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© 1968/Junho – Lou Carrigan

DEMASIADAS MUJERES
Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 450205/450209
CAPITULO PRIMEIRO
Um tipo muito espanhol
Barco a vela versus lancha
Meio biquíni não é melhor que uma borboleta morta?

Paco Rivelles não era muito alto, nem tampouco muito


elegante, nem parecia um milionário. Mas tinha trinta e dois
anos, uns inteligentíssimos olhos negros, um formidável
sex-appeal masculino, um sorriso capaz de despedaçar o
coração das mulheres o um barco a vela. Além de tudo isso,
era espanhol, com o que ele mesmo estava convencido de
que levava uma vida maravilhosa.
Lá onde estivesse, Paco Rivelles deixava traço de sua
passagem. Geralmente um traço simpático. Um sorriso de
amor, uma boa brincadeira, uma bonita recordação de
amizade... Qualquer coisa. Mas nunca, nunca Paco Rivelles
passava por um lugar sem que tal acontecimento
repercutisse, de um modo ou de outro.
Naquele momento, estava em Nice. Seu barco branco e
azul, com a bandeira espanhola no alto do mastro,
tremulando suavemente, sempre nova, sempre flamante em
seu amarelo e seu vermelho, era visível de muito longe. E
como Paco Rivelles era sevilhano, dera a seu barco a vela o
nome de “Giralda”1.
E parecia que também em Nice ia Paco Rivelles deixar
marca de seu passo, pois não era provável que Antoinette, a
linda francesinha de olhos cor de café e pernas esculturais,
pudesse esquecê-lo nunca. Pelo menos, ela demonstrava
enorme entusiasmo em suas relações com o espanhol, que

1
Torre mundialmente famosa, relíquia dos tempos do domínio árabe e que está para a cidade de
Sevilha como a Torre Eiffel para Paris.
então a estava beijando em estilo andaluz, isto é, como dizia
ele, “a toda vela e de vento em popa”.
Assim que, decorridos três minutos de beijo, Antoinette
teve de descolar sua boca da do espanhol, ofegando, quase
asfixiada:
— Paco, você é um homem terrível!
— Por um beijinho de nada? — sorriu ele.
— Um beijinho de nada! Quase me mata! Quase me
anfitia...!
— Asfixia, não infitia — corrigiu Rivelles. — Olhe,
boneca, será melhor falarmos francês, pois não gosto de
ouvir maltratar minha língua como você faz.
— Mas eu querro aprrrender espanhol...
— Está bem. Mas com outro que tenha mais paciência
do que eu. Assim, falemos em francês, se você não quiser
dar um mergulho de cabeça no mar.
— Você me jogaria no mar? — perguntou Antoinette, já
em francês, um pouco assombrada. — E também seria
capaz de me bater?
— Alto aí, benzoca. Jogaria você no mar, sim; mas
nunca lhe daria uma surra. Sou um cavalheiro e, além disso,
um espanhol. E os espanhóis nunca surram as mulheres...
Bem, quase nunca. Apenas quando não há nenhum touro
brabo pelas imediações. Nunca reparou como somos
galantes e amáveis com o sexo tolo?
— O sexo tolo?
— Sim. Nada de sexo fraco, meu amor... Isso ficou pra
trás. .. Agora as mulheres são bem fortes, mas continuam
tolas como antes. Não está de acordo?
— Acho que não, Paco.
— Pois eu digo que sim. Olhe: a mais esperta das
mulheres não serve nem para pentear um homem.
— Você esquece os homens tolos. Conheço alguns que
são uns perfeitos idiotas.
— Eu, por exemplo?
— Não, você não.
— Pois eu sim, visto que há cinco minutos não lhe dou
um beijo.
E deu-lhe. Só que nesta vez não pode durar tanto como
nas anteriores. Mal decorrera um minuto escasso, o barco
balançou com mais força que até então, evidenciando
claramente que alguém tinha subido a bordo, ou melhor,
saltado do cais sobre a coberta.
Imediatamente, Paco Rivelles deixou de beijar a
francesinha e de interessar-se pelos segredos de seu biquíni.
Afastou-a, lançou um suspiro de resignação e olhou para a
entrada da pequena cabina, que emoldurava um céu
avermelhado, com pinceladas rubras, douradas e violáceas.
Na realidade, aquela luz policromica era o último vestígio
do dia. Em menos de dois minutos, a noite desceria sobre
Nice.
Também Antoinette ficou olhando para a entrada,
aparentemente um pouco aborrecida.
E os dois viram o gigantesco indivíduo que entrou,
inclinando-se muito. Um homem de um metro e noventa,
ombros largos e tórax robusto, todo vestido de branco e com
um chapéu miúdo, que deixava escapar umas madeixas
ruivas.
Olhou de um para outro, como surpreendido. Por fim,
seu olhar fixou-se no espanhol.
— Señor Rivelles? — perguntou.
— Eu mesmo. O senhor é o agente da CIA que estou
esperando?
O recém-chegado franziu o cenho. Acabou de entrar.
Continuava fixando Paco.
— Sou a pessoa que está esperando, sim — admitiu.
— Então, tire esse chapéu, homem. Está diante de uma
dama. Como é seu nome?
O agente da CIA tirou o chapéu, talvez um tanto irritado.
— Meu nome é, atualmente, Monsieur Pernot. Espero
que isso lhe baste, señor Rivelles.
— Sente-se, monsieur Pernot. E por falar em bebida2,
quer um uísque? Ou prefere manzanilla? Como sabe, é um
vinho espanhol, mais propriamente andaluz, que atira o
mais valente de costas no chão quando ele está começando
a dizer que é uma bebida fraca... Uísque ou manzanllia?
— Nenhuma das duas coisas. Vim aqui para trabalhar,
señor Rivelles, não para celebrar. Quem é esta moça?
— Chama-se Antoinette, é francesa encontrei-a há dois
dias na praia, tomando sol. Disse-lhe um galanteio, riu-se e
então convidei-a para compartilhar minha vida... durante
uma semana. Ela está encantada. Não é verdade,
Antoinette?
— Estou sim, Paco.
— Está vendo? — riu o espanhol. — É preciso saber
tratar as mulheres. Na realidade, são como pequenas e
graciosas máquinas de self-service, de “sirva-se você
mesmo”. É só apertar o botão adequado, e elas reagem
como você deseja. Uma vez...

2
Pernot — marca de absinto.
— Señor Rivelles, tem o que prometeu? — cortou o
homem ruivo da CIA.
— Refere-se ao microfilme com aqueles complicados
desenhos de uma complicadíssima coisa chamada
centralizador fotográfico?
— A isso, exatamente.
— Bem... pode ser que tenha e pode ser que não. Quero
dizer que talvez esteja neste barco e talvez não esteja.
Trouxe os cem mil dólares que pedi por esse invento?
— Não.
— Neste caso, monsieur Pernot, temo que não haverá
acordo. Quando saí da Espanha, meu irmão Juan me disse:
“Paco, o mundo é uma completa sujeira; está todo cheio de
ladrões e rufiões. Sabes quanto me custou meu invento, de
modo que não te deixes enganar. Se não houver pesetas pela
frente, não entregues o microfilme.” E asseguro-lhe,
monsieur Pernot: é justamente o que penso fazer. Não há
dólares? Pois não há centralizador fotográfico!
— Está falando com um agente da CIA, señor Rivelles.
Paco acendeu um cigarro e olhou ironicamente para o
americano.
— Por isso mesmo, monsieur Pernot.
— Desconfia de nós?
— De vocês? Não... Paco Rivelles desconfia de todo o
mundo. Por que não da CIA? Compreenda, monsieur
Pernot: cem mil dólares são seis milhões de pesetas, mais
ou menos. Com seis milhões de pesetas, a vida é muito
agradável na Espanha. E meu irmão Juan, coitado, merece
viver muito bem depois de estudar tanto. Eu não, admito.
Sempre vivi sem fazer força. Nunca trabalhei nem sequer
dirigindo a colheita da azeitona. Se enganassem a mim, não
me incomodaria muito. Mas ao meu irmão, monsieur
Pernot, ninguém vai enganar enquanto Paco Rivelles estiver
vivo. Assim sendo, ou me dá agora mesmo os cem mil
dólares, ou está desmanchado o trato. Okay, como se diz na
sua terra?
— Okay — sorriu o espião americano. — Mas as coisas
vão ser feitas de modo diferente. Por dois motivos.
Primeiro, que a CIA quer reservar-se o direito de examinar
esse invento de seu irmão Juan antes de pagar os cem mil
dólares.
— Parece-me razoável. E o outro motivo?
— Bem, digamos que a CIA tem interesse em contratar
um homem como o senhor.
Paco Rivelles ficou pensativo uns segundos.
— Está me oferecendo um emprego, monsieur Pernot?
— Algo parecido. Mas não precisa responder agora.
Terá tempo de pensar durante a viagem.
— Que viagem?
— A que vai fazer. — O espião americano sacou um
envelope do bolso. — Aqui tem sua passagem. Partirá
dentro de sete dias no transatlântico “Empire”, que sai do
Havre diretamente para Nova Iorque.
— Não me agrada Nova Iorque — declarou Paco. —
Cheira a petróleo e cimento.
— É uma opinião sua.
— Além disso, viajar custa dinheiro e...
— Todas as despesas pagas, señor Rivelles.
— Ah! Talvez Nova Iorque me agrade. Estarão à minha
espera lá?
— Talvez sim, talvez não. Tem apenas que embarcar no
“Empire”, levando o microfilme que contém o invento de
seu irmão. Oportunamente, terá notícias da CIA.
— Que espécie de notícias?
— Alguém lhe entregará cem mil dólares e, em
retribuição, o senhor lhe entregará o microfilme. Depois,
seguirá viagem a Nova Iorque e, lá, alguém lhe perguntará
se pensou na proposta de trabalhar para a CIA.
— Disponho de uma semana, foi o que disse?
— De mais. O navio parte dentro de sete dias, mas a
travessia durará outro tanto. Quatorze dias, señor Rivelles.
— Tempo suficiente para pensar. Pagam bem na CIA?
— Não muito bem — quase riu o espião. — Mas é
divertido.
— Está-me convencendo, monsieur Pernot. — Vejamos
essa passagem.
Apanhou o envelope, abriu-o e assentiu com a cabeça.
— Muito bem. Onde quer que o deixe, monsieur Pernot?
— Como? Não entendo...
— Pareceu-me que falava muito bem o espanhol —
sorriu Paco. — Pergunto-lhe onde quer que o deixe. Quer
dizer que o levarei em meu barco aonde desejar.
— Não é necessário. Voltarei a...
— Ficará em dificuldades se desembarcar aqui mesmo.
Há dois homens que não me perderam de vista durante toda
a tarde. Estão passeando de um lado para outro pelo cais e,
não sei por que, parece-me que também eles querem o
centralizador fotográfico.
O agente da CIA ficou olhando fixamente para Paco,
que indicava uma das vigias circulares da cabina.
Aproximou-se dela e olhou para onde apontava o dedo do
espanhol. Viu primeiro um homem e, uns vinte metros mais
além, o outro, ambos com um ar distraído... Mas se Paco
Rivelles desconfiava do verdadeiro motivo da presença
daqueles homens ali, mais teria que desconfiar ainda um
espião profissional, um agente da CIA.
Pernot sacou um grande revólver com silenciador.
— Guarde isso — disse Paco. — Iremos no barco, com
toda calma. Nada de matar gente... se possível.
— Não se engane, Rivelles — grunhiu Pernot.
— Esses homens têm uma lancha preparada, garanto.
— Certamente previram que poderíamos escapar no
barco.
— De qualquer modo, tentemos.
— Quem são eles?
— Não sei. Mas já os vi algumas vezes atrás de mim, o
que me incomodou um pouco. Se, por exemplo, são da
MVD soviética, ou do MI.5 britânico, por que não se
aproximam e fazem-me outra oferta melhor que a da CIA?
— Era capaz de aceitá-la?
— Pergunta-me se aceitaria uma oferta superior aos cem
mil dólares da CIA, monsieur Pernot?
— É o que pergunto.
— Então, o senhor não é muito esperto. Vamos... ou
prefere lutar por nada?
Pernot resmungou alguma coisa, guardou o revólver,
olhou outra vez pela vigia e depois para Antoinette.
— E ela?
— Virá conosco. Não é, Antoñita?
— Eu... eu preferia desembarcar, Paco.
— Por quê?
— Tenho... medo...
— Medo! — riu o espanhol. — Tem medo estando eu
aqui? Não acredito!
— Mas se esses homens perseguirem seu barco e houver
uma luta a tiros... eu posso sair ferida...
— Nada disso! Você verá como vamos nos divertir...
Gosta de navegar, monsieur Pernot?
— Se temos que partir, melhor que seja logo —
resmungou o agente da CIA.
— Às suas ordens — riu Paco. — Coloquem os
cinturões de segurança que vamos decolar. Ah, monsieur
Pernot, por favor: vigie-me bem Antoñita, pois tem um
revólver em sua linda bolsa de praia. Seria muito
desagradável que disparasse e ferisse alguém, não acha?
Rindo, Paco Rivelles saiu da cabina para a coberta. Suas
pernas ainda podiam ser vistas, quando a francesinha saltou
para a bolsa multicor que estava sobre uma poltrona.
Chegou a ela, abriu-a frenèticamente, meteu a mão dentro...
Monsieur Pernot não a deixou fazer mais. Arrebatou-lhe
a bolsa das mãos e, com uma violenta bofetada, mandou a
belezoca aos trambolhões até junto da escadinha que levava
à coberta.
De cima, chegou a voz risonha de Paco Rivelles:
— Ai, Antoñita, Antoñita, como você é boba! Devia ter
mais cuidado, pois monsieur Pernot não é espanhol nem
gentil como eu.
O americano retirou o pequeno revólver da bolsa de
Antoinette e guardou-o. Sacou o seu, indicando o convés.
— Para cima — ordenou secamente. — Vejamos o que
tentarão seus amigos, mocinha.
— Não sei do que está falando...
— Suba, ou dou-lhe um outro tapa que fará você ir
voando até Paris... ou até Moscou. Até aonde?
Antoinette apertou os lábios e não respondeu. Pernot
empurrou-a para a escadinha, com absoluta descortesia,
subindo atrás dela, sempre apontando- lhe as costas fluas
com seu grande revólver munido de silenciador.
Paco já estava acabando de soltar as amarras do barco,
que balançou com mais força sobre as águas do porto.
Imediatamente, soltou a vela, empunhou a roda do leme e o
barco afastou-se velozmente do cais, enquanto os dois
homens que por lá perambulavam lançavam-se a toda a
pressa para uma lancha a motor pintada de vermelho, na
qual havia outro homem fazendo frenéticos sinais de
chamado.
— Não sei — disse Paco, com a cabeça voltada — por
que têm tanta pressa. Este é um simples barco a vela e eles
devem contar com um motor de cinqüenta cavalos...
Poderão alcançar-nos fàcilmente. Não vai guardar o
revólver, monsieur Pernot?
— Está louco? Não disse que logo nos alcançarão? E
acha que devo guardar o revólver!
— Não será preciso, vai ver. Olá, Antoñita! Você deve
estar com frio. Brrr!
Estremeceu comicamente, apanhou um quepe de iatista
sobre o assento da popa e colocou-o, olhando amàvelmente
para a francesinha de biquíni.
O barco deslizava veloz mar afora, mas a lancha
aproximava-se a toda a velocidade, com um homem ao
volante e dois do lado de estibordo, revólveres na mão.
— Estão zangados porque levamos sua amiguinha —
comentou o espanhol. — Mas isso é bom, para não
pensarem que só eles são espertos neste mundo. Há dois
dias conheci Antoinette, que se mostrou muito amável
comigo. Tanto que se eu fosse algum ingênuo pensaria que
me bastava olhar uma mulher para trazê-la a bordo. Bem...
— sorriu. — Isso não deixa de ser verdade, admito. Mas
nunca me agradaram muito as conquistas tão fáceis. Então,
pus-me a pensar e concluí que minha querida Antoñita devia
ter algum jogo escondido. Pouco depois, vi os dois homens
no cais e descobri que, enquanto ela e eu nos divertíamos
por aí, em Nice, eles davam uma busca em meu barco. E
então já não houve muito em que pensar... Não é verdade,
minha vida?
— Cão! — xingou Antoinette.
— Como você é vulgar, querida... Mas uma linda
francesinha não xingaria assim, não é mesmo, monsieur
Pernot? De que nacionalidade será a nossa Antoinette?
— Russa — resmungou Pernot.
— Não diga! Será melhor que se deitem sobre a coberta:
os amiguinhos dela estão-se aproximando, e têm revólveres
na mão. É capaz de acreditar que não estou gostando nada
disto, Pernot? Deitem-se, por favor.
Pernot deixou-se cair, arrastando rudemente Antoinette.
E poucos segundos depois a lancha vermelha passava perto
deles, deixando uma branca esteira de espuma sobre as
águas já enegrecidas pela noite. Da borda brotaram alguns
clarões, mas Paco Rivelles, encolhido junto à roda do leme,
sorriu com indiferença.
A lancha passou, avançou até uns cem metros diante do
barco, depois fez uma curva fechada, lançando-Se
novamente ao ataque. Enquanto isto, o barco a vela tinha
manobrado também, desviando- se da linha reta, obrigando
a lancha a girar mais e mais, adernando quase
perigosamente.
— Já estão de volta — informou o espanhol. —
Esperemos que tenham tão má pontaria como antes. Não se
movam daí, vocês.
O barco parecia voar para o largo, e a lancha passou
novamente a menos de dez metros. Viram-se outra vez os
clarões dos disparos feitos da borda, e Paco Rivelles tornou
a sorrir... até que viu os pequenos orifícios na vela. Então,
pareceu aborrecer-se. A vela perdeu parte de sua força,
devido ao ar que se filtrava através dos furos produzidos
pelas balas. Evidentemente, prosseguindo naquela marcha, a
vela iria rasgar-se, e esta idéia acabou de aborrecer
completamente Paço Rivelles.
Continuaram ainda mar afora e outra vez a lancha
passou a menos de dez metros. As luzes da Baía dos Anjos
pareciam um brilhante rosário multicor. Então, Paco colheu
a vela e olhou para Pernot.
— É melhor render-nos, Pernot. Essa gente está com
más intenções... e uma boa vela custa muito dinheiro.
— Deixe de tolice! Sabe manejar um revólver?
— Sei manejar qualquer coisa, Pernot. Sobretudo um
revólver. Quando prestei meu serviço militar na Espanha...
— Isso não importa agora! Pegue este revólver da garota
e mostremos a esses patifes que...
— Você é mal-educado, Pernot. Ia dizer-lhe que em meu
país, devido a meus estudos superiores, fiz o serviço militar
com o posto de alferes. Você já deve saber que a Espanha
não é um país muito rico, mas nos ensinam a combater
muito bem. Lembro-me de um soldado que...
— Aí vêm eles em cima de nós!
— Não, homem. Vêm em marcha curta. Isso quer dizer
que já se deram conta de que não queremos lutar. Veja o
que faço com o revólver de Antoñita...
Atirou-o na água e aproximou-se da borda, agitando
muito os braços.
— Ei! Nos rendemos! — gritou em francês.
Pernot levantou-se violentamente, apontando o revólver,
resmungando qualquer coisa. Mas Paco tirou-lhe
tranqüilamente a arma e jogou-a igualmente ao mar.
De imediato, e enquanto o americano se desfazia em
maldições, Antoinette pôs-se de pé, correndo para a proa e
gritando algo para os seus amigos da lancha.
— Pois tínhamos razão — comentou Paco, risonho: — a
pequena é mesmo russa, Pernot... Ou pensa você que não?
— Vá para o diabo, estúpido!
Paco Rivelles tomou a sorrir, mas de um modo frio que
o espião americano não pode captar. A lancha vermelha
aproximava-se muito lentamente, enquanto Antoinette não
deixava de gritar coisas em russo. O barco, que parecia à
mercê da corrente, ia girando, virando a proa diretamente
para a lancha, cujo motor tinha deixado de funcionar.
— Será melhor que sente aqui, Pernot, ao leme. Segure-
o com força. Apenas isso. Está claro?
Afastou-se da borda e dirigiu-se tranqüilamente para o
centro do barco. Soltou de golpe a corda da vela, que inchou
no mesmo instante, fazendo o barco saltar em direção à
lancha vermelha. Antoinette foi precipitada para trás, caindo
perto de Paco, que se agarrou ao mastro e colocou o pé
sobre o ventre da russa, imobilizando-a contra a coberta. Da
lancha partiram os gritos dos três homens e também alguns
disparos, que passaram por cima dos ocupantes do barco,
perfurando novamente a vela. Mas a embarcação estava já
lançada contra a lancha, com toda a força do vento do mar.
O que a estivera tripulando saltou sobre os controles, pôs o
motor em marcha... com tão pouca sorte que a lancha virou
de flanco para o barco a vela, justamente no momento em
que a proa deste chocava-se contra o casco. Ouviu-se um
forte rangido, e fragmentos de madeira e plástico saltaram
pelo ar. Em menos de dois segundos, a lancha vermelha
ficou praticamente partida em dois pedaços, afundando com
rapidez e deixando passar o barco a vela, que prosseguiu
mar afora.
— Está bem, Pernot? — perguntou Paco, risonho.
— Que o diabo me carregue! Estou sim...
— Não se amaldiçoe por isso, homem. A vida é a coisa
mais formosa que temos. Não é verdade, Antoñita?
Tirou-lhe o pé de cima e ajudou-a a levantar-se.
Apontou para trás, onde ainda se viam os três homens que
bracejavam para manter-se à tona.
— Seus amigos são bons nadadores?
— São.
— Pois melhor para eles. Quanto a você....
— Não pode me matar, não...
— Querida, sou um cavalheiro. Nem sequer bateria em
você, como fez monsieur Pernot. É uma coisa muito feia.
Mas em compensação, demonstrarei que sempre cumpro
com minha palavra jogando-a na água. Você também sabe
nadar?
— Mas é muita distância daqui até a praia!
— Enquanto há vida, há esperança. Sabe de uma coisa?
Não quero separar-me de você sem guardar uma
recordação...
Com um movimento preciso, arrebatou-lhe a peça
superior do biquíni, depois olhou-a sorridente, como um
menino que tivesse feito uma boa brincadeira.
— Que coisa mais linda!... E agora, um elegante salto
por sobre a borda...
— Não!
Sem se perturbar, ele ergueu-a nos braços, aproximou-se
da borda e passou-a por cima, dominando tranqüilamente
sua resistência.
— Vá com Deus, amorzinho...
E deixou-a cair. Olhou-a uns segundos, agitando a peça
superior do biquíni como se fosse um lenço. Depois, chegou
perto da vela e examinou-a com ar zangado. Apanhou a
bolsa de praia da falsa francesa, derramou seu conteúdo
sobre a coberta e logo viu as cédulas.
— Ah-ah! Dinheiro francês. Espero que haja o suficiente
para comprar uma vela nova. Não gosto de remendos. E
como a culpa de que minha vela se tenha estragado é dela,
pagará por uma nova.
Meteu dentro da bolsa as outras coisas, aproximou-se do
silencioso e carrancudo Pernot e entregou-a.
— Talvez encontre algo interessante aqui dentro, amigo.
Oh, lamento ter atirado o seu revólver no mar. Espero que
logo possa conseguir outro.
— Como fez?
— O quê?
— Isso de partir a lancha em dois... Tem um reforço de
metal na proa do barco, Rivelles?
— Exatamente. Você não precisava impacientar- se.
Quando Paco Rivelles diz uma coisa, essa coisa já está
praticamente feita.
— O que me parece é que Paco Rivelles é um homem
perigoso.
— Já lhe disse que em minha terra nos ensinam a lutar
bem. Suponho que agora me dará um montão de dólares
para gastos adicionais durante minha viagem a Nova Iorque.
Que tal... cinco mil?
— De acordo — acabou por sorrir o espião americano:
— terá esse dinheiro.
— Espero passar muito bem durante a travessia. Onde
quer que o deixe antes de levar meu barco para ser
consertado num lugar discreto e onde saiba que o
encontrarei ao meu regresso dos Estados Unidos?
— Continuemos navegando. Indicarei o lugar. Vai
guardar mesmo isso como um “souvenir”, Rivelles?
Paco agitou a peça ao biquíni, sorrindo infantilmente.
— Bem, há quem colecione borboletas mortas, selos do
correio, ossos de animais pré-históricos. Que tem de mau
conservar meio biquíni?

CAPITULO SEGUNDO
Uma velhota de mau gênio
Transatlântico de luxo
Mulheres demais...

Faltava uma hora para a saída do “Empire” do cais do


Havre, quando um táxi de Paris se deteve o mais próximo
possível da branca e enorme passarela. E Paco Rivelles,
depois de ter feito a grande vida na Cidade-Luz durante
aquele interregno do assunto iniciado em Nice, saltou do
táxi. Com uma gorjeta magnífica, convenceu o chofer de
que devia encarregar-se de colocar sua bagagem a bordo,
enquanto ele próprio se dedicava a dar umas voltas pelo
cais, fumando um estupendo charuto que, tudo indicava,
procedia de certa ilha suspeita das Caraíbas.
Transformado em autêntico cavalheiro, o que afinal era
sua verdadeira condição, o espanhol percorreu o fervilhante
cais, estudou as pessoas que embarcavam no “Empire” e,
finalmente, pôs-se a examinar aquele colosso dos mares,
com mais de duzentos e cinqüenta metros de extensão.
Branco, novo, moderno, o “Empire” podia proporcionar
qualquer capricho a seus passageiros. Desde seu conjunto
de três piscinas até um excelente teatro, dois cinemas, lojas
de toda espécie, alfaiataria, night-clubs... Tudo.
Decididamente, o “Empire” era como uma pequena cidade
equipada com todos os recursos, inclusive serviço de rádio,
telegrafia e telefone para todos os continentes.
A viagem prometia ser interessante.
Dez minutos antes da partida do imponente
transatlântico, Paco Rivelles, aproveitado já o máximo de
tempo disponível, dispôs-se a subir a bordo. De modo que
se dirigiu à passarela da classe de luxo. Impecável em seu
trajo esportivo, simpático, risonho, o espanhol não perdia
um detalhe de quanto sucedia a seu redor. Claro que não iria
cometer nenhum engano... Os russos insistiriam e, afinal de
contas, Antoinette sabia que ele era um dos passageiros do
“Empire”.
Mas, uma das coisas boas que tem a espionagem é que,
geralmente, vale mais o objeto pelo qual se espia que o
próprio espião ou agente secreto. Assim, naquele caso, ele
não era nada. Nada, no sentido de objetivo. O objetivo era a
tira de microfilme onde estava detalhado o sistema a seguir
para a construção do centralizador fotográfico. Portanto,
estava convencido de que, antes de matá-lo, se certificariam
de que era possível conseguir aquele microfilme. Enquanto
não estivessem certos de que a morte de Paco Rivelles ia
ser-lhes útil, não o matariam. E Paco Rivelles se
encarregaria de fazer com que ninguém a bordo pudesse ter
certeza de que ele trazia o microfilme consigo, porque...
O esbarrão fê-lo perder momentaneamente o equilíbrio,
enquanto, num gesto instintivo, estendia as mãos para a
outra pessoa. Talvez devesse olhar também para frente, mas
isso não é próprio de quem se dedica à espionagem e, ipso
facto, defende principalmente as costas.
Erro.
E para demonstrá-lo, ali estava, segura por seus braços,
aquela dama, que sem dúvida teria caído ao chão se ele não
a amparasse. Evitou a queda da elegante senhora, mas não a
da caixa de bombons e das flores, assim como da bengala
com castão de prata. Tudo isto rolou pelo chão e a dama,
após um olhar estupefato aos seus pertences, fixou os olhos
azuis em Paco Rivelles. Olhos azuis, límpidos como um céu
de verão, protegidos por uns óculos ovalados. Ela devia ter
uns sessenta anos, estava severamente vestida de negro,
com finas rendas brancas, da Holanda, na borda do
fechadíssimo decote, saia comprida e sapatos pretos de
meio salto. Os cabelos eram grisalhos, quase brancos.
Mas pese sua idade, sua presumível fragilidade física, a
idosa dama devia ter um forte caráter, pois soltou-se
bruscamente do espanhol, fulminou-o com um olhar e
exclamou:
— Você é um selvagem, rapaz!
— Mmm... Perdão, Madame! Suplico-lhe mil vezes que
me perdoe...!
— O que deve fazer é caminhar com mais cuidado! Em
que ia pensando, rapaz selvagem?
— Pois... Oh, mas espero que Madame terá a bondade
de perdoar-me, por favor! Apanharei suas coisas...
A seu pesar, Paco sentia-se um tanto inibido ante aquela
senhorial dama enfurecida. Ou talvez devido ao risinho dos
que estavam presenciando o insignificante incidente.
Inclinou-se, apanhou a bengala, a caixa de bombons... e
olhou, verdadeiramente consternado, os bombons
esparramados pelo chão, assim como as flores,
inevitàvelmente sujas.
Pigarreou, hesitou e por fim estendeu à dama a caixa de
bombons, pouco menos que vazia, a bengala...
— Isto é tudo? — perguntou friamente ela.
— Madame, asseguro-lhe que estou consternadíssimo!
Reconheço minha culpa. Ia distraído, é verdade. Mas,
Madame, permita-me dizer-lhe que não sou nenhum
selvagem. E seria uma honra para mim restituir essas flores
e os bombons.
— Aqui temos o milionário americano! Vão pisoteando
tudo e depois, com uns poucos dólares, crêem que podem
reparar qualquer dano...
— Perdão, Madame... Não sou americano, mas
espanhol. Quanto ao lamentável ocorrido...
— Espanhol! É realmente espanhol?
— Claro que sou, Madame.
— Pois saiba uma coisa, rapaz: os espanhóis sempre me
foram extremamente simpáticos...
— Muito obrigado, Madame! — sorriu Paco.
—... Até agora — terminou friamente a dama. — Por
sua culpa, parece-me que mudarei de opinião a respeito dos
espanhóis.
— Suplico-lhe que não o faça, Madame. Se para tanto
for necessário que me suicide, não hesitarei. Embora
preferisse fazê-lo ao terminar a travessia. Promete ser
maravilhosa, não lhe parece, Madame?
— Eu diria que sim, pois... Olhe, rapaz, não vejo razão
para conversar com você, de modo que siga seu caminho...
e que Deus tenha piedade das senhoras. Até nunca.
— Está sendo demasiado severa comigo, Madame. Não
sorriria um pouco se lhe prometesse formalmente não
atropelar mais as senhoras de idade?
— A quem está chamando senhora de idade, rapaz
selvagem?
— Mmm... Oh, bem, não queria... Isto é, pareceu-me
que Madame teria uma idade que... Não, não, não é isso, por
Deus! Queria dizer que...
— Rapaz, além de selvagem, você me parece grosseiro.
— Acontece, Madame, que minha vista não ó muito boa
e...
Mas a dama já se afastava, dirigindo-se à passarela
próxima, após erguer orgulhosamente a cabeça. Paco
Rivelles ficou como aniquilado e, por fim, depois de coçar o
alto da cabeça, foi atrás dela, ignorando por completo dos
risinhos que soavam ao seu redor. A velha senhora tinha
mau gênio, ao que parecia, e Paco pensou que, felizmente,
com um pouco de sorte, não tornaria a vê-la, pois o barco
era muito grande.
E enganou-se por completo.
Quando um camareiro deixou-o diante de seu camarote,
o J, outro camareiro mostrava à velha dama o interior do
camarote contíguo, o K. Quer dizer que, durante a travessia,
Paco Rivelles ia ter como vizinha imediata a irascível
senhora de óculos. Ela o viu disposto a entrar no camarote J,
carregou o sobrolho e, sem mais, barafustou pelo seu.
Paco não entrou ainda. Esperou a saída do camareiro que
conduzira a dama e chamou-o com um sinal. Pôs-lhe na
mão uma nota de dez francos novos, ao mesmo tempo que
perguntava:
— Quem é a velhota, amigo?
— A Duquesa de Montpelier, cavaleiro.
— Duquesa?
— Oui, Monsieur.
— De acordo, é duquesa. Mas terá também um nome,
não?
— Chama-se Annette Simonet3.
— Está bem. Obrigado, amigo.
Entrou em seu camarote, gorgeteou o camareiro que o
tinha servido e ficou só. Uma olhadela ao redor convenceu-
o de que conforto não lhe faltaria naquela viagem. Tinha
telefone, quarto de banho, televisão em circuito fechado, um
amplo leito, uma janela circular que dava para o convés e da
qual poderia ver perfeitamente o oceano, um sofá muito
cômodo para passar bons momentos se suas companheiras
de viagem se mostrassem acessíveis... As companheiras de
viagem, menos uma, claro.

3
A agente “Baby” chama indiscriminadamente a todos os agentes da CIA, seus
colaboradores, de Johnny. Ela já apareceu como Duquesa de Montpelier em duas
sensacionais aventuras: ESPIONAGEM CIENTIFICA e ÚLTIMO TENTÁCULO
Depois da olhadela superficial, Paco dedicou-se
seriamente a revistar o camarote. Lera muitas coisas sobre
espionagem para confiar em nada nem em ninguém. E
assim, revolveu tudo à procura de microfones, bombas,
câmaras de televisão, ou qualquer coisa parecida. Afinal de
contas, a linda Antoinette, que tão deliciosamente o tinha
distraído durante aqueles dias em Nice, sabia há uma
semana que ele ia tomar aquele navio. E os espiões,
principalmente quando sabem as coisas a tempo, preparam
tudo muito bem.
Mas não. Não havia nada. Nem câmaras de TV, nem
microfones, nem bombas. Tudo bem.
Naquele momento o transatlântico zarpava. Paco olhou
pela janela circular para os personagens que, de terra firme,
davam adeus agitando lenços. Um olhar apenas, porque
aquilo de despedidas sempre o deixava aborrecido. Se uma
pessoa diz que vai embora, diz-se-lhe adeus e pronto.
Depois voltará, se quiser e puder.
E como ainda faltavam duas horas para o jantar, Paco
Rivelles achou que poderia matar o tempo num dos bares de
bordo. O mais luxuoso, naturalmente. Não há nada mais
divertido que fazer a grande vida quando pagam os outros.
A CIA, por exemplo.
Estava já para abrir a porta quando se lembrou de
alguma coisa. Deu uma palmada na testa, foi ao sofá e
sentou-se. Tirou um sapato, abriu o salto e do vão existente
neste sacou uma pequena esfera de plástico. Tornou a calçar
o sapato e olhou em torno, até que seu olhar fixou-se num
pequeno quadro moderno. Um quadro surrealista, todo em
traços negros, azuis, vermelhos e amarelos. Deus saberia o
que significava aquilo. Aproximou-se e passou a mão pela
tela. Não era tela, mas papel fotográfico Uma excelente
reprodução fotográfica de algum quadro que, sem dúvida,
devia ser famoso. Com a unha, esteve seguindo uma das
linhas negras, até encontrar uma fenda. Rompeu então a
cápsula de plástico, sacou a finíssima tira de microfilme e
encaixou-a longitudinalmente na fenda. Depois, deu uma
volta pelo camarote e olhou de súbito para o quadro.
Nada. Nem ele mesmo podia ver o microfilme, apesar de
saber exatamente onde estava. Aproximou-se mais, mais,
mais... Depois olhou de diversos ângulos, já com as luzes
acesas, certificando- se de que não havia nenhum reflexo
revelador.
E já tranqüilo, abandonou o camarote, percorreu o
corredor até o centro do barco, encontrou a passagem que ia
dar no convés, foi a este e jogou a diminuta esfera de
plástico ao mar, sem nenhum gesto visível. Simplesmente,
apoiou-se à borda e deixou-a cair. Esteve ali uns cinco
minutos olhando para o Havre já longínquo.
Depois pensou que já era tempo de tomar um bom
conhaque. Encaminhou-se para a popa e entrou no “Glass
Enelosed Bar”, realmente instalado entre paredes de vidro,
com todo o mar à vista. Sentou- se a uma mesinha e ficou
deslumbrado com a beleza da jovem que entrava naquele
momento. Uma loura de olhos verdes ultra luminosos, que
veio ocupar a mesa vizinha. Ela sorriu quando o garçom
aproximou-se. Tinha cruzado as pernas, mostrando-as o
bastante para que Paco passasse a noite na esperança de
encontrá-la na manhã seguinte numa das piscinas, em
biquíni...
—... cavalheiro?
Ergueu vivamente o olhar e sobressaltou-se vendo diante
dele um garçom, cuja atitude era a clássica de quem tem
muita paciência e é capaz de repetir inúmeras vezes a
pergunta: “Que deseja tomar, cavalheiro?”.
— Oh, bem... Conhaque... Um “Carlos I”.
— Com gelo?
— Não, absolutamente!
O garçom afastou-se e Paco pôs-se a olhar para a loura
de olhos verdes, que sorria daquele modo capaz de derreter
corações. Ela devia tê-lo também um pouco fraco, pois
olhou para ele.
E então, entrou a ruiva. Com o que, as preferências de
Paco Rivelles com relação ao belo sexo ficaram
notàvelmente confusas. Louras ou ruivas? Porque se a loura
era tremenda, a ruiva era de fazer soltar gritos. Ela sentou-
se ao balcão, mostrando mais ainda as pernas do que a loura
e convencida de que suas costas parcialmente nuas eram
sensacionais. E eram, eram...
— O conhaque, cavalheiro.
— O quê?
— Le cognac, Monsieur.
— Ah, oui... Merci...
O garçom, como deve ser, não se alterava. Mas não Paco
Rivelles, que pouco depois, quando estava degustando o
primeiro gole do “Carlos I”, sofreu uma sacudidela nervosa
que quase o fez engasgar.
Mas que diabo estava acontecendo ali? Acaso não
haveria mulheres feias no mundo? Bem, talvez as houvesse
no mundo, mas não no transatlântico “Empire”. A loura era
sensacional e a ruiva, fantástica. Mas aquela morena que
acabava de entrar, alta, flexível, com uns enormes olhos
cinzentos um pouco exóticos, rasgados, um corpo incrível...
Não estava direito. Às vezes passava uma semana
procurando uma mulher que fosse digna de suas atenções. E
agora, em menos de três minutos, encontrava ali três
beldades como nunca havia sonhado. Isso, afinal de Contas,
não era verdadeira sorte, pois não poderia dedicar-se às três
ao mesmo tempo, sobretudo estando todos eles no mesmo
barco.
Olhou a loura e ela sorriu-lhe, levemente, mas com
visível simpatia. Um olhar de relance à morena valeu-lhe
mais um sorriso. Uma olhadela à ruiva, e esta mostrou os
belos dentes num sorriso destes de atirar um homem de
costas no chão.
Paco Rivelles acenou para o garçom.
— Diga, cavalheiro.
— Por favor: quantos conhaques tomei?
— Aqui, um apenas.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Um conhaque normal?
— O que pediu, cavalheiro.
— Bem... Deverei crer em tudo que meus olhos vêem.
Você vê a mesma coisa?
O garçom permitiu-se um breve sorriso.
— Creio que sim, cavalheiro. E se me permite, direi que
o “Empire” está de sorte desta vez.
— É o que penso eu — quase riu o espanhol. — Pode
mandar-me um boy?
— Imediatamente. Mais conhaque, talvez?
— Não, não. O bom deve ser dosado.
— Sem dúvida, cavalheiro.
O garçom afastou-se e Paco viu-o fazer sinal a um boy,
que logo chegou à mesa. Um rapazola esperto, cujo olhar
malicioso brilhou intensamente quando Paco pediu-lhe para
comprar um ramo de flores.
— De que se ri?
— De nada, cavalheiro — sobressaltou-se o boy.
— Bom... Além do mais lindo ramo que você puder
encontrar, quero que me compre também uma caixa de
bombons. Está claro?
— Sim, senhor. E que mais?
— Nada mais.
— Só duas coisas?
— Rapaz — suspirou Paco —, não é bom crescer muito
depressa. Deixe de maus pensamentos e vá comprar o que
lhe disse... e leve ao camarote K, para a velha duquesa de
Montpelier. Entregue em mão. Poderá reconhecê-la
fàcilmente porque usa óculos, tem sessenta anos e muito
mau gênio. Se ela atirar as flores e os bombons em sua
cabeça, tudo o que você tem a fazer é sair correndo... Okay,
boy?
— Okay — riu o garoto.
— E outra coisa: nada de pensar que a duquesa e eu...
Hem?
— Não, senhor. Não estou pensando nada.
— Vá, então. Tome este dinheiro. O que sobrar, para
você. Se não sobrar nada, venha me dizer.
Esteve ainda dez minutos no bar, um pouco desolado
porque a ruiva tinha ido embora, deixando atrás de si um
sorriso sensacional que parecia destinado exclusivamente a
ele, apesar de já haver outros homens presentes. Antes de
retirar-se, ele ainda lançou alguns olhares românticos à
morena e à loura. Esta correspondia bem, mas a morena
parecia ter esfriado. Sua expressão era muito séria. De
qualquer modo, olhava francamente para o espanhol, sem
tentar nenhum dissimulo.
Após um passeio pelo convés, Paco regressou a seu
camarote disposto a vestir-se para o jantar. Abriu a porta,
entrou e acendeu a luz... e ficou olhando estupefato para o
extraordinário visitante. Melhor dito, para a extraordinária
visitante clandestina.
Sua estupefação foi tal que durante alguns segundos
esteve incapaz de reagir. Aquela mulher estava vestida de
malha negra, uma espécie de maillot completo que
modelava primorosamente o mais perfeito corpo feminino
até então visto por Paco Rivelles, o qual, atônito, olhava-o
de cima a baixo, de baixo a cima, de direita a esquerda, de...
Olhasse por onde olhasse, aquela mulher possuía a plástica
mais admirável do mundo e isso se tornava bem evidente
devido à malha negra justíssima, que também lhe cobria a
cabeça, deixando livre apenas o rosto, e isto parcialmente,
pois que ela usava meia máscara. Era como uma sombra
maravilhosa, um sonho, uma ilusão!
— Puxa vida! Quem é você? — perguntou Paco.
A mulher aproximou-se, sorrindo tão encantadoramente
que o espanhol sentiu as pernas fracas, como se seus joelhos
amolecessem. Pelas aberturas da máscara, uns enormes,
belíssimos olhos azuis pareciam lançar faíscas irônicas e
ternas ao mesmo tempo.
A mulher de negro ergueu a mão, suavemente. Tão
suavemente que Paco chegou a pensar que a oferecia para
que a beijasse. E quando começava a inclinar-se para fazê-
lo, aquela mão pareceu tornar-se rígida. E antes que ele
pudesse pensar em mais nada, recebeu de um lado do
pescoço um golpe seco, fulminante.
Caiu de joelhos diante da dama de negro e, então,
recebeu o segundo golpe, agora na nuca.
Possivelmente, Paco Rivelles nem sequer teve tempo de
pensar que naquele luxuoso transatlântico havia mulheres
demais...

CAPITULO TERCEIRO
Em trajos menores
Pugilato a bordo
Homens demais...

Foi despertado por violentíssimos golpes que recebia na


cabeça. Golpes tão fortes que pareciam ir
parti-la em mil pedaços de um momento para outro. Abriu
os olhos, neles recebeu a luz em cheio, tornou a fechá-los.
— Senhor Rivelles! Senhor Rivelles!
Sentou-se, com os olhos ainda fechados. Era como se
também seu nome tivesse soado dentro de sua cabeça, quase
fazendo-a estourar. E súbito deu-se conta de que já não lhe
estavam aplicando golpes. A voz soava no corredor e os
golpes que acreditara ter recebido na cabeça eram batidas na
porta do camarote.
Levantou-se, lançou um olhar amortecido ao redor...
Bruscamente, seus olhos fixaram-se no quadro surrealista.
Foi até ele em dois tropeços e respirou aliviado quando viu
o microfilme dentro da ranhura onde o havia posto.
— Senhor Rivelles!
Ajeitou os cabelos e foi abrir a porta. O boy estava
diante dele, quase escondido atrás de um magnífico ramo de
flores e uma grande caixa de bombons.
A voz do rapazola brotou por entre as flores: — A
senhora Duquesa não está em seu camarote, senhor
Rivelles.
— Procure-a — grunhiu Paco.
— Já procurei, mas não pude encontrar. Também
procurei o senhor e depois descobri que só podia estar
aqui... Que faço com tudo isto?
— Atire no mar. Esperemos que alguma sereia se alegre
com as flores. Você acha que ela gostaria dos bombons?
— Quer mesmo que eu atire, senhor Rivelles? —
duvidou o garoto.
— Bem... Talvez seja melhor você bater outra vez no
camarote da Duquesa.
— Mas...
— Talvez já tenha voltado, depois de ter ido recomendar
ao capitão que não tire o navio da rota certa, e que tome
cuidado com os icebergs, e que providencie para que
nenhum passageiro a incomode... Eu, especialmente. Vá,
amiguinho.
Fechou a porta, despiu-se e meteu-se no chuveiro. Coisa
surpreendente: a dor de cabeça desapareceu por completo.
Manteve-se imóvel sob o forte jorro de água fria, pensativo.
Claro que também ele sabia lutar daquela maneira, mas a
dama de negro não lhe dera oportunidade. Estava certo de
que o primeiro golpe fora de caratê, embora atenuado, O
segundo, na nuca, era da mais clássica escola de judô.
Ambos tinham sido bem aplicados, sem intenção de matar
ou machucar em excesso.
Quem era aquela mulher que sabia pelejar tão
perigosamente, que entrava quando bem queria no camarote
de outro passageiro e depois desaparecia com a maior
calma?
Antoinette, a loura, a ruiva, a morena, a dama de negro...
Ah: e a Duquesa. Mulheres demais, sim. Uma idéia que,
embora lamentando, tinha que aceitar como razoável era a
de que, naquela viagem, seria melhor não complicar a vida
com mulheres, pois só assim podia dedicar-se com toda
eficiência a...
Outra batida na porta.
— Não estou! — gritou Paco.
Esfregou-se energicamente sob o jorro de água fria.
Outra vez, ouviu a batida na porta. Resmungando, concluiu
que o melhor modo de ficar tranqüilo era abrir a porta,
despachar o importuno e voltar ao chuveiro. Amarrou a
toalha na cintura, saiu ao camarote encharcando o tapete e,
de cara amarrada, abriu a porta.
— Quando digo que não estou é porque... Oh! Lá estava
a senhora Duquesa de Montpelier, olhando-o com os olhos
muito abertos por trás de seus óculos ovalados.
— Nunca sabe portar-se convenientemente, senhor
Rivelles? — perguntou ela, por fim, recuperando-se da
surpresa.
— Con... venientemente, Madame?
— Isto não é maneira de receber uma senhora.
— Uma...? Ah, bem... Espero que me perdoe, Madame.
Eu não esperava esta honra... Em que lhe posso servir?
— Continua sendo um mal-educado, senhor Rivelles.
— Oh, desculpe...! Não quer entrar?
— Obrigada. Mas procure não espirrar água em mim.
— Tomarei o maior cuidado.
O espanhol afastou-se e a dama entrou no camarote,
tratando de evitar as pequenas poças de água. Lançou um
olhar ao redor e voltou-se para Paco, que continuava
segurando a porta, um tanto irritado. Olhou-o de cima a
baixo, inquisitivamente: ombros largos, cintura fina, olhos
inteligentes, boa aparência, pele fortemente tisnada pelo sol,
robusto, simpático, o cabelo molhado escorrendo sobre a
testa.
— Se não fecha essa porta vai resfriar-se, Rivelles.
— Oh, bem... Pareceu-me que...
— Cavalheiro: minha honra está acima dessas bobagens.
— Evidentemente, Madame.
Fechou a porta e ficou sem saber o que fazer, salvo
conservar a toalha presa à cintura, temendo que um
descuido nesse sentido firmasse mais a senhora Duquesa em
sua opinião de que ele era um grosseiro.
— Vim apenas agradecer-lhe a gentileza, rapaz. Creio
que antes fui excessivamente brusca e intransigente com
você.
— Oh, Madame, não tem a menor importância,
asseguro-lhe...
— Para mim, tem. Pode perdoar-me?
— Se a senhora me perdoou... — sorriu o espanhol. —
Como eu poderia deixar de perdoá-la? Apenas lamento que
minha... oferenda de paz não chegasse antes às suas mãos,
mas o boy disse...
— Já sei. Estive passeando pelo barco. Pensa ir assim ao
restaurante, Rivelles?
— Como? Oh, não! Claro que não!
— Imagino que tenha um smoking.
— Madame, por favor... Sou um passageiro da classe de
luxo!
— Ótimo. Dentro de quinze minutos, então?
— Mmm... Como diz, Madame?
— Estou-lhe permitindo jantar em minha companhia,
jovem Rivelles.
— Ah!
— Suponho que saberá ver nisso um privilégio.
Paco Rivelles abriu a boca, mas fechou-a imediatamente.
Uma loura espetacular, uma ruiva sensacional uma morena
fabulosa... E ali estava aquela antiguidade trajada de negro
concedendo-lhe o privilégio de admiti-lo em sua mesa.
— Mas sem dúvida, Madame — conseguiu articular. —
Um alto privilégio, por certo.
— Então, dentro de um quarto de hora no “Star Dinning
Room”. — A Duquesa ergueu a imponente bengala e
indicou com ela a cabeça do espanhol. — E penteie-se bem.
Espero que seu smoking esteja bem passado.
— Claro, Madame.
— E saiba que detesto a impontualidade.
— Não o esquecerei, Madame.
— Naturalmente, não deverá acostumar-se a jantar
comigo. Isto é apenas uma concessão que lhe faço por
minha intransigência desta tarde.
— Sim, eu compreendo... Agradeço muito a bondade de
Madame.
— E deixe de chamar-me Madame às secas. Sou
Madame la Duchesse de Montpelier.
— Oh, sim! Madame... la Duchesse de Montpelier.
— Sobra o de Montpelier.
— Claro! Como sou idiota...
Ela consultou um relógio de ouro que pendia sobre seu
peito mirrado.
— Dentro de doze minutos, jovem Rivelles.
Abriu-lhe a porta. Ela se deteve no limiar, olhou-o de
cima a baixo, depois se afastou pelo corredor com a
expressão de quem teme ter confiado em excesso nas
possibilidades e méritos dos demais.
Por sua parte, o espanhol ficou pensando que talvez
tivesse exagerado ao não catalogar a Duquesa entre as
mulheres. Isto fê-lo pensar durante dois minutos, findos os
quais chegou à conclusão de que, decididamente, não
contaria a Duquesa como uma das mulheres de bordo. Era
apenas um... um ser. Não uma mulher.
Decidido isto, optou por não voltar ao chuveiro e chegar
o mais depressa possível à sala de jantar, pensando que era
afinal uma grande sorte ela lhe ter dito que não ficasse no
costume de comer em sua companhia. Na verdade, jantar
todas as noites com ela durante a viagem teria sido um
tormento que não...
E tornaram a bater na porta do camarote. Resmungando
irritado, Paco foi abrir, agora de cuecas. Deu-se conta disto
quando já estava com a mão na maçaneta. Logo pensou na
inconveniência de que a loura, a morena ou a ruiva o vissem
em tão ridícula indumentária.
Assim, abriu a porta, apenas dois dedos, perguntando: —
Que...?
A porta acabou de abrir-se violentamente, com tal
ímpeto que Rivelles foi arremessado para trás, realizando
um curto vôo até perto do sofá, junto ao qual ficou
estendido após bater com a cabeça num de seus cantos.
Quando recuperou o domínio visual da situação, a porta do
camarote estava novamente fechada, mas dentro havia três
homens, plantados como enormes sombras ameaçadoras
diante dele. Três sujeitos altos, fortes, rudes, muito tudo
isto.
Paco começou a levantar-se, cada vez de menos bom
humor, resmungando no melhor estilo andaluz.
Recebeu uma tremenda patada na boca do estomago, que
o deixou sem fôlego. Imediatamente, um golpe no queixo,
desferido pelo mesmo enorme pé. Depois recebeu uns
quantos golpes mais e, quando deu acordo de si, estava
sentado no sofá, com aquelas três ameaçadoras sombras
ainda debruçadas sobre ele.
— Vamos decidir isso ràpidamente, Rivelles. De modo
que lhe aconselho ouvir com atenção: tem vinte e quatro
horas para entregar-nos o microfilme de Trepof. Está claro?
— De Trepof? Que diabo de coisa está dizendo?
— Falo do microfilme que contém o invento de nosso
compatriota Zinovi Trepof. Já que os planos originais foram
destruídos e agora o único meio de conhecer esse invento é
possuindo o microfilme, queremos o microfilme que está
em seu poder. Entendido?
— Não. E se insistirem em...
Insistiram os três juntos. Um deles, o maior, levantou-o
com um puxão e aplicou-lhe uma direita no estomago,
deixando-o novamente sem fôlego. Feito isto, passou-o a
outro, que lhe vibrou um golpe no fígado, pouco menos que
mortal. E por último, o terceiro, com uma joelhada no
baixo-ventre, tornou a atirá-lo sobre o sofá.
— Tem vinte quatro horas para entregar-nos o
microfilme, Rivelles. Pense bem, porque se não aceitar esta
trégua amistosa, não chegará vivo a Nova Iorque.
— Talvez esteja disposto a entregar-nos o microfilme
agora mesmo — sugeriu outro dos visitantes.
— Não seria má idéia — aceitou o primeiro. — Que diz
a isso, Rivelles?
Nada.
— Não quer entregar o microfilme?
— Não.
— Bem... Entendo que não quer entregá-lo agora. Sua
atitude, tendo em conta que espera obter cem mil dólares
por esse microfilme, parece-me... humana, muito normal.
Mas pense que sempre é melhor salvar a vida que ganhar
cem mil dólares. Pense nisso durante vinte e quatro horas.
Se passado esse tempo não nos tiver entregue o microfilme,
seremos obrigados a recorrer a processos menos cordiais.
Peço-lhe por favor que pense bem, já que estamos falando
sério.
— Pensarei.
— Então... tem o microfilme?
— Claro.
Um dos companheiros do que falava avançou contra
Paco, mas o outro o conteve.
— Não. Quietos por ora. É pouco provável que o senhor
Rivelles possa abandonar o barco nos próximos seis dias, de
modo que nos permitiremos ser tolerantes e compreensivos.
E até pacientes. Mas só isso, Rivelles. Meu nome durante
esta travessia é Victor Makarian. Pode encontrar-me
fàcilmente na classe de luxo. Quando tiver pensado o que
lhe convém, leve-me o microfilme. E procuraremos não
tomar represálias pelo que fez. Se o seu comportamento for
satisfatório, talvez resolvamos não matá-lo. Depende de
você.
Paco esteve uns segundos examinando os três homens. O
chamado Victor Makarian era o menos alto e maciço,
porém o mais perigoso, o mais cruel. Tinha os olhos tão
claros que pareciam de água. Os outros dois tinham olhos
escuros, reluzentes como os de uma fera carniceira. Mediam
mais de um metro e oitenta de altura, eram robustos, bem
treinados. Seria preciso estar louco para pretender vencer
aqueles homens só com as mãos. Bem... A menos que se
soubesse lutar de fato. E Paco Rivelles, em matéria de luta,
estava ao corrente das últimas novidades mundiais. Tanto
podia esmurrar seu adversário, como recorrer ao judô, ao
caratê, ao jiu-jitsu, ao kung-fu...
— Tudo o que lhes interessa é o microfilme?
— É.
— E minha vida?
— Você é um pobre rapaz que teve uma oportunidade e
soube aproveitá-la. Julgando-o com imparcialidade,
achamos que fez bem, pois nós teríamos procedido da
mesma forma. Acontece, porém, que seus interesses
coincidem com os nossos, por isso não nos deteremos em
considerações. Insisto, pela última vez: ou nos entrega o
invento de Zinovi Trepof, ou não chega vivo a Nova Iorque.
Entendido?
— Entendido.
— Pois é tudo. Até a vista, Rivelles.
— Um momento — disse outro. — Por que não lhe
pergunta quem é a velha?
— Que velha? — surpreendeu-se Paco.
— A que esteve até há pouco com você neste camarote.
A mesma com a qual tropeçou antes de subir ao barco... e a
quem enviou flores e bombons.
— Caramba! Estão muito bem informados, não?
— É nosso trabalho, Rivelles. Quem é a velha?
— Uma duquesa meio biruta.
— Já a conhecia antes?
— Nunca a tinha visto até a hora de embarcar.
— Está certo disso?
— Ouça — grunhiu Paco: — você pode talvez ensinar-
me algumas coisas de espionagem, mas perto de mim é zero
à esquerda quando se trata de mulheres. Nunca esqueço
nenhuma, percebe? Além disso, que pode importar a vocês
ou a mim uma duquesa mais velha que a Notre Dame?
— Pensamos que pudesse ser uma... cúmplice, Rivelles.
Paco abriu muito os olhos. Depois fechou-os
bruscamente e pareceu ficar pensativo. Pouco a pouco, suas
bochechas foram inchando, como as de um menino que se
esforça por conter o riso. E por fim, já sem poder evitá-la,
soltou uma sonora gargalhada... que lhe fez doer o
maltratado estomago.
— Pela Virgem de Macarena! A velha duquesa
transformada em minha cúmplice! É esta sem dúvida piada
do ano! Muito melhor que a do papagaio...
— Que papagaio? Que piada é essa?
— Não sabem. Pois vou contar-lhes: era uma vez um
papagaio...
— Rivelles, guarde suas piadas para melhor ocasião, e
para outras pessoas. E não esqueça que talvez não possa
mais contar nenhuma a ninguém. Até logo.
— Nos tornaremos a ver — disse Paco.
— Sem dúvida — sorriu friamente o outro. — Por muito
que você se esconda.
— É justamente porque não tenciono esconder- me que
nos tornaremos a ver. E talvez eu não esteja de cuecas...
nem desprevenido.
Nos três rostos surgiu a mesma expressão de ironia.
— É um desafio divertido, Rivelles. Mas não tem muita
graça... para você. Não seja estúpido, esqueça esses cem mil
dólares que lhe ofereceu a CIA e volte à sua velha Espanha.
Sabemos que lá se pode viver bem, mesmo não se tendo
cem mil dólares.
— Mas com seis milhões de pesetas vive-se ainda
melhor.
Os três amarraram a cara.
— Talvez possa convencê-lo de outro modo, Rivelles: a
nós três, pessoalmente, tanto faz voltarmos com o
microfilme ou com sua cabeça. Mas a você a única coisa
que deve interessar é não perder essa dura cabeça. Pense
bem... Vamos.
Os três saíram do camarote de Paco, que se levantou,
apalpou-se e disse uma coisa feia a respeito da pouca
fidelidade das esposas daqueles três indivíduos.
Naturalmente, agora se impunha voltar ao chuveiro, para
refrescar-se de verdade. Tinham sido golpes demais em
muito pouco tempo e, embora ele fosse duro, começava a
sentir-se cansado. Primeiro, o ataque de uma mulher;
depois, o daqueles três homens...
— A coisa não está tão boa, Paco — disse a si mesmo,
sob o jorro de água fria. — Ao que parece, neste barco não
há somente mulheres demais; há homens demais, também.
E não sei o que é pior.
Enfim, por minha parte, fico com as mulheres. E seja o
que elas quiserem.
CAPITULO QUARTO
Champanha com cereja
O centralizador fotográfico
Que chovam os milhões!

— Chega com quase dez minutos de atraso, jovem


Rivelles.
A voz da duquesa era áspera, irritada. Paco sentou-se
diante dela, à mesinha coberta de finíssima e imaculada
toalha, e sorriu como tirando a importância da coisa.
— Também nós, homens, temos o direito de aparecer
mais elegantes em público, Madame la Duchesse. Não está
de acordo?
— É uma descortesia chegar tarde a um encontro com
uma dama.
— Um encontro com...? Oh! Sim, claro... Mas asseguro-
lhe que não pude ser mais rápido. Que tal se jantássemos?
— Já considera resolvida a questão?
— Que questão? — estranhou o espanhol.
— A da impontualidade.
— Bom... Creio que a senhora leva as coisas demasiado
a sério, Madame... la Duchesse. A vida, graças a Deus, é
bastante longa para que possamos perder dez minutos de
quando em quando. Que escolheremos para o jantar?
— Não me agradam as pessoas descorteses.
Paco, que estava olhando para as suas três sorridentes
beldades, não a ouviu. A ruiva parecia ir desmanchar-se,
tanto lhe sorria, O mesmo se passava com a loura. Em
compensação, a morena parecia ter esfriado
definitivamente; inclusive, teria jurado que ela o olhava
com clara hostilidade. Estava jantando sozinha. A loura e a
ruiva, a uma mesa maior, que compartilhavam com dois
casais de idade madura, eles muito alinhados, elas
faiscantes de jóias. Também a ruiva e a loura ostentavam
algumas jóias e uns bonitos vestidos adequados para a
ocasião. Estavam simplesmente maravilhosas. A morena,
apesar de que, se olhada detidamente, revelava- se mais bela
que as outras duas, não usava jóias e seu vestido era
discreto, sem detalhes imaginativos. Além disso, era a
menos decotada. As outras duas...
—... descorteses.
— Perdão...? Dizia alguma coisa, Madame la Duchesse?
— Não me agradam as pessoas descorteses! — repetiu
bastante irritada a velha dama, pela terceira vez.
— Ah... Sem dúvida — admitiu Paco —, são muito
desagradáveis. A mim também não agradam. Quando ao
jantar...
— Já encomendei o jantar para dois, jovem Rivelles.
— Ótimo. Espero que tenhamos gostos... aproximados.
— É o que desejo, para seu bem.
— Para meu bem?
— É evidente que os alimentos demasiado fortes não só
prejudicam o estomago, mas a saúde em geral. Não pensa
assim, Rivelles?
— De fato...
— Então, tudo irá bem. Reconheço, é verdade, que
certos alimentos são uma... tentação, mas...
— Que alimentos, por exemplo? — indagou Paco.
— Ora... A lagosta, as aves silvestres, a maioria dos
peixes não fervidos, quase todos os molhos... Por outro
lado, há alimentos muito mais razoáveis. Em geral, as sopas
constituem, à noite, um alimento completo, e muito leve...
— As... sopas?
— E as verduras. Cozidas, naturalmente. Nada de
passadas em ovo ou farinha... E muito menos, fritas! Um
bom prato de sopa e umas folhinhas de...
— Madame — alarmou-se Paco: — posso saber o que
pediu para o jantar?
— Se lhe estou dizendo: uma sopinha leve e um pouco
de verdura cozida. Naturalmente, depois tomaremos chá,
porque o café...
Paco ficou pálido, de olhos arregalados.
— Madame: imagino que tudo isto seja uma brincadeira.
— Uma brincadeira, Rivelles?
— Isto da sopa, das verduras cozidas e do chá...!
— Está-se tornando francamente desagradável, jovem.
Muito receio que, se não mudar de atitude, resolverei
definitivamente nunca mais aceitar sua companhia à mesa...
Oh, aqui temos o nosso saudável jantar!
O espanhol ruborizou-se de imediato, com tanta
violência que por um instante temeu que sua pele fosse
rebentar, tal a quantidade de sangue que lhe afluiu ao rosto.
E enquanto permanecia mudo de indignação, fazendo o
possível para conter-se, o garçom destampou a grande
sopeira e começou a servir.
— Que aroma delicioso, hem, Rivelles?
— Aroma?
— Da nossa sopinha! — riu quase simpàticamente a
Duquesa de Montpelier.
— A... a sopa... Sim, tem um aroma delicioso! De que é?
— De pescadinha branca, naturalmente. Bem fresca...
— Pescadinha branca... Deve estar uma delícia!
— Sirvo-lhe mais, cavalheiro? — perguntou o garçom.
— Não, não! O... bom deve ser... dosado. Diga-me uma
coisa; tem vocês carne fresca na cozinha?
— Sem dúvida, cavalheiro!
— De... de boi bem criado?
— Sim, senhor.
— E lagosta?
— Naturalmente!
— Perdiz? — murmurou dèbilmente Paco.
— Também perdiz, cavalheiro.
— Têm também costeletas de porco, e umas boas
salsichas, e molhos picantes?
— Tudo isso, cavalheiro.
— E puchero? Terão também puchero?
— Temos a bordo um cozinheiro espanhol. Prepara um
puchero como ninguém nos sete mares. Se deseja qualquer
uma dessas coisas, cavalheiro...
— Não, não — disse Rivelles, quase moribundo. —
Nada de alimentos nocivos à saúde. Tomarei esta... sopa de
pescadinha branca e... e essa outra coisa que vejo aí...
— Como preferir, cavalheiro.
O garçom retirou-se e Paco empunhou a colher com mão
quase trêmula. A Duquesa de Montpelier sorriu para ele e
começou a tomar a sopa com uma rara elegância, com
gestos que pareciam ter cem anos de idade, bem estudados,
medidos. Era maravilhoso vê-la comer com aquela classe
insuperável.
— Não tem apetite, Rivelles? — perguntou subitamente.
— Tenho, sim... muito...
Tomou uma colherada, fechou os olhos e quando o
líquido chegou a seu estomago, abriu-os. Acaso, em toda
sua vida aventureira, tinha provado algo mais insípido?
— Um jantar magnífico, não é verdade, Rivelles?
— Completamente, senhora Duquesa. E agora, se me
permite.
— Como! — exclamou a dama. — Pensa retirar-se sem
tomar o chá?
— É que não sou inglês...
— O chá é uma bebida universal!
— Não discuto isso. Mas também é universal o vinho
espanhol, e o. .. Quero dizer que ficarei encantado de tomar
chá em sua companhia, Madame la Duchesse. Mas não
aqui. Que tal se fossemos ao bar?
— Não lhe agrada o ambiente?
Paco, que tinha o olfato impregnado de alimentos
“nocivos à saúde”, moveu negativamente a cabeça.
— Adoro. Mas acho melhor passarmos ao bar.
— Está bem. E já que seu comportamento durante todo o
jantar foi aceitàvelmente correto, devo admiti-lo, permitirei
que me convide para uma taça de champanha.
— Cham... champanha?
— Com cereja, naturalmente.
— Pelo amor de Deus! Disse champanha com cereja?
— Exato. Nunca provou?
— Não. A verdade é que nunca me ocorreu acrescentar
qualquer coisa ao champanha. Nada que não seja líquido,
pelo menos... Ora vamos, deve estar brincando, Madame la
Duchesse!
— Nada disso, Rivelles. E saiba que champanha com
cereja é algo delicioso. Digamos que é uma concessão que
me faço por minha abstinência de outras coisas.
— Parece uma boa idéia. E acho que se consegui ingerir
o jantar de hoje, champanha com cereja vai parecer-me,
realmente, uma gostosura.
— Não apreciou o jantar?
— Mmm... Sim, sim...
— Você parece distraído, Rivelles.
Paco estava um tanto distraído, com efeito. Distraído
não era a palavra exata, mas atento. .. Muito atento à ruiva,
que parecia quer dizer-lhe alguma coisa só por sinais; uns
sinais tão pouco perceptíveis que o espanhol duvidou a
respeito de sua existência. Mas não cabia dúvida: a ruiva lhe
estava fazendo pequenos sinais, que talvez pretendessem
dar-lhe a entender que...
— Distraído, Madame? Sim, talvez um pouco. Acontece
que, uma vez satisfeito meu apetite, gosto de retirar-me da
sala de jantar. Vamos ao champanha... com cerejas? E creio
que poderíamos desistir do chá... Que lhe parece a idéia?
— Não muito boa. Mas como não quero parecer
demasiado autoritária, por esta vez faremos o que você diz.
— Devo dizer que é muito bondosa, Madame la
Duchesse.
Passaram ao bar contíguo que, como todos os lugares
públicos do barco, tinha um nome: “Manhattan Bar.” Era
elegante, sóbrio, com luzes discretas e, ao mesmo tempo,
brilhantes. As mesas, de tão polidas, pareciam espelhos.
O garçom ficou olhando para Paco quando este pediu
duas taças de champanha com sua correspondente cereja.
— Cereja, cavalheiro?
— Uma cereja bem vermelha em cada taça — explicou
Annette Simonet, Duquesa de Montpelier. — E champanha
“Perignon 55”, naturalmente.
— Pois não, Madame la Duchesse.
O garçom afastou-se e a Duquesa comentou: — Não é
extraordinário? A ninguém disse meu nome, e todos aqui
parecem sabê-lo.
— Devem ter perguntado. Ou, melhor, terão sido
informados. Numa travessia como esta, e na classe de luxo,
tudo deve ser perfeito. Fuma, Madame?
— Sim... Isto é, não. Fumava, mas minha saúde...
— Compreendo. Vou parecer indiscreto e malicioso,
Madame, mas juraria que a senhora fez uma conquista.
— Como? — sobressaltou-se a duquesa.
— Uma conquista — sorriu o espanhol. — Quando tiver
uma oportunidade, olhe para o balcão. Verá um cavalheiro
de uns sessenta e cinco anos, elegantíssimo, e que antes
estava na sala de jantar. Quando viemos para cá, ele veio
também... E noto que não a perde um momento de vista,
Madame.
— Não seja ridículo, Rivelles.
— Ridículo? É evidente que a senhora ainda tem... Sim
— Paco contraiu as sobrancelhas —, olhando bem,
Madame, a senhora ainda tem certo encanto. O estranho é
que eu, tão entendido de mulheres como de azeitonas
sevilhanas, não o tenha notado antes. Com sua licença, lhe
direi que o sorriso a rejuvenesce...
— Então, terei que sorrir a todo o momento — disse ela.
— Quem é o cavalheiro que se interessa por mim? Dê-me
os sinais, por favor.
— É alto, esbelto, muito distinto... Está de summer-
jacket. Usa um anel com uma pedra que parece jade no
dedo mínimo da mão esquerda. Ah, e tem uma pequena
barba. Uma barba interessante, já grisalha, muito bem
cuidada. Eu direi que seu porte é aristocrático.
— Como o de você, Rivelles?
— O meu? Deve estar brincando, Madame.
— Não. Você é mais do que se esforça por aparentar. É
um cavalheiro completo, estou certa. Em nossa classe
sabemos distinguir essas coisas... Que título tem você na
Espanha?
— Nenhum... — Paco sorriu divertido. — Sou apenas
um aventureiro que já adquiriu alguma experiência.
— Marquês? — perguntou a duquesa. — Ou conde...?
— Por favor, Madame! Em meu país sou o que se chama
um farrista, um boa-vida. Parente muito próximo dos
vagabundos...
— Você pode dizer o que quiser, mas eu sei distinguir.
— Evidentemente a senhora está sendo muito amável
comigo, Madame la Duchesse.
— Já pode deixar de chamar-me Madame la Duchesse.
Diga simplesmente Annette... Paco.
O espanhol olhou para aqueles olhos azuis que
brilhavam docemente através dos óculos.
— Começo a suspeitar que esta travessia vai
proporcionar-me amizades muito interessantes... Oh, aqui
temos champanha com cereja.
O garçom serviu as duas taças e deixou sobre a mesinha
o balde com gelo que continha a garrafa. Junto, colocou um
pequeno recipiente de cristal com mais cerejas.
Annette pegou uma taça e olhou ironicamente para o
espanhol, que ergueu a sua e brindou: — Vive la France!
— Viva la Espanha — murmurou a duquesa.
Paco estava tomando seu champanha com cereja quando
viu na porta do bar a belíssima ruiva, que agora sem a
menor dúvida fêz-lhe um sinal, desaparecendo
imediatamente. Ele baixou sua taça e olhou a cereja no
fundo.
— Excelente champanha — comentou.
— Encomendei-a antes — riu a duquesa. — Estava certa
de que viríamos aqui e mandei que conservassem no gelo
esta garrafa. Conhecia a marca?
— Claro. Merece a fama. Come-se a cereja ou é só para
enfeite?
— É preciso comê-la! — sentenciou a duquesa.
— Sabe que com o passar do tempo vou achando você
mais agradável, Paco?
— Estou percebendo isso — ele comeu a cereja e
mostrou-se surpreendido. — Mas é uma combinação
maravilhosa, Annette! Não a esquecerei. E agora, se me dá
licença.
— Quer me deixar outra vez?
— Não é isso... Estou um pouco indisposto: a sopa de
pescadinha é forte demais para meu estômago. Nos veremos
amanhã, Annette?
— Mas não pode deixar-me aqui sozinha... Já está
voltando a ser descortês, Paco.
— Perdoe-me, Annette, mas preciso mesmo retirar-me.
Quanto à sua solidão, pode estar certa de que não durará
muito. Até amanhã.
Na verdade, o comportamento de Paco foi descortês,
mas os negócios são os negócios. De modo que se retirou
para ir à procura da ruiva. Estava certo de que ela tinha algo
interessante a dizer-lhe.
A Duquesa de Montpelier ficou só em sua mesinha. Mas
Paco fora profético. Sua solidão durou apenas meio minuto.
O tempo que levou o cavalheiro da bonita barbicha para
aproximar-se, quase timidamente.
— Madame...
A duquesa ergueu vivamente a cabeça.
— Que deseja?
— Antes de tudo, permita que me apresente: Roland
Mercier, francês... Com o que, parece que já temos um
primeiro ponto em comum.
—E...?
— Pensei que... Bem, o certo é que estava desejando o
afastamento desse rapaz. Quase nenhum jovem conhece a
arte da conversação amável diante de uma garrafa de
champanha.
— E o senhor conhece essa arte?
— Creio que sim, Madame.
Annette Simonet estudou durante alguns segundos
aquele agradável rosto varonil, magnífico com sua pequena
barba grisalha. Por fim, sorriu lenta- mente e ergueu a mão,
oferecendo-a ao beijo.
— Annette Simonet... — disse. — Duquesa de
Montpelier.
Já no convés, Paco Rivelles olhou para todos os lados,
procurando a ruiva. Mas não a viu. Considerando a
possibilidade de que estivesse mais ou menos escondida,
deu uma volta pelo extenso convés, mas sem conseguir
encontrá-la. E tendo em conta que ela lhe fizera um sinal de
chamado, era pouco provável estivesse fugindo dele. Mas,
como quer que fosse, o fato é que a ruiva não o estava
esperando.
Franziu a testa e resolveu dirigir-se ao seu camarote.
Estava animado pela boa idéia de jantar lá mesmo, pois na
verdade o que ingerira em companhia da Duquesa não fora
jantar nem nada.
Entrou no camarote, fechou a porta e acendeu a luz...
Lá estava a ruiva, sentada no sofá, olhando-o
amàvelmente com um sorriso de... cumplicidade. Muito
bela, elegante, mostrava suas pernas branquíssimas e
perfeitas.
— Olá, señor Rivelles!
— Olá, ruiva!
— Meu nome neste barco é Helen Sterling.
— Olá, então, Helenita! Como vai a vida? — sentou-se
no sofá, olhando aquelas estupendas per nas e sacou os
cigarros. — Fumamos os dois ou eu sozinho?
— Será melhor que fume sozinho. Não quero deixar
nenhum traço de minha passagem por este camarote.
— Nem sequer um sapatinho?
— Nem sequer isso.
— Pois é uma pena... Estou surpreendido, mas suponho
que tenho que aceitar os fatos: você, que parece uma
mocinha inocente, entrou em meu camarote utilizando uma
gazua ou algo parecido, como uma ladra. .. Exato?
— Exato — sorriu Helen Sterling. — Acha que fiz mal?
— Tudo depende. Mas uma coisa é certa: até a data,
quem entrou sub-repticiamente em busca de amores fui eu,
não as mulheres que me agradam. Não obstante — sorriu —
sempre disse que qualquer experiência nova é interessante.
Por onde começamos? Parece-lhe bem um beijinho na
orelha, ou devo atacar com mais força desde o princípio?
— Não seja impetuoso, Rivelles.
O espanhol olhou para o cigarro, atirou-o num cinzeiro e
abraçou a ruiva, beijando-a ràpidamente no pescoço.
— Chame-me Paco, somente — murmurou. — Meu
nome é Francisco, está claro, mas Paco sugere mais
intimidade... Não está com um calor terrível? Fazemos uma
competição?
— Uma... quê?
— Não seja maliciosa... ainda, Helenita. Eu chamo
competição uma espécie de jogo para ver quem fica sem
roupa em menos tempo. Por exemplo: eu tiro o casaco do
smoking e você tira o vestido. Depois eu tiro o colarinho e
você tira mais alguma coisa, até o fim.
— E depois?
— Depois... quem sabe?
A ruiva sorriu, como se a idéia fosse muito de seu
agrado. Mas só por um segundo. Em seguida, sua expressão
tornou-se bastante séria.
— Señor Rivelles, talvez em outro momento eu entre
nessa competição consigo. Mas por ora tudo o que me
interessa é terminar quanto antes o meu trabalho. Tem o
microfilme com os planos do centralizador fotográfico?
— Tenho...
Helen Sterling pôs-se de pé, foi até atrás do sofá e
apanhou um pacote, em cima do qual estava um
pequeno revólver. Guardou este no seio e estendeu o pacote
ao espanhol.
— Cem mil dólares, señor Rivelles. Como vê, a CIA
cumpre sempre seus compromissos.
— Pensei que a CIA desejava examinar os planos antes
de fazer o pagamento.
— Não importa, nestas circunstâncias. Evidentemente,
você não poderá abandonar o navio até chegarmos a Nova
Iorque. E até então, os planos terão sido convenientemente
examinados. E se nos enganou... Bem, nos consideraremos
lesadíssimos.
—E...?
— É melhor que não nos engane — disse a ruiva,
esquivando a resposta. — Não esqueça que sua colaboração
poderá interessar-nos para operações posteriores na Europa.
E a CIA paga bem a quem sabe trabalhar... Não faça caso
dessas pessoas que dizem serem os espiões mal pagos. É
uma mentira.
— Compreendo. Posso examinar o dinheiro?
— Naturalmente. E contá-lo, se quiser.
— Os cavalheiros não contam dinheiro — protestou
Paco, sorrindo. — Mas verificamos se, pelo menos, o
dinheiro é bom. Com licença...
Examinou ràpidamente os maços de cédulas de cem
dólares, nenhuma das quais era nova. Todas usadas, com
numeração absolutamente diversa.
— Está bem? — perguntou Helen.
— Perfeito. Seis milhões de pesetas, aproximadamente.
Meu irmão Juan vai ficar muito contente. Sempre diz que o
homem deve trabalhar, mas recebendo em troca uma justa
recompensa. Claro que quanto a isso de trabalhar não estou
muito de acordo com ele, mas quando...
— Conversaremos em outra ocasião, Rivelles —
interrompeu Helen. — Agora, entregue-me o microfilme
para que o especialista da CIA, que viaja neste barco, possa
examinar os planos.
— De acordo.
Paco abriu sua maleta, após retirá-la do armário
embutido do camarote, e colocá-la sobre a cama. Sacou
algumas peças de roupa que ainda lá estavam, levantou o
fundo falso, meteu a mão num ângulo, remexendo com o
dedo. Em quinze segundos retirava a mão, com uma
pequena cápsula de plástico.
Fez saltar a cápsula sobre a palma, olhando
amàvelmente para a ruiva.
— Não é assombroso? Nem sequer tem o tamanho de
uma azeitona e, entretanto, vale seis milhões de pesetas. É
decepcionante, acredite.
Helen Sterling apanhou a diminuta cápsula e apertou-a
com força na mão. Parecia emocionada.
— Fica bem claro, Rivelles, que uma vez comprovada a
eficácia deste invento, terá que proporcionar-nos os planos
originais e vender-nos a patente.
— Direi isso a meu irmão. De qualquer modo, Helenita,
é tempo perdido. Este invento destina-se aos satélites
espaciais de investigação, de modo que se os russos, por
exemplo, chegassem a descobrir algo parecido ou idêntico,
não creio que respeitassem patentes de nenhuma espécie.
— Tem razão... Qual é a utilidade exata deste invento?
— Disse-me o Juan, lá em Sevilha, que é para captar as
fotografias enviadas pelos satélites. Você sabe como
funcionam as câmaras desses satélites: enviam as
fotografias por meio de... Bem, se não entendi mal o que me
explicou o Juan, as fotos são enviadas com determinada
onda, como as do rádio. Isso significa que para alguém, não
sendo dos Estados Unidos, captar as fotos tiradas por
satélites americanos precisa antes encontrar essa onda, o
que é bastante complicado e trabalhoso. Mas, a despeito
disto, tem-se conseguido. Todos sabemos muito bem que os
países que têm satélites no espaço dispõem de aparelhagem
para roubar as fotos enviadas por satélites de outros países.
Não é verdade?
— Exatamente.
— Muito bem. Pois com o invento do Juanito, ninguém
poderá roubar as fotografias enviadas pelos satélites
americanos. É um centralizador fotográfico, ou seja... Bem,
como o próprio nome indica, as ondas fotográficas são
centralizadas, de modo que não as poderá captar nenhum
outro aparelho não conectado de origem à mesma
freqüência que o centralizador fotográfico. Compreende?
— Claro que sim. É um magnífico invento, Deste modo,
se nós americanos lançamos um satélite cujo sistema
fotográfico leva o centralizador, ninguém jamais poderá
conseguir as fotos que esse satélite envie.
— Justamente, Helenita.
— Um grande invento. Por que não o reservou para seu
país, Rivelles?
— Para a Espanha? Bem... Digamos que ainda
tardaremos um pouco até conseguir condições que nos
permitam tirar proveito das vantagens do centralizador. E
então, talvez o Juan tenha descoberto algo melhor.
— Bem, o negócio está feito, Rivelles.
— E agora que já gastamos tempo bastante em
futilidades, passemos a coisas mais sérias. Que tal uma boa
“Perignon 55” com cerejas?
A ruiva empalideceu intensamente.
— Disse “Perignon 55”... e com cerejas?
— Surpreendida? A mim também isso surpreendeu, mas
garanto-lhe que é uma bebida divina...
— De onde tirou essa... receita? Quem neste barco
tomou champanha com cereja?
— A velha Duquesa de Montpelier. Por que pergunta?
— Está mentindo, Rivelles. Se essa mulher pediu
champanha com cereja, você não está dizendo a verdade a
respeito do centralizador fotográfico. Que instruções lhe
deu “Baby”?
— Como diz? Que...? Ouça, espere... temos que...!
Mas Helen Sterling já tinha saído a toda a pressa do
camarote, levando a cápsula de plástico e deixando em
poder de Paco Rivelles a bonita soma de seis milhões de
pesetas, isto é, cem mil dólares.
Durante uns segundos, o espanhol esteve
verdadeiramente perplexo. Afinal, olhou para os maços de
cédulas e sorriu alegremente. Aproximou-se do quadro
surrealista e verificou, sem tocá-lo, que o microfilme
continuava lá.
— Tenho muitas cápsulas de plástico para vender... —
disse. — Mas você, quietinho aí, até que venha o verdadeiro
enviado da CIA. Mesmo porque, eu não saberia distingui-lo
dos demais. .. Aposto qualquer coisa como Helenita
pertence ao muito astuto serviço secreto britânico, ou seja, o
MI-5. Esperemos os outros que também virão comprar-me o
microfilme por cem mil dólares. Enquanto isto, aqui tenho
os primeiros seis milhões de pesetas... Pois que chovam os
milhões, Paco, meu velho!
CAPITULO QUINTO
Uma diminuta mancha vermelha
O azar da MVD soviética
Alarma a bordo do “Empire”

Helen Sterling entrou precipitadamente em seu camarote


e foi direta ao armário. Retirou a maleta, sacou dela um
secador de cabelos de pequeno tamanho e abriu-o. Dentro
havia dois pequenos discos que prendiam uma delgada fita
gravadora.
Apertou um pequeno botão, mas tornou a apertá-lo
imediatamente e a fita deixou de passar de um disco para
outro. Manteve-se pensativa uns segundos e, por fim,
rompeu a pequena cápsula de plástico da qual saiu o
microfilme. Mordeu os lábios para não gritar de alegria,
segurou a pequena tira entre os dedos e examinou-a contra a
luz... Com o que ficou como se não estivesse olhando para
nada, já que dada a pequenez das fotografias era impossível
distinguir qualquer coisa a simples vista.
Tornou a acionar o controle do pequeno gravador
camuflado.
— Fala Helen, a bordo do “Empire”. Conseguido o
objetivo mediante pagamento prévio de cem mil dólares
americanos. Entretanto, há motivo para inquietação. O
señor Rivelles convidou-me casualmente a tomar
champanha “Perignon 55” com cereja. Parece não saber o
que isto significa, mas com absoluta certeza esteve em
contato com a agente “Baby” da CIA. Parece fora de dúvida
que Paco Rivelles não sabe quem é ela na realidade, nem
parece ter recebido instruções de nossa perigosa colega
americana, que, evidentemente, está a bordo, embora até o
momento eu não creia que tenha pedido o microfilme a
Rivelles, nem se tenha dado a conhecer. Mas, pondo de
parte os desconhecidos propósitos da agente “Baby”, penso
conhecer sua personalidade, já que...
A porta do camarote abriu-se bruscamente e Helen
Sterling se voltou, sobressaltada, lançando uma exclamação.
Moveu a mão para o decote, mas deteve- se de pronto,
compreendendo muito bem que seus três visitantes não lhe
dariam a menor oportunidade de sacar o pequeno revólver.
Victor Makarian indicou com o seu, um canto do
camarote
— Para lá — ordenou secamente.
— Os senhores não têm o direito de...
— Não lhe direi outra vez.
Helen foi para o canto indicado pelo revólver de
Makarian, porém, mais que a este, olhando seus dois
gigantescos e torvos acompanhantes, um dos quais se
aproximou, agarrou-lhe rudemente a mão e tirou de entre
seus dedos o microfilme...
— Aqui está. — disse.
Makarian mostrou fugazmente nos olhos a. crueldade de
sua decisão. Tão fugazmente, que Helen Sterling nem
sequer teve tempo para fazer um gesto.
Plop.
Uma diminuta mancha vermelha apareceu sobre o seio
esquerdo da espiã ruiva do MI-5.
E isso foi tudo.
Olhos abertos, boca crispada, rosto bruscamente pálido,
Helen Sterling caiu silenciosamente, morta desde a
momento em que a bala penetrou em seu coração.
Com absoluta indiferença, Makarian guardou o
microfilme que lhe estendia seu companheiro, apanhou o
secador de cabelos que continha o gravador em miniatura e
ràpidamente passou o camarote em revista, com a atitude de
quem nada interessante espera encontrar.
E assim foi. Voltou-se para seus homens.
— Atirem-na ao mar. Vou sair para vigiar o convés.
Quando eu bater no vidro, passem o corpo pela janela.
Quase todos ainda estão jantando e, além disso, faz frio lá
fora. Não quero erros.
Não houve erros. Victor Makarian ficou vigiando o
convés, bateu no vidro e a cadáver ainda quente de Helen
foi passado pela janela circular. O próprio Makarian tomo-o
pela axila e o manteve erguido uns segundos, olhando para
todos os lados. Depois com total facilidade, levou-o até a
borda, sempre mantendo-o em posição vertical. Olhou uma
última vez para os lados, levantou-o e deixou-o cair ao mar.
Quando seus dois companheiros reuniram-se com ele,
Makarian estava tranqüilamente apoiado à borda,
esperando-os.
— E agora? — perguntaram.
— Matem o espanhol. Já que temos o microfilme, não
precisamos mais a bordo de um indivíduo que talvez seja
perigoso. Liquidem com ele.
— Está bem.
Victor Makarian esperou que seus homens se
afastassem. Então, resolveu ir ao seu camarote para
examinar detidamente o microfilme e escutar a gravação
feita por Helen Sterling antes de ser assassinada.
Chegou ao seu camarote de primeira classe, entrou
apressadamente e, após acender a luz, voltou- se. Não se
alterou ao ver ali o homem da pequena barba aristocrática,
Roland Mercier, elegantemente sentado no sofá, com um
cigarro apagado entre os lábios.
— Conseguiu, Victor?
— Consegui — sorriu Makarian. — Você não estava
com uma velhota?
— Ela se recolhe cedo. Deixemos que durma — sorriu
ironicamente — e vejamos esse microfilme... E o espanhol?
— Folka e Eminov estão com ele.
— Magnífico.
— Matamos a agente da CIA. Era a ruiva. Já está no
fundo do mar.
— Outra vez magnífico... Que é isso?
— Normalmente — disse com suficiência Makarian — é
um secador de cabelos. Mas dentro há um pequeno
gravador. A agente da CIA estava gravando alguma coisa
quando entramos em seu camarote.
— Deviam ter esperado que terminasse — reprovou
Roland Mercier. — De qualquer modo, ouçamos o que pode
gravar. E dê-me o microfilme, enquanto isto.
Makarian entregou o microfilme a Roland Mercier, que
sacou um visor de aumento e começou a colocar a pequena
tira na ranhura. Enquanto se punha a olhar, Makarian
acionava o diminuto gravador da agente do MI-5 e a voz
desta soou no camarote.
E quando foi ouvido pela primeira vez o nome de
“Baby”, da CIA, Makarian imobilizou-se, empalideceu.
Olhou para Mercier, que deixou de examinar o microfilme
para concentrar-se totalmente na gravação. Quando esta
terminou, Roland Mercier olhava duramente para Victor
Makarian.
— Compreendeu bem, estúpido? — falou com voz
cortante. — Essa mulher não era a agente da CIA que veio
estabelecer contato com Rivelles.
— Que o diabo me carregue! Quem era a ruiva, então?
— Possivelmente, era do MI-5. Este assunto transcendeu
demasiado no mundo da espionagem. E aposto que há mais
espiões de diferentes países atrás do microfilme de Trepof.
— É quase certo... Mas nós o temos!
Roland Mercier sacou um rico isqueiro, acendeu-o e,
após levar a pequena chama ao cigarro que mantivera todo
o tempo entre os lábios, aplicou-a ao microfilme, ante o
sobressalto de Makarian, que no pode conter um grito de
espanto.
— Está queimando o microfilme...!
— É falso, Victor. Cada vez me convenço mais de que a
MVD terá que obrigar seus agentes secretos a maiores e
mais rigorosos treinamentos periódicos! Não se dá conta do
grande erro que cometeu? Não temos o microfilme e, além
disso, Eminov e Folka devem já ter liquidado com o
espanhol... Como encontraremos agora o microfilme?
— Raios me partam! E a CIA enviou para isto nada
menos que a agente “Baby”! Sou mesmo um completo
estúpido... Se a ruiva tivesse falado mais tempo, certamente
diria quem suspeitava que fosse a agente “Baby”...
— Champanha com cerejas... — riu friamente Mercier.
— Aposto que você teria uma surpresa se soubesse quem é
a agente “Baby”.
— E você sabe? — exclamou Makarian.
— Claro. É verdade que poderia enganar-me, mas... Não
sei... O certo é que vi a champanha com cerejas, mas não sei
qual dos dois a pediu... De qualquer modo, poderei saber
perguntando discretamente ao garçom.
— A quem está se referindo? Quem suspeita que seja a
agente “Baby”?
— Deixe-a por minha conta — tornou a sorrir Mercier.
— Da agente “Baby” encarrego-me eu. Agora, esperemos
para ver o que aconteceu com esse maldito espanhol.
Depois faremos um novo plano. O microfilme tem que estar
no barco, de modo que, mesmo Rivelles já estando morto,
temos que encontrá-lo.
— Talvez o tenha entregue à agente “Baby”.
— Talvez... Sim, tudo é possível. Mas esse espanhol é
muito esperto e ambicioso. Aposto que tem prontos para a
venda todos os microfilmes que lhe queiram comprar. De
certo modo, a coisa não deixa de ter graça... Que sabemos
de concreto a respeito dele?
— Uma semana foi pouco tempo para os homens que
enviamos a Sevilha. As últimas notícias foram que não
sabiam nada de um homem chamado Francisco Rivelles,
nem de seu irmão Juan... Mas continuam investigando.
— E quando terminarem, o señor Rivelles já não será
um personagem importante. Esperemos para ver o que nos
dizem Folka e Eminov antes de pensar como agir em torno
da agente “Baby” da CIA. Claro está que se todos os
espiões atualmente a bordo vierem a saber que ela está aqui,
haverá grande alarma. Dizem que é invencível.
— Tolices — grunhiu depreciativamente Victor
Makarian.
CAPITULO SEXTO
Não haverá mais tratos
Espiões ou faxineiros?
Homem ao mar!

Paco Rivelles estava resolvido a pedir algo suculento


para jantar de verdade, quando pegou o telefone... e voltou-
se vivamente para a porta quando, súbito, esta se abriu.
Naquele barco, as fechaduras não pareciam ter a menor
importância.
— Vocês outra vez? — impacientou-se o espanhol.
— Largue esse telefone — disse Eminov.
— Ia só pedir o jantar...
— Não vai precisar dele.
Paco colocou o fone no gancho, de muito má vontade e
demonstrando-a muito claramente. Olhou de cenho
carregado para os dois homens, depois acabou por sorrir
alegremente.
— Vou lhes propor um trato, senhores.
— Não haverá mais tratos.
— Não? — Paco ergueu as sobrancelhas. — Já não lhes
interessa o microfilme?
— Deixe de tolices. O microfilme já está em nosso
poder. Agora, saia do camarote. Vamos dar um passeio pelo
convés. A mulher que conheceu como a francesa Antoinette
nos pediu que fizéssemos o possível para dar-lhe um banho.
— Mulheres demais... — suspirou o espanhol.
— E são tão rancorosas! Na verdade, não lhes interessa
um bom trato?
— Deixe-o falar — disse Folka. — Que trato é?
— Eu não uso armas, de modo que vocês me levam uma
grande vantagem. Conviria, então, que igualássemos um
pouco as forças. Guardem seus revólveres. Lutaremos um
pouco a mão limpa e, se me vencerem, entrego-lhes o
microfilme. Se vencer eu, terei a grande satisfação de dar-
lhes uma fenomenal surra.
— Você é um engraçado sem graça, Rivelles. Em
primeiro lugar, não pensamos guardar as armas. Em
segundo, se lutarmos, você ficará em pedaços...
— Por que não experimentam?
—... E em terceiro, já temos o microfilme. Acabamos de
tirá-lo da agente da CIA, a ruiva que o recebeu de você, não
faz muito tempo, neste mesmo camarote.
— Tiraram-lhe o microfilme? Pobre Helenita!
— Lamente-se por você, Rivelles. Ela já não sofrerá
mais.
Paco passou a língua pelos lábios.
— Está morta? — perguntou.
— Pergunte isso aos peixes quando for você também
para o fundo do mar.
Os olhos do espanhol fixaram-se em Eminov, depois em
Folka. Pareciam arder, aquecidos ao rubro.
— O microfilme que dei a Helenita era falso. Também
ela era falsa... Não trabalhava para a CIA, mas, ao que
parece, para o MI-5. Alguém já disse a vocês que, além de
assassinos, são uns estúpidos?
Os dois amarraram a cara. Eminov indicou Paco com o
revólver.
— Veja se ele está armado — grunhiu.
Folka aproximou-se, resmungando.
— Antes não estava... Por que estará agora? Você não
acha que ele já viveu muito!
— É melhor que ele seja levado vivo até o convés. Não
convém abusar da sorte. Uma vez lá, lhe metemos duas
balas na barriga e o jogamos por cima da borda... Reviste-o.
Folka resignou-se a revistar o espanhol. Melhor fera que
tivesse discutido um pouco mais a ordem de seu
companheiro, porque Paco Rivelles estava realmente
furioso pelo assassinato da bonita ruiva...
Sim. Teria sido melhor para Folka continuar resistindo à
ordem de Eminov. Mas como não o fez, adiantou a mão
para o espanhol, disposto a revistá-lo.
Mal feito.
Paco Rivelles agarrou aquela mão com as suas e, antes
que Folka e nem sequer Eminov pudessem prever nada, já a
tinha dobrado, de modo que Folka teve que cair de joelhos
diante dele. O infeliz russo engoliu três dentes quebrados
com um violento pontapé na boca, a mão ainda presa nas do
espanhol, pelo que nem mesmo teve o consolo de cair no
chão. Tampouco conservou o russo a serenidade e lucidez
suficientes para disparar o revólver, que foi arrebatado de
sua mão com um novo pontapé.
Plop! Plop!
Eminov atirou duas vezes, mas demasiado nervoso,
demasiado precipitado. Ou talvez o espanhol fosse
excessivamente rápido para ele. O certo é que, enquanto as
duas balas se cravavam nas costas do sofá, as mãos de Paco
Rivelles já estavam a poucas polegadas da cintura do
gigantesco Eminov, que quis baixar a arma, corrigindo
assim a pontaria... Mas decididamente Paco era rápido
demais para
Eminov sentiu de repente aquela pressão na cintura, à
altura dos rins. Foi como se um cabo de aço o cingisse, para
parti-lo em dois. Soltou o revólver, baixou as mãos para a
cintura, desesperado. E quase gritou de alegria quando a
pressão cedeu ali, permitindo-lhe respirar, tornar à vida...
Em compensação, e já que não existe felicidade completa,
recebeu um soco em pleno nariz. Um soco tão violento, que
o nariz de Eminov pouco menos que desapareceu, achatado,
incrustado no rosto, após lançar um violento jorro de sangue
que se espalhou pelo chão do camarote.
Voltou-se para Folka, que havendo recuperado o
revólver estava de joelhos, apontando-o, a boca cheia de
sangue, os olhos reluzindo de raiva satânica.
Justamente quando ele ia disparar, quando Paco
compreendeu que devia despedir-se da vida, soou no
camarote um apagado “Plofff”.
E foi tudo.
***
A primeira coisa que viu ao abrir as pálpebras foram
aqueles luminosos olhos azuis, nos quais brilhavam
simultaneamente uma grande doçura e uma risonha ironia.
— Como vão as coisas, Paco?
— A dama de negro!
Tentou incorporar-se, mas a diminuta pistola de coronha
de madrepérola, firme na esguia mão enluvada de negro,
apoiou-se na ponta de seu nariz, imobilizando-o, enquanto
um belo sorriso aparecia nos lábios da estranha figura.
— Quieto, por favor. Sou eu quem diz agora o que todos
devem fazer.
Paco compreendeu que aquilo era verdade. E na falta de
melhor coisa que fazer, pôs-se a olhar para aquele rosto
parcialmente coberto por uma pequena máscara. A mesma
mulher, a mesma indumentária hermética de malha negra,
com capuz...
— Quem é você?
— A agente da CIA que está esperando.
— Ah, sim? Pois muito prazer, senhora.
— Senhorita — corrigiu ela. — E isso apesar de ter
conhecido muitos homens tão virilmente impressionantes
como você.
— Virilmente impressionante, apesar de caído assim no
chão?
— Se quiser, pode sentar-se no sofá.
— É muita gentileza da sua parte.
Pôs-se de pé e dirigiu-se ao sofá, olhando com
indiferença para Eminov e Folka, que jaziam imóveis no
chão. Olhou os dois orifícios nas costas do sofá, produzidos
pelas balas disparadas por Eminov, e moveu pesarosamente
a cabeça, antes de sentar-se.
— E tudo manchado de sangue... — comentou. — Não
sei que explicação poderei dar ao comandante pela sujeira e
os estragos.
— Limpe o sangue e esqueça os orifícios do sofá —
sugeriu a dama de negro. — Assim, ninguém saberá de
nada.
— Não é má idéia. E que faço como essa dupla de
assassinos?
— Não sei... Não lhe ocorre nada?
Paco olhou mais uma vez aquele corpo escultural, o
mais perfeito em que já pusera os olhos.
— O que está me ocorrendo não se relaciona em
absoluto com os dois queridos meninos. Pensarei algo sobre
eles mais tarde.
— Como queira. Em que está pensando agora?
— Digo? — sorriu o espanhol.
— Melhor que não — riu a dama de negro. — Com um
mínimo de imaginação de minha parte, creio posso presumir
muito bem, señor Rivelles.
— Antes me chamou Paco — protestou este.
— Pois bem, Paco, você é um bocado maroto.
— Por quê? Quando se vê urna anatomia como a sua, é
lógico que um homem pense...
— Não me refiro a isso. Você é um maroto, repito,
porque está disposto a tirar o máximo de proveito da
situação.
— Como qualquer pessoa normal. E ouça, maravilha:
quem é você, uma vez por todas? Como salvou a situação,
que estava mesmo crítica?
— Atirei uma pequena ampola de gás fulminante pela
fechadura. Parece-me que cheguei mesmo a tempo, hem?
— Se chegou! Você é da CIA, do MI-5, do...?
— Sou da CIA, já lhe disse.
— Oh, sim. Claro. E vai querer o microfilme.
— Não, não. Já o tenho. Agora, trata-se de decidir se
você quer ou não trabalhar conosco.
— Tem o microfilme? — sorriu Paco.
— Com efeito.
— Bem... Então penso que deveria entregar-me cem mil
dólares, não é assim?
— Isso quando a pessoa que o está examinando se
pronunciar sobre a validade do conteúdo. Até então, nem
um centavo. Nem um real, como dizem vocês os espanhóis.
— Okay — concordou Paco.
— Você — disse sorrindo a dama de negro — é um
aventureiro nato. Tal como eu. Sei julgar as pessoas. E
estudei-o durante três dias, em Paris.
— Não diga! Que fiz eu durante esses dias? Há tantas
mulheres bonitas por lá...!
— Você é mais inteligente que isso. Sem dúvida, vi que
se divertia bastante, a seu modo, durante a noite. De dia,
dedicava-se a atividades culturais: visitas aos museus, aos
monumentos e galerias de arte... Seu aparente cinismo não
me engana em absoluto, Rivelles. E tampouco suas
mentiras. A MVD está procurando em Sevilha uma família
Rivelles, quando, na realidade, deveria procurá-la na
fazenda... ou cortijo4, se prefere, dos marqueses de Campo
Bravo. Atualmente, a família consta de um só representante:
Francisco Rivelles Montes, Marquês de Campo Bravo. Quer
dizer: você. Estou cometendo algum engano?
— Não.
— Em sua fazenda há olivais... e touros. Uma bonita
raça, famosa nas praças da Espanha e inclusive fora dela. E
com tudo isto, o senhor Marquês de Campo Bravo vai pelo
mundo afora com um barco a vela, um sorriso, nenhuma
arma... e mete-se a espião. Por quê?
— Me aborrecia.
— É um bom motivo.

4
Fazenda com criação de touros, na Espanha.
— Mas não me meti exatamente a espião. Isso
simplesmente aconteceu. Tanto podia ser a espionagem
como qualquer outra coisa.
— Sem dúvida. Já lhe disse que o considero um
aventureiro nato. E por isso lhe proponho: quer trabalhar
para a CIA?
— Você tem capacidade para admitir-me ou recusar-me?
— Claro que tenho. Minha voz é ouvida muito
atentamente na CIA, de uns tempos para cá. O que eu disser
será feito, por importante que seja. Aceita?
— Não.
— Pode pensar antes de decidir, Paco.
— Está pensado, querida. Paco Rivelles não trabalha
para ninguém. O mundo é grande, o horizonte sem limites.
Nunca aceitarei trabalhar recebendo instruções. Nunca.
— Respeito sua decisão. E agora, já que sabemos que
você não tem nenhum irmão, muito menos um irmão
inventor, diga-me de onde tirou o microfilme que contém os
planos do centralizador fotográfico.
— Foi uma casualidade.
— Que espécie de casualidade?
— Não quero dizer.
A dama de negro pareceu impacientar-se, mas só um
instante. Tornou a sorrir.
— Sei que é teimoso, logo não adianta insistir. Agora,
diga-me outra coisa: por que um milionário em pesetas, em
terras e touros arrisca a vida por cem mil dólares, e está
disposto a enganar quem quer que seja para conseguir mais?
— Porque isso me diverte.
— Só por isso?
— Só. Por outro lado, o dinheiro nunca sobra.
— Em que o emprega?
— Em produzir mais dinheiro.
Um amável sorriso apareceu nos lábios da dama de
negro.
— Ouviu falar da chamada “Fundação
Antipoliomielite”, Paco?
— Não — replicou secamente o espanhol.
— Não? Pois fica muito perto de Sevilha, numa formosa
planície, entre canteiros de flores vermelhas e amarelas,
granadas, palmeiras, oliveiras e tanques com curiosos jogos
de água. Ali, trezentas e quatorze crianças estão sendo
atendidas por especialistas e vivem sob os cuidados de um
dedicado grupo de religiosas. Lembra-se agora, Paco?
— Não — repetiu Rivelles.
— Pois sua memória é péssima, meu amigo. Essa
instituição se mantém graças à generosidade de um só
homem, o mesmo que a criou. Esse homem é o Marquês de
Campo Bravo.
— Ouça, eu não entrei em contato com a CIA para lhe
contar minha vida. Convença-me de que é a pessoa que
estou esperando: entrego-lhe o microfilme, recebo meus
cem mil dólares e boa-noite. Okay?
— No okay — contestou sorrindo a dama de negro. —
Primeiro, porque já lhe disse que tenho o microfilme.
Segundo, porque quero prosseguir este jogo até o fim.
— Que fim?
— Já que não me quer dizer, saberei por meus próprios
meios da procedência do microfilme, ou seja, do invento.
Além disso, quero saber qual a participação da MVD, do
Deuxième Bureau e do MI-5 em tudo isto. São coisas que
não podem acontecer sem minha intervenção, Paco. Não
seria próprio de mim.
— E você... quem é? Não a vi antes, em algum lugar...?
— Que lhe parece? — riu a dama de negro.
— Minha memória diz que não... Eu nunca esqueceria
uma mulher com sua plástica, sua boca, seus olhos... Mas
sei que já a vi antes... Onde e quando?
— Continue pensando, Paco. Talvez me localize, no fim.
Enquanto isso, creio que devo dizer-lhe hasta la vista.
— E meu dinheiro?
— Tenha paciência.
— Outra coisa: terá que provar-me que é a enviada da
CIA.
— Provarei... quando chegar o momento. Adeus... E
tome cuidado: os dois assassinos já estão despertando. Teria
sido melhor matá-los, mas se eu tivesse lançado um gás
letal você também estaria morto.
— Isso lhe causaria pena?
Os olhos azuis brilharam intensamente um instante.
Depois a dama de negro sacudiu os perfeitos ombros,
dirigiu-se à porta, abriu-a e saiu ao corredor. Quando Paco
Rivelles foi olhar, o corredor estava deserto.
— Talvez seja uma bruxa que voa sem vassoura.
Fechou a porta e olhou para Folka e Eminov, que se
agitavam cada vez mais, recuperados dos efeitos do gás.
Apanhou os revólveres de ambos, se no sofá e acendeu um
cigarro. Quando os dois já estavam em condições de
entender perfeitamente, estendeu o braço, indicando o
banheiro.
— Entrem lá, cavalheiros, apanhem as toalhas de banho
e ponham-se a limpar o camarote. Tudo bem limpo. No
quero que fique nem uma gota de sangue. E se pensam que
minha aversão pelas armas significa que não sei usá-las,
nada mais fácil para mim que desfazer esse engano.
Em poucos minutos, o camarote ficou limpo, sem se
verificar qualquer incidente. Depois Paco obrigava-os a
guardar as toalhas sob seus casacos, fazendo o possível para
dissimular o volume. Por fim, indicou a porta.
— E agora, iremos der esse passeio pelo convés de que
falaram antes. Observem, porém, senhores, que tenho um
revólver o bolso da calça e outro no paletó. Em estilo
gangster... Pode ser que tenha que comprar outro smoking,
mas, como bem o dissecam, não creio que vocês possam
comprar vidas.
Saíram os três do camarote, Paco atrás dos russos,
pensando na mentira que lhe contara a dama de negro. Uma
mentira ingênua... Por que lhe havia dito que tinha o
microfilme, se o microfilme continuava na fenda existente
no quadro, onde ele o deixara logo ao chegar a bordo? Sem
dúvida, aquela mulher tinha posto sua vida a descoberto em
menos de três minutos, mas... acaso isto significava que
devia confiar nela? Como saber se era a autêntica enviada
pela CIA?
Bem, tinha apenas que continuar brincando do espião.
De um momento para outro, tudo se saberia e acabaria a
brincadeira.
Chegaram ao convés e, junto à borda, Folka e Eminov
voltaram-se para ele, expectantes.
— Não há nenhuma dúvida, senhores: têm que saltar.
— Saltar... ao oceano?
— Exato. Está claro que podem recusar-se, considerando
que a altura é de uns oito ou dez metros. Mas estou certo de
que são exímios saltadores de trampolim... De qualquer
modo, escolham: ou saltam por bem, ou saltam por mal. E
só têm três segundos para decidir. De modo que...
Eminov e Folka compreenderam que o espanhol ia matá-
los se não saltassem à água. Ficaram tão certos disso, vendo
aqueles olhos tornados por um momento incandescentes,
que não hesitaram. Lançaram-se por sobre a borda. Apoiado
a esta, Paco Rivelles ouviu a queda dos corpos na água, viu
os círculos formados em sua superfície, depois a emersão de
duas cabeças, que logo ficaram para trás.
Atirou os dois revólveres, sorriu e, enquanto regressava
ao camarote, teve um de seus freqüentes rasgos de humor:
— Homem ao mar! — gritou.

CAPITULO SÉTIMO
Bola de plástico no fundo da piscina
Misterioso bilhete em italiano
Uma bonita loura à espera...

— Horrível... Francamente horrível!


Paco Rivelles ergueu os olhos, resignado, deixando de
ler a revista “Playboy” que tinha pedido emprestada a um
dos alegres rapazes que faziam a travessia no “Empire”.
Até aquele momento, quase onze horas da manhã,
estivera comodamente refestelado numa cadeira extensível,
junto à piscina da classe de luxo. Um ambiente muito
agradável, certamente: garotas de biquíni, senhoras
tomando sol, cavalheiros discutindo sossegadamente sobre
negócios e outras bobagens. Havia pára-sóis flamejantes de
cores, mesinhas com bebidas refrigerantes, plantas
verdejantes. .. E por cima de tudo isto, o céu diàfanamente
azul e, ao redor, o Atlântico, não menos azul, com
diminutas cristas brancas. Bom tempo e um formoso sol,
que Paco Rivelles aproveitava de calção, como se animado
da infundada esperança de que seu corpo pudesse adquirir
um tom mais bronzeado ainda.
Mas toda aquela calma, aquela beleza, aquela paz foram
perturbadas quando Annette Simonet, Duquesa de
Montpelier, deixou-se cair junto dele, em outra extensível,
suspirando como se seus velhos ossos tivessem encontrado
afinal um pouco de repouso.
— Que é que foi tão horrível, Annette? — perguntou o
espanhol.
— O que aconteceu esta noite... Você não soube?
— A que horas aconteceu a tal coisa horrível?
— Oh. .. Pelas dez e meia, parece-me.
Paco olhou os pés da idosa senhora, que naturalmente
usava sapatos pretos. Tudo nela era preto. Por um instante,
uma viva luz de surpresa apareceu nos olhos do espanhol.
Mas, imediatamente, aquela luz se apagou.
Impossível... Como lhe pudera ocorrer semelhante
tolice?
— Às dez e meia, Annette, eu estava dormindo
plàcidamente em meu camarote. Claro, depois daquele
suculento jantar que você encomendou para nós...
— Então, não soube?
— Se me disser do que está falando, poderei responder.
A que se refere?
— Caíram dois homens no mar!
— Ah... E se afogaram?
— Naturalmente que se afogaram! Coitados!
— Foi na verdade lamentável — admitiu Paco.
— Houve alguém que deu o grito de alarma: “Homem
ao mar!”... Mas quando foram tomadas providências, já
nada mais era possível.
Paco lançou uma olhadela à maliciosa piada da revista e,
talvez influenciado por ela, comentou distraído:
— Se já nada era possível quando foram tomadas as
providências, imagino que não tenham sido muito
providenciais, Annette. Sabe-se alguma coisa desses
homens?
— Seus nomes, O capitão fez o censo dos passageiros e
chegou à conclusão de que faltam dois da primeira classe.
— E quais eram seus nomes?
— Fedor Eminov e Yuri Folka.
— Parecem nomes russos, não?
— Oh, sim. Você precisava ter visto o sarilho que se
armou! Como é possível que pudesse dormir com aquele
escândalo, Paco?
— Tenho sono pesado. E como terminou a coisa?
— Abandonaram a busca pelas duas horas da manhã...
Você nem percebeu que o barco ficou parado durante três
horas e meia, que foram arriados os escaleres.
— Meu sono é sempre profundo como o de um morto. É
por isso, talvez, que sempre desperto tão Vivo.
— É invejável... Que está lendo?
— Uma revista.
— De cinema?
— Não exatamente...
— Deixe ver.
— Não, suplico-lhe que não olhe, por que.
Mas a duquesa já tinha olhado e lançou um gritinho que
fez os outros passageiros se voltarem um tanto assombrados
para ela.
— Oh!
— Eu lhe disse para não olhar. É uma revista só para
homens...
— Eu... eu vi umas figuras de mulheres nuas!
— É como estão melhores... Quero dizer que esta
revista... Bem, o que quero dizer é que... que...
— Quê?
— Não sei.
— Você não deveria ler essas coisas, Paco.
— Não leio: olho.
— E que ganha com isso?
Paco ergueu as sobrancelhas, lançou um golpe de vista a
um desenho sensacional, criação de um profundo
conhecedor da anatomia feminina, depois a uma foto que
havia junto ao desenho. Olhou de relance para a duquesa,
coçou o alto da cabeça e disse:
— Ganhar, não ganho nada, certamente. É só uma
compensação por outras coisas que sou obrigado a olhar...
Não trouxe roupa de banho, Annette?
— Que está dizendo?
— Já que a vejo na zona da piscina, é que talvez queira
nadar um pouco.
— Vim aqui para vê-lo.
— Tem alguma coisa para me dizer?
— Não... Apenas pensei que você ficaria encantado com
minha presença. Essas mocinhas não sabem ter uma
conversa agradável.
Paco lançou um rápido olhar às garotas de biquíni.
— Na verdade, Annette, elas não precisam ter conversa
de espécie alguma.
— Não sei se o entendo, Paco. Mas vamos ao que
serve... Não ficaria satisfeito de almoçar comigo?
— Não! — exclamou o espanhol.
— Como? — estremeceu a duquesa.
— Eu quis dizer que não... que não esperava merecer
esta honra, Annette. Infelizmente, creio que não será
possível.
— Por quê?
— Porque... porque nunca almoço! Estou fazendo
regime. É isso... estou fazendo regime. Não quer mesmo dar
um mergulho, Annette?
— Um mergulho? Claro que não!
— Pois eu sim. Com licença...
Levantou-se, sem dar à duquesa tempo para reagir. E,
enquanto a velha senhora começava a abrir a boca, ele
lançava-se de cabeça nas águas transparentes da piscina. Ao
emergir, viu a duquesa interessando-se discretamente pelo
conteúdo da revista. Pois que se divertisse!
A ele o que interessava era a loura de biquíni que se
tinha jogado na água poucos segundos antes, após olhá-lo
significativamente. Nada menos que a loura de olhos verdes
da tarde anterior, a que encontrara no “Glass Enclosed Bar”
e que lhe sorrira tão deliciosamente.
— Lindo dia! — comentou Paco, com água até o
pescoço
— Muito lindo, señor Rivelles.
— Sabe meu nome, senhorita...?
— Michèle Lombart, do Deuxième Bureau. Quero dizer,
uma agente do governo francês, señor Rivelles.
— É a nova moda de brincadeiras para piscina? —
perguntou Paco.
— É a pura verdade. Não acha que esta água está
deliciosa?
— E tem uma cor verde-mar — completou ele, rindo. —
Qualquer um diria que estamos mergulhados em pleno
oceano. Diga-me uma coisa, mademoiselle Lombart: a que
se dedicam os franceses?
— A comprar microfilmes, por exemplo. Até que
profundidade é capaz de mergulhar, señor Rivelles?
— Mmm.... Com ar enlatado ou a pulmão livre?
— A pulmão livre.
— Uns... uns oito metros; não mais, porque embora os
pulmões suportem muito bem, os ouvidos começam a
protestar contra o excesso de pressão... Por que pergunta?
— Nós sabemos, Rivelles... Quero dizer, nós do
Deuxième Bureau, naturalmente. Sabemos que houve
alguma complicação em Nice. Depois, como resultado de
averiguações, começamos a atar fios e descobrimos
qualquer coisa de um certo espanhol que se tinha apoderado
de certo invento de um russo chamado Zinovi Trepof.
Seguindo a pista desse espanhol, chegamos a Paris E lá,
conhecemos o espanhol.
— Não me diga que sou eu.
— Não direi, se assim prefere — riu a loura agente do
serviço secreto francês. — A verdade é que tudo quanto
tenho a dizer são três palavras.
— De amor?
— De negócios. São estas, Rivelles: quinhentos mil
dólares.
— É uma bonita conversa, e acho suas palavras
belíssimas, Michèle. Mas espero que o Deuxième Bureau
não esteja pensando em pedir-me quinhentos mil dólares
emprestados.
— Muito pelo contrário: estão ao seu dispor, Rivelles.
— Ao meu dispor? Mas por quê?
— Em troca de um pequeno microfilme.
— Ah, isso! Disse quinhentos mil dólares, Michèle?
— Justamente: quinhentos mil dólares americanos.
— Vocês pagam muito bem. Por que tanto interesse por
um simples, microfilme?
— Está em seu poder, Rivelles?
— Devo modestamente admitir que sim. Está comigo.
— Então vou lhe explicar brevemente.. Na França, como
em outros países do mundo, a espionagem está na ordem do
dia. Em geral, o Deuxième Bureau não dá muita
importância, a isso, pois quase sempre são pequenas tolices
que a nada conduzem. Não obstante, esta vez perece que o
assunto é mais sério. E chegamos, à conclusão de que esse
microfilme vale os quinhentos mil dólares que estou lhe
oferecendo.
— Por que chegaram a essa conclusão
— Quando intervêm a CIA, o MI-5 e a MVD soviética,
é que a coisa é séria. E quando nessas intervenções morrem
uma agente do MI-5 e dois homens da MVD, tudo fica mais
sério ainda. Já que por causa desse microfilme se arriscam
algumas vidas, o Deuxième Bureau acha que deve
interessar-se realmente. Direi-lhe que até ontem à noite eu
estava autorizada a oferecer-lhe cem mil dólares apenas.
Mas, depois do que aconteceu, chamei pelo rádio certa
pessoa que me autorizou a oferecer-lhe quinhentos mil.
— Tem esse dinheiro a bordo?
— Claro.
Paco Rivelles ficou boiando, sem se mexer, como se
estivesse deitado num colchão de espuma. Após alguns
segundos de reflexão, moveu negativamente a cabeça.
— Lamento — murmurou. — Já prometi vender o
microfilme à CIA.
— Quanto lhe pagam por ele?
— Cem mil dólares.
Os olhos verdes de Michèle Lombart se arregalaram.
— E não quer mudar de comprador a troco de mais
quatrocentos mil?
— Sou um homem muito formal, Michèle. A menos... A
menos que eu veja com meus próprios olhos os quinhentos
mil dólares.
— Suponhamos que eu os entregue antes de quinze
segundos... Aceitaria vender-me o microfilme?
— Bem... Acho que qualquer um tem o direito de portar-
se um pouco mal, às vezes... Posso ver o dinheiro?
— Entrega me o microfilme?
— Você me dá os quinhentos mil dólares, Michèle, e o
microfilme será seu quando quiser.
— Mergulhe então, Rivelles. No fundo da piscina verá
uma bola de plástico, com várias cores. É uma bola que não
flutua porque quando a joguei na água, às primeiras horas
da manhã, certifiquei-me de que estava bem lastreada. Ah: o
fundo da piscina não chega nem a três metros. Tem o
microfilme em seu camarote?
— Sim.
— Apanhe a bola. E dentro de dez minutos, eu o espero
lá.
— Fora ou dentro?
— Dentro, naturalmente.
— Terei que mudar a fechadura... — suspirou Paco. —
De acordo. Em meu camarote daqui a dez minutos.
A loura saiu da piscina e enxugou-se aplicadamente
durante dois minutos, exibindo seu corpo magnífico ao sol.
Afastou-se depois com passos miúdos e graciosos, rumo ao
corredor dos camarotes. Paco ficou ainda um pouco na
água, antes de mergulhar. Em menos de meio minuto
avistou a bola de plástico com listras de diversas cores, no
fundo. Apanhou-a e Constatou que pesava o bastante para
conter não só quinhentos mil dólares, mas o suficiente lastro
de chumbo para não poder flutuar.
Voltou à superfície, saiu da piscina levando a bola e
sentou-se na cadeira extensível contígua à de Annette
Simonet.
A duquesa olhou para a bola, pareceu a ponto de fazer
algum comentário, mas finalmente disse apenas:
— Encontrei este papel na revista. É seu, Paco?
O espanhol moveu negativamente a cabeça, tomando o
papel por simples instinto, já que lhe era estendido.
— Não. Com certeza é do rapaz que me emprestou a...
Calou-se de repente. Seus olhos permaneceram fixos nas
linhas escritas sobre a pequena folha branca. Ergueu o olhar
para os olhos azuis da duquesa.
— Este papel estava dentro da revista?
— Claro! — espantou-se ela. — Não é seu?
— Você sabe italiano, Annette?
— Não, não... Bem, muito pouco. Apenas umas quantas
palavras. .. Por que pergunta? Oh, talvez porque esse papel
esteja escrito em italiano, não é isso?
Paco nem sequer respondeu. Toda sua atenção estava
concentrada na nota, que dizia exatamente:
Aceite os quinhentos mil dólares que, com efeito,
estão dentro da bola. Michèle Lombart atirou-a
no fundo da piscina esta madrugada. Venda-lhe
um dos seus microfilmes falsos e não se preocupe
com ela. Não lhe ocorrerá o mesmo que a Helen
Sterling, já que Michèle tomou suas precauções.
Tem outro camarote, na segunda classe, com o
nome de Madame Emilie Frauvert e, quando
receber o microfilme, prosseguirá camuflada até o
fim da viagem. O certo é que, quando Michèle
Lombart tiver seu microfilme, deverá esquecer-se
definitivamente dela. Esperemos que o Deuxième
Bureau não a censure demasiado por este
fracasso tão simpático. Cordialmente,
CIA.

— Que diz o bilhete? Gostaria de saber, já que cometeu


a incorreção de ler, não sendo para você.
— Acontece que tampouco eu compreendo muito bem o
italiano — mentiu cinicamente Paco. — Creio que fala de
dólares e de algumas pessoas... Não sei.
— Está bem. É sua essa bola?
— Bola...? Oh, sim, claro. Seria capaz de fazer-me um
favor, Annette?
— Espero que não me peça nada de inconveniente, Paco.
— Não, não... E veja como é simples: vou ao meu
camarote agora. Dentro de dois minutos, você vai ao seu,
abre a janela que dá para o convés, depois volta ao convés e
coloca-se diante de minha janela. Quando vir que esta se
abre, estenda as mãos, apanhe a bola de plástico, atire-a
dentro de seu camarote pela janela que deixou aberta,
depois vá ao bar e espere por mim para tomarmos um
aperitivo antes do almoço. É inconveniente?
— Não, não muito... Mas parece um disparate.
— Não se esqueça, Annette, que nós homens somos uns
meninos grandes — sorriu o espanhol. — Pode fazer-me
este favor?
— É uma coisa tão absurda, Paco... Mas farei.
— Obrigado, querida.
Paco levantou-se, escondendo o bilhete, muito
amarrotado, entre os dedos. Foi devolver a revista ao rapaz
inglês que a emprestara e despediu-se com um gesto jovial.
Saiu da zona da piscina, encaminhando-se para o corredor
dos camarotes de luxo. Entrou neste, chegou ao seu
camarote, abriu-o e entrou.
Michèle Lombart lá estava, esperando-o... Quer dizer,
estava lá, simplesmente. Mas, sem a menor dúvida, não o
esperava, pela razão muito simples de que os mortos não
esperam ninguém.
CAPITULO OITAVO
Um complicado jogo de bola
Magistral estocada
Dormir a sesta

Estava sentada no sofá, com a cabeça muito para trás,


apoiada no respaldo. Sobre a curta saída-de-praia amarela,
justamente em cima do seio esquerdo, via-se uma pequena
mancha vermelha. A pobre Michèle tinha uma bela e triste
languidez, essa languidez dos que acabam de morrer.
Sobre a cama, Paco viu algo que lhe chamou a atenção.
Ali, aberta, estava sua maleta e, fora dela, tudo o que havia
contido. Uma confusão de camisas, gravatas, sapatos...
Tudo remexido. Era facílimo concluir que alguém, enquanto
ele estava na piscina, tinha-se dedicado a revistar seu
camarote.
A pobre Michèle chega e, enquanto está forçando a
fechadura para entrar, a pessoa que havia lá dentro se
esconde... O visitante clandestino a surpreende e mata.
E o único lugar do camarote onde alguém podia
esconder-se era o banheiro... Tivera o assassino tempo para
escapar dali?
Paco Rivelles voltou-se para a porta do banheiro e seus
músculos faciais se crisparam ao ver ali, no umbral, Victor
Makarian, expressão torva, apontando-lhe o revólver que
empunhava com a mão direita. Na palma da esquerda
mostrou fragmentos de várias cápsulas de plásticos, assim
como os correspondentes microfilmes falsos que tinham
contido.
— Um jogo excessivamente audacioso o seu, Rivelles.
Encontrei isto sob o fundo da mala, mas todos os
microfilmes são simples falsificações.
— Esperava que todos fossem autênticos?
— Não abuse de minha paciência, Rivelles. Tome
cuidado!
O espanhol acendeu um cigarro com mão firme. Depois
olhou friamente para Makarian.
— Sabe de uma coisa? — disse em tom gélido. — Você
também está começando a abusar da minha. Era necessário
matar essa garota? Que ganhou com isso?
— Não se compadeça dos outros, mas de você mesmo,
já lhe disse. Nem...
— Nem sequer posso compadecer-me de Eminov e
Folka? — indagou Paco, sorrindo.
— Você teve sorte, apenas isso.
— É verdade — admitiu o espanhol. — Tive sorte. Mas
às vezes a sorte pode ser dominada. Não me obrigue a matá-
lo, Makarian: garanto-lhe que tal operação nunca foi de meu
agrado. Aceite minha boa disposição de ânimo: esqueça
tudo, volte ao seu esconderijo no barco e eu também
esquecerei que você existe.
— Quero que me entregue o microfilme, Rivelles.
— Desista.
— Ontem lhe concedi um prazo, que dura até as oito da
noite. Se passada essa hora eu não estiver com o
microfilme, você vai lamentar de verdade, mas apenas
durante os segundos que levar para morrer. Agora, dê-me
essa bola que contém dinheiro, e também o que lhe pagou
ontem a agente do MI-5 por um de seus microfilmes falsos.
— Quero dizer-lhe uma coisa, Makarian: eu farei melhor
uso que você deste dinheiro. Insista quanto ao microfilme,
mas esqueça o dinheiro.
— Quero o dinheiro, Rivelles. Já.
O espanhol franziu a testa. Súbito, assentiu com a
cabeça. Foi à cortina que simulava uma grande janela na
parede do camarote, levando uma cadeira. Subiu nesta,
alcançou o dinheiro que pendia da parte interior, formando
um enorme maço suspenso por um cordão, e desceu da
cadeira. Descolou o fecho adesivo da bola e viu dentro o
pedaço de chumbo, bem como os maços de cédulas de mil
dólares. Sempre em silêncio, Paco meteu também dentro da
bola os cem mil dólares de Helen Sterling, tornou a colar o
fecho e atirou-a nas mãos do russo, que a apanhou no ar,
com uma das mãos, apertando-a contra o peito.
— Agora, Rivelles, vou me retirar. Às oito e meia
procure estar neste camarote, porque lhe telefonarei para
perguntar se está disposto a entregar-me o microfilme. Se
sua resposta for NÃO, será melhor se mantenha em
permanente vigilância durante o resto da travessia.
— O mesmo lhe digo eu, Makarian. E ainda lhe direi
mais: se você fosse um pouco inteligente, apertaria agora
mesmo o gatilho desse revólver... Do contrário, eu acabarei
com você. Já não dispõe de seus amigos, nem de ninguém
que o ajude. E eu, dentro de um barco, sou como gato em
telhado: ninguém poderá agarrar-me.
— Você é um doido, Rivelles. Mas não esqueça: tem
nove horas de prazo para pensar.
Abriu a porta com a mão do braço que apertava a bola
contra o peito, procurando não dar as costas ao espanhol.
Afastou a folha de madeira e, sempre recuando, dispôs-se a
abandonar o camarote...
De imediato, Victor Makarian se retesou, crispou-se com
violência. Qualquer coisa o empurrou para frente, sem força
demasiada, mas de modo decidido. Ele deu dois passos e a
porta tornou a fechar-se às suas costas, justamente quando
caía de joelhos dentro do camarote, ante os olhos atônitos
de Paco Rivelles.
A bola escapou do braço de Makarian, e também o
revólver escapou de seus dedos. Seus olhos tão claros que
pareciam de água estavam fixos nas negras pupilas do
espanhol, que não conseguia compreender aquilo.
Súbito, Makarian ergueu uma das mãos, enquanto a
outra se dirigia às suas costas.
— Aaa-aaahhh...
E gemendo, tombou sonoramente de bruços no chão,
deixando ver agora a diminuta mancha vermelha em suas
costas, à altura do coração, mancha que ia aumentando
lentamente sobre o branco jérsei esportivo que usava. Paco
inclinou-se sobre ele e viu o pequeno orifício. Parecia uma
punhalada... Melhor, uma estocada.
Ergueu-se, abriu ràpidamente a porta e quase se chocou
com a Duquesa de Montpelier, que soltou um gritinho e
recuou um passo, por pouco não deixando cair a bengala de
castão de prata.
— Paco! — exclamou. Oh, que susto você me deu!
— Que está fazendo aqui, Annette?
— Ve-venho de... de meu camarote, de abrir a janela
para isso da bola... Já não quer que...?
— Sim, sim! É verdade... Mas espere um momento. Já
não é necessário que vá ao convés para receber a bola... Um
momento, por favor.
Entrou no camarote, cuidando de que a duquesa não
pudesse olhar para dentro. Apanhou a bola, entregou-a à
velha senhora e fez um gesto em direção ao camarote dela.
— Tenha a bondade de guardá-la para mim, Annette.
— Pois não... Oh! Você não acha que... que é bastante
pesada?
— É que dentro há um pedaço de chumbo e seiscentos
mil dólares americanos — sorriu o espanhol.
— Tanto dinheiro assim? Ah, você naturalmente está
brincando...
— Não estou não. Viu alguém no corredor?
— Agora?
— Não. Antes de eu abrir a porta.
— Não vi pessoa alguma.
— Passou alguém agora por aqui?
— Tampouco.
— Está bem. Então vá guardar a bola, sim? Irei buscá-la
dentro de dez minutos, para irmos tomar o aperitivo.
— Perfeito.
Esperou que a duquesa entrasse em seu camarote para
fazer o mesmo. Estava metido numa boa encrenca, não
havia dúvida. Que podia fazer ele com dois cadáveres em
seu camarote, às onze e meia da manhã?
— Não estou gostando deste negócio de espionagem...
— murmurou. — Não estou gostando nada, mano Juan.
Sentou-se num tamborete, acendeu um cigarro e coçou
furiosamente a nuca. Claro que ele era um homem de
recursos, mas seriam necessários muito bons recursos para
desfazer-se de dois cadáveres àquela hora do dia, com todos
os conveses apinhados de gente. À noite a coisa era diversa,
naturalmente, mas em plena manhã não seria possível...
Ouviu um roçar levíssimo no chão, junto da porta, e
olhou vivamente para lá, ainda a tempo de ver deslizar o
papel por debaixo da madeira. Após uns segundos de
estupefação, correu para a porta, abriu-a, investigou o
corredor... e não viu ninguém.
Entrou novamente no camarote, fechando a porta quase
com violência. Inclinou-se, apanhou o papel e desdobrou-o.
Agora estava escrito em espanhol, mas a letra era a mesma
da nota que Annette havia encontrado dentro da revista
“Playboy”.
Dizia:
Não se preocupe com os dois cadáveres. Eu me
encarregarei deles. Vá tranquilamente tomar seu
aperitivo com a duquesa e, se tiver paciência para
tanto, almoce também com ela. A pobre senhora
sente-se muito só e apreciará muitíssimo sua
companhia. Depois de almoçar, durma a sesta,
pois precisará estar bem descansado para esta
noite. E depois da sesta, às seis em ponto, vá ao
camarote da duquesa e espere-me lá. Detalhe
muito importante: seja quem for que esteja no
camarote, não deixe de falar claro, com absoluta
liberdade. Até logo. Cordialmente,
CIA
PS.: Destrua esta nota e a outra.

Sobre um cinzeiro, Paco Rivelles queimou as duas notas.


Depois olhou para os dois cadáveres e sacudiu os ombros.
Claro que se lhe ofereciam resolver aquele assunto, não
seria tolo de desprezar o auxílio, fosse de quem fosse. Mas,
claro, sabia muito bem de onde vinha o auxílio.
Evidentemente, a dama de negro não tinha podido evitar
que Victor Makarian matasse Michèle Lombart, a garota do
Deuxième Bureau. E, lógico, tal só pudera acontecer porque
a dama de negro estava em outro lugar, incapacitada de
intervir. Em compensação, não o estivera para ajudá-lo
quando Eminov e Folka tinham tentado matá-lo na noite
anterior; tampouco estivera incapacitada para colocar a nota
no número do “Playboy”; nem para vigiar Michèle Lombart
quando esta atirara ao amanhecer a bola de plástico dentro
da piscina; nem para matar Victor Makarian quando este
saía com a bola que continha os seiscentos mil dólares; nem
para enviar- lhe aquela última nota... E, ao que parecia, não
se tinha importado que Victor Makarian revistasse seu
camarote, pois ela sabia que os microfilmes contidos nas
cápsulas eram falsos. Por outro lado, falhava
lamentàvelmente numa coisa: dizia que já estava de posse
do microfilme autêntico, quando ele o estava vendo ali,
incrustado na pequena fenda existente no quadro
surrealista... Bem, pior para ela. Logo se desenganaria.
Mas quem era a dama de negro? A morena, talvez? Não
a tinha visto durante toda a manhã. Onde estava a formosa
morena de olhos cinzentos e rosto eslavo? Era russa? Era
ela a dama de negro?
— Diabo! Vou é tomar uma boa dose de manzanilla. E
se a duquesa não gostar, que tome chá de tília.
Regressou do almoço por volta das três horas. Sentia-se
repleto, já que esta vez a duquesa tivera que ceder às suas
exigências. Ambos, entre outros alimentos igualmente
fortes, haviam saboreado nada menos que uma lagosta.
Depois, ela pedira champanha com cereja, para terminar.
— Champanha com cereja... — bocejou Paco,
estendendo-se na cama. — Velha extravagante! Essa
história de que tem um estomago delicado que a acredite
sua tia, não Paco Rivelles... Oh, oh! Para onde terão ido os
dois...?
Claro que os cadáveres tinham desaparecido.

CAPITULO NONO
O chá de Madame la Duchesse
História de um microfilme
Muito espiã, inclusive para um profissional

Despertou-o uma campainhada que parecia soar dentro


de sua cabeça. Mas não era assim. Tratava-se apenas do
telefone. Sentou-se na cama, estendeu a mão e tomou o
fone.
— Alo... — bocejou.
— Senhor Rivelles: cinco e meia.
— Ah, muito bem... E daí?
— Pediram-nos para chamá-lo a esta hora.
— Quem?
Houve uma hesitação do outro lado do fio.
— Não sabemos... Vejo apenas que aqui está a nota:
“Acordar o senhor Rivelles às cinco e meia em ponto.”
— Está bem. Muito obrigado.
Repôs o fone no gancho e permaneceu uns segundos
sentado na cama. Quase começava a aborrecê-lo que outra
pessoa fosse resolvendo as coisas, evitando-lhe
contratempos. Inclusive aquele detalhe, para assegurar-se de
que às seis em ponto estaria no camarote da duquesa.
Meteu-se no chuveiro, esteve sob a água quase dez
minutos, sem se mover, e saiu como se tivesse levado uma
surra. Tinha comido demais, e também dormido demais.
Claro que se à noite devia estar muito descansado...
Fez umas quantas inspirações, urnas poucas flexões e
depois se olhou no espelho. Sorriu ao ver sua imagem:
— Aqui está um homem que ainda viverá algum tempo
— disse.
E piscou um olho para si mesmo.
Vestiu-se, acendeu um cigarro, olhou a hora no pulso e,
como faltavam apenas dois minutos para as seis, saiu de seu
camarote.
Deu alguns passos e bateu na porta do da duquesa.
Abriu-a ela mesma, e olhou-o como sobressaltada, quase
assustada.
— Paco... — murmurou. — Deseja alguma coisa?
— Visitá-la, Madame — sorriu o espanhol, de muito
bom humor. — Tenho um encontro aqui. Posso entrar?
— Mas o caso é que...
— Ora vamos, Annette, todo o mundo sabe que somos
bons amigos...
Entrou decididamente no camarote... e ficou cravado no
chão ao ver ali, elegantemente sentado a uma mesinha, o
cavalheiro da barba grisalha. Sobre a mesinha, um serviço
de chá, com tortas. .. Roland Mercier levantou-se, olhando-
o afàvelmente, mas um tanto intrigado.
A duquesa fez as apresentações, não pouco atribulada:
— O senhor Paco Rivelles, o senhor Roland Mercier.
— Como está, señor Rivelles?
— Encantado, monsieur — sorriu Paco. — Noto que o
senhor é um homem tenaz.
— Tenaz?
— Bem... Não quero parecer indiscreto, mas diria que já
tive oportunidade de perceber sua admiração pela duquesa.
Oh, isso da maneira mais correta, devo admitir... Espero não
ter dito nenhuma inconveniência, monsieur.
Roland Mercier pareceu não saber o que dizer. Annette
Simonet demonstrava seu embaraço torcendo os dedos.
— Quer... quer tomar chá conosco, Paco?
— Em circunstâncias normais, evidentemente diria que
não. Mas devo permanecer em seu camarote, Annette.
— Por quê?
— Não sei exatamente. Mas sei que todos devemos falar
com absoluta clareza. Ainda falta alguém à reunião?
— Reunião? Paco, não estou compreendendo...
Bateram na porta. A duquesa olhou para os dois homens,
visivelmente perplexa. E se dispunha a ir abrir, mas Paco
adiantou-se. Abriu a porta e olhou, entre divertido e
surpreso, a visitante: era a morena de olhos cinzentos e
rosto exótico.
— A morena magnífica... — murmurou Paco. — Onde
se tinha metido? E por que nos ameaça com esse revólver?
A morena fez um gesto claríssimo.
— Para dentro — esclareceu verbalmente. — Tenho
muita vontade de falar com você, Rivelles.
O espanhol retrocedeu. A morena fechou a porta e olhou
para as pessoas reunidas no camarote da duquesa.
— Quem me mandou uma nota dizendo que eu viesse
aqui e que tudo ia ficar resolvido?
— Também recebeu uma nota? — perguntou Paco. — E
o senhor Mercier?
— De que está falando? — estranhou o francês. —
Estou aqui convidado a tomar chá pela senhora Duquesa...
E se ambos não adotarem uma atitude mais razoável,
chamarei o capitão do navio para...
— Faça o favor de calar-se — pediu amàvelmente Paco.
— A menos que queira falar claro, como os demais. Eu, por
minha parte, estou disposto a isto. E você, adorável
morena?
— Meu nome é Giovanna Santolini, senhor Rivelles.
— Deixe de tolices — replicou Paco. — Você é russa e,
portanto, não se chama assim. Qual é seu verdadeiro nome?
— Está bem — disse ela, levantando o queixo: — meu
nome verdadeiro é Vera Trepof.
— Vera Trepof! — exclamou o espanhol — Está
mentindo!
— Por que diz isso, Rivelles?
— Porque se você fosse Vera Trepof já teria falado
comigo, tão logo me viu! Você sabe muito bem que teria
sido assim! Portanto, não é verdade que seja Vera Trepof.
— Sou. Filha de Zinovi Trepof, o homem que confiou
plenamente em você, o cavalheiro espanhol, honesto e
valente que estava disposto a ajudá-lo. Mentira! Tudo
mentira, Rivelles! Estive esperando em Nice durante três
dias, até que soube que partira para Paris. E quando
consegui localizá-lo, você estava prestes a embarcar para os
Estados Unidos...
Paco franziu a testa. Sentou-se numa cadeira e tirou uma
baforada do cigarro, olhando para Vera através da fumaça,
pensativamente,
— Prossiga... — murmurou. — Que mais, Vera Trepof?
— Soube que ia tomar o “Empire” e adquiri passagem.
Procurei-o imediatamente sorri para você no bar... E você
não se aproximou de mim. Compreendi que não estava
disposto a cumprir a palavra que tinha dado a meu pai. Mas
agora... — moveu ameaçadoramente o revólver — agora vai
ter que me entregar os setenta e cinco mil dólares, Rivelles.
Ou o dinheiro, ou o invento de meu pai, para que eu o venda
aos Estados Unidos.
Paco assentiu com a cabeça, mas demorou alguns
segundos para falar:
— Vamos por partes, Vera. Em primeiro lugar, eu não
enganei ninguém. E em segundo lugar, não podia entregar-
lhe os setenta e cinco mil dólares porque não a conhecia,
nem sabia onde encontrá-la...
— Mas meu pai lhe disse onde poderia encontrar-me,
deu-lhe meu endereço!
— Espere... Espere, por favor... Vejamos as coisas desde
o princípio, para que todos possamos entender bem.
Semanas atrás, conheci em Nice um homem muito amável e
simpático que me disse chamar-se Émile Sevreux. Esse
homem alugara uma vila em Basse Corniche e, por diversas
vezes, convidou-me para visitá-la... Ficamos amigos.
Subitamente, uma tarde, apareceu no cais, entrou em meu
barco e disse-me que precisava de meu auxilio. Declarou-
me que seu verdadeiro nome era Zinovi Trepof, que era
russo e que alguns compatriotas seus, da MVD, estavam à
sua procura, provàvelmente para matá-lo. O motivo era que
Zinovi Trepof tinha escapado da Rússia com um invento
ainda por terminar. Não queria cedê-lo sem cobrar por seu
trabalho, de modo que resolveu fugir. Para despistar,
enquanto ultima seu invento, vive separado da filha.
Justamente quando termina sua invenção, o centralizador
fotográfico, os homens da MVD o localizam... Que fez
Zinovi Trepof então? Procurou-me, contando o que tinha
descoberto e deu-me um nome, assegurando que era de um
agente da CIA com o qual ele tencionava entrar em contato
para vender o invento. Juntamente com o nome desse
elemento da CIA, Zinovi Trepof deu-me um microfilme
contendo os planos de seu invento. Feito isto, disse-me que
não me preocupasse mais com ele, mas que dentro de três
dias eu escrevesse a sua filha em Nice e fosse reunir-me a
ela para entregar-lhe setenta e cinco mil dólares, já que os
restantes vinte e cinco mil seriam para mim... De acordo até
aqui, Vera?
— Você não me escreveu, não me procurou para
entregar-me os setenta e cinco mil dólares!
— Escrevi, de Paris. Mas, ao que parece, enquanto
minha carta era mandada a Nice, você viajava para Paris.
Como poderia eu saber disso? Depois, quando você me
encontrou, eu estava a ponto de embarcar para os Estados
Unidos. Pois bem: por que não veio ao meu encontro,
então? Desconfiou de mim, não é verdade?
— Eu... eu tomei o navio e me deixei ver por você...
Esperava que me dissesse alguma coisa...
— Sim? Por que supôs que eu a pudesse reconhecer?
Esquece que seu pai não pode me mostrar nenhuma
fotografia de você, já que destruíra todas com medo de que
servissem para identificá-lo, ou para localizá-la? Esquece
que tudo quanto eu sabia era um simples endereço em Nice,
e que quando minha carta chegou você não estava mais lá
para recebê-la e vir a Paris falar comigo? Como diabo
queria você que eu a localizasse, ou que a reconhecesse ao
vê-la neste navio? Pensa que sou algum adivinho?
Vera Trepof mordeu os lábios.
— Sinto muito... — murmurou. — Acho que você está
falando a verdade, Rivelles...
— Realmente? E o que espera? Que eu me ponha a
chorar de reconhecimento? Gostaria que soubesse dos
apuros que passei por culpa desse famoso microfilme! E
quanto a seu dinheiro, vou entregá-lo imediatamente, com o
que o assunto estará concluído. De acordo?
— Lamento... lamento o que disse...
— Está bem — acalmou-se Paco, prontamente.
— Os dois estivemos um pouco desorientados, O
aborrecido foi que, em Nice, houve tal escândalo com o
caso do barco a vela e a lancha vermelha, que todos os
serviços secretos havidos e por haver puseram as orelhas em
pé... Espero que agora já não nos aconteça mais nada. Quer
seu dinheiro?
— Bem... Creio que sim...
Annette Simonet já tinha a bola de plástico nas mãos.
Paco tomou-a, descolou o fecho adesivo e sacou um maço
de cédulas. Contou-as ràpidamente e estendeu-as à jovem.
— Aqui tem: setenta e cinco mil dólares, querida Vera.
E outra vez, lembre-se que a palavra de um espanhol é coisa
sagrada.
— Muito bem — disse ela. — Agora, se me disser onde
está meu pai, voltarei a.
— Seu pai? Não está no esconderijo que arranjou em
Marselha?
— Não. Passei por lá e não estava... Não, não. Suponho
que ele lhe tenha dado outro endereço, para que me fosse
transmitido, ou...
— Vera, se seu pai tivesse pensado reunir-se com você
em outro lugar, escreveria para Nice dizendo onde, não é
verdade? Além disso, ele me encarregou de dizer-lhe que a
esperaria em Marselha.
— Mas não estava lá! — quase gritou a russa.
— Então... lamento — murmurou Paco. — Talvez não
tenha conseguido escapar da MVD.
Vera já tinha guardado o revólver e Roland Mercier pôs-
se de pé naquele momento, sacando o seu, provido de
silenciador.
— Com efeito — disse, sorrindo friamente: — Zinovi
Trepof não teve muita sorte ao tentar escapar-nos... O que,
de um modo geral, é o que acontece com todos.
— Monsieur Mercier! — exclamou a duquesa. — Que
está fazendo?...
— É simples, senhora Duquesa. Quero o dinheiro, quero
o microfilme e quero matar a todos. Os três! Se der mais um
passo, dispararei contra a Duquesa, Rivelles.
Paco deteve-se, pálido de raiva. Olhou para Annette e
surpreendeu-se ao ver seu doce sorriso. Um sorriso
tranqüilo, amável... mas ao mesmo tempo hipócrita. No
fundo daqueles olhos azuis havia algo de congelado.
— Não se mova, Paco. Daremos uma oportunidade a
Monsieur Mercier para que conserve sua vida... Vou lhe
dizer quem realmente é Monsieur Roland Mercier, se meus
serviços privados de informação não falharam esta vez.
Apresento-lhe o camarada Issur Bolonich, um dos mais
temíveis executores da MVD... Não é certo, monsieur?
— Certo, senhora Duquesa — sorriu o falso francês. —
Ou devo chamá-la agente “Baby”, da CIA?
— À sua escolha, Bolonich.
— De fato, que importância tem? O importante é que
por fim consegui realizar um de meus grandes sonhos: ter
em minhas mãos a perigosíssima “Baby”, que tantos
estragos já causou nas fileiras da MVD.
— E em outras, Bolonich. Não tenho nada especial
contra a MVD, mas contra qualquer um que pretenda servir-
se da espionagem para outra coisa que não seja conservar a
paz.
— Não tem nada especial contra mim? — surpreendeu-
se o russo. — Você mesma disse que sou um istrebitel, um
executor... Isso não a indispõe contra minha pessoa?
— Bolonich, eu mesma já matei mais homens que você,
quando tal medida se impunha. Mas sempre foram homens
da sua espécie, não da de Zinovi Trepof. Ainda assim,
ofereço-lhe uma oportunidade: guarde essa arma, se
entregue... e será recebido por dois amigos meus ao chegar
a Nova Iorque. Não sei o que acontecerá exatamente, mas
não perderá a vida.
— Esse conto já é muito velho, agente “Baby”. E agora,
tenha a bondade de entregar-me essa bola... Você, Vera
Trepof, dê-me os setenta e cinco mil dólares... E, quem quer
que seja que tenha o microfilme, que mo entregue agora
mesmo. E esta vez quero o autêntico. Não sou nenhum
estúpido como Eminov, Folka, ou mesmo Makarian...
Quero o microfilme autêntico.
— Suponhamos que o entregue a você, Bolonich... Que
aconteceria depois? — perguntou o espanhol.
— É uma pergunta ingênua, Paco — opinou a duquesa.
— De um modo ou de outro, o nosso Bolonich está disposto
a matar todos nós. Portanto, não tenho mais remédio que
antecipar-me a ele...
Dizendo isto, a duquesa tinha apertado o castão de prata
de sua bengala, deslizando imediatamente a mão até o
centro, de modo que, apenas apareceu a delgada lâmina de
aço, ela mantinha já a camuflada arma firmemente em
riste... Issur Bolonich lançou um grito de alarma, recuou um
passo, erguendo o revólver... e a longa e aguda lâmina de
aço cravou-se profundamente em seu peito, derrubando-o
de costas antes que tivesse podido disparar. Ficou de cara
voltada para cima, com os olhos ainda abertos e nestes
ainda uma luz de vida, que se extinguiu ràpidamente. A
última coisa que pode enxergar foi a bengala de castão de
prata sobressaindo de seu peito.
A Duquesa de Montpelier abriu seu armário, dele sacou
uma pequena maleta vermelha com flores azuis e, desta, um
maço de cédulas. Depois se aproximou da jovem russa.
— Procure acalmar-se, Vera — disse-lhe. — Tudo está
terminado.
— Eu sei... — balbuciou a jovem. — Eu sei, mas...
Era evidente que fazia esforços para não chorar. A
duquesa estendeu o maço de cédulas a Paco, que durante
alguns segundos ficou olhando para o dinheiro, parecendo
refletir. Por fim, entregou aqueles dólares a Vera, juntando-
os aos primeiros setenta e cinco mil.
— Não pretendo ajustar nada com isto, Vera —
explicou. — Mas espero que lhe sirva para viver
tranqüilamente em qualquer lugar de sua escolha.
— Eu... voltarei à França, a Marselha, para procurar o
cadáver de meu pai.
— Nunca o encontrará — declarou a duquesa. — É
melhor que comece a esquecer tudo agora mesmo, a pensar
em seu futuro. Por muito árduo que isso lhe pareça, no
momento, é tudo quanto pode fazer. Adeus, Vera Trepof...
Desejo-lhe boa sorte.
— Você é inimiga dos russos. Bolonich disse que...
— Sou inimiga dos russos, é verdade — sorriu a velha
senhora. — Mas dos russos como Issur Bolonich, não dos
russos como seu pai ou como você. Não confunda as coisas,
mocinha. Leve todo este dinheiro, faça a viagem até Nova
Iorque sem se meter com ninguém, regresse quanto antes à
Europa e vá para onde quiser. Isto é tudo. Adeus.
— Adeus... Nunca esquecerei os dois.
Vera Trepof abandonou o camarote da duquesa, que
então olhou para Paco, o qual acreditou compreender o
significado daquele olhar.
— De acordo... — sussurrou ele. — Já que você pagou,
vou lhe entregar agora mesmo o microfilme. Irei buscá-lo
em meu camarote... E não torne a dizer que já o tem porque
é mentira.
Saiu quase arrebatadamente, deixando sozinha a
duquesa, que sacou então um pequeno rádio da maleta
vermelha, acionando-o.
— “Johnny”?
— Olá, “Baby”!
— Tudo pronto por aqui. Você terá que vir buscar outro
cadáver.
— O de Issur Bolonich, suponho?
— Naturalmente.
— Você é terrível! E a respeito da garota e do espanhol?
— Cuide de Vera Trepof, mas não do espanhol.
— Por quê?
— Porque dele me encarrego eu, “Johnny”. É só.
Fechou o rádio, guardou-o, saiu de seu camarote e
chegou ao de Paco Rivelles quando este abria a porta e
dispunha-se a sair. A duquesa impeliu-o suavemente para
dentro e o espanhol mostrou-lhe a pequena tira de
microfilme.
— Aqui o tem. Alguma coisa mais... Duquesa?
— Sim. Fogo, por favor.
Paco estendeu-lhe o isqueiro, não pouco intrigado. E
mordeu os lábios quando, diante de seus olhos, a espiã da
CIA queimou a tira de microfilme com a diminuta chama de
gás.
— Você certamente sabe o que está fazendo... É
dinheiro da CIA.
— Paco, não seja ingênuo! Eu lhe disse que tinha o
microfilme autêntico, e era verdade. Tirei-o em minha
primeira visita ao seu camarote... e deixei outro no mesmo
lugar, para que você não ficasse nervoso. Querido, você está
tratando com a agente “Baby”, agora, não com uns infelizes
que só sabem matar ou morrer.
— Você sabe mais alguma coisa, talvez?
A duquesa sorriu. De pronto, tirou o vestido e ficou
coberta tão-somente pela malha negra, assustadíssima ao
corpo. Tirou uma faixa de tela que lhe oprimia o seio e este
se ergueu, pujante... Os óculos e a peruca foram
ràpidamente removidos e, quando a velha dama passou uma
toalha úmida pelo rosto, as rugas desapareceram.
Paco Rivelles conseguiu recuperar-se, por fim, e bateu
com a mão esquerda fechada na palma da direita.
— Sou um imbecil! — exclamou.
— Não, não, querido — riu “Baby”. — Acontece apenas
que você não é um profissional e eu sou muito espiã,
inclusive para um profissional.
— Mas... quem é você, enfim, e de onde saiu...?
— Que importa isso?
— Não confia em mim?
— Nem pouco nem muito — riu Brigitte. — De
qualquer modo, durante a viagem você terá oportunidade de
conhecer-me melhor... Ambos nos conheceremos melhor,
Paco.
— Até onde pensa que poderemos chegar a... conhecer-
nos?
Brigitte Montfort, ou a Duquesa de Montpelier, ou a
agente “Baby” da CIA, ergueu os braços e rodeou com eles
o pescoço do espanhol. Este inclinou-se e beijou
profundamente aqueles lábios róseos, ternos, divinos... E
quando pode respirar, murmurou:
— Bem que eu dizia: mulheres demais... E basta uma só,
mas de alta qualidade, para que um homem se sinta um
homem... Que está fazendo agora?
Brigitte estava fazendo uma coisa muito simples: tirar a
malha negra. Quando a jogou para um lado, Paco Rivelles
quase não podia acreditar o que viam seus olhos! Era
mesmo possível que existissem aqueles seios? Era possível
aquela perfeição de ventre, de cintura, de ancas, de coxas...?
Era possível que uma mulher tão bela não fosse um sonho?
— Não me dá mais um beijo, Paco?
O espanhol tomou-a nos braços e levou-a para o sofá.
Logo seria noite.
Menos mal que Paco Rivelles tinha dormido a sesta,
porque, realmente, aquela noite...
Sim. Quando uma mulher é como a agente “Baby”, um
homem chega facilmente à conclusão de que só ela existe.
O FIM DA VIAGEM NÃO FOI ASSIM TÃO
TRANQÜILO

Charles Pitzer, chefe imediato da agente “Baby”, agitou


o braço, saudando a bela mulher que descia pela passarela
do “Empire”, no cais de Nova Iorque, regurgitante de gente,
palpitante de gritos, de chamados... Mas poucos minutos
depois, pese toda a infernal confusão, a espiã deixava-se
cair no assento posterior do carro, erguendo a mão para o
homem que estava ao volante.
— Olá, “Johnny” — sorriu.
— Olá, “Baby”. Que tal a travessia?
— No princípio, muito agitada. Depois, muito tranqüila.
— Pois segundo os informes de “Johnny”, no foi tão
tranqüila para você nem para o espanhol... E onde está ele?
— Paco?
— O señor Francisco Rivelles — sorriu ironicamente
Pitzer.
— Oh, bem...
— E o microfilme? Tem o microfilme?
— Naturalmente, tio Charlie! Que se passa? A que vem
tanta pressa agora?
— Estão esperando-o para levá-lo a Washington, e de lá
à NASA. É isto?
— É. — Entregou-lhe o pequeno estojo. — Já foi
examinado pelo...
— Sabemos que é um invento real e eficiente. Mas,
diga-me, onde está o espanhol?
— Foi embora.
— Como... foi embora? — exclamou Pitzer.
— Não quis trabalhar conosco?
— Paco é... livre demais, tio Charlie. Mais que eu. Por
isso, arranjou um barco a vela, faz tempo, e vai pelo mundo,
vendo coisas, conhecendo gente e conseguindo dinheiro
para sua “Fundação” quando surge uma oportunidade...
— Mas como é possível que tenha ido embora, quando o
“Empire” acaba de chegar?
— De bordo, pediu reserva para um avião que sai dentro
de uma hora. Esta noite, Paco Rivelles dormirá em Sevilha.
E eu... eu creio que sonharei com ele. Bem, vamos? É
preciso entregar o microfilme, espiões!

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