Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Passo Fundo
IFIBE
2010
·sUMÁRIO
Apresentação !9
Prefácio 111
Introdução
ou: contra o escapismo em filosofia !15
Preâmbulo
A pulsação da vida no envoltório do frenesi, ou:
'da diferença entre respiração e estertor !19
Referências bibliográficas 1 1 77
APRESENTAÇÃO
9
ve de inspiração para todos quantos querem fazer da filosofia
uma atividade e uma atitude, mais do que um protocolo.
Os textos reunidos nesta obra fazem com que a emergên
cia dos paradoxos do singular desafie os universalismos para
doxais. Contra posturas que tomam estes últimos por vestais
da unidade e da coerência e aqueles por insignificantes ou des
prezíveis, indica que nem uns e nem outros são aceitáveis. Os
escritos fazem com que a racionalidade não se acomode ao
que a massificação recomenda: o silêncio e o descompromis
so, tanto sobre o singular quanto sobre o universal. Servem de
antídoto ao cinismo que professa a falência de toda crítica e
também fazem uma terapia da crítica que só parece hipocrita
mente crítica, mas que rigorosamente não é.
Por isso, é um convite a desacomodar-se e a fazer da fi
losofia um exercício de construção da reflexão comprometida
com a radicalidade que imerge nas contradições e, acima de
tudo, propõe construir possibilidades que estejam a serviço da
mobilização da pluralidade que abre para que as singularida
des sejam, apareçam e se manifestem.
10
PREFÁCIO
11
ceitualizante, de tal forma que esta nem se perca em alturas
insondáveis, nem se torne rasa e presa fácil de operatividades
estratégicas e instrumentais que nada têm a ver com sua ori
gem e seu sentido.
Conceitos que conhecem sua potência e seus limites me
recem o nome de categorias filosóficas. Uma das mais notáveis,
que recebe muitos nomes, mas que age continuamente como
referência de calibragem do pensamento referido ao que dá o
que pensar filosoficamente, ou seja, ao real - tome este termo
a conotação que se quiser -, é a de Não-idêntico. Ela já provoca
em seu próprio enunciado, com a negatividade intrínseca que
extravasa da palavra que a constitui, sua solidão e in confundi
bilidade. Ela remete, em Adorno, a uma base implícita de sus
tentação de extraordinárias reflexões e cadeias argumentativas
cuja explicitação é, justamente, o conjunto de sua obra.
Todavia, o retorno analítico a essa categoria, por si só,
encontra o limite da própria ideia de análise. Neste sentido, o
contraponto da proliferação de sentidos que uma tal catego
rià pode propiciar, em sua afirmatividade como singularidade,
com a alta literatura - ou seja, a literatura que, uma vez vinda
à luz, sobrevive à corrosão da história e a seus detratores, no
caso, aspectos de Kafka - é condição de extravasamento do
discurso argumentativo para a expressão de linguagem, sem
que o argumento nela se dilua.
O objetivo deste despretensioso opúsculo é, assim, des
de uma determinada situação muito específica que não pode
ser nunca olvidada, pontuar alguns momentos dessa trajetória
contrapontística entre Adorno e Kafka, na interlocução com
algumas obras do escritor tcheco que dizem o que a letra ador- i
12
um conjunto de pequenos ensaios de compreensão do nível de
significação - a que profundidade abissal o levar a sério esta
-
13
INTRODUÇÃO
ou: contra o escapismo em filosofia
15
a própria filosofia, porque adequado à camuflagem: finge-se
que se está pensando profundamente quando, na verdade,
está-se escapando à responsabilidade que o pensamento sig
nifica; finge-se que se está meditando a aspereza· do ainda
-não-pensado quando se está a elucubrar vernizes encobri
dores para aquilo que representa o perigo. Em lugar de deixar
em aberto um espaço para o ainda-não, para o imponderável
que chega do já pensado e obriga o pensamento a reconsi
derar continuamente seu estatuto de validade, esta lógica de
escapismo, astutamente, investe no caminho contrário: satura
o universo intelectual com pretensas significações profundas
e retóricas labirínticas, quando tudo o que quer é, justamente,
evitar as significações comprometedoras que possam assomar
das sombras das profundidades. O pensamento verdadeiro
nunca é inofensivo: abre sempre as portas do inusitado, es
cancara a verdadeira face da hipocrisia, escapa e denuncia a
mediocridade, pois significa o seu reverso. Dadas essas suas
três características, entre muitas outras, não é absolutamente
de se admirar que seja, em regra, sistematicamente afastado,
pelos paladinos do poder, do ambiente no qual se movem os
espíritos inquietos que o procuram em todas as eras e lugares.
Oferece-se, em troca, o banal, a proliferação patológica de jar
gões e imagens, as pretensas cores de um mundo originalmen
te empalidecido pelas contradições nas quais navega, até mes
mo a loucura. Tudo vira objeto de compra e venda; tudo vira
quantidade. Assim, o pensamento, que nasce do choque que a
Diferença lhe significa exatamente no nascedouro do intelecto,
é neutralizado exatamente pela neutralização da Diferença, na
estranha esteira de um paradoxo ardiloso (Cf. Souza, 2000b,
p. 189-208).
São inúmeras as possibilidades de abordar essa espan
tosa metamorfose, e temos, em vários de nossos trabalhos,
tido a pretensão exatamente de expô-la em seus constitutivos
16
variados. 1 O presente conjunto de pequenos ensaios - alguns
retomando e ampliando textos antigos, outros inéditos - que
se constitui em mais uma dessas tentativas, abordando, no
caso presente, aspectos relevantes para a desconstrução deste
Odradek monstruoso que povoa sem tréguas o imaginário co
letivo como fungos espantosamente proliferantes e adaptáveis,
desde a inspiração precípua de um dos pensamentos mais po
tentes da história da filosofia ocidental: o de Theodor Wiesen
grund Adorno, em contraponto com a potência singular de
exposição de exemplos da obra de Franz Kafka. Sua novidade
em relação a outros escritos nossos relativamente aos autores
abordados é o específico entrelaçamento que o presente con
junto de escritos propõe.
O livro tem, então, esta finalidade: mostrar como, a par
tir de Adorno e Kafka, é possível não apenas desentranhar a
amálgama espantosamente complexa que sustenta um pen
samento sem conteúdo crítico, como também expor aqueles
elementos dispersos por muitas instâncias de construção de
linguagem que, justamente, imunizam a crítica contra sua
própria inércia, pela desconfiguração radical do estilo mental
da quimera que significa qualquer promessa de neutralidade
em filosofia como em qualquer arte, literatura ou ciência.
Tal presente intróito traz consigo já uma promessa de
estilo: não se trata de um conjunto de textos necessariamen
te para especialistas, repitamos, mas de um simples convite a
1 Ver, entre outros, nossos livros Totalidade & Desagregação - sobre as fronteiras
,
17
mentes inquietas, inclusive, eventualmente, de especialistas;
assume, portanto, uma dimensão narrativa própria que rom
pe com pretensões didáticas que ignora consciente e frontal
mente limites epistemológicos em nome de uma linguagem, a
qual, parodiando o próprio Adorno, "liberada da maldição da
hipocrisia, possa finalmente repousar no seu objeto".
18
PREÂMBULO
A pulsação da vida no envoltório do frenesi, ou:
da diferença entre respiração e estertor
I. Derrota e loucura2
19
ou de flagrar no inusitado do dia-a-dia anúncios de uma nova
frente de (in)compreensão do atropelar-se dos fatos, prende
-se a um tema, mas a um tema difícil: fixar elementos que per
mitam o desnudamento das aparências da cultura hegemônica
contemporânea. Pois, como diz Daniel Fresnot na contracapa
da obra, "as aparências enganam': e enganam muito. Falar, hoje
em dia, de "racionalidade", "pensamento', "culturà: não trai ne
cessariamente uma nostalgia restauradora de tempos menos
ágeis, ou um conservadorismo saudosista, nem significa por
si só a anti-lucidez de hipotecar a confiança na inteligibilidade
do presente a algum termo démodé; pode significar, antes, um
caminhar em contra-fluxo, contra as expectativas do óbvio e as
sugestões de um colorido espírito de massa.
É isto que faz Finkielkraut nesta sua obra de 1 987, que
mantém toda sua atualidade. Trata da transformação do pen
samento e da cultura em "quinquilharias" (Finkielkraut, 1 988,
p. 1 59 ), mas não com tédio ou de forma a dar a impressão exata
de que flutua sobranceiramente por sobre os fatos: antes objeti
vando-os ao assumir sua visceral equivocidade. Atém-se ao que
é dito - e, desde o dito, tira continuamente conclusões. Mas
não conclusões que convidem o leitor a abandoná-las continu
amente em favor de suas irmãs mais novas. Finkielkraut ( 1988,
p. 1 3 1 - 1 32) diz:
20
Eis aí a cultura da profusão, da modernidade líquida de
Bauman, da intercambiável variedade de super-estimulações:
tudo é estimulante e, de tão estimulante, tudo é igualmente vá
lido; a validez pula de espaço cultural em espaço cultural como
uma ave pula de galho em galho da árvore na floresta, à pro cu
ra de pequenos vermes compensadores para tanto esforço. O
artista, o ator cultural tem, assim, a oportunidade de se enfas
tiar sem se dar conta disso; como em um moderno programa
de computador, tão repleto de recursos que a ninguém é dado
esgotá-lo em suas possibilidades e, não obstante, transmite
uma estranha impressão de racionalidade saturada a quem o
aborda, dá-se um tempo repleto de virtualidades e absoluta
mente vazio de referências que não sejam a impossibilidade
de assumir algo externo como referência. Trata-se, em suma,
de uma excitada dialética da saturação estatuída em ideal de
existência:
21
Uma vez que para eles [os atores pós-modernos, R.T.S.] multicul
tural significa bem-abastecido, não são as culturas enquanto tais
que apreciam, mas sua versão edulcorada, a parte delas que po
dem testar, saborear e descartar após o uso. Consumid�res e não
conservadores das tradições existentes, é o "cliente-rei" que neles
tripudia diante dos obstáculos postos ao reino da diversidade pelos
ideólogos vetustos e rígidos (Finkielkraut, 1988, p. 1 32).
22
(Finkielkraut, 1 988, p. 134). Para quem pode escolher, tudo é
facultativo; e qual poderia ser o sonho da humanidade e de
cada indivíduo, senão se transformar em epicentro da órbita
infinita das escolhas?
23
Pois o significado consiste em deixar de questionar os
sentidos infindos e flutuantes que o significado da preferên
cia particular se atribui, sem que mais nada realmente conte.
Para que esforço pela sobrevivência para aquele a quem é dado,
kafkianamente, viver por inércia? Pois no aburguesamento da
lógica da vida, outra inversão indiferente tem lugar:
24
[ ... ] os homens da cultura combatiam a tirania do pensamento
calculante taxando-o de bobagem, ao passo que sua extensão pós
-moderna não suscita praticamente protestos [ ... ] Pensando no
cinema americano, Hannah Arendt escrevia nos anos cinqüenta:
«Muitos dos grandes autores do passado sobreviveram a séculos
de esquecimento e abandono, mas é questão pendente saber se
serão capazes de sobreviver a uma versão divertida do que têm a
dizer, (Finkielkraut, 1 988, p. 142- 1 43).
25
da cultura, a forma de um exercício soberano de autonomia, e,
assim, o universo do telecomando vem a nós como o melhor dos
mundos possíveis (Finkielkraut, 1 988, p. 147).
* * *
26
tanta abrangência mundial quanto a ideologia da informação
ilimitada. Trata-se de uma conformação particular de existên
cia, um modus vivendi massivamente coletivo que traduz todo
um Zeitgeist, um Espírito do(s) Tempo(s) que se estabelece
como o resultado de um desencanto profundo para com a su
gestão de uma existência apaixonada, desencanto esse alimen
tado - literalmente - por uma cultura da superabundância de
coisas, imagens, cores e estímulos. Ocorre a crença no feérico,
desde que este seja suficientemente moderado para não em
bargar os apetites nem correr o improvável risco de acutilar
alguma consciência ainda não suficientemente amortecida.
É o contraponto existencial daquilo que chamamos em ou
tras oportunidades uma cultura de "meios-tons intelectuais"
(Souza, 1 996, p. 1 0 1 ) ; embora essencialmente violenta, estabe
lece continuamente uma situação de vácuo entre sua realidade
profunda e o jogo de imagens a que se entrega continuamente,
sugerindo assim a inexistência de tensões ou conflitos ou, pelo
menos, aureolando-os com a eterna ameaça de transgressão
de margens de razoabilidade muito claras, embora não explí
citas. É este vácuo o habitat próprio de grandes massas bem
alimentadas da sociedade pós-industrial e de camadas privile
giadas de países pobres. É este, também, o alvo da pena privi
legiada de Enzensberger.
O termo ((nós': despido de impulsos teleológicos, traduz
antes de tudo um statu quo: "Quando digo 'nós', estou me re
ferindo à nossa civilização, ou seja, à 'sociedade desenvolvida,
pós-industrial e de informação': nomes curiosos que demos
a nós mesmos. Eles revelam menos as limitações dos termos
que as tortuosas frases do embaraço" (Enzensberger, 1 995, p.
142) - pois a ninguém é dado, na amálgama inqiferenciada em
que se condensam os instáveis blocos sociais contemporâneos,
distinguir com clareza as individualidades ativas em meio às
infinitas sobreposições de aparências e imagens virtualizadas.
Neste contexto, as opiniões sociais e políticas assumem a con
dição de inofensividade - ((Como já disse o poeta, diquerda e
27
esreita tlocam-se com faciridade. Isto é válido também nesse
contexto. Por exemplo, qual é a situação em relação ao ho
mem das massas?" (Enzensberger, 1995, p. 144)4 essa estra -
rança que seria digna de algo melhor, (continuaram) ano após ano
proclamando a morte do indivíduo ou, para usar o jargão atual,
a ''morte do sujeito" [como se a expressão ideológica de limites
muito claros do agir viesse de ((lugar nenhum': e não de alguém ou
de grupos que os dizem com uma clareza mais do que suficiente
para ser entendida- R.T.S.]. Com o tempo, isso resultou numa
estranha concordância por parte dos teóricos de direita e de es
querda, com uma única diferença: os tradicionalistas se especiali
zaram em mugir lamentações, ao passo que os reformadores cul
tivavam um quê de zombaria que foi crescendo até se transformar
num urro de triunfo [ ... ] Enquanto os marxistas ortodoxos ficaram
decepcionados com as massas [ ... ] os pós-estruturalistas e outros
pós-funcionários da teoria davam a impressão de sentirem uma
enorme satisfação com o fato de o importuno sujeito finalmen
te ter sumido. A capitulação deve ser um verdadeiro prazer, mas
somente para aquele que se considera seu profeta (Enzensberger,
1995, p. 144-145).
28
mão visível do mágico que executa sua magia, não servem senão
pára distrair a atenção de seu movimento interno real. A dis
cussão acaba por se confundir com seu conteúdo; o que pode
ser mais estéril e maçante - ou masoquisticamente gratificante
- do que bebericar intelectualmente conceitos insossos e com
eles elucubrar teorias mirabolantes, cuja funcionalidade con
siste em, ardilosamente, ofuscar o concreto? E não obstante, a
isso se dedicam compulsivamente os apóstolos da indiferença
- os funcionários das teorias da "razoabilidade, -, na esperan
ça que a rotação de seus cérebros possa acabar emprestando
realidade à fugacidade das belas ilusões. Talvez em nenhum
outro momento da história do pensamento do ocidente, sua
forma pensante e seu conteúdo ilusório tenham se acoplado de
maneira tão cabal: é improvável que se possa flagrar, em algum
período detectável da história, uma tal horda de ideólogos tra
vestidos de intelectuais, revestindo sua racionalidade com as co
res hegemônicas oferecidas a preços modestos em cada esquina.
Mas eis que aparece o inusitado sob a forma da verdadei
ra essência das massas, aqui intercambiável com a verdadeira
essência do indiferentismo, expresso sob a forma de uma me
lancólica falência da teorização:
29
e a aparência [ .. ]" (Enzensberger, 1995, p. 149). O caso agudo
.
Não importa quantos milhões sejam gastos- está cada vez mais
difícil encontrar alguém para desempenhar o papel principal de
gênio. No seu lugar surge a estrela, o profissional, ou seja, aquele
que consegue fornecer mercadorias medíocres em grande es
cala. Andy Warhol tornou-se o ícone desse modo de produção
(Enzensberger, 1 995, p. 1 60).
30
Em uma tal massividade, a ninguém é permitido inquie
tar-se em sã consciência: apenas a consciência insana como -
31
promulgações da inelutável neutralidade, nada é realmente
neutro. A sociedade supermoderna e suas caricaturas terceiro
-mundistas conservam em si, como seu segredo mais reserva
do, exatamente a mesma essência dos períodos mais·obscuros
da história. A mediocridade, a infinita disseminação, a massa
(Cf. Souza, 201 0), a multiplicação aparente do vazio, a trans
formação contínua, maquínica, de qualidade em quantidade,
não é mais do que a ardilosa e supremamente inteligente ex
pressão que a hegemonia da violência naturalizada - a Tota
lidade - encontrou para preservar seu verdadeiro núcleo de
olhares indiscretos.
32
truindo continuamente o arcabouço teórico-cognitivo que a
faz perdurar e que se confunde com esta própria perduração.
É de se notar então, previamente, que uma tal natura
lização da violência pode se constituir, a rigor, apenas atra
vés de um complexo itinerário, a saber: retirando da vida que
constitui a significação dos acontecimentos sua característica
própria de vida, ou seja, domesticando-a em sua espontanei
dade temporal. Pois, por «vida", não se entende em nenhuma
tradição filosófica ou científica algo outro que dinamismo vi
tal. A vida se move, a vida vive - e quando «a vida não vive",
como dizem alguns dos clássicos desse século, é que se chegou
ao momento de contradição máxima - e não uma contradição
dialética, mas paralisada e paralisante: uma espécie de deten
ção do tempo dos acontecimentos, um respiro - ou estertor
- de Odradek.
Dá-se o caso, portanto, de perguntar se o período em que
estamos não é, como tão bem viu e anteviu Kafka, um período de
grave doença da temporalidade (Cf. Souza, 2000a). Naturalmente,
tudo parece dizer em contra essa análise. Nunca se deram tem
pos tão frenéticos como os que ora vivemos, tempos da ace
leração, da virtualidade, do imediatismo, das simultaneidades
que parecem levar a ideia de tempo justamente ao seu limite de
realização. E, não obstante, toda essa procissão imagética pra
ticamente indescritível pode estar sendo permeada, movimen
tada, confundida, exatamente pelo seu contrário; não é abso
lutamente implausível que esta agitação que, por definição,
decorre em superfícies, denuncie o imobilismo pesado e iner
cial da movimentação espontânea das coisas, tal como, num
dia sem vento, seria a imagem de árvores balançando não por
efeito do vento, mas por algum mecanismo que agitasse seus
troncos. O excesso de movimentação, longe de ser testemunho
de exuberância, trai justamente o abismo de sua ausência. O
que aparenta ser dinamismo não passa de frenetismo obses
sivo e circular, de irrelevância vital pelo sufocamento daquilo
que faz com que se possa chamar de vivo ao que está vivo, con
fundindo a simples respiração com o estertor do moribundo.
33
Quando proliferam as dinâmicas virtuais que poupam aos que
se veem o incômodo de se encontrarem, é o caso de se per
guntar se a própria ideia de encontro ainda é possível. O que
significa: é a vida possível?
·
34
O UNIVERSO DE REFERÊNCIA
- AGONIA DE UMA ERA?
A COMPOSIÇÃO PROFUNDA
DO SÉCULO XX FILOSÓFICO-CULTURAL:
Aproximações6
Introdução
35
É somente na síntese intensamente auto-reflexiva que uma
determinada visão de conjunto pode-se dar à compreensão
que supera as contingências lábeis, as perspectivas estreitas, as
precariedades acríticas, as racionalidades ardilosas; é somente
pelo imperativo da responsabilidade inaudita da linguagem
que a irresponsabilidade da disseminação acrítica de pensa
mentos que cintilam com a duração de fogos de artifício pode
ser depurada e decantada em sua gestação de sentidos canse
quentes em oposição à lógica do desespero.
Uma tal tarefa sintética supõe, por sua vez, um imenso
esforço integrativo. A compreensão do fato de que, muitas ve
zes, não é no corpo da filosofia explícita que se pode dar sua
' "hermenêuticà: mas no seu contexto subjacente, no seu "mun
do" particular, na sua "consciêncià' contemporânea para além
de "escolas'' particulares - ainda que tal pareça evidente a in
telectuais e filósofos da cultura em geral, a compreensão desde
dado não é, de forma alguma, das mais fáceis.
Neste texto, far-se-á o esforço de tentar captar, por detrás
das obviedades explícitas da transmissão filosófica acadêmi
ca em suas diversas escolas, elementos que permitam a per
cepção daquilo que constitui o que se poderia denominar de
alguns dos níveis da composição profunda do século XX - o
século do qual vivemos -, em sua «ancoragem" no passado,
níveis estes imprescindíveis para a compreensão do mundo no
qual não apenas Adorno e Kafka se movem, mas igualmente,
todos nós herdeiros de suas inquietudes.
36
instante em que a raiz estritamente conceptual da linguagem
''gregà' - o Iogas - perde qualquer ingenuidade pragmática e
se torna alvo de atenção detida em termos de organização e
aplicação teórico-procedimental. É evidente que já o discurso
dos poemas cosmológicos contém a pretensão e o núcleo de
enunciados amplos, de juízos de realidade e de verdade - ou
não haveria sentido em escrevê-los - o que se vai sistemati
zar a partir do pensamento tradicionalmente concebido como
clássico. A procura obsessiva, a um tempo proto-metafísica e
já metafísica, pela arché da realidade - exercício de poder do
lagos - corresponde a um aprofundamento abstrativo e a uma
sofisticação crescentes, que culminam gloriosamente na ldeia
platônica e na Metafísica aristotélica.
Ao factum do impulso abstrativo cujos testemunhos nos
chegaram - ou seja, o que é, na tradição, considerado e tratado
como sendo o impulso filosófico por excelência - corresponde
um horizonte de sentido, por assim dizer, que permite imbri
car indelevelmente, já neste estágio, o pensamento e seu con
texto circundante: o respectivo "mundo humano" (no dizer de
W Luipjpen, em Introdução à fenomenologia existencial, pas
sim) em que o pensamento que passa à tradição hegemônica
como genuinamente filosófico é gestado, e isso segundo um
modelo compreensivo aqui apresentado de modo dual.
Em primeiro lugar, está-se a traduzir fielmente a raiz do
modus operandi da reflexão e da linguagem ocidentais. Esta
linguagem e este pensamento são eminentemente, como sa
bemos desde a origem do próprio termo Iogas, classificató
rios, ''especificadores': determinantes - interessados, acima de
tudo, na referência semântica tão unívoca quanto possível e
na máxima precisão da ideia expressa, a qual não se deveria
poder confundir, a rigor, com nenhuma outra. Este modelo de
linguagem (ao qual se poderia opor, por exemplo, um outro,
no qual a abertura e reabertura de camadas de significação
pertence à própria essência da linguagem, antes do que a pre-
37
cisão e a univocidade da interpretação de certa forma "única"
pela sua pretensão de unicidade) é o modelo básico corrente
da filosofia que nos foi legada e recebida como merecendo o
estatuto que seu nome designa, em suas inúmeras variações, e
da ciência que, a certa altura, dela se separa.
E, em segundo lugar - fato menos erudito e mais impor
tante - está-se iniciando a tradução de um determinado impul
so vital do Ocidente, uma potência, algo que habita os tempos
mais remotos da cultura ocidental e que se dissemina crescen
temente ao longo da história do pensamento e da história da
humanidade: a tendência sempre renovada de reduzir o Dife
rente ao Mesmo, intelectualmente ou faticamente expresso.7
Um exemplo é aqui necessário:
Para a cultura grega, aquilo que se veio consagrar na his
tória do pensamento com o nome de Infinito era algo intolerá
vel (Cf. Souza, 2005). O apeíron (literalmente: i-limitado, entre
outras significações que aqui não abordaremos), ao opor-se de
algum modo a uma pretensão de kosmos (literalmente: ordem
e beleza, igualmente entre outras significações que aqui não
abordaremos), aparecia como repugnante ao intelecto, princí
pio de caos e de desordem, fundamento inquietante de inde
terminabilidade. Para um pensamento que iniciava suas pos
tulações maduras, a um tempo deslumbrado com seu poder de
abrangência e com seus sucessivos acoplamentos à realidade,
que amoldava à sua figuração - que conhecia crescentemente - o
apeíron significava, fundamentalmente, e não obstante Anaxi
mandro, a ameaça do desconhecido.
Muitos séculos após, o pensamento moderno afirmará
a infinitude do Universo. 8 O que se está dizendo junto a esta
38
afirmação? Simplesmente, que de alguma forma também o in
telecto é infinito, ou não poderia afirmar a infinitude de algo.9
A distância que medeia entre a aparente timidez original
grega e a ousadia moderna é a tradução do impulso original
do espírito ocidental em processo de trofismo: a redução do
des-conhecido ao conhecido, do diferente que se torna uma
espécie entre outras espécies: modelo que, ínsito à origem, cla
ro na Modernidade, aponta para uma determinada direção do
futuro. A História do Ocidente tem consistido, em suas linhas
mais amplas, na história dos processos utilizados para neutra
lizar o poder desagregador do Diferente; e a História da Filo
sofia ocidental tem sido, quase sempre, a maneira de favorecer
e legitimar intelectualmente esta busca da neutralização.10 A
esta busca de neutralização chamamos totalização, e à cons
trução dialética, imanente e com pretensão de auto-compre
ensão e auto-legitimação - em que convergem os resultados
deste esforço de totalização, temos chamado Totalidade. 11
Assim, o não-fracionamento da compreensão do passa
do filosófico do Ocidente permite a percepção de uma linha
de desenvolvimento extremamente clara: a que conduz, em
um paralelismo que supera realmente qualquer distinção aca
dêmica entre teoria e prática, de um impulso original à pre-
9 É muito sugestivo que o mesmo pensamento que afirma com inaudita potência a
infinitude do mundo seja o mesmo que, rememorando "Solamos & Pythagoras':
faça $CU o pensamento famoso do "nada de novo sob o sol" (Cf. Bruno, 1 984, p.
XLVIII, especialmente o autógrafo: ''Quid est quod est? Ipsum quod fuit. Quid est
quod fuit? Ipsum quod est. Nihil sub sole novum").
10 É inviável, nas limitações deste texto, estudar detidamente os argumentos a fa
vor desta tese; temos feito tal em vários de nossos trabalhos, principalmente O
Infinito para além do infinito - Estudo sobre a questão filosófica de Infinito de
Emmanuel Levinas e seu sentido para o pensamento contemporâneo. Porto Alegre:
PUCRS. Dissertação de Mestrado. 1991 e na primeira parte de Wenn das Unen d
liche in die Welt des Subjekts und der Geschichte einfiillt - Ein mctaphiinomenolo
gischer Versuch über das ethische Unendliche bei Emmanuel Levinas. Freiburg i.
B. Tese de Doutorado. 1994.
11 Um trabalho pouco conhecido de Levinas, o verbete da Encyclopédie Universel
le "Totalité et Totalisation" (Paris, l973ss, Vol. XVI, p. 192-194), apresenta este
conceito de forma particularmente aguda.
39
tensão de sua realização em um contexto hegeliano ou nietzs
cheano. Todas as distinções teóricas entre a teoria e a prática
são secundárias ante a originariedade dos fatos determinantes
da história ocidental: o exercício concreto da totalização e
sua correspondente legitimação filosófica. Não se trata de ne
nhum jogo de conceitos, mas do grande jogo da realidade, tal
como determinado pelas ''forças de determinação" maduras
do espírito ocidental, que atingem sua plena potência e·spe
cialmente a partir da modernidade. Afora isto, e com exceções
raras e marcantes, o que se tem na história ocidental, seja em
suas' dimensões factuais, sejam em suas dimensões reflexivas
como história da cultura ou da filosofia, até pelo menos bem
avançado o século XIX, são episódios mais ou menos signifi
cativos para este grande movimento, claramente hegemônico,
de totalização. Este é o passado com o qual a filosofia tem de
conviver, sua história e, de uma ou de outra forma, o peso com
que se terá de ver a filosofia contemporânea nesses séculos XX
e XXI que não são senão herdeiros desse passado e trazem
definitivamente à luz os seus frutos.
12 Entre as inúmeras obras de cunho histórico e de grande interesse sobre este periodo,
encontram-se entre as filosoficamente mais significativas: JANIK, A.; TOULMIN,
S. A Viena de Wittgenstein (1991); GAY, Peter. A cultura de Weimar (em que
pese a precariedade da tradução) (2002); KONDER, Leandro. História do Fas
cismo ( 1 979); SCHORSKE, Carl. Viena .fin-de-siecle - política e cultura ( 1 988);
RICHARD, Lionel (Org.) Berlim, 1919-1 933 - a encarnação extrema da moder
nidade ( 1 993); SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber - a paranóia à luz de
Freud - Kajka - Foucault - Canetti - Benjamin { 1 997), etc.
40
transição se inicia na flexibilização de uma série de parâme
tros culturais, a partir de meados do século XIX.
Na ciência matemática, por exemplo, a geometria euclidia
na, vigente como única durante muitos séculos, perde seu posto
absoluto desde as descobertas de Riemann e Lobatchewski; os
números transfinitos de Cantor a um tempo ampliam e re-pro
blematizam a noção de número. A física acelera seus avanços
que culminarão na superação da teoria atomística clássica pela
física quântica e da ampliação do universo newtoniana pe
las descobertas einsteinianas. Nunca na história, como neste
momento, revoluções científicas (no sentido de Kuhn) se im
bricaram de forma tão densa, a ponto de impedirem a visão
da unidade: apenas o movimento parecia ser visível. Tanto no
macrocosmo galáctico como no microcosmo subatômico as
verdades lógicas da tradição - inclusive de lógicas não-dualistas
- são incisivamente relativizadas, sem esperanças de concilia
ção com o bem-ordenado mundo do passado. Na indefinição
entre onda e partícula estava muito mais do que umá querela
científica parcial: a própria noção de ciência, tal como a tradi
ção a ditava, está também sendo colocada em questão.
O darwinismo questiona implicitamente o posto privi
legiado do sujeito pensante na ordem da evolução - como o
fizeram espacialmente, no início da era moderna, as desco
bertas copernicanas - e, isto, apesar da insuficiência óbvia do
conceito de ciência que celeremente se deslocou para as bases
teóricas do evolucionismo (embora tal tenha obviamente a
ver muito mais com Haeckel ou Spencer do que com Darwin
em sua reconhecida prudência de generalizações).13 Está-se
às voltas, �qui, com a relativização de algumas caras balizas
metafísicas da ocidentalidade, embora, muito provavelmente,
não tanto aquelas que se julgaram então atacadas - como cer
tos dogmas eclesiásticos - mas, sim, a capacidade de transpo-
41
sição intelecto-realidade, ou seja, finalmente, a capacidade de
representação de um mundo, 14 um certo otimismo racionali
zante, que só iria ruir completamente nas cinzas da Segunda
Guerra Mundial.
A psicanálise, por sua vez, relativiza o domínio consciente
dos atos humanos; suas descobertas, em verdade, são por de
mais significativas para permanecerem circunscritas ao modelo
de ciência utilizado por Freud. As sistematizações freudianas,
assim, acabam por contribuir para a própria implosão episte
mológica então em curso. Para além da clínica e das individua
!idades, a própria cultura torna-se passível de um procedimen
to psicanalisante, e não apenas segundo o modelo freudiano.
No domínio das artes, os cânones estéticos mais ou me
nos hegemônicos do passado dão lugar, em um processo lento,
porém constante, à variedade contemporânea de escolas, es
tilos e concepções. Não é por acaso que, na virada do século,
proliferam com tal vitalidade os movimentos que acabam por
colocar em questão a própria noção de arte - e, tanto nas ar
tes plásticas (com o abstracionismo e o cubismo, por exem
pio, mas não somente: também no expressionismo) quanto na
música (com o serialismo, o dodecafonismo, o concretismo
de n1eados deste século e a música aleatória - e até mesmo, a
despeito de Adorno, em certos aspectos do neoclassicismo) e
em outras expressões artísticas, percebe-se a tendência a uma
crescente objetivação das formas e materiais artísticos, uma
autonomia da criação, que faz com que qualquer classificação
soe falsa. Como classificar propriamente a obra de Franz Marc
ou Kirchner, Otto Dix ou Grosz, Munch ou Max Ernst, Klee
ou Kandinski com seus ''pontos" geradores de vida, ou como
enquadrar artificialmente em um universo de sentido pré
-explicativo a Guernica ou as Figuras na praia de Picasso? Da
mesma forma, onde se situa propriamente o pós-romantismo
carregado de Pfizner ou Reger, testemunhas do ocaso de um
mundo, apesar das intenções dos autores? A diluição da tona-
42
lidade - expressão musical do sujeito moderno, que advém
com Palestrina e chega a seu crepúsculo através da arte tão di
ferente entre si de Mahler e Debussy - significa muito mais do
que apenas interessa aos músicos: significa a terminalidade de
todo um universo de sentido. Tal remete, no fundo, à questão
da decadência de cânones e padrões: à decadência da socieda
de, no seio da qual, desde há algum tempo de forma aguda,
latejava a degradação. Na literatura, o exemplo de Kafka é sufi
ciente para a percepção da fragmentação de um mundo - tan
to quanto em Joyce ou Proust - fragmentação que chegará aos
cumes artísticos na Montanha Mágica de Thomas Mann, con
trapartida intelectual dos Buddenbrooks, enquanto seu irmão
Heinrich colocava a nu alguns elementos menos desejáveis da
sociedade bismarkiana no notável Der Untertan.
Na política europeia, a tradição ao período neocolonial
não se dava sem exacerbações colonialistas em seus restaura
cionismos desvairados - veja-se o exemplo da Bélgica, as atro
cidades do Congo e o famoso dito de seu imperador Leopoldo:
"não existem nações pequenas, existem mentalidades taca
nhas': O recrudescimento vigoroso do conservadorismo, por
cujas veias corre o "novo" sangue do racismo e da intolerância,
dos medos ocultos e manifestos, é provocado por movimentos
libertários, como as abortadas revoluções de 1 905 na Rússia
e 1 9 1 8 na Alemanha. O fato é que o século XX se desvela,
realmente, apenas na Primeira Guerra Mundial. Conflito de
interesses há longo tempo gestado, a conflagração exporá a
verdadeira face do mundo contemporâneo. Nunca o imperia
lismo foi, a um tempo, tão conservador e tão violento: por isto,
a guerra foi mundial.
Mas é na Segunda Guerra Mundial que o mundo tão lon
gamente gestado revelará sua verdadeira face. Culminância ló
gica dos Totalitarismos, a Guerra é também a culminância da
lógica do Ocidente. O que é o Nazismo: a menos hipócrita das
doutrinas, ao afirmar que o Ser é o Mesmo, o Bom, a Totali
dade, enquanto o que a isto não pertence, o Não-ser, o Outro,
43
o Diferente, é ou deve ser Nada. É apenas no Nazismo - no
momento da violência institucionalizada e da aniquilação per
feitamente planejada, racional, iluminada, do Diferente - que a
Totalidade ocidental pode finalmente encontrar seus verdadei
ros impulsos constitutivos, aqueles que, em Heráclito, se davam
no combate e na guerra e, em Parmênides, definiam de uma
vez para sempre que o ser é e o não-ser não é. Na Shoah, como
na Bomba Atômica, o ser foi e o não-ser não foi: pertencem
ambos, grande extermínio e bomba exterminadora, ao mesmo
lado, embora uma certa história que privilegia as contingên
das geopolíticas tente ensinar o contrário. A grande Razão que
culmina na mítica realização, simultaneamente absolutamente
abstrata e absolutamente concreta, "monumento máximo de
cultura que se mostra monumento máximo de barbárie": dois
lados de uma mesma moeda totalizante, dois momentos do
metabolismo de um mesmo e único modelo trófico hegemôni
co de um determinado espírito e de uma forma de compreen
der o mundo e o universo como "gigantescos campos de caça':
O contexto da filosofia
44
XIX, século de Otimismo oficialmente iniciado em 1 789, dá
completude ao grande arco espiritual do Ocidente. Mas já en
tão as provocações de Marx, Schopenhauer, Kierkegaard - e
também, certamente, do último Schelling - deveriam ter dado
ainda mais a pensar do que então se percebeu.
A inauguração do novo século é cercada por uma frag
mentação de pensamento que sugere uma grave desagregação
- crise que traz aos espíritos realmente sensíveis, antes de
-
45
Para Heidegger, a finitude é o fato radicalmente terminal, mo
mento de completação autofágica da Totalidade do Dasein, exis
tencial intrínseco e imanente. Para Rosenzweig, a morte é o
que impede a Totalidade de chegar à sua completaçao, aquilo
que a confronta com o que, em sentido mais radical possível e
levando em conta todas as suas potências, não é ela mesma. 1 7
A finitude é o fim da filosofia, o fim da "determinação de ser':
Estas diferenças entre os pensadores significam, evidentemente,
muito mais do que distinções acadêmicas).
As proposições alternativas, por sua vez, sem renegar, a
rigor, o passado, se dirigem à raiz da decadência para tentar
fundamentalmente superá-la. (Isto não significa, obviamente,
que todos os autores importantes da época tivessem alguma
inclinação "utópicà: embora muitos a tivessem; significa, antes,
que o sentido geral do filosofar se transloca de forma muito in
cisiva da construção sistemática, categoria! ou conceptual para
a crítica do sistema, do conceito, da linguagem e da filosofia
mesma). O seu movente geral, em um tempo de poucas espe
ranças, é o futuro, ou que se puder dele salvar - mesmo que
isto não esteja explícito em suas obras.
Wittgenstein desloca para a questão dos enunciados e
da linguagem em geral o pólo crítico do pensamento. A ideia
do "calar-se ao não poder sobre algo falar", o princípio dos
jogos de linguagem e a percepção da ética como não-dizível
apontam para algumas das insuficiências desveladas nos oti
mismos sistemáticos e nos construtos bem-acabados; reivin
dicam prudência no trato da realidade. Lukács intenta, em sua
obra madura, o compartilhamento da verdade ontológica para
além de um foco de sentido, no processo de desdobramento
ontológico em camadas com propriedades e particularidades
não-intercambiáveis, em última análise não-interpenetrantes
nem inter-substituíveis, dadas no múltiplo meta-conceptual:
17 "Vom Tode, von der Furcht des Todes, hebt alies Erkennen des All an. Die Angst
des Irdischen abzuwerfen, den Tod seinen Giftstachel, dem Hades seinen Pest
hauch zu nehmen, des vermisst sich die Philosophie" (Rosenzweig, 1996, p. 3).
46
tentativa de re-colocação das concretudes mediatizantes na
lógica do ser em ex-planação. Buber expressa a esperança no al
çar da comunhão como categoria filosófica. Provindo de uma
outra tradição, procura introduzir na obviedade filosófica oci
dental, no modelo tão bem traduzido pelo Descartes ao pé
da lareira, modelo per definitionem solipsista e egologista à
Husserl, a não-obviedade de sua constituição comunitária,
ou a possibilidade da constituição da verdade como questão a
envolver, no mínimo, mais do que um ator.18 Esperança vã de
que o espírito de comunidade reenvie a racionalidade a seus
limites congênitos?
Bergson desvela a rigidez dos esquemas normais de pen
sarnento - esboça mesmo uma "crítica da razão rígida" - e pro
põe o filosofar enquanto "inversão da ordem natural do pen
sarnento", na intuição objetivante que procura reaproximar
os conceitos da vida desde dentro, desde seus impulsos pré
-racionais, para além dos esquemas pesados e que, em última
análise, chegam sempre tarde demais em relação às realidades
intuídas (Cf. Souza, 2004b). Bloch trabalha uma intuição úni
ca, dos dezoito aos noventa e dois anos de idade: aquela que
aponta a densidade ontológica não na sincronia do presen
te, na tautologia do resolvido no ser paralisado, mas, sim, na
aproximação da realidade à sua própria densidade, no Noch
-nicht, no Ainda-não corretivo de cada momento em vias de
fechamento. No fora-do-tempo e fora-de-lugar - no utópico
- está a realização que a totalização do presente nega à reali
dade: pulsão viva do futuro que a racionalidade do presente
não pode compreender. Bachelard revisita a Epistemologia e a
"contamina" com estranhas imponderabilidades; poetiza indi-
_
47
retamente, ao fim de seu percurso, a ciência. À continuidade
do Todo auto-resolvido, propõe a descontinuidade das provas
da realidade, a que somente uma "razão surrear' pode fazer
justiça. Rompimento com a razão auto-compreensiva por um
pensamento que procura o Outro para além do Mesmo?
Scheler intenta fenomenologicamente 'solidificar" ou -
48
em sua estruturação.20 Adorno expressa, com Benjamin, con
tra Hegel, todo o espírito que pretende a recolocação do centro
de decisão filosófica, o deslocamento do sentido totalizador
dos sistemas para os fragmentos do que sobrou da constru
ção teórica ou real da Totalidade: "verdadeiro é o que não é o
todo", e a verdade do pensamento não está nele mesmo, mas
no que ele ((em si não compreende".
Poderíamos - deveríamos - seguir muito além neste rol
de inovações filosóficas inquietantes, culminando na atualida
de de Rosenzweig, Derrida, Agamben; tal o fizemos, aliás, em
muitos outros trabalhos; para o momento, portanto, basta
-nos, a título de exemplo, o já exposto. Pois o que nos importa
é chegar ao ponto de ruptura, de irrupção da Alteridade, aquele
ponto em que, segundo Kafka, '(já não há qualquer possibili
dade de retorno".
A ruptura - condições
49
estas alturas, não se pode mais julgar que tais fatos sejam meros
acidentes de percurso de um trofismo sadio: eles são, em verdade,
expressões do real metabolismo interno da Totalidade, ou do que
tem restado dela. Trata-se do doloroso testemunho do fracasso
de uma promessa. A transformação do mundo em um "gigan
tesco juízo analítico'' e do universo em um "gigantesco campo
de caçà' (Adorno; Horkheimer, 1971, p. 285) prossegue célere,
apesar da desagregação, na edificação da metafísica da acu
mulação e do consumo infinitos - consequência lógica da pro
mulgação do universo infinito sustentada teoricamente pelas
-
50
da Totalidade, para que a reconstrução da história verdadeira,
aquela citável a cada passo e, portanto, julgável em seu verda
deiro sentido (Cf. Benjamin, 1987, p. 223), possa ser iniciada.
A intuição de fundo de Rosenzweig, a que percebe no século
XX a oportunidade final da re-situação da filosofia, significa o
penetrar fundo no ser da contemporaneidade, perceber o sen
tido real de ser, o que verdadeiramente se dá na ontologia, nos
moldes dos pouco ingênuos Heráclito e Parmênides. Somente
no século XX e em sua herança gigantesca é possível uma tal
abrangência de conjunto e a percepção de sua história real,
para além das palavras bem-construídas.
O sentido real do ser deixado ((a si mesmo", em seu trofis
mo natural, somente pode ser percebido de forma contrastiva,
no momento em que a Ontologia é destituída de seu sentido
absoluto de prima philosophia. A transmutação levinasiana
de valores - a Ética como filosofia primeira - é a condição
para a percepção de um futuro que traga em si mais do que o
resultado da pulverização de um universo de sentido. É ape
nas ali, neste novo modelo de inteligibilidade do universo, da
realidade, baseado na singularidade e na não-quantificação
da qualidade, que se pode realmente iniciar a construção do
sentido não-totalizante, da história como um drama ético que
se desenrola no gigantesco palco universal no qual o mundo
e todas as suas virtualidades se constitui temporalmente. A fi
losofia, em fins e início de século e de milênio, só tem sentido
enquanto crítica da Totalidade que se exerce em nome da crí
tica da violência contra o singular. Pois - e bem o aprendemos
no rastro de Adorno e Kafka - o passado habita na tautologia;
é apenas no futuro, para além do tempo paralisado em sua
mera representação, que habita qualquer esperança.
51
A ESCOLA DE FRANKFURT
E O CONTEXTO DE SEU SURGIMENTO:
Inquietações éticas no coração
dos dilemas de uma época23
Introdução
53
tica radical da sociedade sua contemporânea,24 via exame dos
pressupostos e condições objetivas desta sociedade. Jovens de
variada procedência intelectual,25 porém com a mesma inquie
tação perante o statu quo social e cultural, decidem conjugar
seus esforços intelectuais em um bloco crítico mais ou menos
homogêneo, que se vai construindo ao longo de muitos anos de
profícua atividade a partir da sustentação material oferecida por
Felix Weil, e isso em um momento e lugar críticos, no sentido de
decisivo, da cultura do século XX.26 Sua produção é tão rica e va
riada como o mundo que os autores vivenciam em seus consti
tutivos profundos, na particularidade de seus locais epistemoló
gicos de origem e na universalidade de suas preocupações; cada
um elabora discurso particular, consoante sua personalidade
própria e suas peculiaridades de formação e interesse, e no con
junto destes discursos pontificam os mais variados campos da
atividade pensante, que logo iriam transcender completamente
a ideia de um centro de estudos marxistas.
A difícil penetração neste universo crítico pode ser, contu
do, reorganizada no sentido da investigação mais precisa de suas
motivações originais, ou seja, uma instância da qual a própria
discursividade irá haurir seu vigor filosófico-cultural. A nossa
preocupação neste breve estudo será evidenciar a linha mestra
54
de motivação destes pensadores originais - tanto no sentido de
"fundadores'' como de "heterodoxos, ou simpatizantes -, aquilo
que faz com que o resultado de seus esforços tenha sido e per
manecido absolutamente pertinente e seu legado extremamente
importante para a filosofia, e isso ainda hoje, quase um século
após a fundação do Institutfür Sozialforschung. Pois, ao contrá
rio do que se quis acreditar em alguns momentos do final do sé
culo XX, muitas das categorias gestadas no seio da reflexão desse
variado grupo de pensadores permanece não apenas atual, mas
torna -se até mesmo imprescindível para a compreensão desse
início de século e de milênio em termos geopolíticos e culturais
tanto amplos, no ocorrer do atual estágio da globalização, quanto
específicos para o próprio pensamento de campos diversos da
compreensão das errâncias culturais que nos devastam em seu
frenetismo quantificador. Expressões tais como <<indústria cultu
ral" são mais atuais do que nunca em seu significado interpreta
tivo para os fenômenos que vivenciamos diuturnamente; quem
não compreende isso, provavelmente não chega a compreender
os reais impasses do mundo em que vive (Cf. Duarte, 2003).
55
sas: sua motivação radical. 27 Pois, cada um a seu modo, cada pen
sador deixa transparecer ao leitor atento o que realmente constitui
a medula e o foco gerador de sua particular discursividade, ou
seja, o que dá sentido aos seus esforços discursivos, sua motiva
ção básica. Trata-se de uma inquietação ética radical, tão profunda
quanto descontente com as reais condições do universo que a sen
sibilidade particular deste grupo de pensadores conseguia captar.
Esta "sensibilidade filosófica: que lhes permite a percepção do real
estado de uma sociedade já naquele ponto insuportavelmente do
ente, antes que estes sintomas se transformassem, por si mesmos,
em consenso "externo'' com a nova guerra,28 foi-se traduzindo, ao
longo dos anos, de acordo com o particular talento de cada um,
em suas respectivas obras. O que nunca deixou de aparecer foi
uma sólida ancoragem de suas reflexões naquilo que, propria
mente e em última análise, justificava os esforços despedidos, e
que seria a única coisa a dar verdadeiro sentido a estes esforços:
uma penetração tão profunda nas mazelas da modernidade que
esta seria como que ((desnudada'' em seus mais íntimos recônditos,
abrindo-se finalmente, por entre seus espaços dilacerados, o espa
ço de uma dignidade humana não violentada. É este, simplesmen
te, o sentido original da crítica frankfurtiana. Aos fundadores da
56
Escola - como a toda uma geração de jovens inquietos da época, e
de todas as épocas - lhes era insuportável o purofato da ocorrência
da injustiça, 29 como também o era o refúgio do pensamento em
um corpo sofismático, idealista ou de outro teor, que acabasse por
justificar, de alguma forma, o ilegitimável. O ponto de partida da
crítica é, portanto, a absoluta insatisfação dos pensadores para com
um estado de coisas dado; a esta motivação ética radical segue-se a
articulação crítica de um pensamento que se volta, desde sempre,
para fora de si mesmo, ou seja, não se resolve em si mesmo, "não
se compreende a si mesmo"; alimenta -se da multifacetada empiria
circundante, da exuberância de fatos que se dão à observação ar
guta de inteligências não apenas diferenciadas, mas bem formadas
em termos da cultura clássica, e esta é sua verdadeira razão de ser.
A seguir, serão examinadas algumas das mais representati
vas proposições filosóficas destes autores, e também de outros que
com suas motivações comungavam. Será dada especial atenção,
neste momento, aos pressupostos categoriais gerais sobre os quais
a crítica se erige e se constitui em um corpo de ideias coerente.
29 Adorno sobre Horkheimer: "[ ... ] em você a questão básica foi a indignação
frente à injustiçà' (apud Buck-Morss, 1 9 8 1 , p. 147). Ainda: '�dorno incorporou
cedo a preocupação de Horkheimer pelas injustiças do sofrimento humano"
(Buck-Morss, 1981, p. 149).
57
compreensão, mas à compreensão da história que nele cul
mina. Em poucos outros momentos, como ali, a indignação
ética, temperada pela atmosfera de decadência de pós-guerra
e por uma singularíssima capacidade de penetração ·crítica, se
articula de modo filosoficamente tão luminoso, ao retirar do
indeterminado da cultura (ainda) contemporânea vários de
seus mais elementares constitutivos, expondo-os á análise de
quem souber - ou suportar - lê-los.
O que é o "Esclarecimento, para Horkheimer e Adorno?
Esta é uma síntese do que dizem estes autores a respeito, em
suas próprias palavras:
58
relação entre o sujeito doador de sentido e o objeto sem sentido,
entre o significado racional e o portador ocasional de significado
[ ... ] a insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol
[ . .. ] o que seria diferente é igualado [ ... ] o poder mítico elimina o
incomensurável [ ...]. O "eu, [ . . . ] não demorou a identificar a ver
dade em geral com o pensamento ordenado r ( ... ] nada mais pode
ficar de fora, porque a simples idéia do "forà' é a verdadeira fonte
de angústia ( ... ] o mundo como um gigantesco juízo analítico [ . .. ]
(Adorno; Horkheimer, 1985, p. 1 9ss).31
59
efetiva de domínio de todo o "externo': de redução do Outro
ao Mesmo, do múltiplo ao uno, que se anuncia já nos alvores
do pensamento ocidentaP2 - e '1\.lteridade" - a "diferençà' que
resiste, enquanto tal e desde sua própria dignidade, à sua ab
sorção em um corpo unitário de realidade portadora e doadora
de sentido. A filiação "hegelianà' dos autores é tumultuada pela
provocação daquilo que, irredutível às soluções da subjetividade
filosoficamente onipotente e do desenvolvimento da totalidade,
muito importa do ponto de vista ético. Há aqui uma clara rup
tura com qualquer tipo de Aufhebung de índole idealista. É, ain
da, talvez por vez primeira na história do pensamento filosófico
ocidental que intelectuais tomam com tal clareza um determi
nado partido da realidade, nítida e irrecorrivelmente o partido
do pequeno e do fraco, do extra-sistemático como tal, e que vale
e chama exatamente desta forma, e não enquanto elemento a ser
com-preendido por uma Totalidade de sentido, por uma espé
cie de polarização em torno a um "eu" cujo conteúdo é dado
por sua capacidade de Sinngebung ao que não é ele mesmo. 33
Com a acentuação retórica desses dados, os autores penetram
. em uma das estruturas últimas constituintes da contempora-
neidade, em seu cerne e na fonte dinâmica de sua a um tempo
antiquíssima e sempre renovada energia.34 As análises críticas
subsequentes destes e de outros pensadores ligados à escola vão
sempre mais somando dados interpretativos que permitem a
seria tão mítico quanto a superstição; servir a um Deus não postulado pelo eu,
tão insano quanto o alcoolismo [ . ]" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 4 1 ) .
. .
60
cada passo uma sólida desmontagem de um mundo de relações
aparentemente "contestatórias': mas, na verdade, grotescamente
ideologizadas, porque extremamente hábil em substituir cele
remente a qualidade pela quantidade (Cf. Souza, 201 O). Com a
análise do sentido profundo do Esclarecimento em sua comple
xa dialética relativamente ao seu Outro (e de suas metamorfoses
ao longo da história), chega-se à possibilidade de uma crítica
extremamente arguta da sociedade, não em termos cronológi
cos, porém ontológicos, no sentido em que se pode partir para a
edificação de um corpo crítico coerente que não traia, por sua
filiação profunda, seus fundamentos e conquistas - mas que
se espraie fecundamente ao longo de sua própria formulação
conceitual. Aí se embasam, ao menos em intenção, as análises
empíricas do Instituto, já em sua fase norte-americana (estudos
sobre a família e a autoridade, etc.); as análises sociológicas de
Marcuse; as psicológicas-psicanalíticas de Fromm (apesar de
tudo sempre coerente com as motivações originais da Esco
la); as análises estéticas de Adorno - e também aquilo que se
constitui em um corpo de ideias em princípio avesso a qualquer
caracterização: as análises filosófico-culturais de Benjamin. Há
um elo que une indissoluvelmente toda esta variedade de dife
rentes pensamentos, elo este que se divide em, pelo menos, dois
momentos igualmente relevantes: em primeiro lugar, tem-se a
já referida "indignação" ética perante o statu quo, "mola mestrà'
das pesquisas empreendidas, não como mero ideário teórico ou
carta de princípios, mas como trabalho dos acontecimentos; e,
por outro lado, a captação e organização de alguns elementos
conceituais fundamentais que, difusos embora, vão-se manten
do e dando logicidade aos esforços críticos empreendidos.
A seguir, enfocaremos alguns destes elementos, via aná
lise de alguns dos principais trabalhos de membros da Escola
e pensadores afins. 35
35 Para uma análise específica das diversas seções constituintes da obra (Cf. Tiburi;
Duarte, 2009)
61
Adorno e a negatividade do total
62
o pensamento'' (Buck-Morss, 198 1 , p. 1 6). Este é o movente
fundamental do pensamento de Adorno: o pensamento que
não esquece seus próprios condicionamentos, de suas origens
e motivações originais, quase obsessivamente fixado em seus
próprios limites, e que não suporta nenhum tipo de sublima
ção hipócrita em qualquer nível.
Todavia, neste mundo complexo, dá-se com clareza a
chave para a compreensão de alguns de seus constitutivos fun
damentais em termos de intuições traduzidas em conceitos,
mesmo que provisórios e precários em sua definitiva e pro
gramática não-congruência com a realidade estrita. Trata-se
daquilo que Adorno percebe em sua análise, daquilo com o
que sua sensibilidade filosófica o confronta, e que sua obra,
em sua intrincação constelacional, mostra que foi percebido
- aquilo que em realidade faz com que seu pensamento se ar
ticule como o faz. A percepção de tais elementos, porém, de
manda um certo desprendimento filosófico e uma capacidade
de absorção do provisório e daquilo que, em Adorno, ocupa
o lugar da centralidade gerativa do pensamento: a consciência
da diferença como constituinte mais real da realidade, ou seja,
da potência crítica da negatividade, do Não-idêntico. Desse
modo, deve-se deixar que sua própria obra se mostre desde
seus referenciais mais íntimos, muito embora muitas vezes
não explícitos, pelo menos não em linguagem filosófica tra
dicional. É preciso, para uma mínima compreensão, que se
perceba onde cada expressão, pensamento, intuição, efetiva
mente se apóia; de onde retira sua peculiar energia. Em ou
tros termos: é necessária a consciência dessa categoria-chave
- não-identidade - sempre na proximidade imediata de cada
reflexão em particular, pois é desde aí que se pode pretender
ver a riqueza da linguagem que se cria e recria a si mesma, em
si e para além de si. 36
63
Este movente original, este eixo condutor das análises,
apresenta também a dimensão da repugnância pelo total.
A obra de Adorno é uma tentativa de caracterizar à Totali
dade seus próprios limites, não ao lhe contrapor uma outra
totalidade, mas ao corroer filosoficamente, inelutavelmente,
suas raízes.
64
continuidade como minou sutilmente o marxismo hegeliano
de Lukács e Korscn' (Jay, 1988, p. 1 7).40
Por outro ângulo, pode-se dizer também que o pensa
mento de Adorno, bem como o de outros membros da Escola,
tinha na dialética sua referência metodológica principal. Mas
é fundamental que se note desde já que, nesta tradição, ins
creve-se a obra adorniana a partir de parâmetros totalmente
diversos, onde o marxismo não é absolutamente uma cosmo
logia ou uma explicação suficiente da realidade, mas um itine
rário interpretativo, do qual o pensamento dialético constitui
a medula.41 Isto porque " [ ... ] a dialética, uma vez limpa do fer
mento crítico, se presta tanto ao dogmatismo como em outro
tempo a imediatez da intuição intelectual schellinguiana [ .. ] " .
65
gativa, como se percebe, é aquela que não se contenta com
seu íntimo movimento, aquela cuja razão mesma de ser não
está nela própria, mas que se aproxima a cada momento da
não-identidade. 42 A própria ideia de "identidade" é vista por
Adorno como uma aparência a ser desmistificada pela contra
dição real da realidade - "Der Widerspruch [ . . ] ist Index der .
66
longo da pertinaz procura adorniana de elementos materiali
zados no discurso, estranhos porém intensamente presentes. 45
Adorno e a Totalidade
67
ser - e não é por aí, portanto, que se poderia rotular Adorno
de "idealista'' ou "hegeliano". É apenas em relação à Estética
que o termo "Totalidade" assume, para Adorno, um sentido
de positivação ética.
Adorno e a Estética
68
(Adorno, 1 988, p. 208). A obra de arte, repositório de verdade
em meio ao turbilhão ideológico que banaliza esta categoria,
contradiz verdadeiramente a lógica da totalização, porque é
expressão da verdade do diferente que não se reduz ao "mes
mo": "só compreende uma obra de arte aquele que a compre
ende como complexão de verdade" (Adorno, 1988, p. 293). E a
verdade é o que não está dito desde sempre, como algo intempo
ral ou meramente conceitual: "a ideia de uma obra de arte con
servadora contém algo de absurdo" (Adorno, 1988, p. 20 1 ); daí
se deduz que, efetivamente, "a missão da arte, hoje, é introduzir
o caos na ordem" (Adorno, 1988, p. 224), porque disso depende
a subsistência do não-idêntico. Afinal, hoje mais do que nunca,
"todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas; isso desde
sempre irritou a teoria da arte" (Adorno, 1988, p. 140). A arte é
enigma, porque a substância da realidade, diferentemente do que
acredita certo gênero de filosofia analítico-totalizante, permane
ce estranha à sua violentação em conceitos e teleologias. Arte é
des-ideologização por excelência, por isso é perigosa e precisa ser
domesticada em comportadas salas de concerto ou assépticas ga
lerias. "A grandeza das obras de arte reside tão-só em seu poder
de permitir que sejam ouvidas as coisas que a ideologia ocultà'
(Adorno apud Jay, 1988, p. 1 39). E são também, de certa forma, a
prova cabal da existência do, para a totalidade violenta, não-existente:
''[ ... ] o facto de as obras de arte existirem mostra que o não-ente pode
ria existir. A realidade (Wirklichkeit) das obras de arte dá testemunho
da possibilidade do possível" (Adorno, 1988, p. 153). Descobre-se
por ela o enigma do próprio ente: "Quanto mais compactamente
os homens cobriam o que é diferente do espírito subjetivo com
a rede de categorias, tanto mais profundamente se desabituaram
da admiração perante este outro e, com familiaridade crescente, se
frustraram de estranheza'' (Adorno, 1 988, p. 147). "As obras de
arte sintetizam momentos incompatíveis, não-idênticos, que
têm entre si pontos de fricção [ . . . ] " (Adorno, 1 988, p. 200) .
Todas as obras de arte " [ ... ] são polêmicas a priorf' (Adorno,
1988, p. 20 1 ), porque sua própria existência é resistência aos
69
esforços empreendidos para que se reduza ao silêncio nebu
loso da ideologia dominante. 49 Para a arte, o diferente não é
mal-vindo: "A unidade estética é a síntese do disperso que ela,
no entanto, conserva como aquilo que é, na sua divergência e
nas suas contradições, e eis porque ela é efetivamente um des
dobramento da verdade" (Adorno, 1988, p. 165). Mas a arte e o
belo estão hoje em situação de perigo: ((na época atual, a fatali
dade de toda e qualquer arte é ser contaminada pela inverdade
da totalidade dominadora" (Adorno, 1988, p. 72). O belo lem
bra a quem o vê aquilo que, apesar de tudo, ainda existe, embora
ameaçado e feio: ''a dor nascida do belo é a nostalgia do que é
interdito ao sujeito pelo bloco subjetivo [ ... r' (Adorno, 1 988, p.
297). Paradoxalmente, o belo enquanto tal não despreza, como
pensavam as correntes estéticas idealistas, o feio enquanto tal50
- ao menos se por feio se entende aquilo que "sobrou" ao longo
do altaneiro desfile da grande história. Pois a arte é por essên
cia viva, e "a sacralidade do vivente [ ... ] reflete-se até mesn1o no
mais feio e disforme" (Adorno, 1993, p. 75); assim, "que seria
se esforçam por tal, costumam desaparecer sob seu conceito [ ... ] (o efeito social
da obra) é altamente indireto" (Adorno, 1 988, p. 271). Ademais, e isto é muito
importante, como adverte Jay, "[ ... ) tanto em música como em arte, o realismo
socialista, advertia Adorno, era quase tão reacionário como o objetivismo
neoclássico" (Jay, 1974, p. 302). Em suma, o poder desagregador da arte efetiva
se para além de toda a manietação que a ele se queira aplicar.
50 "Se a estética tradicional, incluindo Hegel, sabia celebrar a harmonia do belo
natural, ela projetava a auto-satisfação da dominação sobre o dominado"
(Adorno, 1 988, p. 1 8 1 ) "[ ... ] [Adorno possuía] conduta estética. [Esta tem a
característica da} distância respeito à objetividade, mas já não só à objetividade
externa, e sim, também, àquela que o próprio sujeito havia criado" (Rius, 1 985,
p. 1 5 - o último grifo é nosso). Observe-se o contraste da concepção de estética
adorniana - distanciamento, valorização do objeto estético para além das
determinações do sujeito criador - com o "subjetivismo" estético hegeliano:
"Só a interioridade sem objecto, a subjetividade abstrata se deixa exprimir pelos
sons. Subjetividade abstrata que é um eu na sua simplicidade, a pessoa sem outro
conteúdo que ela mesma. A missão principal da música consiste [ ... ] em fazer
ressoar o eu mais íntimo [ ... ] a sua alma ideal [ . ] O seu conteúdo é o subjetivo
. .
70
da arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da
memória do sofrimento acumulador' (Adorno, 1 988, p. 291).
Por isso, não é anti-natural ou anti-artístico, como poderia pa
recer a estetas que confundem arte com idealização-ideologi
zação totalizadora, que "atualmente não há nenhuma música
que não tenha em si algo da violência do momento histórico"
(Adorno, 1 974, p. 149).
A arte é, para Adorno, uma instância da verdade que, em
princípio e por definição, se situa para além de toda possibili
dade da ideologia que a quer manietar (poderíamos acrescen
tar que é por isso que a música, por exemplo, é cercada geral
mente de um grande aparato formal, quando de sua execução
pública: esta é uma tentativa de mantê-la dentro dos limites
de uma determinada "aceitabilidade" ideológica). Por isso,
também, a arte só é "interpretável pela lei de seu movimen
to, não por invariantes" (Adorno, 1988, p. 13). E sua verdade
não advém de um sentido que um sujeito lhe possa atribuir,
pois isso seria sua própria falência: "o conceito de gênio é fal
so, porque as obras não são criações e os homens criadores"
(Adorno, 1 988, p. 1 94) - a obra aparece, enquanto obra como
autonomia "heterônoma" em relação a quem leva o título de
seu autor: "ao final, o escritor não poderá nem mais habitar
em seu� escritos [ ... ]" (Adorno, 1993, p. 86). Isto porque, para
o frankfurtiano, "a experiência da arte enquanto experiência
de sua verdade ou inverdade é mais do que uma vivência sub
jetiva: é a irrupção da objetividade na consciência subjetivà'
(Adorno, 1 988, p. 274) alguma coisa chega à consciência
-
71
Após séculos de onipotência subjetiva, o sujeito "artísti
co': pela arte, começa em si mesmo a se dar conta da insufici
ência de seus esforços no sentido de se fazer o absoluto foco
de verdade referencial, em substituição à "subjetivídade" da
qual extraiu até mesmo seu sentido enquanto sujeito. A pura e
desconhecida "coisa" inclassificada começa a aparecer.
A ressonância da coisa
52 "Wahr sind nur die Gedanken, die sich selber nicht verstehen".
72
à sua filosofia. Dadas as contingências da tradição filosófica,
da ambiência cultural do pensador, este não poderia radica
lizar absolutamente esta constatação, e extrair dela todas suas
consequências. Porém emerge em sua filosofia, de maneira
inequívoca, o incisivo clamar daquilo que a sistemas filosóficos
não se reduz - e talvez esteja aí um dos elementos de dificul
dade maior para a compreensão do pensamento adorniano.
Adorno definitivamente enxergou seu mundo, e percebeu o
que nele não tinha, simplesmente, ex-plicação.
53 "Como aquele que se despede é mais facilmente amado! Porque a chama por
aquele que se distancia queima mais pura, alimentada pela fugitiva tira de pano
que acena do navio ou da janela do trem. O distanciamento penetra como maté
ria corante naquele que desaparece e o embebe de suave ardor" (Benjamin, 1 987).
73
têm, definitivamente, vida. "O pensamento de Benjamin ( ... ) é
conduzido não somente a despertar a vida congelada nos ob
jetos petrificados - como na alegoria - mas também a forçar as
coisas viventes a apresentar-se como antigas, <proto:.históricas:
e a liberar abruptamente seu sentido" (Adorno apud Buck
-Morss, 198 1 , p. 1 29). O espectro do interesse benjaminiano
�
74
que o conhecimento se dará de uma forma por assim dizer
propriamente ((estética" (em todos os sentidos dessa palavra,
ressaltando sua própria etimologia), via recepção do que se
mostra desde si mesmo.
75
retamente percebido, rompe ((desde forà' as cadeias que man
têm a própria consciência cognoscente aferrada à sua própria
dinâmica tautológica.
O esquema da aura benjaminiana - em seu processo de
percepção, desaparecimento e idiossincrásico luto, tal como
se dá em sua obra - é um dos primeiros momentos realmen
te não-destrutivos de testemunho da implosão da totalidade
ocidental, implosão cuja percepção ele muito bem herda de
Rosenzweig e se positiva na construção de linguagem em suas
obras finais, especialmente as sintéticas ((Teses" Über den Be
griffder Geschichte;56 mas é possível que muito tempo se passe
até que se perceba o que isto realmente significa.
A filosofia do pequeno
76
porque "a faculdade da fantasia é o dom de interpolar no in
finitamente pequeno, descobrir para cada intensidade, como
extensiva, sua nova plenitude comprimida [ . . ]" (Benjamin,
.
cem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e
77
para elas unicamente. Com isto, as crianças formam para si seu
mundo de coisas [ ] seria preciso ter em mira as normas deste
...
78
gura um complexo processo de pensamento e totalização, que
se reflete em todos os seus níveis. 57 ((A espécie de 'divisão de
trabalho', como a chama W ]ames, pela qual alguém ama sua
família mas não tem sentimentos pelo 'estranho' é um sinal
de incapacidade básica de amor" (Fromm, 1966, p. 87). Esta
falta de amor que é característica geral de uma sociedade a
um tempo narcisística e autofágica cujas excrescências mais
visíveis são a destrutividade ["a destrutividade é o produto
da vida não vivida" (Fromm, 1981 , p. 149) ] , a ânsia de poder
["a ânsia de poder não se origina da força mas da fraqueza"
(Fromm, 1 98 1 , p. 133)] - da fraqueza de quem só se tem a si
mesmo para se sustentar: os outros são, por definição, inimi
gos) e o mercantilismo universal, legitimado pela ideologia da
acurhulação infinita: "o homem não só vende mercadorias: ven
de a si mesmo e considera-se uma mercadorià' (Fromm, 1981,
p. 1 02). Os hotnens se vão transformando em autômatos, 58 "que
não se podem amar; podem trocar seus 'fardos de personali
dade' e esperar um bom negócio" (Fromm, 1 966, p. 1 1 8). Na
melhor das hipóteses, "forma-se uma aliança de dois contra
o mundo, e este egoísmo a dois é enganosamente tomado por
amor e intimidade" (Fromm, 1966, p. 1 19) - ou seja, nada mais
do que a internalização e reprodução da neurose social solip
sista, a totalização monádica, raiz de todos os medos e fobias,
pois tudo lhe é estranho, exceto ela mesma e sua aparente segu
rança, fruto de sua própria rigidez medrosa, onde o diferente
não pode ter vez, sob pena de desestruturar a própria ideia de
estrutura que esta estrutura patológica construiu desde si. Esta é
a essência da mentalidade pequeno-burguesa - "as pessoas via
jam sobre pneus de borracha, rigorosamente isoladas umas das
outras" (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 206) - ventre no qual
57 "A vida não tem meta exceto a de movimentar-se, nem princípio a não ser o de
boa troca, nem satisfação que não seja a de consumir" (Fromm, 1966, p. 138).
58 "O homem moderno pensa que perde alguma coisa - o tempo - quando não faz
as coisas rapidamente; todavia, ele não sabe o que fazer com o tempo que ganha
- a não ser matá-lo" (Fromm, 1966, p. 144).
79
se gesta todo tipo de paranóia e preconceito (Cf. Souza, 2008).
Esta a mentalidade que se constitui no substrato psicológico
da sociedade contemporânea em suas linhas gerais, e que se
arvora em dar a esta sociedade o direito de classificar os indi
víduos no grupo dos "sãos'' - os que se curvam à degeneres
cência amorosa vigente, e contribuem para sua manutenção
também tautológica - ou no dos "neuróticos" - os que, como
diz Fromm, "não se dispôs (dispuseram) a entregar os pontos
completamente na luta por seu ego" (Fromm, 1 98 1 , p. 1 1 6).59
Assim, também os que resistem à ideia de se tornarem uma
engrenagem na máquina delirante do mercantilismo univer
sal, credor de concepções totalitárias de infinito; ou os que
reagem - muitas vezes patologicamente à devoradora pato-
59 Este esquema simplificador de Fromm, tal como aqui apresentado, soa obvia
mente incompleto. Na verdade, o que está por trás destas reflexões é a subjacente
concepção de felicidade que se segue: a uns, é prometida a felicidade pelo alcan
çar do mundo aceito pelos não-neuróticos e pelo renunciar ao menos justificável
mundo dos neuróticos; e, a quem se rebela contra estes esquemas mesmos, surge
a noção de felicidade como algo que se constrói no processo do descobrir - por
vezes com risco de sua própria vida e sanidade mental - o que escapa a estes
modelos ou, melhor dito, o ponto de fuga da proposta equação da felicidade.
80
A Libertação na ordem do dia: Herbert Marcuse
81
a ruptura dos esquemas de totalidade é a verdadeira raiz da
recepção da novidade "que todos almejam':
Marcuse como que "aplicà' em termos de amplas análi
ses sócio-políticas - com o compromisso político em· seu cer
ne - as percepções e conclusões de outros autores mais sutis,
porém menos abrangentes.
82
O próprio Adorno - músico também e abalizado ana
lista schõnberguiano, apesar do parecer em contrário de
Schõnberg ( Cf. Jager, 2003, p. 1 82ss) - testemunha a con
vergência da atividade do músico em direção a profundas
disposições dos frankfurtianos: " ( ao passo que) Strawinski
furta-se ao doloroso movimento da coisa, ao tratá-la como
regisseur, [ ... ] Schõnberg é obrigado (a tentar) chegar a uma
objetividade sensível sui generis - o construtivismo dodeca
fônico)) (Adorno, 1974, p. 163 - 1 64). Também o testemunho de
Susan Buck-Morss ( 1 98 1 , p. 44), que dizia que "Schõnberg [ . ] ..
61 É preciso que se note, contra o juízo geral de Adorno, que também Strawinski,
tradicional "inimigo" de Adorno enquanto "neoclássico", estava muito profun
damente penetrado pela decadência do tempo entre-guerras. Adorno não res
salta suficientemente o extraordinário poder de certas obras de Strawinski, a
despeito do que se diga desta personalidade, de "puxar para fora" da tessitura
musical a degenerescência da sociedade no qual elas foram concebidas. Um bom
exemplo é o Concerto para violino e orquestra (193 1), principalmente em seus
últimos movimentos, onde a "artificialidade" se mostra encantadoramente na
tural, sem decair em reacionarismo. A "riqueza intrínsecà' de que fala Adorno
a respeito desta obra (Adorno, 1 974, p.l 60) deve-se justamente ao fato de que a
obra como que absorve a atmosfera sua contemporânea e a condensa em uma
unidade expressiva autônoma. E, de fato, pode-se dizer que o "Neoclassicismo"
musical teve uma grande importância para a "des-hipocritização'' do mundo no
qual apareceu. Isto inclui Prokofiev e sua sutilíssima ironia e também Ravel em
suas aristocráticas construções, entre muitos outros exemplos - provas de que,
de fato, o dado artístico real se insurge contra classificações prévias, e prova que
seu conteúdo não é unívoco, e sim tão complexo como o mundo no qual surge
e que o sustenta.
83
Algumas conclusões
62 "No coração mesmo da Teoria Crítica havia uma aversão aos sistemas filosóficos
fechados [ ... ]. Não foi acidental que Horkheimer (como outros membros da Escola)
escolhesse articular suas ideias em ensaios e aforismos antes que em tomos
volumosos tão característicos da filosofia alemã" (Jay, 1974, p. 83). Talvez em
decorrência disto, Adorno definia a filosofia como "[ ... ] o pensamento que não se
deixa travar" (Adorno, 1988, p. 293). De qualquer forma, "devemos voltar nossa
atenção [ . .. ] para os notáveis esforços empreendidos por Adorno no sentido de
detectar o fraco pulsar da utopia em meio à ensurdecedora cacofonia da cultura
contemporânea" (Jay, 1988, p. 100).
63 "Só por amor pelos desesperados conservamos ainda a esperança'' (Benjamin
upud Jay, 1 988, p. 1 8 1 ) .
64 "O pensamento aberto aponta para além de si mesmo" (Adorno apud ]ay,
1988, p. 5 1 ) . Além disso: ''Adorno [ . . ] continuou a defender a importância do
.
84
de sua precariedade. E já Marcuse se dá conta de que ((a teo
ria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa
cobrir a lacuna entre o presente e seu futuro; não oferecendo
promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece
negativà' (Marcuse, 1 979, p. 235). A própria filiação dos pen
sadores da Escola, apesar de tudo, a uma marcada tradição
intelectual, cujas linhas principais lhes são comuns; sua for
mação, que se funde com uma extrema sensibilidade recepti
va que faz com que nada do século lhes permaneça estranho
ou indiferente; a percepção clara de que a ruptura necessária
lhes seria ainda, de alguma forma, vedada; a compreensão, no
exemplo de Adorno, de que, apesar da mobilização no sen
tido de "deixar a coisa falar", ainda há um excesso de peso
da tradição e de preconceitos gnoseológicos a respeito (tra
duzidos ou pela tentativa de retornar a uma totalidade da
razão - Marcuse - ou pela de "abrir" um processo dialetica
mente negativo - Adorno) - tudo isto acaba por mergulhar
estes filósofos numa atmosfera mais sombria que alegre, pois
que ainda não têm motivos para se alegrar: " [ .. . ] à diferença
dos socialistas mais ortodoxos, escreveram obras permeadas
mais por um sentido de perda e decadência que de expecta
tiva e esperançà' (Jay, 1974, p. 470) .65 Não quiseram ser hi
pócritas, em um tempo que não poderia aceitar otimismos
fáceis. De qualquer modo, as energias foram empenhadas e
as garrafas filosóficas lançadas às águas negras deste tempo
de "fim" de utopias.
Permanecem todavia, ainda, em um esquema gnoseoló
gico que não pode deixar de ser tradicional, e que acaba em
certo sentido por trair os melhores esforços destes filósofos,
artistas, poetas; estes inevitáveis preconceitos gnoseológicos
tradicionais - kantianos ou hegelianos, algumas vezes até nos
talgicamente historicistas - impedem-nos, em última análise,
uma observação extra-sistêmica desde um ponto de vista por
85
assim dizer desde a Alteridade como realidade que porta sua
própria vida. Apenas em poucos momentos esta consciência
está presente: quando, por exemplo, o velho Horkheimer per
cebe a necessidade do absolutamente diferente "a religiosida
-
86
ESTÉTICA COMO ANTI-IDOLATRIA
Introdução66
87
substituição, por exemplo, de pessoas por obras. Se há uma
tendência clara neste sentido - e isto é especialmente evidente
na hegemonia da compra e venda como metafísica universal,
pois ainda é relativamente menos escandaloso comprar aber
tamente obras de arte do que pessoas, redundando em uma
óbvia hierarquização valorativa não muito favorável aos seres
humanos denegridos nesta escolha comercial - este não é se
não um aspecto de uma ampla cosmovisão idolátrica. Nesta
cosmovisão, tudo tem seu preço; felizes dos que tem seu preço
expresso em milhões, como certos quadros: geralmente são
muito bem tratados e vivem mais dignamente que a maior
parte da humanidade. A arte cora então de vergonha e se re
fugia em sua interioridade mais recôndita, permitindo apenas
que alguns de seus reflexos e fantasmas - ídolos no sentido
original do termo - se integrem ao grande jogo especulativo,
ao jogo de imagens universal. Que se tome isto por arte plena:
que diferença faz para a metafísica das profundidades comer
ciais? O respirar do grande negócio segue em seus estertores.
Nunca como agora as negatividades foram tão necessá
rias para iluminar, contrastivamente, as positividades legíti
mas. Em um tempo sem suavidades, repleto de mosaicismos
entediados ou de perversões elevadas ao "status" de arte,68 o
que se apresenta como suave repertório de amenidades tem de
ser incisivamente provocado.
Neste espírito, tanto a explícita anti-estética negativa e
anti-idolátrica de Levinas quanto à estética negativa e anti-to
talitária de Adorno têm algo a dizer. Vozes clamantes no deser
to, escolhem o que de mais feio a arte pode conter e expressar
mas o que aqui nos interessa é perceber a que ponto a capacidade de confundir
"arte" com "patologia dos tempos" se tornou metafisicamente comercial, ou seja,
idolátrica em qualquer sentido desse termo: intercambiável.
88
para mostrar, ainda que ·via negationis, que quase em nenhum
campo como aqui o repouso satisfeito não pode conviver com
os fatos. A circunscrição de um conceito pouco ingênuo de
arte é talvez dedutível desde suas concepções. O estudo deste
tema é a proposta deste breve trabalho.
levinasiana69
89
de idolatria, e permite o estabelecimento de profícua articula
ção com as teses adornianas.
De fato, no texto ((La réalité et son ombre': testemunho
eloquente de um momento histórico de grandes inquietações
- o imediato pós-Segunda Guerra MundiaF0 -, Levinas apre
senta como que uma espécie de anti-estética, que, compreen
dida na sua melhor expressão como estética anti-idolátrica,
resume uma variedade de elementos que se constituem no
intento de, como diz o prefaciador, " [ . . . ] définir l'art comme
l'étrange tentative de procurer une pseudo-présence du monde
[ .. . ]" ( 1 948, p. 769) e que ''remet à une critique philosophique
le soin de récupérer l'art pour la verité, de renouer des liens
entre la pensée 'dégagée' et l'autre, entre le jeu de l'art et le sé
rieux de la vie" ( 1 948, p. 770). Pois, segundo a áspera análise
de Levinas nesse texto, "Le procédé le plus élémentaire de l'art
consiste à substituer à l'objet son image. Image et non point
concept. Le concept est l'objet saisi, lhbjet intelligible. Déjà
par l'action, nous entretenons avec l'objet réel une relation
vivante [ ... ] . L'image neutralise cette relation réelle" ( 1 948, p.
774). Aqui já se expressa o Leitmotiv da crítica levinasiana:
ou a arte propõe, à vida real, a alternativa de uma semi-vida
inspirada, à escuta das musas, imagi(em)nária, ou esta, menos
delicadamente, conquista o terreno da realidade e instala ali
seu fetiche sombrio. O campo de possibilidades da arte flu
tua entre a semi-vida da suavidade inspirada e a não-vida das
sombras de realidade. Um elemento de toda arte, o ritmo, é
nesta flutuação paradigmático: "De la réalité se dégagent des
ensembles fermés dont les éléments s'appellent mutuellement
comme les sylabes d'un vers, mais qui ne s'appellent qu'en
s'imposant à nous. Mais ils s'imposant à nous sans que nous
les assumions" ( 1 948, p. 774). Eis aí os elementos da sedução
e da conquista. A sedução da ordem fácil, da fragmentação
90
artificial da realidade em elementos suficientemente pequenos
para serem compreendidos em seu marchar e em seu saudar
-se mutuamente, esta sedução conquista terreno e se impõe
à revelia da vontade organizada, pois a própria vontade não
mantém sua integridade, não permite mais o assumir algo.
Também no ritmo a musa canta mais alto, ou seja, quando se
pensa que se está tratando com a base de todo um processo,
este processo inteiro já está ali presente. Esta conquista de es
paço é a passagem "do si mesmo ao anonimato" ( 1 948, p. 775),
um enfeitiçamento desumanizador, habitante do limbo entre
a consciência e a inconsciência, sonho claro demais para ser
só sonho, mas irresponsável como todo sonho ( 1 948, p. 775).
Não é consciente, pois não pode ser conscientemente assumi
do; não é inconsciente, porque se presentifica constantemente
em seu desenrolar-se. "L'automatisme particulier de la marche
ou de la danse au son de la musique est un mo de detre ou rien
n'est inconscient, mais ou la conscience, paralysée dans sa li
berté, joue, toute absorbée dans ce jeu" ( 1 948, p. 775). Desper
sonificação do eu, coisificação bem-acabada da subjetividade:
((il (o sujeito) est parmi les choses, comme chose, comme fai
sant partie du spectacle, extérieur à Iui-même [ . . ] extéríorité
.
91
a imagens, levezas se seguem a levezas, em uma espécie de
leviana embriaguez inspirada. Vê-se suavidade onde ela não
existe, vê-se uma caricatura do peso de realidade onde ele não
está. A arte como demiurgia de sensações, habilidàde de de
sencarnação da realidade ( 1 948, p. 777), não-objetividade do
objeto - ou melhor, "desconteudização" dos conteúdos obje
tais na diafaneidade de uma projeção. O mundo real, ''coloca
do entre parênteses" ( 1 948, p. 777), pulveriza seu peso em seu
reflexo, em sua imagem que é "alegoria do ser" ( 1 948, p. 779).
Trata-se de um processo de inversão da consciência que
procura as coisas mesmas, como se as coisas mesmas deixas
sem seu espaço a coisas outras que, adornadas de objetividade,
retorcem a ideia de intencionalidade. "Le tableau a, dans la vi
sion de l'objet représenté, une épaisseur propre: il est lui même
objet du regard. La conscience de la représentation consiste à
savoir que lobjet n'est pas là" ( 1 948, p. 779). Consciência que
trai suas mais profundas intenções e, ingenuamente, pousa so
bre as flutuações de uma realidade fraca, fruto de um jogo de
espelhos. Em lugar de indicar a realidade propriamente dita,
a imagem impede o acesso a ela - pedra no caminho que con
duz ao mundo, ((essência fantasmática" que não diz a verdade
( 1 948, p. 780). Mentira.
Mas esta mentira é refinada, propõe atrativos, porta ade
reços sinuosamente sedutores, que se compõe naquilo que se
conhece por "beleza", ao menos na arte figurativa realista. A
beleza é, nesta reflexão, o ser em processo de dissimulação de
sua caricatura, na dialética de sua sombra ( 1 948, p. 78 1 ) , pro
cesso este que culmina na edificação do ídolo, ídolo estético,
protótipo da imagem perfeita - estátua. Toda arte é, em fim de
contas, o processd de soerguimento de estátuas ( 1 948, p. 782).
Mas o que é uma estátua? Levinas responde com uma
frase notável, muitíssimo citada: "La statue réalise le paradoxe
d'un instant qui dure sans avenir" ( 1 948, p. 782). Uma estátua
é a materialização de uma paralisia do tempo. A eternidade
92
fora da duração, o instante eterno que não se desdobra - a
morte revestida de adereços artísticos ( 1 948, p. 782), fingindo
que é vida. Futuro eternamente abortado, presente que nunca
cumpriu sua tarefa de presente, cccomme si la réalité se retirait
de sa propre réalité et la laissait sans pouvoir" ( 1 948, p. 782).
O artista deu à estátua uma vida sem vida ( 1948, p. 782).
No romance, o drama dos personagens nunca acaba, dura
ainda, mas não avança ( 1 948, p. 784). Fixação não-dialética,
revolver-se de boas intenções e de intenções de liberdade. Li
berdade não-livre, caricatura do mundo. Intervalo eterno do
correr do mundo, suspensão de sentido, expectativa de algo
que não virá, e cuja não-vinda já se encontra na própria ex
pectativa. "La durée etérnelle de l'intervalle ou s'immobilise
la statue differe radicalement de l'éternité du concept - elle
est l'entretemps, jamais fini, durant encare - quelque chose
d'inhumain et de monstrueux" ( 1 948, p. 786).
A inumanidade e a monstruosidade do intervalo eterno,
porém, remetem para seus fundamentos. Estes fundamentos
da realidade paralisada se constituem em umafuga da realida
de propriamente dita, que chama à responsabilidade. Uma de
terminada dimensão de evasão ( 1 948, p. 787), desengajamen
to, recusa à iniciativa, pulsa sob a morte feita vida. Esta grande
substituição original - da vida por sua caricatura morta - su
gere uma outra substituição mais empírica - onde ((le monde à
achever est remplacé par l'achevement essentiel de son ombre.
Ce n'est pas le désintéressement de la contemplation, mais de
l'irresponsabilité, ( 1 948, p. 787). Constrói-se um mundo per
feito para não se ter de haver com as imperfeições do mundo
real. Exílio na imponderabilidade das sombras. Fecham -se as
fronteiras da autojustificação.
A arte feita idolatria autoidolatria é para Levinas nes
- -
93
tempo paralisado ou na obsedante desumanidade do ritmo -
hipocrisia, ardil racional, porque pretende justamente que esta
paralisia não seja percebida como tal, e sim como uma glorifi
cação da vida - consiste na condescendência do Mesmo com
suas excrescências, em uma comédia que se desenrola à som
bra da realidade e da possível liberdade - e do sofrimento do
mundo. Feição apaziguada da violência, violência ornada de
boas intenções, todo o contato com o Outro é abortado, pois a
arte porta em si mesma seu sentido. Espécie de subjetividade
purificada de contingências humanas, demiurgia pretensiosa
do tempo que não lhe pertence, a caricatura da vida fascina por
seus poderes aparentes. Apresentando-se como situada para
além da realidade imediata, na verdade posta-se aquém de
qualquer realidade assim propriamente chamada. Seu mundo
não é o mundo que ela promulga, seus interesses não são o
tempo, a realidade e a verdade: ideologia imoral.
94
apesar da tradição, a cata à verdade que não é o todo, configu
ram o característico mosaicismo filosófico adorniano. A inver
são da ordem do pensamento, como diria Bergson, faz-se aqui
necessário como nunca - mesmo que esta inversão conduza à
desordem do mais fundamental. Vita brevis, ars longa: Ador
no teve de trabalhar como se dispusesse de todo o tempo do
mundo, examinando fragmento por fragmento, colecionando
os restos da história, pulando de pedra em pedra, como tão
magistralmente soube fazer seu amigo Benjamin - mas, dife
rentemente deste, de forma menos poética, menos agilmente
hábil, menos pontualizada lampejos de magistral intuição e
mais por picos sintéticos de inteligência, eternamente perse
guida pela potência dialética da negatividade. Mais uma vez o
paradoxo: um tempo limitado para uma perscrutação infini
ta, uma tarefa sintética ilimitada, onde subsistem as garrafas
atiradas ao mar de Horkheimer sem ao menos um envoltório
sólido, onde a mobilização de inteligibilidades, sua prontidão
quase sem esperanças é sua única esperança pós-desencanto.
Mas cada seixo no fundo do rio da história, desta história da
cultura que é uma história de barbárie, refulge com reflexos
próprios, detém e1n si seu sentido não-totalitário. Microsenti
dos em um microcosmo não-totalizante, à espera de uma filo
sofia feita micrologia, que possa se haver com a falta de vontade
da realidade em ser descoberta em suas excrescências, que pos
sa conviver com a falta de hábito da hesitação filosófica radical,
onde cada momento constitui sua melhor e mais pragmática
síntese, e que, apesar de tudo, esteja em cada momento aureo
lado de todo rigor possível. Engrenagem difícil, sem o óleo da
ideologia, com o atrito da realidade mais bruta possível que
pode ser mediada pelo pensamento, onde este atrito mesmo é
o tema de sua superação, em uma retorção dialética reticente
às tentações da tautologia ardilosa. ((Retorno às coisas mesmas':
A realidade pós-totalidade autocompreensiva é múltipla,
e múltiplos são seus fragmentos, transformados em problemas
95
para a reflexão. Como esta realidade ampla, também a realida
de artística tem de legitimar sua pretensão à existência - esta a
primeira frase da Teoria Estética.71 A arte porta assim um alar
gamento extremo de possibilidades que, mesmo podendo vir a
se metamorfosear em um estreitamento (ÀT, p. 9), reconduz à
sua refração original em ser abrangida por qualquer fórmula.
A arte torna-se, em sua realidade própria meta-sistemática, um
Outro - para além da naturalidade que, pensava-se, constituía
seu fundamento e que foi ao solo no estertor contemporâneo.72
A arte e o consolo de qualquer tipo - leia-se condescendência
com o statu quo e suas justificativas - são como nunca mutua
mente repulsivos. Os tecidos da arte são agora preenchidos de
tempo como nunca antes, e ela vale propriamente por aquilo
em que ela se tornou ou pode vir a se tornar, e é "interpretável
apenas pela lei de seu próprio movimento, e não por invarian
tes" (ÀT, p. 1 2). A arte tem, como nunca, vida própria.
Esta vida própria toma as rédeas de sua própria con
dução, nem que esta condução signifique a negação de suas
origens.73 "Pinta-se um quadro, e não o que ele representa",
no dizer de Schõnberg (ÀT, p. 14), pinta-se a identidade do
quadro consigo mesmo, esta identidade que é a inteligibili
dade que ele mesmo porta - sua vida sui generis, que não se
reduz ao sentido externo (ÀT, p. 1 4). A pulsação desta vida,
esta identidade pulsante, conduz à primeira grande intuição
expressa na Teoria Estética: "A identidade estética deve defen
der o não-idêntico que, na realidade, é oprimido pela com-
des Trostes zu bringen wie auf die von dessen Gegenteil" (ÃT, p. 10- 1 1 ) .
73 "[ ] fraglos indessen sind die Kunstwerke nur, indem sie ihren Ursprung ne
...
96
pulsão à identidade" (ÃT, p. 14).74 A arte não tem um poder
glorificador do fático, e, sim, preservador do que nunca pôde
chegar ao estado de fático. Eis aí um grande momento de con
flito com determinadas tradições artísticas que, instrumenta
lizando de forma aberta ou velada o factum artístico, de certa
forma tentam sequestrar para si o poder eminentemente sub
versivo da arte. Subversivo, porque potencialmente negador
da auto-legitimação da totalidade dos vencedores, que a arte
porta enquanto "antítese social da sociedade" (AT, p. 19) , não
dedutível diretamente desta, e que se subtrai aos argumentos
da auto-conservação (da sociedade), o que a sociedade bur
guesa nunca perdoou, e transforma as tentativas de sua mani
pulação comercial forçada em uma caricatura dela mesma.75
A arte participa da decomposição da contemporaneida
de através da decomposição de seus próprios materiais - pre
sença da alteridade em sua identidade/6 A felicidade da arte,
quando existe, é de fuga e não de gozo auto-suficiente (AT, p.
30), fuga da totalidade sem-saída da violência do fático. Por
isso, a felicidade da arte é fugidia, ao contrário do que tentam
fazer crer as galerias, museus e salas de concerto bem-com
portados. Dolorosa feli cidade, aceleração do tempo que se
desejaria em processo de paralisação, e que o reacionarismo
não suporta em seus ímpetos desagregadores. Mas este tem
po é duração de fragmentos; e, pela duração, "a obra protesta
contra a morte; a eternidade a curto prazo da obra de arte é
alegoria de uma eternidade que não aparece. Arte é a apa
rência daquilo que a morte não alcança". 77 Arte é aparência
97
daquilo que sobra depois do esboroamento da totalidade fi
nita, alegoria do não-integrado, não-sincronizado, primeira
antevisão do não-ser. 78 Por isso sua vida é sui generis: não
pertence às determinações da vida vitoriosa - é tristeza que
porta os fragmentos absolutizados e isolados das essências
outrora integradas e que decaíram com o desmoronamento
da totalidade (Cf. ÃT, p. 49).
Como sobra, a arte não pode ser bela, quer dizer ordena
da, auto-harmonizante. Sua feiúra contemporânea não é mais
do que a expressão de sua repugnância às ofertas de recon
ciliação harmonizante da história - pois toda reconciliação
neste contexto porta algo do cinismo absurdo da reconcilia
ção entre torturadores e torturados, entre carrascos e vítimas,
traz em si algo do fingimento essencial e da falsidade na crença
pretensa da possibilidade do esquecimento cínico da realidade
tal como esta foi e é. Intransigência absoluta nesta repulsa à
reconciliação, a arte mantém viva a esperança da utopia ( Cf.
ÃT, p. 55-56) que nunca se deu na história, apesar de qualquer
possível promulgação do fim da história. A arte tem de ser feia
porque o tempo é feio.
78 Cf. "Anotações sobre Kafkà' (Adorno, 1988, p. 261 -262). Sobre a forma como
Kafka edifica sua obra a partir de uma espécie de radicalização desse "desvio':
que faz com que certas obras kafkianas se aproximem de certos quadros de ani
mais irreais - ou habitantes de uma outra realidade - e pacíficos do expressionis
ta Franz Marc: "Kafka salva a idéia do expressionismo não ao se esforçar em
vão para escutar os sons primordiais, mas ao transferir para a literatura os
procedimentos da pintura expressionista. Ele se relaciona com essa pintura
da mesma maneira que Utrillo com os cartões-postais, que teriam servido de
modelo para suas ruas cobertas de gelo. Diante do olhar de pânico que retira
dos objetos toda carga afetiva, estas ruas s e petrificam em algo diferente:
nem sonho, que se deixa apenas falsear, nem macaqueamento da realidade,
mas sim a imagem enigmática dessa realidade, composta de seus fragmentos
dispersos. Várias passagens decisivas de Kafka podem ser lidas como se fos
sem descrições minuciosas de pinturas expressionistas jamais pintadas. No final
de O processo, o olhar de JosefK. incide 'sobre o último andar da casa situada no
limite da pedreira. Como uma luz que tremula, as folhas de uma janela abriram
-se ali de par em par, uma pessoa que a distância e a altura tornavam fraca e
fina inclinou-se de um golpe para a frente e esticou os braços mais para a frente
ainda. Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem?"'.
98
Mas a arte é também paciência. ((Die grossen Werke
warten'' (ÂT, p. 67). Algo de sua verdade as mantém eloquen
tes (Cf. ÃT, p. 67). Algo de seu conteúdo não se deixa formu
lar na lógica da domesticação do diferente, do subversivo.
A arte permanece como repositório das feiúras reais, ainda
que re-harmonizadas em sua própria lógica; sua dimensão
mimética, se por um lado nega-se a referendar a falsidade
intrínseca do cinismo, por outro não se pode furtar à repre
sentação da inverdade onipresente.79 Há tempo para tudo,
até - e principalmente - para o irremediavelmente ((feio". Há
tempo para a reintrodução do caos na ordem do falso, ou na
falsa ordem (Cf. ÃT, p. 144).
Porém, qual a modalidade deste caos de denúncia? O
caos consiste também na não-condescendência com o modus
operandi normal do espírito, consiste em não delegar a última
palavra à violência de toda obra de cultura que também é de
barbárie; o que menos aliena a obra de arte - apesar desta estar
condicionada pela alienação universal - é o fato de que, nela,
passou tudo pelo espírito e se humanizou sem violência.80 A
arte é o paradoxo do espírito não-violento, o enigma de uma
contradição sobrevivente, jogo de mostrar e esconder (C f. ÃT,
p. 1 82). A arte fala de menos, não se explica, não vive a explicar
o ser, ponto de interrogação que se nega à síntese81, escrita cuja
ausência de codificação é a melhor codificação de seu conteú
do (Cf. ÃT, p. 1 89). Singular paradoxo, paradoxo do singular.
Este paradoxo, esta estranheza, advém do caráter de
compromisso da arte para com a irresolução não-violenta. A
arte procura brechas na colcha conceitual que abafa as dife-
79 "Es ist die Fatalitat einer jeglichen kunst im gegenwartigen Zeitalter, das..o.; sie vo n
der Unwahrheit des herrschenden Ganzen angesteckt wird" ( A'J: 9 1 ).
80 "So sehr Kunst von der universalen Entfremdung gezcichnet u n d gestcigcrl
wird, darin ist sie am wenigsten entfremdet, dass alies an i h r d u rdt dcn (;eisl
hindurchging, vermenschlicht ist ohne Gewalt" (À'I� p. 1 73).
81 "Mit den Ratseln teilen die Kunstwerkc dic ZwicschHichtigkcit dcs Bcstimmlcn
und des Unbestimmten. Sie sind Fragczeichnen, cindcutig nicht cinmal durch
Synthesis" (ÂT, p. 188).
99
renças, colcha estendida pela boa vontade racional dos con
ceitos: "Quanto mais espessamente os seres humanos cobriam
o diferente do espírito subjetivo com a rede categoria!, mais
profundamente se desacostumaram do espanto perante o Ou
tro [ .. ] . A arte procura, debilmente, como em um gesto que se
.
82 "Je dichter die Menschen, was anders ist als der subjektive Geist, mit dem ka
tegorialen Netz übersponnen haben, desta gründlicher haben sie das Staunen
über jenes Andere sich abgewõhnt, mit steigender Vertrautheit ums Fremde sich
betrogen. Kunst sucht, schwach, wie mit rasch ermündender Gebãrde, das wie
dergutzumachen" ( AT, 191).
83 "Die asthetische Einheit des Mannigfaltigen erscheint, als hãtte sie diesem
keine Gewalt angetan, sondem wãre aus dem Mannigfaltigenselbst erraten"
(ÁT, p. 202).
84 "Sie ist die gewaltlose Synthesis des Zertreuten, die es doch bewahrt als das, was
es ist, in seiner Divergenz und seinen Widersprüchen, und darum tatsãchlich
eine Entfaltung der Wahrheit" ( AT, p. 216).
100
A realidade presente na arte é a realidade que não pode
ser real na não-arte da facticidade histórica do preponderante
e do hegemônico. A arte é a testemunha viva de uma realida
de diferente. Uma realidade que não é, que não teve tempo
para ser, paradoxo no seio do ocidente: o Não-ente, aqui en
tendido em seu máximo conteúdo de realidade. Não a impos
sibilidade afirmada do para-além-do-possível na dinâmica
da totalidade auto-suficiente, mas a possibilidade do possível
que, à revelia de postulados autônomos de sentido, vibra ex
centricamente em relação ao hábito ocidental de dotação de
sentido: o não-ser. "Que a obra de arte existe, significa que o
não-ente poderia existir. A realidade das obras de arte tes
temunha a possibilidade do possível".85 A arte é o postulado
de Parmênides, do ser do ser e do não-ser do não-ser, posto
em questão, apesar do levar a sério da constatação heradi
teana do ser da totalidade que se vem dando em combate;
sua impotência frente a uma realidade é o questionamento
desta realidade. A sua potência advém do reconhecimento
de sua impotência - "a arte quer confessar sua impotência
com relação à totalidade do capitalismo tardio e inaugurar
sua supressão'� 86 O jogo da totalidade não é aceito. A arte sabe
que, "se hoje nada mais é coerente, é porque a coerência de
outros tempos era falsa'' (ÃT, p. 236). A falsa harmonia do
passado, o pretenso equilíbrio do belo "natural': são desmisti
ficados como exercício de violência sobre o fraco e o diferente
- "Se a estética tradicional - Hegel inclusive - soube celebrar
a harmonia do belo natural, isto se dava porque ela projetava
a auto-satisfação da dominação sobre o dominado"87 e não
85 "Dass aber die Kunstwerke da sind, deutet darauf, dass das Nichtseiende sei n
kõnnte. Die Wirklichkeit der Kunstwerke zeugt für die Mõglichkeit des Miigli
chen'' (ÃT, p. 200).
86 "Kunst will ihre Ohnmacht gegenüber der spãtkapitalistischen Totalitiit ci ng<!
stehen und deren Abschaffung inaugurieren'' (ÃT, p. 232).
87 "Wusste die traditionelle Âsthetik, Hegel inbegriffen, Harmonic am Nat ursdlil
nen zu rühmen, so projizierte sie die Selbstbefriedigung von HcrrsdHtlt auCo;
Beherrschte'' (ÃT, p. 2 38 ) .
101
porque aquele fosse algum mundo de paz ou algum paraíso
perdido. Melhor para a arte, se esta pretensa harmonia veio
abaixo junto com o que ela pregava: a arte é poupada a partir
de agora da tentação de hipocrisias suavizantes.
A arte não serve para celebrar os vencedores, ou para re
produzir a dinâmica fática do desenrolar da história ocidental
como totalidade: "Nenhuma obra é aquilo celebrado pela esté
tica idealista tradicional, a saber, totalidade" ;88 pelo contrário,
a arte é uma das poucas realidades anti-totalitárias que tem,
de uma forma ou de outra, ainda podido respirar, ainda que
manietada em galerias assépticas ou salas de concerto pedan
tes. A arte é uma instância de legitimação do não-ser, do não
-ser contaminado a priori pelo ser definidor. A arte é uma das
mais reiteradas tentativas de, de uma forma fraca, mimética,
impotente - mas sincera - tentar salvar aquilo que a Totalida
de vem destinando aos esgotos da história.
Conclusões
por uma Estética não idolátrica e suas sugestões
88 "Kein einzelnes Werk ist, was die traditioneHe idealistische Asthetik rühmt, To
talitat" ( AT, p. 3 1 1 )
.
102
A arte e a harmonia da falsa conciliação do Mesmo e do Outro
- embora inimigas mortais - foram de certa forma obrigadas a
conviver em uma certa lógica de inteligibilidade, pois este era
o mal menor, necessário para que a Totalidade pudesse se refu
giar de sua própria insuportabilidade e incoerência lógica que
só se sustenta enquanto fruto de ardis racionais.
Que isto a partir de certo ponto se torna insuportável, é
fato patente, que independe de seu reconhecimento por inte
ligências canhestras; a degeneração da arte - e esta é a grande
intuição de todos que, em qualquer tempo, organizaram ex
posições de "arte degenerada" - indica de forma totalmente
inequívoca a degeneração do pacto realista ou naturalista ou
harmônico celebrado nos primórdios da estética idealizante:
a degeneração de um determinado mundo, de uma determi
nada era e de suas crenças.89 A arte é reconduzida, por sua de
composição, à sua realidade precípua: não poder fingir indife
rença junto ao não-indiferente, ao Outro, ou melhor, junto ao
seu esmagamento e opressão. Seus fragmentos provocantes, a
desagregação dos elementos que costumam chancelar na arte
uma promessa unificadora e condescendente, alinhavam uma
visão repugnante à Totalidade: a visão de que o Não-ser possa,
afinal de contas, existir. A verdadeira obra de arte contempo
rânea é a quebra de um pacto, um pacto que, de certa forma,
já foi quebrado desde que a primeira obra de arte veio à luz. O
mundo se afoga em falsidade: a arte utiliza-se desta falsidade
para sustentar-se no mundo, reúne energias ao perceber sua
própria falsidade social refletida na pretensa sincronia de sua
essência com a essência da violência totalitária, e alça -se para
além dos limites estritos que esta falsidade promulga: eis uma
dinâmica inaceitável para a Totalidade.
Levinas denuncia na arte feita falsidade a idolatria da
arte totalizada, espelho fiel da Totalidade fática: automatismo
103
e neutralidade, contaminação da humanidade com a desper
sonalização dos fantasmas e das sombras da realidade nunca
percebida como tal. Em um mundo falso, a possibilidade de
uma falsidade com a mais plástica aparência de verdade: eis o
que tem de ser combatido. Eis a essência da idolatria, ou, o que
dá no mesmo, o núcleo de toda violência, dada à luz no parto
da história, na história pano-de-fundo da Totalidade que es
tende suas asas consoladoras por sobre os restos da realidade
violentada, tentando convencer que a violência não existe pro
priamente, apenas o desconsolo do que não se inclina à mera
lógica do ser e do não-ser. Neste sentido, o estudo da Totalida
de - inclusive aquele realizado pela arte - é a quintessência da
crítica. Crítica é o estudo da negação da Alteridade.
Adorno vê na aparência de verdade a maior das não-ver
dades, a melhor das sombras que se dá no melhor dos mundos
possíveis para a Totalidade não-verdadeira. Que esta grande
hipocrisia possa ser analisada apesar de sua grande crise destes
séculos XX e XXI, apesar das idas e vindas da racionalidade
sequestrada por sonhos de grandeza; que nos interstícios des
ta grande realidade racional e compacta ainda possa pulsar o
não-idêntico, o diferente, e que a este diferente, a este disper
so e diverso, ainda se possa achegar de forma essencialmente
não-violenta: eis o mistério da inteligibilidade própria de uma
estética que respeita as obras como tais sem reduzi -las a vari
áveis de espécie alguma, ou seja, que não cultiva as aparências
de pretenso equilíbrio num mundo cuja marca mais notável é,
exatamente, a do desequilíbrio em todos os planos possíveis, do
psíquico ao ecológico, do social e econômico ao onírico e ar
tístico: frutos maduros da reificação da consciência. Encontrar,
apesar da postulação da vida da Totalidade, o que restou de
vida verdadeira para além - ou aquém - das possibilidades da
vida da Totalidade: eis a imensa tarefa desta estética negativa,
um outro nome para a ética do não-idêntico ( Cf. Souza, 2004b ).
A percepção é a mesma em ambos: o verdadeiro é o que
não é o todo da Totalidade. A obra de arte deve vir a ser um
1 04
posto avançado nesta reconquista da credibilidade pelo Não
-ser. Sua urgência é a urgência do sofrimento. A mais aguda
das racionalidades não pode ignorar este outro lado da his
tória; este reverso da pretensa credibilidade da violência do
neutro. A racionalidade ético-estética mais aguda acaba por
perceber que a realidade possui infinitas dimensões. E esta
percepção é um bom começo.
1 05
A ASFIXIA DO NÃO-IDÊNTICO:
Kafka, leitor do século XX
107
O fato é que Kafka é um autor cuja grandeza costuma se
refugiar habilmente de seus intérpretes; todavia, interpretá-lo
é apesar de tudo necessário - sem Kafka, não se entende abso
lutamente o século XX, a profunda desordenação feita opaci
dade que o acompanha, nem sua grande crise: a provavelmente
maior crise civilizatória da história da humanidade ocidental.
Sem Kafka, todo um espectro de novidade permanece na obs
curidade da má-compreensão. Com Kafka, o mundo se agudi
za até um ponto visceralmente insuportável, mas necessário.
Filosoficamente considerada, a arte de Kafka poderia ser
aproximada de uma concepção de literatura extremamente
concreta, em um sentido diferente daquele que normalmente
se considera como sendo a forma especificamente literária de
concretude, ou seja, a realidade ínsita à literatura enquanto tal.
Pois a concretude aqui reverbera estranhamente apesar da li
teratura, ou seja, deixa de dizer-se no momento em que a letra
elaboradamente a circunscreve e principia seu tenso, incom
parável discurso, no instante exato em que a literatura chega a
seu termo próprio, seja em termos formais, seja em termos de
quaisquer intenções que lhe pudessem ser atribuídas. Muitas
literaturas têm na singularidade e na criatividade agressiva a
sua bandeira; mas a arte de Kafka é uma das poucas em que o
extrapolar por excelência do comedimento das palavras tor
na-se seu verdadeiro tecido: nenhuma de suas palavras atrai
para si a atenção, nenhuma pretende enfeitiçar a qualquer
pretexto e, apesar disso, não podem, a contragosto, deixar de
fazer tal, e de tal forma fazem isso, que o mundo se revela
verdadeiramente e sua segurança se distorce, a complexidade
artificial da vida apresenta-se em sua dimensão de ilogicida
de original com ares de uma infinita naturalidade, apesar do
discurso estranhamente neutro, um irritante naturalismo de
evidências que contraria e supera magistralmente, incompa
ravelmente, qualquer naturalismo artificial, qualquer pretensa
elaboração metafísica prévia, qualquer indecisão no acopla
mento às camadas fundas da realidade. Um grande paradoxo
1 08
kafkiano: da indecisão para além dela, e sempre retornando,
incomodamente, a ela, a um fundamentum inconcussum de
estranheza e proximidade, de Ser, da real perplexidade - <<após
qualquer interpretação, o que sobra de incompreensível em
Kafka - e é muita coisa - repousa sobre uma base tão inaba
lável quanto de difícil acesso. Eis porque seus escritos, com
todo seu poder de criar a perplexidade, não deixam ao mesmo
tempo nenhuma dúvida sobre a sua 'verdade interior"' (Heller,
1 976, p. 28). ((Verdade interioe': incapacidade de sucumbir à
condescendência das palavras, de suavizar a irredutibilidade
do real a um todo harmonioso e bem -construído: espelho do
tempo. Ao contrário do que muitas vezes se pensa a partir
de parâmetros ((realistas", a perplexidade, em Kafka, não é o
alvo principal do discurso, apenas um corolário incômodo da
hiper-realidade desvelada (origem de qualquer realidade des
crita no naturalismo), a qual não finge ser de outra forma. É a
esta «hiper-realidade" que o discurso se dirige, ou seja, esta é a
sua realidade própria.91
A pretensa «incompreensibilidade" da obra kafkiana re
pousa talvez sobre uma certa precariedade original de compre
ensão, um involuntário vício «realista" - mas realista de menos
- , uma tendência de iluminação racional, tentação de sua e de
nossa época - a qual não costuma aceitar nichos escuros no
bloco do que supõe ser a ((realidade': É de ousar-se dizer que a
realidade mais densa concebida nestes moldes é ainda muito
1 09
fraca, excessivamente parcial, seja para sustentar a estrutura
interna das obras, seja para servir de parâmetro comparativo a
uma determinada elucidação da teia do discurso literário. Em
Kafka, toda tentação de suavizar a realidade de suas· arestas
mais incômodas, de aliviá-la de sua incomodidade, tem de ser,
naturalmente, rapidamente abandonada - mas isto é apenas
uma pálida dimensão da questão e não é simplesmente sufi
ciente: há que se perceber o quão pouco a cronologia da reali
dade cotidiana, o correr compassado dos instantes sucessivos
e prenhes de pequenas promessas, pode acompanhar a hiper
-realidade concentrada desta literatura, a qual é, em um sen
tido muito preciso deste termo, ((anti-literária': Franz Kafka é
um homem às voltas com um volume excessivo de elementos,
de realidade, um bloco de incomodidade, e que não se pode
desfazer deste peso, ainda que mergulhando profundamente
em algum delírio ou sonho, os quais se revelam, na unicidade
e solidão do Ser, nada mais do que apenas uma outra face,
uma face obscura e neutramente cruel, real sempre, deste Ser
repleto: ainda as mais diáfanas, as mais distantes imagens são
reais demais, excessivamente presentes à indeclinável presen
ça kafkiana, como Fraulein Bürstner afastando-se lentamente
ao final de O Processo. 92
O tempo de Kafka, ao qual ele, em sua vida, com tanta
inabilidade não consegue se integrar (Cf. Heller, 1 976, p. 50),
é um tempo saturado de presente e de presenças, ele existe em
função do ser parmenideano, é uma artística face deste Ser, e
1 10
ser no presente do indicativo, repleto e onipresente, de des
dobramento frenético, sufocado de sobras, ao mesmo tempo
guerra hiper-concentrada dos espaços no qual este mesmo Ser
se dá, como já intuíra Heráclito. Esta luta perfeitamente surda,
pesadamente silenciosa, urbana, de gabinete, (em contrapon
to com os grandes estrépitos dos canhões da guerra aberta), é
sentida por Kafka como um a estranha luta interior, a qual ele
é e na qual perecerá (Cf. Heller, 1976, p. 50). Um espantoso
descompasso entre o interior e o exterior do Ser - eis o epi
fenômeno desta luta: ((os relógios não estão iguais: o interior
avança alucinadamente num ritmo diabólico, demoníaco, ou,
na melhor das hipóteses, anti-humano; o exterior, prossegue
em seu ritmo habitual. Que mais pode ocorrer, senão uma se
paração violenta; e é isto o que ocorre, ou ao menos, eles se
chocam de um modo terrível" (Kafka apud Heller, 1976, p. 52).
Eis o seu tempo, simultaneamente de sua vida e de sua morte,
vida de um ocaso e morte de uma era.
Os espantosos mundos de Kafka são o resultado de uma
tensão extrema, que culmina assim em neste espectro de hi
per-realidade, de concentração de Ser, para a qual os parâme
tros normais, sejam da realidade cotidiana ou interpretada,
sejam da fantasia e da loucura, sejam da concretude literária
e da recorrente normalidade de criação de mundos sucessivos
de sentido, são simplesmente insuficientes. Todos os mundos
dão-se ao mesmo tempo: trata-se de uma literatura visceral
mente anormal - não dá, nem à intuição nem à razão, razões
para crer que possam vir a captar sua essência e, talvez por
isso, exerça um tal poder de sedução sobre espíritos inquietos,
por sua vez imersos em tensão. Tensão absoluta, não admite
relatividades sem, porém, utilizar-se de quaisquer argumentos
para declinar desta admissão: chancelas e contra-chancelas
são aqui, simplesmente, fracas demais. O turbilhão é excessi
vamente forte, plastificado embora na sucessão das palavras; o
milagre é que as palavras consigam, apesar da intensidade que
pulsa sob elas, permanecer razoavelmente conectadas. A arte
111
literária de Kafka é uma arte improvável: nada, nenhuma aná
lise prévia, poderia prever algum tipo de sucesso nesta tarefa
ingrata à qual o autor se propôs - des-neutralizar a realidade,
neutralizando a expressão em uma lógica excessivamente in
teligível - desde que sejam abandonados os parâmetros nor
mais, mornos, razoáveis, medíocres, de inteligibilidade.
As raízes desta tensão hiper-concentrada, desta incômo
da criatividade em contínua transmutação na direção de uma
embriagadora estranheza, desta hiper-realidade, interessam
sobremaneira à filosofia que pretende se aproximar dos cons
titutivos e das raízes profundas do século XX. E isto porque
exatamente este é o século XX: o mundo das realidades su
focadas, onde os triunfos esmagam as sementes abortadas do
novo. Kafka descobre o Ser presente em sua presença plena e,
portanto, perfeitamente indiscutível; excesso de concentração
de um Ser essencialmente não triunfante, mas antes incomo
damente espalhado ao longo da infinidade dos instantes, ex
cessivamente opaco. Cada palavra com uma auréola de discri
ção, sugerindo muitíssimo mais do que diz - a obra kafkiana
destila um humor muito particular, tão particular que não
tem espaço cativo no circo da história: tem de criar seu pró
prio espaço nos poucos interstícios do bloco de realidade que
continuamente traduz. A obra de Kafka: uma grande, incom
parável descoberta - o desvelamento do hiper-realismo antes
e depois de qualquer realismo e idealismo.
A espantosa solidão
1 12
Fome em sua jaula, dos desencontrados segmentos da Muralha
da China, do assustado animal da Construção ou de Joseph K.
em todos os momentos de sua vida ao longo do Processo, não
obstante os diálogos e as mulheres. Em Kafka, o coletivo real
não existe, a não ser talvez como desejo distante de humanida
de - como quando Karl Rossmann observa não sem expectati
va a multidão no porto, ou como sombra amorfa, automática,
em Josefina, a cantora; não existe a inter-humanidade, ape
nas a humanidade solitária, que ao renunciar à coletividade
renuncia também aos vícios coletivos; humanidade expres
sa de uma vez para sempre em figuras dela sobrecarregadas,
repletas de uma carga não intersubjetivamente compartilhá
vel - um tempo pesado, uma figura da essência dos tempos
modernos, um presente que é, antes de tudo, um estranho
passado não-correspondido. Uma solidão cuja obviedade nos
personagens é intensa, chocante, de realidade indubitável, e
que dispensa completamente circunvoluções explicativas, ate
nuações semânticas condescendentes, que pudessem iludir o
leitor levando-o a pensar que a realidade não é tão intensa
quanto aparece. É esta solidão que permite o verdadeiro corte
vertical nas estruturas da realidade executado por Kafka. A
solidão, a espantosa solidão em sua crueza e ausência de malí
cia estética, conta-se no rol das mais profundas das realidades
do mundo, e a mais bem captada por Kafka, trazida por ele
- sem eufemismos à consciência de uma época perdida. 93
-
113
Esta solidão se apresenta, por outro lado, de forma "purà':
não há espaço para intimidades ou muros bem -construídos
em torno a uma mônada especial, escolhida para simbolizar
todas as outras - aliás, toda sua obra assemelha-se a um desa
bar sincopado de muros e muralhas de todo tipo que aparen
temente permanecem inabaláveis.
1 14
a Josefina, a cantora, quando sua voz se calar definitivamente;94
a inutilidade dos ingentes esforços do Artista da Fome na
busca solene da auto-perfeição e da tolerabilidade da sobre
vivência, a indefinição entre a vida e a morte do Caçador
Graco - tudo isso configura um maciço ancestral, no qual
cada palavra �em excesso é um pecado imperdoável porque
inútil. Em todos os casos, não há espaços para artifícios retóri
cos ou para sutilezas literárias: a realidade simplesmente ocu
pa todos os espaços, é una, intensa e indiferente. A realidade
de Kafka é a solidão - os termos "solidão" e "realidade" sofrem
de uma quase convertibilidade. Vida excessivamente concen
trada em um determinado pólo de auto-referência solitária,
um ponto focal que não gostaria de assumir tal responsabili
dade, mas a assume, a bem da interpretação dos tempos, e in
terpretação extremadamente sincera, da qual a mediocridade
não ousa se aproximar: toda mediocridade recai no ridículo,
na evidência de seu vazio, ao simplesmente ousar tentar inte
ligir um ritmo que definitivamente não é o seu. Esta foi a vida
do autor Franz Kafka em seu insuportável escritório burocrá
tico: o ter de traduzir o quanto a mediocridade do mundo lhe
é estranha, sabendo, não obstante, que tal explicitação é em
si impossível e destinada lamentavelmente ao fracasso - pois
pertence à essência da mediocridade entender-se não-estra
nha, nem a si mesma, nem a nada, de tal forma invade os es
paços, como o odor da decomposição que se dissemina pelos
espaços e que narizes pouco sensíveis ou já acostumados nem
ao menos percebem mais; quem nunca experimentou o que é
vida não aguenta evadir-se do estado de morte. Kafka f areja a
decomposição dos tempos. Sua vida, sua solidão, foi ter de li
dar com esta incomodidade; sua arte, oferecer, de forma extra
ordinariamente indubitável, esta incomodidade à posteridade.
1 15
A figura de Kafka se insere com clareza na última gera
ção razoavelmente caracterizável como pertencente ao grande
movimento de assimilação judaico-alemã em sua última fase
- um movimento histórico extremadamente complexo - mes
mo sendo o contexto do escritor considerado precisamente
em suas particularidades. Este movimento de assimilação,
remontando aos tempos do Iluminismo alemão e tendo em
Moses Mendelssohn um de seus inspiradores mais diretos,
significava, por si só, uma situação de extrema tensão que se
inscrevia no cruzamento entre vidas particulares e contextos
históricos coletivos. Os pais, as gerações imediatamente ante
riores em processo de assimilação, haviam construído, apro
veitando a disponibilidade histórica relativa e com grandes es
forços, seu espaço social; o que é válido para Hermann Kafka
o era também provavelmente para muitas famílias com filhos
menos conhecidos:
O que foi válido para Kafka, e que ele precisou com tal
clareza - que os filhos mantinham "as patas traseiras atoladas
no judaísmo paterno, enquanto as dianteiras não se conse
guiam firmar em terreno novo. O desespero daí resultante era
sua inspiração" (apud Heller, 1976, p. 1 8 - 1 9) - é provavelmen
te um lugar comum para todas as grandes produções judaico
-alemãs da época, mas também para a simples sobrevivência
em meio ao tumulto dos tempos e à incerteza geral reinante,
que não era, naturalmente, apanágio de um determinado con
texto particular, mas penetrava a cultura como um todo.
1 16
Mas esta particularidade cultural não permanece fecha
da em si mesma; ela sugere a possibilidade de pensá -la como
parâmetro interpretativo da tensão cultural em geral. O que se
dá é que, ali, os frutos desta tensão criativa floresceram corn
intensidade inusitada. As tensões individuais produtivas da
época, das quais Kafka é uma instância paradigmática, tinham
lugar porque se davam em uma cultura, ela mesma, tensio
nada ao extremo, repleta de pontos de contato internos e ex
ternos entre diversas dimensões, pontos de contato que eram,
também, pontos de atrito, e atrito forte. Assim, Kafka não pode
ser entendido se não o for no fulcro criado exatamente por
esta excessiva aproximação do diferente: culturas diferen
tes, línguas, individualidades e cosmovisões profundamen
te diferentes. Sem isso, sem estes incômodos e estes choques
dilacerantes, teria permanecido um escritor excessivamente
circunstanciado para passar, com tal autoridade, à universa
lidade do sentido. Em outros termos: é porque existe a tensão
que existe a construção. São termos mutuamente referentes e,
poder-se-ia adiantar, até certo ponto generalizáveis. O certo
é, porém, que nenhum momento de intensa tensão cultural
deixou de dar à luz a produções que podem levar a re alida
de a coincidir consigo mesma, ou seja, que podem permitir
o rompimento localizado ou mais generalizado do envoltório
ideológico - do envoltório de insustentabilidade real - da To
talidade, das hegemonias bem-pensantes.
Dessa forma, as camadas em processo final de assimila
ção concluída (acontecimento sobremaneira raro, e cuja ra
ridade se deve, também à infinidade das variáveis envolvidas
para além das vontades pessoais) ou abortada (situação mais
comum e dolorosa, mais tensa e profícua) eram depositárias
de vários níveis de tensão potencialmente produtiva, ou pro
dutiva em níveis inusitados. Além da tensão particular a que se
viam compelidas por seu próprio status de indefinição, encar
navam também a esperança de objetivação da tensão reinante
além do mundo de suas particularidades, ou seja, na cultura
1 17
europeia em geral, em estado de indefinição e profundo mal
-estar na situação de virada de século e de sonhos já a estas al
turas mais ou menos destroçados. Não detinham, obviamente,
o monopólio da criatividade, mas esta se exprimia, ali, de for
ma particularmente dolorosa, terrivelmente intensa e impos
tergável, muitas vezes sufocante e desesperançada, outras vezes
cuidadosamente sublimada e "bem organizadà' - mas sempre
penetrante, penetrante no mundo do consenso tolo e da im
previsão, desnudando definitivamente o rei que "já está nu':
Esta criatividade se traduz, em Kafka, sobre a forma de
um estranho e incisivo já referido corte vertical nas sucessivas
camadas da realidade, até que nenhum disfarce mais sobrevi
va: nenhuma meia-palavra poderá, a partir de então, ocupar o
espaço da palavra inteira; nenhuma amplidão, nenhum hori
zonte sedutor se substitui ao bloco que ocupa o espaço. E, por
isso, é Kafka um autor definitivo.
118
dominado pelo tempo; e, ao longo da descrição, o discurso
- nota característica do Kafka maduro - permanece a uma
prudente distância do leitor.
1 19
Ninguém observava propriamente o seu mundo; seu
mundo não pertencia à ordem das realidades observáveis. Pos
tava-se alto demais para a interpenetração com mundos estra
nhos: era ali que transcorria sua vida, inacessível a olhos· baixos.
Mas a paz, a vida tranquila do trapezista, é perturbada;
as viagens inevitáveis do circo, os deslo� amentos na direção
de novas praças de apresentação, tudo isso, não obstante os
esforços do dono do circo, se constituía em perturbação da
harmonia interna do artista do trapézio "Por mais bem suce
didas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova
excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam
seriamente os nervos do trapezistà' (Kafka, 1995, p. 11).
Esta paz relativa, esta sobrevivência tolerável, não está
destinada a durar. Em uma das viagens, o trapezista segreda
ao empresário, que o acompanhava, que dali em diante neces
sitaria sempre de dois trapézios, e não de apenas um, para a
realização de seu número. Em nenhuma hipótese concorda
ria em trabalhar o artista com apenas um trapézio - "parecia
estremecer só com a ideia de que isso acontecesse novamen
te" (Kafka, 1 995, p. 1 1 ) - não obstante as promessas e a co
miseração do empresário. Tudo foi inútil, porém; o ritmo se
intensifica - todas as promessas do empresário tinham sido
inúteis para abordar a solidão e a intensidade do sentimento
do trapezista.
120
Não há o que penetre no desconsolo do trapezista, o que
o justifique e o anule, uma vez acontecido: unicidade espanto
sa e definitiva do indivíduo, percepção de indigência; apenas
a exaustão humana se sobrepõe, em termos muito relativos, à
dor humana. Trata-se de uma espécie de protótipo perfeito do
nascimento. Nenhuma linguagem cicatriza o ferimento vital, a
ninguém é dado anulá-lo para sempre - a inscrição no tempo
e no espaço, no decorrer indiferente dos fatos, dos sucessivos
aconteceres, esta inscrição incômoda e real é definitiva, pois a
condição humana não pressupõe gradações. Assim, nenhum
consolo é definitivo, nenhum consolo é propriamente real;
bem o sabe o empresário, o qual, mais experiente, mais realis
ta, não guarda ilusões de redenção: a cadeia de pensamentos
o cerca, envolvendo-o na realidade presenciada, em sua gravi
dade. Lúcido, embora não excessivamente lúcido, o empresá
rio compartilhava da preocupação:
121
definitivamente existente sem surpresa excessiva, sem descon
tentamentos inúteis, sem existencialismos -: apenas consigo
mesma - solitária.
Um Kafka al modo riverso, com espaço para a preocupa
ção genuína de alguém por outrem? Não, apenas um Kafka hi
permaduro, de uma sobriedade absoluta que faz justiça a uma
intensidade absoluta.
122
tudo, neste texto, tem o mesmo valor, um mesmo sentido de
repleção e asfixia num tempo e espaço infinitamente estrei
tos, refletido na infinita estreiteza mental da mulherzinha que,
exatamente por isso, é absoluta..
Pois a pequena mulher invade todos os espaços com sua
presença; toda ela é frenesi e sua presença é já pura tensão, ou,
pelo menos, notável retesamento; denota uma definitiva in
comodidade emoldurada por uma agilidade que garante que
nada, nenhum nicho da realidade, lhe escapa; está, sempre,
prestes a devassar todos os escaninhos da existência.
123
da mulherzinha é sem virtualidades nem possibilidades novas,
pois tem como sinônimo uma ide ia fixa; todo o seu sentido
deu-se de uma vez, inteiramente, no incômodo extremo e no
·
sofrimento particulares, no presente infinito. Presente, passado
e futuro resumem-se nisso: incômodo sofrimento e apreensão
advinda da continuidade desse sofrimento. O narrador nada
pode contra isso; sua ação é inútil e sem sentido: "Já tentei uma
vez apontar-lhe o melhor caminho para pôr um fim a esse dissa
bor permanente, mas com isso levei-a a uma comoção tamanha
que não repetirei mais a tentativa" (Kafka, 1995, p. 14). Não há
tempo para tentativas ou apaziguamentos, para a racionalida
de ou a ponderação bem -comportada: o tempo está completa
mente ocupado, repleto até o seu último instante dolorosamente
contraído no presente, preso absolutamente a si mesmo.
É tão intenso o frenetismo do aborrecimento, tão com
pleta a carência de alternativas, que o narrador quase cede à
tentação de uma espécie de paranóia particular " [ . . ] suspei
- .
124
como eu tanto a falta de perspectiva de seus esforços, quanto
a minha inocência e a minha incapacidade para correspon
der, mesmo com a melhor das vontades, às suas exigências,
(Kafka, 1 995, p. 18). Por nenhum lado, desde nenhuma pers
pectiva, é possível romper o círculo diabólico do frenetismo;
trata-se de um redemoinho monstruoso, um mundo perfei
tamente fechado, totalmente sem camadas subjacentes àquilo
que dele é apreensível, ao seu epifenômeno total - sem inters
tícios, em uma paradoxal transparência perfeitamente opaca.
A irracionalidade franca do caso impede que se expresse
com clareza seu real conteúdo; o amigo consultado a respeito che
ga a sugerir um conselho disparatado, aconselhando o narrador
a viajar por algum tempo - mas nenhuma racionalidade externa
penetra na carapaça do auto-referente (Kafka, 1995, p. 19). Ora, o
caso não é de viagem; em que qualquer viagem poderia contribuir
para amenizar a intensidade da situação? Na verdade, esta intensi
dade já está dada de modo completo, em plena completude de Ser
que se afoga em si mesmo, não podendo nem se atenuar, nem se
exacerbar, podendo, apenas, sufocar-se em si mesma.
Ocorrem, sim, mudanças; mas essas mudanças nada têm
a ver com a essência da questão - apenas com a percepção des
ta por parte do narrador, onde este já reserva um espaço para
a intrusão de um crescente nervosismo que se insinua no todo
125
acaba deixando algum tipo de vestígio atrás de si, uma seque
la, em uma espécie de antevisão. A sua superação, porém, não
advém de seu enfrentamento; é a ausência de enfrentamento,
a manutenção do quase-insuportável, que se faz presente no
dia-a-dia de modo mais suportável, não para o narrador ou
um ator qualquer, mas para a situação como um todo - situa
ção preenchida por irritação e sua manutenção, em um ritmo
sem desvios de sua lógica - "fico mais calmo diante da coisa
quando creio reconhecer que uma decisão, por mais próxima
que pareça estar, não virá [ ... ] nada de decisões, nada de expli
cações [ ... ] o mundo não tem tempo para prestar atenção em
todos os casos" (Kafka, 1 995, p. 20). Nada no mundo é capaz
de conduzir à inelutabilidade de uma decisão, quando todos
os atores potenciais, mergulhados na anomia, alimentam-se
de sua própria inutilidade, inutilidade para romper a estrutura
rítmica compacta e para inserir, no corpo da questão, a mais
leve sugestão de uma mudança real:
1 26
torno ao seu próprio eixo, a pertinácia infernal da irritação
da mulher, sua irracionalidade extrema que se alimenta de si
mesma, sua anti-discursividade autodestrutiva, a falta de no
vidades reais a questionar esse todo compacto, tudo isso não
pode deixar de inquietar - ainda que o narrador, humana
mente, tente eufemizar a intensidade dessa inquietação:
Não tem nada a ver com o sentido real da coisa o fato de que com
os anos me tornei um pouco inquieto [ ...]. Mas em parte trata-se
apenas de um sintoma da idade[ ... ] mesmo que alguém, quando
jovem, tenha tido um olhar um tanto à espreita, isso não é leva
do a mal, não é notado nem por ele próprio; mas o que sobra na
velhice são resíduos e cada um deles é necessário, nenhum é reno
vado, todos ficam sob observação [ . . ]. Mas também aqui não se
.
127
***
128
um foco de tensão real e insuportável, hiper-real, de ruptura
da auto- inteligibilidade do bloco maciço em que se constitui a
Totalidade. Pois, para perseguir o todo auto-referente em sua
inesgotável capacidade de metamorfose, somente uma inte
ligência de índole tão lúcida como a de Kafka, que o capta
pela dimensão da - paradoxal, para quem sabe do que a To
talidade é capaz - insignificância desta mesma Totalidade. É
exatamente aí, neste ponto específico de captação, que Kafka,
ao nos ((prometer" a luz, nos conduz, em realidade, à sombra
mais luminosa e colorida que possamos conceber - aquela do
auto-apaziguamento da crítica na eternidade do presente: ver
dadeira atemporalidade mortal, agora sem nenhuma possibi
lidade de refúgio nem eufemismo possível: (auto)retrato de
um tempo perfeitamente asfixiado em si mesmo, legítima e
etimológica a-gonia.
95 Para uma análise pormenorizada desse conhecido texto kafkiano desde o ponto
de vista de categorias como "justiça" e "linguagem'�
129
onipresente embora morto, sempre certo, a um tempo "solda
do, juiz, construtor, químico, desenhista" (Kafka, 1998, p. 39);
embora inanimada, está animada por uma intensa dimensão
de humanidade, mas uma humanidade despida de ·humano:
o antigo comandante, já falecido, ali não está para apreciar a
intensidade e a sofisticação de sua invenção - apenas o novo
oficial, subalterno mas soberano, nomeado juiz na Colônia
Penal, pode assumir a responsabilidade de acionar um apa
relho tão perfeito, uma máquina tão incomparável. Uma vez
posta a caminho, nada deterá a Máquina; nenhuma lógica que
não a sua prevalecerá.
Mas a Máquina não está apenas no aparelho de metal;
está também na própria estrutura que ocasionará seu funcio
namento. O condenado terá a sentença - "honrarás a teu su
perior" inscrita na própria carne: nenhum tecido é imune à
Verdade, pois ela atravessa a totalidade da realidade e é sempre
Justa: "O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é
sempre indubitável" (Kafka, 1998, p. 4 1 ) . Trata-se de uma cul
pa limpa, asséptica, sem hesitações, considerações ou resíduos
de nenhum tipo - assim como a execução em si é limpa, pois
o sangue do condenado e a água da limpeza "são depois con
duzidos aqui nestas canaletas e escorrem por fim para a cana
leta principal, cujo cano de escoamento leva ao fosso" (Kafka,
1998, p. 44). Um Processo perfeito - nada sobra de impurezas,
nem da Justiça, nem da Injustiça, nem da Máquina: o impuro
é subsumido na perfeição do ato realizado, irretocável, de uma
vez para sempre inscrito no rol infinito dos acontecimentos.
Bem estava o explorador interessado em entender a es
crita que seria inscrita no corpo do condenado, "mas enxer
gava apenas linhas labirínticas, que se cruzavam umas com
as outras de múltiplas maneiras e cobriam o papel tão den
samente que só com esforço se distinguiam os espaços em
branco entre elas" (Kafka, 1998, p. 46). O interior da Máquina
é sempre infinitamente complexo, ninguém sabe o que diz
exatamente (pelo menos não em um ato de inteligência clara
130
e simples), nem o que realmente expressa, nem como fun
ciona, de onde afinal provém seu discurso, mas todos devem
saber que funciona. A penetração em sua inteligibilidade é di
ficílima: "Não é caligrafia para escolares. É preciso estudá -la
muito tempo. Sem dúvida o senhor também acabaria enten
dendo" (Kafka, 1998, p. 46) - como bem explica o oficial ao
explorador. Sua Essência, porém, é apesar de tudo penetrável,
uma vez separada do in essencial: "É preciso [ ... ] que muitos
floreios rodeiem a escrita propriamente dita; esta só cobre o
corpo numa faixa estreita; o resto é destinado aos ornamen
tos" (Kafka, 1998, p. 47). A Máquina, seus produtos, têm uma
estrutura; mas esta estrutura não é o que parece - é infinita
mente mais complicada e ornamentada.
Nem tudo, porém, são flores. Ainda a mais perfeita Má
quina tem pontos de atrito entre suas delicadas partes cons
titutivas internas. Durante a demonstração da máquina feita
pelo oficial ao explorador, ela range, apesar de toda sua per
feição - '(Tudo entrou em movimento. Se a engrenagem não
rangesse seria magnífico" (Kafka, 1998, p. 4 7).
A sentença dá-se ao longo de um longo tempo, corres
pondente à sua gravidade e à justeza de sua aplicação. Apenas
a partir da sexta hora que decorre desde que o condenado pas
sou a receber sua sentença em .seu corpo, ele principia final
mente a entender - momento glorioso:
131
Mas é, como já dito, uma inteligibilidade difícil - "O ex
plorador tinha inclinado o ouvido para o oficial e, as mãos no
bolso da jaqueta, observava o trabalho da máquina. O con
denado também olhava, mas sem entender" (Kafka, 1998, p.
49) e este seu não-entendimento expõe sua nudez e sua im
potência perante a Máquina: [ .. ] o soldado, com uma faca,
" .
lhe cortou por trás a camisa e as calças, de tal modo que elas
caíram; o condenado ainda quis segurar a roupa para cobrir
a nudez, mas o soldado o levantou no ar e arrancou dele os
últimos trapos" (Kafka, 1998, p. 49).
Uma correia da máquina rebenta, no momento em que
ela é posta em movimento; mas o oficial não deseja que tal
fato possa pôr em questão a excelência do conjunto, princi
palmente quando se leva em conta sua infinita complexidade
- cc- A máquina é muito complexa, aqui e ali alguma coisa
tem de rebentar ou quebrar; mas não se deve por isso chegar
a um falso julgamento do conjunto" (Kafka, 1998, p. 50). Afi
nal, os recursos para a manutenção da máquina são cada vez
mais limitados. O passado sempre foi melhor, e esta consta
tação é sempre um bom pretexto para a intrusão do patético
e do desconsolo na desordem que testemunha a decadência
do presente:
1 32 .
que o influenciam deve perecer a obra de toda uma vida, como
esta? - e apontou para a máquinà' (Kafka, 1 998, p. 53-54).
Antigamente, as execuções eram acontecimentos públicos de
imenso significado e alcance:
1 33
linhas com o dedo mínimo, a uma altura bem distante do papel,
como se não pudesse de forma alguma tocar a folha, para desse
modo facilitar a leitura do explorador [ ... ] - Seja justo, é o que
consta aqui, disse outra vez o oficial. - Pode ser, disse· o explora
dor. - Acredito que sim:' (Kafka, 1998, p. 67-68).
O oficial inicia então sua auto-imolação. Para surpresa
do explorador, até os rangidos que ouvira anteriormente desa
pareceram: homem e Máquina haviam finalmente se fundido
em uma Unidade perfeita. O condenado estava fascinado com
a perfeição e a suavidade da máquina - " [ . . ] as engrenagens
.
1 34
Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem
dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe
uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determi
nado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a
reconquista da colônia. Acreditai e esperai! (Kafka, 1 998, p. 77).
96 Conforme Adorno, em Kafka " [ ] cada frase traz a marca de um espírito seguro
...
de si, mas também foi anteriormente arrancada da zona da loucura na qual todo
conhecimento deve se aventurar para se tornar de fato conhecimento, principal
mente em uma era na qual o sadio bom senso apenas contribui para reforçar o
ofuscamento universal" ( 1 998, p. 249).
1 35
pre em duplas quase robóticas, ao mesmo tempo ridículos,
patéticos e obtusos em sua extraordinária esperteza. E, em sua
recorrência, tais personagens encarnam o eterno _fantasma
do indiferenciado que, desprezível, não deixa de atormentar
a quem seguem; não fazem nada útil, nada significam, pra
ticamente não existem, mas atravancam a vida e a racionali
dade do personagem ao qual seguem de forma exasperante,
no constante relembrar, por suas presenças, da onipresença da
mediocridade. Personificam a irracionalidade espantosamen
te racional do indiferenciado, que os controla como que por
via remota; variam sua dança persecutória e seu cínico sor
riso apenas para deixarem clara a extensão de sua argúcia. E
surgem em contextos que, exatamente, sugerem alguma pos
sibilidade remota de individuação por parte do personagem
a quem seguem, ou ao menos por ocasião da possibilidade
de um encontro desse personagem com alguém ou algo que
o arranque da estreita fresta existencial no qual se acha e que
crescentemente o asfixia.
Um dos mais virtuosísticos textos de Kafka, exemplar na
apresentação rítmica desses duplos, é Blumfeld, um solteirão de
meia-idade (Cf. Kafka, 2002, p. 30-63). É a ele que recorrere
mos para fechar o arco de pequenas análises da obra kafkiana
desse capítulo.
1 36
assinado, bebericar enquanto isso a aguardente de cereja prepara
da por ele mesmo e finalmente, meia hora depois, ir para a cama,
não sem antes precisar arranjar de novo, de cabo a rabo, a roupa
de cama que sua empregada, refratária a toda instrução, dispunha
de qualquer jeito, seguindo sempre o seu humor. Qualquer acom
panhante, qualquer espectador dessas atividades teria sido muito
bem-vindo a Blumfeld. Já havia pensado se não devia adquirir um
cachorrinho. Um animal como esse é engraçado e principalmente
grato e fiel; um colega de Blumfeld tinha um cachorro assim; ele
não se dá com ninguém a não sei com o dono e se passa alguns
instantes sem vê-lo recebe-o logo com grandes latidos, com os
quais evidentemente quer expressar sua alegria por ter encontra
do o dono, esse benfeitor extraordinário (Kafka, 2002, p. 30-31).
1 37
figuração de sua própria decadência refletida no olhar do
animal j á velho parece decisiva para a manutenção do soli
tário statu quo do presente:
1 38
Acima de tudo, a sujeira que atualmente é a muito cus
to afastada se tornaria inevitável; Blumfeld tem, como muitos
personagens kafkianos, o hábito maníaco da assepsia (reflexo
do Kafka naturista?), e viver consiste para ele, em boa medida,
em tornar-se e se manter existencialmente tão asséptico quanto
possível, como que flutuando num mundo que passa velozmen
te. Sabemos que seus personagens costumam pagar caro por
essa sua obstinação por limpeza; passar incólume por um mun
do contaminado é praticamente impossível; e Blumfeld, com
sua vida bem arranjada, já não desejaria surpresas e tumultos
em seus domínios que, com imenso custo, faz manter limpo ao
seu feitio. E, não obstante, apesar de afastar a ideia de ter um
cão, tal ideia retorna recorrentemente: é a tentação da vida:
139
nhar o que infere apenas pela audição, esse arranjo normal da
racionalidade que é apresentada ao absolutamente estranho,
acabam por se provarem logo vãs:
140
Segue a racionalização; algum elemento de paranóia, de
verdadeira "vergonha existencial': está sempre presente nesta
como em geral nas obras de Kafka, mas as bolinhas simples
mente estão lá, em sua atividade contínua e sem sentido. Mas
as bolinhas trazem consigo a puerilidade em sua forma mais
elementar: ao que parece, querem brincar.
contra ela; bate com saltos cada vez mais rápidos, muda os pon
tos de ataque; depois, uma vez que não consegue nada contra a
mão que encerra a outra bola por completo, pula mais alto ainda,
querendo provavelmente atingir o rosto de Blumfeld, que poderia
também agarrá-la e prender as duas em algum lugar; mas no mo
mento parece-lhe aviltante tomar medida como essa contra duas
pequenas bolas (Kafka, 2002, p. 34).
141
celulóide, o obrigam a tentar com toda a racionalidade dispo
nível, sem frestas, num anúncio típico de Kafka de um deses
pero com sordina, achar um sentido, ainda que insignificante
ou desprezível, para tudo aquilo:
Pois afinal é divertido possuir duas bolas como aquelas; elas tam
bém vão logo ficar cansadas, rolar para baixo de um móvel e dar
sossego. A despeito dessa reflexão, porém, Blumfeld lança com
uma espécie de raiva a bola de encontro ao solo: é um milagre que
nesse ato a cobertura quase transparente de celulóide não quebre.
Sem transição, as duas esferas recomeçam seus saltos anteriores,
baixos, sincronizados por oposição (Kafka, 2002, p. 34-35).
1 42
Blumfeld se despe calmamente, arruma as roupas no armário; cos
tuma verificar sempre se a empregada deixou tudo em ordem. Uma
ou duas vezes olha por cima do ombro para as bolas, que agora,
livres da perseguição, parece até que o perseguem; avizinharam-se
e saltam bem atrás dele. Blumfeld coloca o roupão e faz menção
de ir até a parede do lado oposto para apanhar um dos cachimbos
que estão pendurados ali num suporte. Involuntariamente, antes
de se voltar, dá uma passada para trás com um dos pés, mas as
bolas conseguem se desviar e não são atingidas. Quando então
vai buscar o cachimbo, as bolas logo o acompanham; ele arrasta
as chinelas, realiza passos irregulares mas cada passo, quase sem
pausa, é seguido por um golpe das bolas, que acertam a marcha
com ele. Blumfeld vira-se inesperadamente para ver como elas se
comportam. Mas mal havia se virado as bolas descrevem um se
micírculo e já estão de novo atrás dele; isso se repete todas as vezes
que ele se volta. Como se fossem acompanhantes subalternos, pro
curam não se deter diante de Blumfeld. Até esse momento, ao que
parece, ousaram somente apresentar-se, mas agora já entraram em
serviço. [ ... ] Até o presente Blumfeld, em todos os lances excepcio
nais, nos quais suas forças não foram suficientes para dominar a
situação, escolheu o expediente de agir como se não notasse nada.
Muitas vezes isso ajudou e na maioria dos casos pelo menos me
lhorou a situação. [ ... ] Agora também procede assim: pára diante
da grade de cachimbos, escolhe um levantando os lábios, carrega
-o meticulosamente, tirando o tabaco da bolsa, preparado para
a ocasião e, ignorando as bolas, deixa-as saltar, despreocupado,
atrás de si. Só hesita para ir até a mesa, pois ouvir os pulos coor
denados e os próprios passos quase lhe causa dor. Por isso estaca,
carregando o cachimbo por um tempo desnecessariamente longo
e calcula a distância que o separa da mesa. Finalmente, porém,
vence a própria fraqueza e percorre o trecho batendo os pés de tal
forma que não escuta absolutamente as bolas. Seja como for, uma
vez sentado, elas continuam a saltar atrás de sua cadeira de modo
tão perceptível quanto antes (Kafka, 2002, p. 35-36).
1 43
exausto de procurar saídas para a situação configurada à revelia
de sua vontade e de tudo o que pudesse conceber ou entender, não
obstante, como fica evidente no detalhismo descritivo, Blumfeld
não deixa escapar nada de razoável em sua observação· e nada
tem, em princípio, de néscio; é momento do aprendizado relativo
à difícil convivência conviver com ela. Afinal, o que aparentou
fragilidade trai quem o observa e mostra sua verdadeira força;
a existência do inusitado é testemunho de seu próprio poder, e
sobre isso nada pode razão alguma:
1 44
Agora Blumfeld bem que poderia fazer uso de um cachorro - um
animal jovem, selvagem, acabaria logo com as bolas; imagina-o cor
rendo atrás das duas para caçá-las com as patas; como as expulsa
dos seus postos. Como as persegue de um extremo a outro do
aposento e finalmente as prende entre os dentes. É bem provável
que dentro em breve arranje um cachorro. [ ... ] Mas no momento
as bolas têm de temer apenas Blumfeld, e agora ele não está com
vontade de destruí-las, talvez para isso lhe falte poder de decisão.
Chega cansado, à noite, do trabalho, e justo nessa hora, quan
do necessita de repouso, fazem-lhe essa surpresa. Só agora sente
como está realmente cansado. Sem dúvida irá destruir as bolas, na
verdade o mais breve possível, mas não nesse instante, provavel
mente só no dia seguinte. Quando se considera a questão impar
cialmente, aliás, as bolas se comportam com bastante modéstia.
[ .. ] Poderiam, por exemplo, saltar para a frente de tempos em
.
1 45
deixou os fósforos em cima do criado-mudo. Teria, portanto, de
ir buscá-los, mas, uma vez que está perto do criado, é com certeza
melhor ficar por lá e deitar-se. Atrás disso existe uma segunda in
tenção: acredita, na verdade, que as bolas, no seu afã cego ficarem
sempre atrás dele, vão saltar sobre a cama e, uma vez ali, quando
ele se deitar, irá esmagá-las, querendo ou não. Rejeita a objeção de
que os restos das bolas também seriam capazes de ficar saltando.
Até o inusitado precisa ter limites. Bolas inteiras saltam também
em outras ocasiões, embora não ininterruptamente; pedaços de
las, ao contrário, nunca saltam, e neste caso também não irão dar
pulos (Kafka, 2002, p. 39).
1 46
melhor sua tarefa do que a bola em cima do leito. Tudo então
depende do lugar pelo qual as bolas se decidam, pois Blumfeld
não crê que elas possam trabalhar separadas por muito tempo.
Com efeito, no instante seguinte a bola de baixo também pula
para cima da cama. 'l\gora elas são minhas': pensa Blumfeld, ar
dente de alegria, e arranca o roupão do corpo para se lançar sobre
o leito. Mas justamente nesse momento a mesma esfera volta a
saltar para baixo da cama. Sobremaneira decepcionado, Blumfeld
literalmente desmorona. É provável que a bola tenha apenas dado
uma olhada em cima e não gostando do que viu. Aí a outra a segue
e naturaln1ente permanece de baixo, pois ali é melhor. 'l\gora vou
ter esses dois batedores de tambor a noite inteira aqui': pensa Blu
mfeld, morde os lábios e balança a cabeça. Está triste, sem saber
propriamente como as bolas poderão prejudicar-lhe a noite. Seu
sono é excelente, irá superar com facilidade o pequeno rumor. Para
ficar totalmente seguro disso, empurra por baixo delas dois tape
tes - segundo a experiência feita. É como se tivesse um pequeno
cachorro para o qual preparasse uma caminhada macia. Porque as
bolas talvez estejam cansadas e com sono, seus saltos são mais bai
xos e vagarosos do que antes. Quando Blumfeld se ajoelha diante
da cama e ilumina a parte de baixo com o abajur do criado-mudo,
julga por vezes que as bolas vão permanecer para sempre sobre os
tapetes, por caírem tão debilmente, rolarem tão devagar mais um
curto trecho (Kafka, 2002, p. 39-4 1 ) .
1 47
de algum modo, já é o do desmoranamento.98 Aqui surge, por
detrás do ridículo episódio, uma outra sua face, um manto
ameaçador que segue a limpidez das formas perfeitamente
esferoidais, com cores bem definidas, o azul e branco; agora
é a intranquilidade, o sobressalto que nunca se configura em
ameaça palpável, pois se confunde com a noite e o sono; o inu
sitado foi apenas anúncio, ao que parece, de algo maior que
entrará pela porta, que nela baterá sem delicadeza nem pue
rilidade alguma. E não obstante, tal situação se repete em um
número ((monstruoso' de vezes, o que o desanima até mesmo
a arrolar as vezes que acontece o sobressalto, seguido por algo
,
((pequeno e repulsivo' , batidas que constituem a escolta de
algo poderoso. De qualquer modo, ainda que desejasse tomar
alguma atitude, vê-se na mesma situação de Gregor Samsa ao
acordar certa noite de sonhos intranquilos: era tarde demais
para pegar o trem certo, e mesmo que se esforçasse loucamente,
talvez não conseguisse nem ao menos apanhar o trem atrasa
do. Para Gregor então, como para Blumfeld agora, é simples
mente ((tarde demais":
148
a ilusão de que alguém bate à porta. [ ... ] Sabe sem dúvida que
ninguém bate, pois quem iria à noite bater à porta - justamente na
sua, a de um solteirão solitário? Mas, por mais que tenha consci
ência disso, acorda assustado sem cessar e por um momento olha
tenso para a porta, a boca aberta, os olhos arregalados e os tufos
de cabelo sacudindo sobre a fronte úmida. Tenta contar quantas
vezes é despertado, mas, aturdido com as cifras monstruosas que
resultam desse cômputo, cai outra vez no sono. Supõe saber de
onde vêm as batidas, não são da porta, mas de outra parte qual
quer; porém, na atrapalhação do sono, não consegue se lembrar
em que se baseiam suas suposições. Sabe somente que muitas ba
tidas, pequenas e repulsivas, se juntam, antes da batida grande e
poderosa. Suportaria toda a repugnância dos pequenos golpes se
pudesse evitar essa batida, mas por algum motivo é tarde demais,
neste caso não pode intervir, é uma parada perdida, não tem nem
mesmo palavras, a boca só se abre para um bocejo mudo; furioso
com isso afunda o rosto nos travesseiros. E assim passa a noite
(Kafka, 2002, p. 4 1 -42).
* **
II
1 49
No caminho para a fábrica de roupas de baixo em que Blumfeld
está empregado os pensamentos acerca do trabalho aos poucos
prevalecem sobre tudo o mais. Acelera o passo e, a despeito do
atraso de que o menino é culpado, chega ao escritório em pri
meiro lugar. É um espaço cercado por vidros, contém uma escri
vaninha para Blumfeld e duas carteiras de tampa reclinável para
os aprendizes subordinados a Blumfeld. Do mesmo modo que as
carteiras são tão pequenas e estreitas como se fossem destinadas
a escolares, no escritório tudo é muito estreito, e os aprendizes
não podem sentar-se porque caso contrário não haveria mais es
paço algum para a poltrona de Blumfeld. Por isso ficam o dia
inteiro premidos contra suas carteiras. Sem dúvida é muito des
confortável para eles, mas desse modo fica difícil para Blumfeld
vigiá-los. Com freqüência comprimem-se com fervor na carteira,
não porventura para trabalhar, mas para cochichar entre si ou até
para tirar uma soneca. Blumfeld se irrita muito com eles, que nem
de longe o auxiliam o suficiente no gigantesco trabalho que lhe é
imposto. A tarefa consiste em manejar todo o movimento de mer
cadorias e dinheiro com as trabalhadoras da casa, incumbidas pela
fábrica da produção de certas peças mais finas. Para poder julgar a
magnitude desse trabalho é preciso ter uma visão mais precisa do
conjunto. Mas desde que morreu o superior imediato de Blumfeld,
alguns anos antes, ninguém mais possui esta visão, por isso nem
mesmo ele é capaz de conceder a quem quer que seja o direito de
emitir um julgamento sobre seu trabalho (Kafka, 2002, p. 5 1 -52).
I SO
Blumfeld como pessoa fiel, digna de confiança; seja como for, su
bestima seu trabalho, acreditando, inclusive, que poderia ser or
ganizado de modo mais simples e, nesse aspecto, mais vantajoso
em todos os sentidos do que a maneira como Blumfeld o realiza.
Dizem, certamente não é algo destituído de verdade, que só por
isso Ottomar aparece tão raramente na seção de Blumfeld - para
se poupar da irritação que lhe causa ver os métodos de trabalho de
Blumfeld. [ .. ] Com certeza é triste para Blumfeld não ser reconhe
.
cido dessa maneira, mas para isso não há remédio, pois não pode
forçar Ottomar a permanecer, por exemplo, por um mês ininter
rupto, na seção de Blumfeld, estudando as múltiplas formas dos
trabalhos que ali devem ser executados, fazendo valer seus pró
prios métodos supostamente melhores, e deixar-se por fim con
vencer da razão que assistia a Blumfeld com a conseqüência, no
caso inevitável, do colapso da seção. [ ] Se o chefe subestima al
...
151
queria se poupar, cumpria sua tarefa mais que abundantemente
e não cogitava em deixar de fazê-lo; queria apenas que o senhor
Ottomar refletisse como, no decurso do tempo, o negócio se de
senvolvera e todas as seções foram aumentadas de modo corres
pondente; só a de Blumfeld era sempre esquecida. E de que modo
o trabalho ali aumentara! [ ... ] a despeito de tudo vai-se aferrar ao
seu posto enquanto de algum modo isso for possível; de qualquer
maneira tem razão e, por mais que às vezes demore, a razão final
mente tem de encontrar reconhecimento. Assim é que, de fato,
Blumfeld no fim recebeu até mesmo dois ajudantes - mas que aju
dantes! (Kafka, 2002, p. 54-55)
1 52
ajudantes de um pequeno movimento era uma coisa ousada: certa
vez um deles quis transportar algo apenas uns passos, excedeu
-se na velocidade e feriu o joelho na carteira. A sala estava cheia
de costureiras, as carteiras cheias de mercadorias, mas Blumfeld
teve de largar tudo, levar o ajudante que chorava ao escritório e ali
aplicar-lhe uma pequena atadura (Kafka, 2002, p. 56-57).
1 53
mesmo que as costureiras tivessem direito a elas, apertavam-lhes
a mão com uma espécie de mistério; para essas prediletas junta
vam numa estante vazia diversos retalhos, restos sem valor, mas
também miudezas ainda utilizáveis; acenavam-lhes de longe com
estas, felizes, pelas costas de Blumfeld e, como recompensa, elas
os presenteavam com bombons que lhes enfiavam na boca (Kafka,
2002, p. 57-58).
1 54
quem sabe fazer valer seus direitos "reais ou aparentes": é uma
das expressões kafkianas igualmente clássicas na descrição do
despudor de um mundo definitivamente medíocre, habitado
essencialmente por figuras estreitas em todos os sentidos99 e
que, inobstante, portam um virtual poder desagregador de in
suspeitadas proporções, como seu olhar firme nos olhos ela
ramente denuncia:
99 Ver, a respeito, Adorno: "O sistema é lógico do início ao fim e, como qualquer
sistema, desprovido de sentido. Tudo o que Kafka narra pertence à mesma or
dem. Todas as suas histórias desenrolam-se no mesmo espaço sem espaço, e to
dos os buracos são tão perfeitamente tapados que as pessoas levam um susto
quando se menciona algo que não caberia ali, como a Espanha e o Sul da França,
evocados em uma passagem de O castelo" (Adorno, 1998, p. 252-253).
1 00 " A fronteira entre o humano e o mundo das coisas -torna-se tênue. Esta
é a razão de seu muito comentado parentesco com Klee. Kafka chamava
sua maneira de escrever de 'rabisco'. O reifi.cado torna-se signo gráfico, os
homens proscritos não agem por si mesmos, mas como se cada um tivesse
caído em um campo magnético. É exatamente essa definição externa de
personagens interiorizadas que confere à prosa de Kafka a aparência ines
crutável de uma objetividade sóbria. A zona na qual não se pode morrer é
ao mesmo tempo a terra de ninguém entre o homem e a coisa: nessa terra
Odradek, visto por Benjamin como um anjo no estilo de Klee, encontra
-se com Gracchus, a modesta imitação de Nimrod" (Adorno, 1998, p. 260).
155
mesma forma dupla, espelhada indiferenciada que habita
- -
101 Não é demais lembrar a que ponto os animais são importantes na obra de
Kafka, no sentido de respiração da existência. Ver igualmente, a respeito,
Adorno: "Assim como seu compatriota Gustav Mahler, Kafka fica do lado
dos desertores. Em vez da ideia de dignidade humana, conceito supremo
da burguesia, aparece em Kafka a ideia da salutar semelhança do homem
com o animal, presente em grande parte de suas narrativas. O mergulho
no interior da individuação, que se completa nessa reflexão, depara com o
princípio da própria individuação, aquele 'colocar-se a si mesmo' sancio
nado pela filosofia: a teimosia mítica. A reparação é procurada na medida
em que o sujeito deixa de lado a teimosia. Kafka não glorifica o mundo pela
subordinação, antes resiste a ele pela não-violência. Diante dela, o poder
deve reconhecer-se como aquilo que realmente é. Kafka conta com isso. O
mito deve se prostrar diante da própria imagem no espelho. Os heróis de O
processo e de O castelo tornam-se culpados não por sua própria culpa - eles
não têm nenhuma -, mas porque procuram trazer a justiça para o seu lado"
(Adorno, 1 998, p. 268-269).
1 56
Como conclusão:
Kafka e a vida danificada
157
perceber o quão real, o quão normal é a Metamorfose; tal, po
rém, é impossível - a impossibilidade da evasão é uma ((dor
ainda não experimentada" (Kafka, 1 993).
O mundo segue: um estranho contraponto tem início. Em
posição de inseto, sem que algo se tenha alterado ou que sua
aparência se tenha modificado minimamente em direção a
uma morfologia mais normal, Gregor Samsa inicia uma pe
quena meditação sobre sua condição totalmente humana:
1 58
dutível singularidade. A obra de Kafka, antecipando em de
cênios os arroubos da "virtualidade, ilimitada e da violência
asséptica, controlada remotamente e invadindo a profundida
de das intimidades e dos corpos na expressão da "vida nua, -
"nacktes Leben': é a história desta indisfarçabilidade, o ponto
de partida desta indisfarçabilidade, a entrada real no mundo
real da contemporaneidade em suas cores mais próprias: a
vida - semimorta, semi-viva - danificada. 102 O mesmo mundo
que Adorno, não por acaso, em uma de suas mais conhecidas
obras, assim classifica em seu subtítulo: Mínima moralia - re
flexões desde a vida danificada (beschãdigt). A seguir, aborda
remos alguns aspectos do modo como o autor frankfurtiano
reflete filosoficamente sobre esse universo sufocado no qual o
sentido humano de racionalidade está ausente, por mais que
configure um universo perfeitamente racional.
102 Onde há vida em Kafka? "Ele se apega à salvação das coisas, daqueles obje
tos que não estão mais envolvidos na rede de culpa, que não podem mais
ser trocados, que são inúteis. O sentido mais profundo do obsoleto na obra
de Kafka refere-se a estas coisas. O seu mundo de ideias - como no "Tea
tro natural de Oklahomà' - assemelha-se a u m mundo de saldos de lojas:
nenhum teologoumenon adaptar-se-ia melhor a ele do que o título de um
cinema americano de comédia: Shopworn angel. Enquanto no interior das
casas, onde as pessoas moram, há desgraça, nos cantos e nas escadas onde
brincam as crianças há esperança. A ressurreição dos mortos deveria ter
lugar no cemitério de automóveis. A inocência do inútil é o contraponto
ao parasitário: 'O ócio é o início de todo vício, e a coroação de todas as
virtudes'. Segundo o testemunho da obra de Kafka, toda positividade, toda
contribuição, poder-se-ia mesmo dizer que todo trabalho que reproduz a
vida apenas promove o intrincamento" (Adorno, 1998, p. 269).
1 59
ADORNO, LEITOR DE KAFKA,
LEITOR DO MUNDO
"só há uma expressão para a verdade:
O pensamento que nega a injustiça"
161
tornada indivíduo para realizar um ato - o linchamento -, os
atores que prendem, que nem ao menos se sabe se são quem
dizem ser - e que se mostram em dose dupla em relação ao
par de ajudantes e funcionários kafkianos -, e talvez até mes
mo, num acréscimo compreensível, por empréstimo, o coral
infantil de "O médico rural": a combinação kafkiana perfeita
do sórdido com o burlesco em suas mais sutis tonalidades. Al
guma mera coincidência?
Ora, uma das principais questões que a obra kafkiana põe
a seus leitores, como toda grande obra literária, é o tema da li
nha interpretativa a seguir. Bibliotecas inteiras têm sido escri
tas procurando elucidar uma modalidade interpretativa geral
que permita a compreensão das premissas maiores da escrita
do escritor tcheco. O fruto desses esforços de gerações de crí
ticos são as inúmeras chaves de leitura que foram sendo pro
postas - a religiosa, mais ou menos especificamente judaica, a
psicanalítica, a histórica, a sociológica e muitas das filosóficas
são testemunhos de tais tentativas.
E, não obstante, a obra permanece, porque o concreto per
manece; há uma espécie de enigma infinitamente repetido, e
ante este enigma se recorre às ferramentas da tradição - ou
das mais diversas tradições - para tentar esclarecê-lo desde um
ponto de vista como que "externo, ao mundo da vida, confi
nado ao cérebro e à criatividade do crítico ou a alguma condi
ção de eternidade imutável.
O que temos proposto, numa leitura radicalmente anti
-enigmática de tal obra (C f. Souza, 2000a e 200 1 ) , é exatamente
o contrário: o único enigma de Kafka é que sua obra continue
a atrair a perspicácia dos leitores como se flutuasse a anos-luz
da terra real, em um passado remoto ou em um futuro ine
fável, ou na terra do absurdo, e não como realmente se dá: na
palpabilidade imediata das horas, minutos e segundos que se
sucedem naquilo a que chamamos mundo, o cotidiano da ci
vilização ocidental com todos os seus paradoxos. Em outras
1 62
palavras: que a obra de Kafka permaneça "enigmática, é que
se apresenta, para nós, não somente como índice de sua atua
lidade, mas como denúncia de uma cegueira.
Tal posição tem em Adorno um precursor muito abali
zado. De fato, em seu famoso texto '}\notações sobre Kafkà'
(Adorno, 1 998, p. 239-270) , o filósofo caracteriza desde o iní
cio aquilo no que se apresenta, de algum modo, como o mote
do estudo: trazer Kafka e sua obra à consideração imediata do
vivido e de suas contradições.
O texto, que será aqui analisado brevemente em alguns de
seus aspectos relevantes, inicia exatamente por esta via - a da
denúncia do pretenso hermetismo kafkiano e de sua transfor
mação em bizarra curiosidade no circo das letras - e se utiliza
da solidez eloquente de uma tessitura intelectual extremamen
te tensa, característica de Adorno, para mostrar a que ponto
tal compreensão - o inverso do quietismo ante o que Kafka
mostra é necessária.
-
1 63
Kafka é enquadrado em uma corrente de pensamento estabeleci
da, em vez de se insistir nos aspectos que dificultam o enquadra
mento, e que por isso mesmo requerem interpretação. Como se o
trabalho de Sísifo de Kafka não tivesse sido necessário, como se a
força de maelstrom de sua obra pudesse ser explicada caso ele ti
vesse dito apenas que o homem perdeu a salvação, que o caminho
para o absoluto lhe foi negado, que sua vida é obscura, confusa ou,
como se diz hoje em dia, está contida no nada, e que teria restado
ao homem apenas cumprir humildemente e sem muita esperan
ça seus deveres imediatos, integrando-se a uma comunidade que
espera exatamente isso, uma comunidade que Kafka de maneira
alguma precisaria ter afrontado se concordasse com ela. Explicar
as interpretações desse tipo com o argumento de que Kafka obvia
mente não disse isso com palavras tão secas mas, enquanto artista,
se esforçou em traduzi-Ias em um simbolismo realista é admitir
a insuficiência dessas formulações, mas não muito mais que isso
(Adorno, 1998, p.239-240).
1 64
converge em um sentido. Nada, porém, seria mais inadequado no
que diz respeito a Kafka. Mesmo em criações como a de Goethe,
que joga tão profundamente com os momentos alegóricos, esses
momentos só transmitem seu sentido ao movimento do todo gra
ças ao contexto no qual se encontram. Na obra de Kafka, porém,
tudo é o mais duro, definido e delimitado possível; assim como
nos romances de aventuras, conforme a máxima que James Fenni
more Cooper escreveu no prefácio ao Corsário vermelho: ''A ver
dadeira idade de ouro da literatura só surgirá quando as obras se
tornarem tão meticulosas em sua impressão quanto um diário de
bordo - e tão granuladas em seu conteúdo quanto um relatório de
vigià' (Adorno, 1998, p. 240).
165
chave seria induzido ao erro, na medida em que confundiria a tese
abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existência, com o seu
teor (Adorno, 1998, p. 240-24 1).
1 66
Se na obra de Kafka deve-se temer que o narrado venha
na direção do leitor, é porque na realidade os acontecimentos
vêm na direção de quem existe. Mais uma vez, de modo re
novado, surge o tema: o que faz com que a obra kafkiana seja
considerada misteriosa ou fantástica? Tal pergunta tem como
resposta agora evidente: o medo de ser atingido por ela. Pois
normalmente são relegados ao reino do fantástico ou do fan
tasmagórico aquilo que é excessivamente real para ser suporta
do em sã consciência, à luz do dia; se alguém não entende que
hoje, por exemplo, milhões e milhões de pessoas ajam como
maquinismos dirigidos por via remota, ou se transformem
voluntariamente em massa amorfa, dificilmente entenderá ,
- ou melhor: suportará , sem sofisticados mecanismos de
-
1 67
dialética que se cria entre a anulação do tempo na realidade -
por exemplo, na realidade de uma execução de Hélcio ou de
Joseph K., execução sem volta significando um presente eter
no, fixado em si mesmo -, e um tempo patológico, em rotação,
que atravessa e é atravessado por todas as obras - parábolas
- de Kafka, é o que se constitui no mínimo suficiente para que
tal obra não apenas exista, mas sobreviva a seu próprio nas
cimento.
1 68
que faz com que os sonhos sejam tomados à Ia lettre. Tudo o que
se assemelha ao sonho e a sua lógica pré-lógica é eliminado, e por
isso o próprio sonho é eliminado (Adorno, 1998, p. 243).
104 Ver o final do capítulo anterior, como tal se dá numa das mais "monstruosas"
obras de Kafka, A metamorfose. Ver ainda: "Quem quisesse entender como se
chega a experiências tão fora do comum como as descritas por Kafka deveria
presenciar um acidente numa cidade grande: inúmeras testemunhas se apre
sentam e declaram conhecer a pessoa acidentada, como se toda a comunidade
tivesse se reunido para assistir ao instante no qual o poderoso ônibus se lançou
sobre o velho e frágil táxi. O permanentemente déjà vu é o déjà vu de todos. Por
isso o sucesso de Kafka, que se transforma em traição apenas no momento em
que o universal é destilado, poupando-se o esforço da reclusão mortal. Talvez o
objetivo oculto de sua arte seja a disponibilização, a tecnificação e coletivização
do déjà vu. O melhor, sempre esquecido, é relembrado e colocado em uma
garrafa, como a sibila de Cumas. Mas com isso o melhor se transforma no pior
possível. 'Quero morrer', mas isso lhe é negado. O efêmero, ao ser perpetuado,
é atingido por uma maldição" (Adorno, 1998, p. 248).
1 69
isso, suportar ainda um momento depende completamente
que se consiga desviar o suficiente o ângulo de percepção
para que todo o esperado se torne inesperado, e o ines pera
do esperado; ainda que sem maiores garantias, a linguagem
que decorre dessa distorção - na qual os discursos pomposos
e geralmente insanos se inserem como contraste suficiente -
é expressão da única esperança de que a própria linguagem
sobreviva ao choque com as coisas, ainda que em uma espé
cie, muitas vezes, de combinação com um determinado gesto,
configurando uma língua nascitura. O que, em um mundo
menos doente, pareceria uma fabulação inofensiva, adquire
aqui uma importância mortal, decisiva para a continuidade
do próprio mundo: desviar em pouquíssimos graus o ângulo
de abordagem, de modo que aquilo que nunca seria visto de
outro modo agora o seja.
É o mais novo estado de uma língua que enche a boca dos que a
falam, é a segunda confusão babilônica, à qual a dicção sóbria de
Kafka resiste, forçando-o a inverter a relação histórica entre con
ceito e gesto, como num espelho. O gesto é o ((assim e: A língua-
1 70
gem, cuja configuração deveria ser a verdade, torna-se inverdade
quando distorcida. "O senhor deveria também ser mais reservado
ao falar; quase tudo o que disse antes poderia ser deduzido do seu
comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras;
além disso, não foi nada de extremamente favorável ao senhor."
Às vezes, as experiências sedimentadas nos gestos seguirão a in
terpretação que deveria reconhecer na sua mímese um universal
reprimido pela consciência humana. "Pela janela aberta se via
outra vez a velha senhora, que com uma curiosidade verdadeira
mente senil agora havia passado para a janela que ficava defronte
para continuar vendo tudo", lemos na cena da prisão no início
de O processo. Quem já não se sentiu observado da mesmíssima
forma pelo vizinho em uma pensão qualquer; quem já não teve a
intuição de um destino repugnante, incompreensível e inevitável?
O leitor que conseguisse decifrar tais cenas saberia mais de Kafka
do que quem encontra nele uma ilustração da ontologia (Adorno,
1998, p. 246-247).
171
os mais sutis e refinados; trata-se de um choque de realidade,
como um objeto físico que, ao chocar-se com outro, fosse des
viado de seu curso de forma quase obscena, tal como teria
aparecido, a um desavisado, menos escolado nos labirintos
da realidade (uma criança, talvez), a execução de Joseph K., o
aparecimento de Gregor Samsa em um idílico recôndito fami
liar ou o linchamento de Hélcio em plena luz do dia.
1 72
que agride mortalmente quem acredita em tais falácias, sobra
a ruína dessa miragem que, todavia, é tão concreta como só os
entulhos podem ser.
Pois, de fato,
1 73
** *
1 74
vastadas continuam gritando aos nossos ouvidos como quem
sussurra; obra próxima demais para que possamos dispensá-la
por um segundo que seja - ela nos assombra a cada momento
com a urgência do que nela lateja, e transforma o ininteligí
vel na inteligibilidade absoluta do opaco que renasce de seus
destroços. E, por isso, não podemos senão dizer com Adorno,
1 75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Vozes, 1 995.
---
. Prismas crítica cultural e sociedade. São Paulo:
-
Ática, 1 998. ·
1 77
___ . Introdução à Sociologia. São Paulo: UNESP, 2008.
___ . Filosofia da nova Música. São Paulo: Perspectiva,
1 974.
1 78
AUGÉ, M. Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da
supermodernidade. Campinas: Papirus, 1 994.
---
. Documentos de cultura - Documentos de barbárie.
São Paulo: Cultrix, 1986.
1 79
BOLZ, Norbert; REIJEN, Willem van (Orgs.). Ruinen des
Denkens Denken in Ruinen. Frankfurt a. M.: Suhrkamp,
-
1 996.
180
DREIZIK, Pablo. (Org.) La memoria de las cenizas. Buenos
Aires: Patrimonio Argentino, 200 1.
---
. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte:
UFMG, 2003 .
---
. Adornos nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano.
-
---
. Adorno/Horkheimer & a Dialética do Esclarecimento.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
181
ENZENSBERGER, Hans Magnus. Mediocridade e loucura.
São Paulo: Ática, 1995.
182
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Sete aulas sobre linguagem,
memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
GATTI, Luciano F. Theodor W. Adorno - Indústria cultural e
crítica· da cultura. In: NOBRE, Marcos (Org.). Curso livre de
Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008.
GAY, Peter. O século de Schnitzler. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
1 83
JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro:
Graal, 1995.
1 84
___ . Na construção da muralha da China. Porto Alegre:
Paraula, 199 5.
1 85
KRAKAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.
1 86
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz - atualidade e política.
São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
1 87
___ . Entre arte e conceito: algumas questões a partir da
filosofia de T. Adorno. Filosofazer, Passo Fundo, IFIBE, n. 33,
p. 3 1 -40. 2008.
1 88
ROSA, Ronel Alberti da. Música e mitologia no cinema: na
trilha de Adorno e Eisler. Ijuí: UNIJUÍ, 2003.
1 89
SCHULTE, Christoph (Org.) . Detschtum und ]udentum.
Stuttgart: Reclam, 1993.
190
___ . Wenn das Unendliche in die Welt des Subjekts und
der Geschichte einfiillt Ein metaphãnomenologischer
-
191
___,. Sentidos do Infinito a categoria de ''Infinito" nas
-
1 92
TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento
de 7heodor W Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1 995.
___ . Metamorfoses do conceito ética e dialética negativa
-
193
___ . Wittgenstein und Adorno Zwei Spielarten moder
-
1 94