasia intelectual seria o análogo da akrasia prática no âmbito epistêmico: enquanto a
akrasia prática é a “fraqueza de vontade” que impede um sujeito de fazer aquilo que ele
próprio acredita ser o melhor, a akrasia intelectual seria uma espécie de “fraqueza
intelectual” que impede o sujeito de se portar, numa situação que requer investigações,
da maneira que ele próprio reconhece ser apropriada (ou seja, que o impede de se portar
em conformidade com seu melhor juízo acerca de se e como a investigação deveria ser
conduzida). Na medida em que atitudes intelectualmente akráticas impedem ou
dificultam a realização de investigações efetivas e responsáveis, a akrasia intelectual
parece poder ser dita um vício, no sentido delineado por Cassam.
Não obstante, no livro VII da Ética a Nicômaco Aristóteles (uma das principais
fontes de inspiração das chamadas epistemologias de virtudes e de vícios) famosamente
argumentou que vício e akrasia são coisas diferentes. Segundo ele, vícios pressupõem
que o sujeito tenha i) motivações ruins e ii) uma convicção equivocada acerca do que é
correto. Já a akrasia, embora também pressuponha motivações ruins, não pressupõe que
o sujeito esteja motivado a realizar ações ruins por acreditar que elas sejam boas. Isto é,
enquanto o sujeito portador de vício escolhe realizar ações más porque acredita (embora
falsamente) que elas são boas, o akrático realiza ações más sabendo que elas são más –
ele tem uma concepção correta acerca do que deveria ser feito, mas age em desacordo
com essa concepção por uma questão de falta de força de vontade. Se Aristóteles estiver
certo e vícios e akrasia intelectuais puderem ser analisados segundo a mesma ótica,
então vícios intelectuais são diferentes de akrasia intelectual na medida em que o
sujeito intelectualmente akrático sabe exatamente se e quando uma investigação é
necessária e pertinente, ao passo que o sujeito portador de vício intelectual não sabe.
Meu objetivo nessa comunicação é argumentar que, dado o fenômeno da pós-
verdade, a visão aristotélica de vício e de akrasia não se aplica de maneira perfeita a
casos intelectuais (i.e., casos envolvendo investigações). Embora a distinção qualitativa
traçada por Aristóteles entre vício e akrasia funcione para o âmbito prático, em pelo
menos alguns casos intelectuais ela parece não funcionar, nomeadamente graças ao
descaso para com a verdade característico da pós-verdade. Quer dizer, parece que as
variantes epistêmicas de vícios e de akrasia não são distinguíveis segundo os mesmos
critérios nos casos em que o sujeito epistêmico possui um genuíno desinteresse em
relação à verdade. Assim, vou argumentar que pelo menos em alguns casos de
investigação mal-sucedida devido à akrasia o sujeito akrático é portador de vícios
epistêmicos, sendo esses vícios precisamente aquilo que define a sua fraqueza
intelectual.
II – Desenvolvimento
Se considerarmos o âmbito prático não-intelectual (i.e., o âmbito das ações não
relacionadas à investigação ou à descoberta de verdades), podemos dizer que, do ponto
de vista de Aristóteles, há duas diferenças fundamentais entre vício e akrasia:
(2) vício e akrasia divergem em termos de a ação má ser ou não ser deliberada,
i.e., fruto de uma escolha consciente do sujeito (ela é deliberada no caso do
vício moral, mas não no caso da akrasia).
Além disso, as ações de um indivíduo expressam aquilo com que ele se preocupa
e o que ele valoriza. Um agente portador de vícios valoriza coisas positivamente ruins
(embora acreditando que elas sejam boas), de modo que sua ação expressa valores ruins;
ao passo que o agente akrático valoriza coisas positivamente boas, de modo que sua
ação expressa valores bons, embora fique aquém do que seria requerido para atingi-las
ou materializá-las. Apesar de as ações desses dois tipos de sujeito expressarem valores
distintos, apenas examinando as características da própria ação não temos como saber se
se trata de vício ou de akrasia, porque examinando apenas a própria ação não temos
como saber o que ela expressa – isso é algo que só podemos saber se soubermos como é
para o agente realizar aquela ação, se ele a realiza com a tranquila convicção de que é a
coisa certa a fazer (porque ele acredita que ela é a coisa certa), ou antes com a
consciência aflita de estar fazendo a coisa errada (porque ele sabe que está fazendo a
coisa errada e que sua força de vontade não foi suficiente para fazer a coisa certa). Uma
outra forma de dizer isso é postular que
(3) a menos que aspectos de sua psicologia sejam tornados públicos, somente o
próprio agente akrático tem condições de saber que sua ação é akrática.
O agente portador de vício, ao contrário do akrático, não tem como saber que
sua ação instancia vício porque ele acredita estar fazendo a coisa certa (ou seja, porque
o vício não é consciente).
Heather Batally (2014) ilustra a distinção aristotélica apresentando o caso de
dois sujeitos que realizam a mesma ação: beber uísque no café da manhã. Um desses
sujeitos é portador de um vício ético, o vício da auto-indulgência: ele escolhe beber
uísque no café da manhã, e é motivado a fazê-lo porque acredita que o prazer é um bem
e deve ser obtido sempre que possível, ou então que o prazer é um bem mais importante
do que a saúde, ou do que a sobriedade, por exemplo. A concepção que esse sujeito
possui de o que é uma boa vida é permeada pelo valor que ele atribui ao prazer, e esse
valor, por sua vez, é expresso pela sua ação, de modo que, ao tomar uísque no café da
manhã, ele é “conduzido de acordo com [sua] escolha, pensando que [ela] deve sempre
buscar o prazer presente” (EN,1146b 22-23). Do ponto de vista de Aristóteles, esse
sujeito está, no entanto, objetivamente errado – supervalorizar o prazer em detrimento
da saúde ou da sobriedade é uma concepção equivocada acerca do que é bom, ou
correto. Além disso, esse sujeito não sabe que sua concepção é equivocada: na medida
em que, para ele, o prazer é um bem, beber uísque no café da manhã por puro prazer é
uma coisa boa; e por isso ele escolhe fazê-lo com a maior tranquilidade, sem conflito
interno (não há motivações concorrentes incitando-o a adotar a ação contrária) e sem
arrependimentos. Ele não vê tal comportamento como sendo um vício. Ou, nas palavras
de Aristóteles, “o vício é inconsciente de si mesmo” (EN, 1150b 36).
O outro sujeito, por seu turno (o akrático), bebe uísque no café da manhã sem ter
escolhido fazê-lo. Ele possui uma concepção acerca do que é bom, e sua concepção é
correta: e ele atribui ao prazer um valor apropriado, em vez de superestimá-lo. Graças a
isso, ele acredita que tomar uísque no café da manhã é ruim e deveria ser evitado, mas
não evita porque não consegue evitá-lo, isto é, por uma questão de falta de força de
vontade, ou fraqueza moral. Essa ação, contudo, não é realizada sem conflito, nem sem
angústia: o sujeito tem motivações conflitantes (um desejo racional de não beber uísque
e um desejo, digamos, apetitivo, de bebê-lo) e tem consciência desse conflito; ele sabe
que sua ação de beber uísque contraria sua concepção acerca do que seria a melhor
coisa a fazer, razão pela qual tal ação é acompanhada por certa ansiedade e,
frequentemente, é seguida de remorso.
Será que a distinção aristotélica entte vício e akrasia, que aceitamos ser válida
para o âmbito prático não-intelectual se aplicaria também ao âmbito prático intelectual,
isto é, ao âmbito das ações relacionadas à investigação ou à descoberta de verdades?
Caso afirmativo, vício intelectual e akrasia intelectual se distinguiriam segundo os
seguintes parâmetros:
(1’) vício intelectual e akrasia intelectual diferem quanto ao tipo de concepção
que o sujeito possui acerca do que é epistemicamente adequado (que é
equivocada, no caso do sujeito portador de vício; e reta, no caso do sujeito
akrático);
(3’) a menos que aspectos de sua psicologia sejam tornados públicos, somente o
próprio sujeito intelectualmente akrático tem condições de saber que seu
comportamento epistêmico é akrático.
(1’’) acha que é necessário investigar para saber a verdade, ou seja, possui uma
concepção correta acerca do que é epistemicamente adequado (tal como no caso
da akrasia intelectual);
(2’’) executa uma ação deliberada (i.e., fruto de uma escolha consciente) de não
investigar, tal como no caso do vício, na medida em que não considera
importante saber a verdade, ou não se interessa por isso.
Consequentemente,
III – Conclusão
Se a era da pós-verdade inaugura um problema novo na seara da epistemologia,
ou pelo menos lança uma nova luz sobre um problema antigo, esse problema é o
descaso epistêmico. Em contextos de pós-verdade, marcados pelo descaso epistêmico,
parece que os sujeitos ou ao menos boa parte deles sabem exatamente quando é que
investigações deveriam ser feitas, isto é, sabem quais os tipos de informação que
pressupõem checagem (e que portanto deveriam ser checadas antes de serem aceitas).
Ou seja, eles possuem, à maneira dos sujeitos akráticos, uma concepção correta acerca
do que é epistemicamente adequado. Não obstante, esses mesmos indivíduos
simplesmente não estão interessados na verdade. Eles pensam que a verdade é algo que
não deve ser levado tão a sério, ou que qualquer esforço que precise ser feito com a
finalidade de distinguir as informações verdadeiras das falsas é um esforço grande
demais, que para eles, não vale a pena ser feito. Assim, esses sujeitos, à maneira dos
portadores de vício, não estão preocupados em investigar, mesmo quando fazê-lo seria
adequado (porque investigar seria adequado, em certos contextos, se houvesse
preocupação com a obtenção da verdade. Ausente essa preocupação, a investigação é
esvaziada de sua importância).
Isso pode significar que o fenômeno do descaso epistêmico característico dos
contextos de pós-verdade é um caso limítrofes de akrasia intelectual, ou uma categoria
à parte de fenômeno. Seja como for, parece que a separação clássica entre o que está em
jogo quando um sujeito age sob fraqueza de vontade e o que está em jogo quando um
sujeito age sob efeito de vícios não se aplica sem ruídos a esses casos.
IV- Bibliografia
Aristotle. The Nichomachean Ethics. Trans. F.H. Peters, M.A. 5th ed. London: Kegan
Paul, Trench, Truebner & Co., 1893.
BATTALY, Heather. Varieties of Epistemic Vice. In: Jonathan Matheson and Rico
Vitz (eds.) “The Ethics of Belief” (Oxford University Press, 2014).
________. Epistemic Akrasia and Epistemic Virtue. In: A. Fairweather and L. Zagzebski
(eds.) “Virtue Epistemology: Essays on Epistemic Virtue and Responsibility”. Oxford:
Oxford University Press, 2001, pp. 178-199.