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CAROLINA ORQUIZA CHERFEM

CONSUBSTANCIALIDADE DE GÊNERO, CLASSE E RAÇA NO


TRABALHO COLETIVO/ASSOCIATIVO

CAMPINAS
2014
i
RESUMO

Esta pesquisa se desenvolveu no âmbito das práticas cooperativas e associativistas de


grupos sociais que se organizam em busca de geração de renda e são reunidos pela chamada
Economia Solidária (ES). Essas práticas sociais, por sua vez, agrupam grande quantidade
de mulheres e de negros e negras, o que não vem sendo tratado com a relevância social e
política que este fato suscita. Neste contexto, algumas estudiosas que se dedicam à divisão
sexual do trabalho buscam compreender os motivos da grande quantidade de mulheres
encontradas nessas organizações, bem como identificar o lugar que elas ocupam nas
mesmas. Contudo, os estudos em torno das questões raciais na ES não vêm apresentando a
mesma amplitude: Qual a cor/raça dos participantes da Economia Solidária? Será que estas
práticas sociais podem mudar o contexto de exclusão da população negra? Com o intuito de
compreender este cenário, a tese defendida nesta investigação é a de que os projetos
associativos e de trabalho coletivo, agrupados pelas políticas de Economia Solidária,
apresentam a prioridade de enfrentamento das relações de classe, focados, sobretudo, no
desemprego, oportunidades de geração de renda e superação da fome e miséria de parte da
população brasileira. Porém, não priorizam as questões de gênero e raça com a mesma
relevância, não considerando a coextensividade dessas relações sociais como estruturantes
da sociedade, tanto como a classe. O referencial teórico-metodológico que a embasou,
portanto, compreende as relações sociais por meio do cruzamento das categorias de
dominação que lhes configuram, a saber: a classe, a raça e o gênero, sintetizado pelo
conceito de consubstancialidade. A pesquisa foi realizada em três Organizações Sociais
Produtivas (OSPs) distintas que apresentam relações com diferentes movimentos sociais e
que priorizam a qualificação de seus trabalhadores e trabalhadoras. As iniciativas
pesquisadas foram: Empresa Recuperada Catende-Harmonia – Recife/ Pernambuco
(inserida num setor predominantemente masculino); Rede de Mulheres Produtoras do
Recife e Região Metropolitana (inserida no setor de artesanato, prioritariamente feminino);
Cooperativa de Triagem de Resíduos Sólidos “Bom Sucesso” – Campinas/São Paulo
(representa um setor misto, com grande presença da população negra). Os resultados
identificaram que a ênfase dada à classe social está presente pela própria existência das
OSPs que se desenvolvem no enfrentamento com estruturas e grupos de poder que mantém
as desigualdades sociais. Contudo, essa luta de classes tem cor e sexo que as deixam cada
vez mais complexas, o que nem sempre é considerado nas práticas de ES. Tal comprovação
se deu pela identificação da divisão sexual do trabalho no interior das iniciativas
pesquisadas e pelas oportunidades diferenciadas para homens e mulheres em algumas
experiências. Também se deu pelo silenciamento das questões raciais e pela tendência ao
enegrecimento da população no âmbito das iniciativas pesquisadas. Por outro lado, os
resultados apontaram avanços significativos: Homens e mulheres, negros e negras, de baixa
escolaridade e renda, tiveram oportunidades de ampliar suas qualificações técnica, política
e de gestão coletiva e, a partir disso, tornarem-se sujeitos políticos ao ocupar novos espaços
sociais. Nessa direção, a pesquisa indicou nuances importantes para que as políticas
públicas de ES sejam compreendidas de modo consubstancial, bem como contribuiu para
que outras pesquisas desenvolvidas neste campo de estudo e de ação prática possam ser
analisadas a partir da coextensividade das relações sociais de gênero, raça e classe.
Palavras-chave: Gênero, Raça, Classe, Trabalho Coletivo/Associativo, Qualificação.
vii
RÈSUME

Cette recherche a été développée dans le cadre des pratiques coopératives et associatives
des groupes sociaux qui s’organisent dans le but de la génération de revenus, dans le
contexte de l’Economie Solidaire. Ces pratiques sociales, à leur tour, réunissent un grand
nombre de femmes, de noirs et noires, l’aspect n’ayant pas été traité jusqu’à présent avec la
relevance sociale et politique qu’il soulève. Dans ce contexte, quelques études consacrées à
la division sexuelle du travail interrogent les raisons par lesquelles ces femmes ce
retrouvent dans ces organisation, et cherchent aussi à identifier les postes qu’elles occupent.
Néanmoins, les études autour des questions raciales dans l’ES ne présentent pas la même
ampleur: quelle est la couleur de peau et/ou la race des participants de l’Économie
Solidaire? Ces pratiques peuvent-t-elles transformer le contexte d’exclusion de la
population noire? Dans le but de comprendre ce scénario, la thèse soutenue par cette
recherche affirme que les projets associatifs de travail collectif, agroupés par les politiques
de l’Economie Solidaire, priorisent le combat aux rapports de classe, en focalisant surtout
dans des aspects tels que le chômage, la génération de revenus, la famine et la misère subie
par une partie de la population brésilienne. Cependant, bien qu’elles aient la même
relevance, les questions de genre et race ne sont pas mises en avant. La coextensivité de ces
rapports sociaux en tant que structurants de la société, autant que les relations de classe,
n’est pas pris en compte. Le cadre théorique et méthodologique sur lequel s’est appuyé
cette recherche considère, au contraire, les rapports sociaux à partir du croisement des
différentes catégories de domination, à savoir: la classe, la race et le genre - synthétisées
dans le concept de consubstantialité. La recherche a été mené en trois Organisations
Sociales Productives (OSPs) distinctes qui dialoguent avec divers mouvements sociaux.
Les projets suivants ont été analysés: Empresa Recuperada Catende-Harmonia – Recife/
Pernambuco (qui s’insère dans un secteur de prédominance masculine); Rede de Mulheres
Produtoras do Recife e Região Metropolitana (du domaine de l’artisanat, prioritairement
féminin); Cooperativa de Triagem de Resíduos Sólidos “Bom Sucesso” – Campinas/São
Paulo (qui s’insère dans un secteur mixte, avec une forte présence de la population noire).
Les résultats obtenus indiquent que les OSPs existent pour faire face aux structures et
groupes de pouvoir producteurs d’inégalités sociales, mettent l’accent sur les rapports de
classe. En revanche, cette lutte de classe il y a couleur et sexe ce qui la laisse de plus en
plus complexe. Mais ce fait n’est pas toujours pris en compte au sein même des pratiques
de l’ES. On remarque, par exemple, la division sexuelle du travail à l’intérieur des projets
analysés ainsi que, dans certain entre eux, une inégalité de chances entre hommes et
femmes. A également donné pour le silence à propos des questions raciales et pour la
tendance à « noircir » de population dans les initiatives étudiées. D’autre part, les résultats
de appontent des progrès significatifs obtenus par les projets en question : hommes et
femmes, noirs et noires, d’un faible niveau scolaire et social, ont eu l’opportunité de
pousser leurs qualifications techniques, politiques et de gestion collective, ce qui a rendu
possible pour eux devenus des sujets politiques et occuper de nouveaux espaces sociaux.
Dans ce sens, la recherche a indiqué des nuances importantes afin que les politiques
publiques de l’ÉS soient conçues d’une façon consubstantielle. Elle a aussi contribué pour
que d’autres recherches développées dans ce domaine d’étude et d’action pratique puissent
être analysées à partir de la coextensivité des rapports sociaux de genre, race et classe.
Mots-clés: Genre, Race, Classe, Travail Collectif / associatif, Qualification.
ix
ABSTRACT

This research was developed within the framework of cooperative and associative practices
of social groups self-organized in search of income generation, gathered by the so-called
Solidarity Economy (SE). These social practices, in turn, comprise large amount of women
and black men and women, which has not been treated with the social and political
relevance that this fact raises. In this context, some scholars engaged in the sexual division
of work seek to understand the reasons for the large number of women found in these
organizations, as well as identify the place that they occupy in the same. However, the
studies around the racial issues in SE don't come with the same amplitude: what is the color
of participants of Solidarity Economy? Can these social practices change the context of
exclusion of black population? In order to understand this scenario, the thesis defended in
this investigation is that associative projects and collective work, grouped by public
policies of solidarity-based economy, represent the priority of confronting class
relationships, focused especially on unemployment, income generating opportunities and
overcoming hunger and poverty of part of the Brazilian population. However, it does not
prioritize issues of gender and race with the same relevance as class is, not considering the
intersection of these social relationships as society structuring. The theoretical and
methodological framework adopted, therefore, understands the social relations through the
coextensivity of categories of domination that constitute them, namely: class, race and
gender, synthesized by the concept of consubstantialité, translated in Brazil as
consubstantiality. The results showed that the emphasis on social class is present by the
own existence of OSPs developed in the process of coping with structures and power
groups that maintains social inequalities. However, this class struggle has color and gender
that leave them increasingly complex, which is not always considered in SE practices. This
evidence was given by the identification of the sexual division of labor within the surveyed
initiatives and differential of opportunities for men and women in some experiments. Also
gave the silencing of racial issues and the trend of blackening population in the scope of the
surveyed initiatives. On the other hand, the results showed significant progress as the
possibility of expanding the skills and learning experiences provided by surveyed. Men and
women, black men and women, low education and income, have significant opportunities
to expand their technical policy and collective management skills, and, from that, become
political subjects to occupy new social spaces. In this way, the research has indicated
important nuances in order to make public policy in Solidarity Economy understood in the
consubstantiality way, as well as contributed to other researches carried on this field of
study, and also provides a possibility that practical action can be analyzed from
coextensivity perspective in terms of class, race and gender social relations.

Keywords: Gender, Race, Class, Collective Work, Qualification.

xi
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... ...... ...... 1


O caminhar da pesquisa, a pesquisadora e a tese ........................................................ ...... ...... 6
Metodologia e percurso da pesquisa ........................................................................... ...... ..... 10
A composição da tese .................................................................................................. ...... ..... 13

CAPÍTULO 1 – O PANO DE FUNDO DA TESE: A ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA


TRAJETÓRIA ........................................................................................................... ................ 15
1.1. FASE 1 – O início das experiências práticas de Economia Solidária e do seu campo
teórico .......................................................................................................................... ................ 16
1.2. FASE 2 – Do velho ao Novo Cooperativismo ..................................................... ................ 23
1.3. FASE 3 – A ampliação da Economia Solidária: aproximando-se de uma definição ............. 29
1.3.1. A SENAES: avanços e contradições da institucionalização .............................. ................ 33
1.3.2. O mapeamento de Economia Solidária e a crítica feminista ............................. ................ 35
1.4 – FASE 4 – Novos olhares refazendo a Economia Solidária: a participação das mulheres ... 41
1.4.1 Outras críticas relevantes: Economia Solidária e Autogestão ............................ ................ 47

CAPÍTULO 2 - GÊNERO, RAÇA E CLASSE NO MUNDO DO TRABALHO: UM


CAPÍTULO TEÓRICO-METODOLÓGICO EM TORNO DA
CONSUBSTANCIALIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS ................................. ................ 51
2.1. A dimensão de gênero e a divisão sexual do trabalho .......................................... ................ 56
2.1.1. As relações de Gênero ....................................................................................... ................ 57
2.1.2. Divisão sexual do trabalho e a des-qualificação das mulheres ......................... ................ 60
2.1.3. Novas configurações e o processo de bipolarização do trabalho das mulheres ................ 66
2.2. A dimensão de raça e a divisão racial do trabalho ................................................ ................ 68
2.2.1 A construção social da raça ................................................................................ ................ 69
2.2.2. Da abolição ao trabalhador e trabalhadora “livres” .......................................... ................ 70
2.2.3. A industrialização e os novos contornos do racismo ......................................... ................ 74
2.2.4. Divisão racial do trabalho e a des-qualificação dos negros na atualidade ........ ................ 78
2.3. A consubstancialidade na pesquisa: classificação analítica orientadora da tese .. ................ 82

CAPÍTULO 3 – DISPUTA, RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DE UM PROJETO


COLETIVO PREDOMINANTEMENTE MASCULINO .................................... ................ 85
3.1. Histórico: cana, escravidão e a construção de uma sociedade patriarcal racializada .......... 90
3.1.1. As trabalhadoras demitidas e a reestruturação produtiva ................................ ................ 98
3.1.2. Resistência dos trabalhadores até o pedido de falência ................................... ............... 100
3.2. A falência e a construção do projeto coletivo Catende-Harmonia...................... ............... 102
3.2.1. Donos? Nós? Donos do que? ........................................................................... ............... 105

xiii
3.2.2. Qualificação dos trabalhadores e as Mulheres no projeto Catende-Harmonia ............... 108
3.2.3. O eixo Educação/Trabalho nas atividades de qualificação .............................. ............... 115
3.2.4 Cana de Morador: o significado dos créditos sociais ....................................... ............... 121
3.3. O auge do Projeto Coletivo Catende-Harmonia ................................................. ............... 124
3.3.1. Projetos específicos para as mulheres ............................................................. ............... 125
3.3.2. Raça: silenciamento da questão ....................................................................... ............... 127
3.3.3. As principais conquistas X os conflitos internos e externos ............................ ............... 131
3.4. O fim do sonho ................................................................................................... ............... 137
Considerações do capítulo ......................................................................................... ............... 142

CAPÍTULO 4 - CONTRIBUIÇÕES FEMINISTAS À ECONOMIA SOLIDÁRIA ......... 147


4.1. Composição dos Grupos de Mulheres na Economia Solidária........................... ............... 151
4.2. Mulheres X Artesanato: reprodução ou re-significação? ................................... ............... 156
4.3. Economia Solidária e Feminismo: um diálogo necessário e contraditório ........ ............... 159
4.3.1 Direitos do trabalho e créditos para mulheres pobres: um luxo à parte ........... ............... 163
4.4. Qualificação de mulheres trabalhadoras ............................................................. ............... 169
4.4.1. Qualificação Técnica: o valor dos cursos profissionalizantes e dos diplomas ............... 170
4.4.2 Qualificação para a Gestão coletiva: outro desafio constante .......................... ............... 176
4.4.3 Qualificação política: questões de gênero, raça e classe .................................. ............... 179
4.4.4. Participação Política X Trabalho Reprodutivo ................................................ ............... 189
Considerações do capítulo ......................................................................................... ............... 194

CAPÍTULO 5. RELAÇÕES ENTRE A PRECARIEDADE DO TRABALHO E A


PARTICIPAÇÃO DE MULHERES (NEGRAS) .................................................. ............... 201
5.1. O material recebido e a precariedade do setor .................................................... ............... 206
5.1.1. A cadeia da Reciclagem: outro exemplo da luta de classes no país ................ ............... 207
5.1.2. A Resistência do Movimento Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais
Recicláveis ................................................................................................................. ............... 212
5.1.3. Quem manda é a prefeitura! ............................................................................ ............... 215
5.2. Motivações para o trabalho: trajetória de trabalhadoras com baixa escolaridade .............. 217
5.2.1. Trajetória de homens X trajetória de mulheres ................................................ ............... 222
5.3. Cooperativas de Resíduos Sólidos: feminização do setor? ................................ ............... 226
5.4. Qual é a cor das cooperadas? .............................................................................. ............... 236
Considerações do capítulo ......................................................................................... ............... 241

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CONSUBSTANCIALIDADE NO TRABALHO


ASSOCIATIVO/COLETIVO ................................................................................. ............... 244

Referências ............................................................................................................... ............... 261

xiv
Dedico esta investigação a todas as mulheres e homens
que buscam combater as desigualdades sociais
participando de organizações coletivas populares. Às
mulheres que incansavelmente se constroem como
sujeitas sociais em meio a uma sociedade machista,
classista e racista. Aos que não se cansam de acreditar
na possibilidade de um mundo melhor!

xv
AGRADECIMENTOS

Escrever uma tese de doutorado é um desafio aparentemente solitário, mas que é só


possível ser enfrentado pela rede de apoio que vamos construindo nesse processo. E é a
essa rede que eu gostaria de agradecer imensamente nesse meu caminhar.
Primeiramente agradeço às mulheres guerreiras de minha vida, que me educaram,
entendem que o meu lugar é no mundo, seguram as barras para isso e apoiam todas as
minhas ações, indistintamente: minha mãe Acácia, a sábia e abençoada Vó Maria, minhas
irmãs Luciana e Juliana. Também agradeço ao meu pai Valter que, apesar de nosso curto
período de convivência, muito incentivou os meus estudos. À nova geração familiar, Pedro
e Elisa, crianças que me alegram e que me ajudam a lembrar que a vida pode ser mais
simples, pelo menos em alguns momentos.
Também agradeço imensamente aos grupos que me acolheram para a realização
desta pesquisa: Às lideranças, trabalhadores e trabalhadoras de Catende, sobretudo à
Arnaldo, Lenivaldo, Luciene, Isabel, Etiene, Joel e Dona Helena, que re-abriram as portas
da história e da memória da Catende-Harmonia. Às mulheres da Casa da Mulher do
Nordeste, que gentilmente me acompanharam e confiaram em mim, em especial à Manu,
Silvana e Graciete. Também às mulheres da Rede de Mulheres Produtoras do Recife e
Região Metropolitana, que me receberam em suas casas, coletivos e comunidades para
compartilhar sobre suas lutas. Às trabalhadoras e trabalhadores da Cooperativa Bom
Sucesso, primeiramente quando me permitiram desenvolver um projeto conjunto de EJA,
em que muito aprendi; e num segundo momento por me receberem novamente para as
entrevistas. Em especial à Dona Cecília, Anelita, Dona Neusa, Dona Eurides e Cícera.
Espero ter sido fiel às práticas desses grupos e ter contribuído de alguma forma com cada
uma dessas experiências.
Agradeço à Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares – ITCP/UNICAMP
pela confiança e parceria.

xvii
Ao Coletivo Universidade Popular que, junto ao Assentamento Elisabeth Teixeira,
me permitiu seguir na militância em todo o tempo do doutorado em Campinas. Agradeço
em especial à antiga geração Tessy, Ana Paula, Tira, Fabinho, Taufic, Theo, Willon, entre
outros, bem como à nova geração com a esperança e os questionamentos de quem começa
na militância.
No Elisabeth Teixeira agradeço à equipe do EJA: Mineira, Lenira, Melissa, Bruna,
Seu Élsio, Geferson, Clarice e tantos outros assentados e assentadas que trocaram muitas
aprendizagens comigo. Também agradeço ao coletivo de mulheres do Assentamento, em
especial à Rosa, Dona Cida, Dilma, Vó, Soraia, Marieta, além das já citadas acima.
Agradeço às grandes mulheres e excelentes pesquisadoras da Unicamp que me
permitiram amadurecer academicamente ao me apresentarem novos aportes teóricos e
caminhos profissionais, sobretudo às Professoras Neri Aparecida de Souza e Ângela Araújo
que estiveram na banca de qualificação deste trabalho.
Em especial agradeço à minha Orientadora, Márcia de Paula Leite. Ela me permitiu
a liberdade sem jamais deixar de acompanhar a minha trajetória e de se comprometer com a
minha formação teórica. À Márcia meus profundos agradecimentos pela parceria e por me
permitir acreditar que o ato de pesquisar pode contribuir para prover dias melhores à
população brasileira.
À banca final de doutoramento, Magda Neves, Betânia Ávila, Liliana Segnini e
Jacob Lima, a qual gentilmente contribuiu para a qualidade acadêmica desta pesquisa por
meio de reflexões que me acompanharão ao longo de minha trajetória profissional.
Ao grupo de pesquisa que me acolheu durante o doutorado sanduíche na França
(GTM/CRESPPA). Em especial à Danièle Linhart com a sua alegria; Helena Hirata pela
grandiosa generosidade e Danièle Kergoat pelos diálogos e oportunidades. Também
agradeço às amigas e amigos feitos na França: Monize, Jane, Raíssa, Mariana, Michelle,
Mari Cestari, Marcílio e Ana Cláudia.
Às amigas de Rio Claro que me fazem recordar o prazer que é estar entre velhas
amigas: Letícia, Adriana, Taninha, Paula, Garcia e Serra.

xviii
À grande amiga do coração, da alma, da vida, da academia, dos escritos e das lutas,
das já travadas e das que se seguirão: Kelci Anne Pereira, com profunda admiração e
alegria pelo compartilhar.
Às amigas e amigos do caminho de São Carlos: Renato, Marcelo, Vanessa, Sara,
Claudinha, Carol Lins e, em especial, à Graziela, que me incentivou a prestar o doutorado
na Unicamp e que me mostra como é possível ser doce e forte ao mesmo tempo, mesmo
quando nem sabemos disso.
A todos os colegas e colegas do Niase/UFSCar que fizeram parte de minha
formação: Paulo Bento, Vanessa Gabassa, Piu, Ju Franzi, Dri Marigo, Fá, Frã, Raquel e
tantas outras. Em especial à Profa. Roseli Rodrigues de Mello, mulher sábia, admirada e
que me despertou para o difícil caminho dialógico de investigar e de viver.
Às amigas e amigos conquistados em Campinas, em diferentes momentos de minha
trajetória: Camila, Anita, Marcos, Ju e Allan; Broke, Fer, Theo, Sandrinha, Chico, Tiago e
Ioli; além de Gabi Furlan, Gabi Murua, Lívia, Sidélia, Danilo, Simone, Pilar e todas as
outras pessoas queridas que cruzaram o meu caminho e me apoiaram em Campinas.
Por fim, agradeço à Faculdade de Educação da Unicamp e ao Departamento de
Ciências Sociais na Educação – DECISE.
À Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, que
viabilizou financeiramente a realização desta pesquisa no Brasil; e à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, que viabilizou minha ida para a
França.
Tudo o que vivi nesses anos de doutorado não couberam nas páginas que seguem,
mas certamente sintetizam anos de vida e luta na construção de minha trajetória acadêmica
e de mulher neste mundo. A todas e todos que passaram pela minha vida e me ensinaram
nesses anos de doutorado, meus sinceros agradecimentos e sorrisos!

xix
LISTA DE SIGLAS

ANTEAG - Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas Autogestionárias e de


Participação Acionária

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEMPRE – Compromisso Empresarial para a Reciclagem

CIISC - Comitê Interministerial de Inclusão Social dos Catadores

CMN – Casa da Mulher do Nordeste

CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique

CRESPPA – Centre de recherche sociologiques et politiques de Paris

CONAES – Conferência Nacional de Economia Solidária

CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CUT - Central Única dos Trabalhadores

EJA – Educação de Jovens e Adultos

EF – Economia Feminista

ES – Economia Solidária

FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária

FETAP - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco

GT – Grupo de Trabalho

GTM – Genre, Travail, Mobilités

IAA - Instituto do Açúcar e do Álcool

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

xxi
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INSS - Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

ITCP – Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

MNCR - Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável

ONG – Organização não governamental

OSP – Organização Social Produtiva

PAA – Programa de Aquisição de Alimentos

PNRS - Política Nacional de Resíduos Sólidos

PPA – Plano Pluri Anual

PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

PRONAREP - Programa Nacional de Investimento na Reciclagem Popular -

SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SPM – Secretaria de Políticas para as Mulheres

UBM – União Brasileira de Mulheres

UFSCar – Universidade Federal de São Carlos

UNESP – Universidade Estadual Júlio de Mesquista Filho

UNICAMP – Universidade Estadual Paulista

xxii
Introdução

Esta pesquisa se desenvolveu no âmbito das práticas coletivas, cooperativas e associativistas


de grupos sociais que se organizam em busca de geração de renda e são reunidos pela chamada
Economia Solidária (ES). Estas práticas, por sua vez, agrupam um grande número de mulheres e de
negros e negras, o que nem sempre é tratado com a relevância social e política que este fato suscita.
A Economia Solidária surge na tentativa de agrupar a reação já existente e organizada de uma
série de movimentos sociais e religiosos, bem como de sindicatos e ONGs, diante da deterioração do
emprego, acompanhada por uma grande taxa de desemprego e por uma onda de flexibilização dos
direitos trabalhistas, além do esfacelamento do setor público e de grande quantidade de
privatizações. Tal cenário é consequência da reestruturação produtiva e das políticas neoliberais que
ganharam expressividade no Brasil na década de 90 e inauguraram um momento de inovações na
organização do trabalho, incentivando a busca de alternativas para parte de alguns grupos sociais.
O cooperativismo é uma das consequências desse processo de flexibilização, em que as
empresas passaram a estimular a formação de cooperativas para se livrar dos encargos trabalhistas
dos funcionários. A Economia Solidária, por sua vez, vem marcar e iniciar um novo cooperativismo,
ao lado de outras estratégias para a geração de renda (bancos comunitários, clubes de trocas,
associações, etc.), a fim de construir alternativas advindas da organização social para lidar com o
cenário que desestruturou o mercado de trabalho. Essas alternativas, no entanto, pautam-se em
alguns princípios cunhados pela organização de trabalhadores em distintos momentos históricos,
como os de democracia, autogestão, solidariedade, gestão coletiva, entre outros que serão revistos e
aprofundados nesta pesquisa.
Cabe destacar que muitas das iniciativas nas quais a Economia Solidária se pauta já existiam
anteriormente a ela. Trata-se da organização de trabalhadores e trabalhadoras na tentativa de
recuperar fábricas em processo de falência; da experiência de movimentos sociais, como o MST, em
formar cooperativas; da tentativa de união de catadoras e catadores de materiais recicláveis após o
fechamento dos lixões; da organização de uma série de grupos de mulheres que se juntavam para
produzir e gerar renda de maneira informal; entre outras iniciativas que a ES buscou agrupar a fim
de construir uma unidade para a construção de políticas públicas. Nesse processo, alguns teóricos
elaboraram uma teoria de Economia Solidária definindo os seus princípios e propondo que essas
iniciativas se relacionam a experiências históricas de autogestão e transformação da organização
social do trabalho.
Nos anos 2000 a Economia Solidária conquistou o seu auge a partir do Fórum Mundial
1
Social e com a criação das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, inseridas nas
Universidades. Sindicatos organizados pela Central Única dos Trabalhadores - CUT, além de
diversas ONGs e grupos religiosos também começam a incentivar a formação de associações e
cooperativas e a ampliar o âmbito de ocorrência desse fenômeno.
Paralelamente, uma série de pesquisas passou a ser desenvolvidas a fim de compreender se a
ES é uma proposta de emancipação social e de autogestão, como apontavam os seus precursores
(SINGER, 2000, 2002, 2003; ARRUDA, 2003, 2005; CORAGGIO, 2000, 2003; LAVILLE, 2006),
ou se ela era uma estratégia de reprodução das desigualdades sociais e de trabalho precário que
ganharam novos contornos com a reestruturação produtiva (QUIJANO, 1998; CASTEL, 2005,
ZIBECHI, 2010). Internamente a essas duas vertentes, no entanto, existe uma série de divergências e
dissensos, assim como consensos, os quais são necessários aprofundar para melhor compreender a
que fenômeno social ela corresponde.
Atualmente a Economia Solidária foi inserida no plano de governo “Brasil Sem Miséria”.
Trata-se de uma proposta direcionada aos brasileiros e brasileiras que vivem em lares cuja renda
familiar é de até R$ 70 por pessoa, o que corresponde a cerca de 16,2 milhões de pessoas. Segundo
o site1 que o explica, o objetivo do Plano é “elevar a renda e as condições de bem-estar da população
extremamente pobre”. Para tal, o plano prevê as seguintes estratégias: a) transferência de renda, b)
acesso a serviços públicos, nas áreas de educação, saúde, assistência social, saneamento e energia
elétrica, c) inclusão produtiva.
Diante disto, conclui-se que a Economia Solidária atualmente faz parte de um programa de
governo para que os pobres brasileiros consigam sair da miséria, o que a coloca num patamar
relevante como estratégia de organização e inclusão social. Contudo, é ainda necessário questionar:
da forma como a ES vem sendo pensada e praticada, ela pode ser de fato uma alternativa de inserção
social dos excluídos? Em que medida é possível vivenciar os seus princípios? Quais são as
contribuições da ES para o avanço das políticas públicas de inclusão social?
Na tentativa de refletir sobre questões como estas, as pesquisas que estudam a ES numa
perspectiva das relações de gênero e da divisão sexual do trabalho, no âmbito da economia
feminista, vêm ganhando destaque na explicação deste fenômeno social, principalmente ao
questionarem e buscar compreender os motivos da grande quantidade de mulheres encontradas
nessas organizações, bem como o lugar que elas ocupam nas mesmas (QUINTELA, 2006; NOBRE,
2003; BUTTO, 2009; GUERRÍN, 2005; SANTOS, 2009). Tais pesquisas começaram a demonstrar

1
http://www.brasil.gov.br/sobre/cidadania/brasil-sem-miseria
2
que a necessidade de compreender a realidade social em termos de relações de gênero deveria se
estender a Economia Solidária, a fim de melhor compreendê-la e ampliar os seus potenciais.
As relações de gênero explicam as desigualdades existentes entre homens e mulheres no
mundo do trabalho como consequência de uma construção social do masculino e do feminino,
pautada em relações de poder, e não de um produto biológico (SAFFIOTI, 2004; SCOTT, 1985).
Tais desigualdades estruturam lugares sociais ocupados pelas mulheres e pelos homens no mercado
de trabalho, e, consequentemente, também nas iniciativas organizadas pela Economia Solidária, que
não está isenta da divisão sexual do trabalho.
O conceito de divisão sexual do trabalho (KERGOAT, 2012; HIRATA, 2003), por sua vez, é
composto em termos de trabalho reprodutivo, desqualificado e menos valorizado, reservado às
mulheres, e trabalho produtivo, no outro extremo, reservado aos homens. Nessa forma de divisão do
trabalho, são dois os principais elementos organizativos: o da separação – existem trabalhos de
homem e outros de mulher – e o da hierarquização – o trabalho de homem vale mais do que o de
mulher.
2
Desse modo, esta pesquisa vem questionar em que medida é possível pensar em autogestão
se as experiências de trabalho associativo/coletivo3 reproduzem a divisão sexual do trabalho. Ao
mesmo tempo, um de seus objetivos é o de compreender se essas organizações coletivas apresentam
novas possibilidades para a superação desta divisão sexual do trabalho e para a construção de uma
consciência de gênero 4, bem como quais são as estratégias criadas pelas mulheres ao se organizarem

2
O conceito de autogestão social está relacionado à proposta de que a economia tenha como ponto de partida a noção do
que é necessário produzir para a vida de uma comunidade, sem a divisão hierárquica das atividades e do trabalho, com
ênfase em uma organização política que represente todos os interesses coletivos de uma dada comunidade (FARIA,
2009). Ao longo desta pesquisa, tal conceito será aprofundado e compreendido em termos de autogestão parcial e não
social, seguindo as elaborações teóricas de Henrique de Faria (2009). Para o autor, o termo autogestão social, em seu
sentido pleno, implica refletir sobre uma nova divisão social do trabalho a partir de uma proposta histórica de
transformação socialista e social. Faria (2009) compreende que nas iniciativas de Economia Solidária não é possível
falar nesses termos, mas sim em autogestão parcial. Esta, por sua vez, ganha espaço nas próprias brechas do capitalismo
e propõe mudanças cruciais na organização do trabalho, mas não propõe a revolução socialista presente na autogestão
social. Trata-se de uma possibilidade encontrada em experiências que o autor denomina de “Organizações Sociais
Produtivas” – OSPs, apresentadas como o enfrentamento com o modo de produção capitalista, mas não a sua superação.
O termo auto-organização também será utilizado para representar a proposta de organização coletiva utilizada pelos
atores e atoras que fazem parte das iniciativas de trabalho pesquisadas.
3
Embora seja desenvolvida no âmbito da Economia Solidária, devido a sua ambiguidade e dificuldade de definição
conceitual, tal como será explorado no primeiro capítulo da pesquisa, prioriza-se o termo trabalho associativo/coletivo,
bem como Organização Social Produtiva para se referir às iniciativas de trabalho pesquisadas.
4
O termo consciência de gênero (e também de raça) será utilizado guardando semelhanças ao conceito marxista de
consciência de classe, em que os indivíduos conscientizam-se quanto ao pertencimento a uma determinada classe social
numa estrutura desigual, e, a partir disto, orientam ações coletivas. Conforme explicam Sardenberg e Costa (1994, p.
84), nem todos os movimentos de mulheres (ou de identidade racial) necessariamente refletem sobre o papel estrutural
das mulheres (e dos negros) na sociedade. Ou seja, embora haja um condição estrutural de gênero que une as mulheres,
o “reconhecimento e questionamento de sua situação na sociedade” não acontece de forma automática.
3
nas mesmas. Além disso, a pesquisa tenta compreender se existe uma relação entre a precariedade
das condições de trabalho de algumas experiências e a predominância da força de trabalho feminina.
No caso do Brasil, os motivos que confluíram para a inserção das mulheres nas iniciativas de
trabalho associativo/coletivo foram, principalmente, as altas taxas de desemprego entre elas nos anos
90 e início dos 2000, ao lado do movimento de incentivo à criação de cooperativas nestes anos. A
isso se soma o fato de ser um campo de trabalho que não exige altas categorias de formação
profissional, atraindo uma gama de mulheres desempregadas, principalmente aquelas com mais de
40 anos e de baixa escolaridade. Uma série de ONGs e outras organizações feministas passaram a se
vincular à ES entendendo-a como possibilidade de um campo de trabalho para as mulheres.
A fim de aprofundar nesse debate, alguns grupos feministas começaram a participar
ativamente das instancias de organização da Economia Solidária. Trata-se de grupos que buscavam
estratégias para a conquista de autonomia financeira para mulheres e viram nas propostas de ES
algumas possibilidades. Contudo, ao participar desses espaços, as feministas se indagavam: onde
estão as mulheres nesta ES? Porque elas não aparecem com a mesma relevância nos debates
prioritários da mesma?
Junto às questões de gênero questionadas por estes movimentos, estavam as questões raciais,
que os estudos de ES acabam não priorizando em suas análises. Como indaga Giaccirino (2006, p.
8) na única pesquisa encontrada sobre o tema, “Qual a cor dos participantes da Economia Solidária?
Porque esta ausência recorrente da população negra seja na academia, seja nas esferas de governo?
Será que estas práticas de ES podem mudar o contexto de exclusão social destes grupos?”
Segundo Giaccirino (ibid., p. 8), o reconhecimento da diversidade racial na Economia
Solidária restringe-se a cartas de intenções e não foram encontrados estudos acadêmicos para
aprofundar “a composição étnico-racial dos empreendimentos econômicos solidários ou construir
uma agenda conjunta de pesquisa entre as temáticas relativas à Economia Solidária e às
desigualdades raciais”.
Dessa forma, os conceitos de raça e de divisão racial do trabalho também se tornaram
fundamentais para a compreensão mais ampla do fenômeno social estudado. Tais conceitos foram
aprofundados a partir de autores que se dedicam a pensar a construção social da ideia da raça a partir
5
da colonização do Brasil e da América Latina como um todo (QUIJANO, 2005; MUNANGA,

5
Para a compreensão do conceito de raça, parte-se da compreensão de que quando os europeus chegaram às Américas,
criaram uma ideia de dualidade “colonizados/colonizadores” cuja superioridade ou inferioridade era explicada de acordo
com características biológicas inatas, pertencentes a distintas raças humanas. Dessa forma, a raça branca, européia,
definida pela cor da pele branca, foi compreendida como superior a raça negra, não-européia e de cor não-branca
4
2004, CARNEIRO, 1985), até a compreensão de como se deu a inserção da população negra no
mercado de trabalho (IANNI, 1972; GUIMARÃES, 2001, FERNANDES, 1978); chegando aos
contornos da divisão racial do trabalho a partir da reestruturação produtiva na atualidade
(HASENBALG, VALLE SILVA, 1999; CASTRO E BARRETO, 1998).
Importante destacar que as categorias de gênero e raça muitas vezes não são consideradas
com a mesma relevância social que a categoria classe social, não somente nas pesquisas em torno do
trabalho associativo/coletivo. Nos eventos de ES e nas políticas públicas em torno do tema, tais
categorias também não apresentam a mesma importância. Assim, esta pesquisa vem mostrar a
relevância de compreender que a realidade não é estruturada somente em termos de classe, mas
também em termos de raça e gênero, ou seja, em termos consubstanciais.
Trata-se de compreender as relações sociais que estruturam a sociedade por meio da
coextensividade das categorias de dominação que lhes configuram, a saber, classe, raça e gênero,
por meio do conceito de consubstantialité, elaborado por Danièle Kergoat (2010, 2012). Nesta tese o
conceito foi traduzido como consubstancialidade e compôs o referencial teórico-metodológico que
orientou as análises elaboradas.
A consubstancialidade pode ser sintetizada pelo nó existente entre classe, raça e gênero, na
tentativa de afirmar que as relações sociais não são compostas apenas pela classe, pela raça ou pelo
gênero. Pelo contrário, essas três categorias se relacionam mutuamente na estrutura social e
imprimem conteúdos concretos às relações sociais. Em outras palavras, uma mulher não é somente
uma mulher. Ela é uma mulher branca e rica, ou branca e pobre, ou negra e rica, ou negra e pobre e,
dependendo da forma como essas categorias se relacionam, a sua experiência social se dará de
maneira diferente numa estrutura societária machista, classista e racista. Na consubstancialidade, o
gênero, ou a classe ou a raça não são somente unificadores, visto que nenhuma relação social vem
primeira ou é secundária.
Segundo Kergoat (2012), a melhor metáfora para explicar a consubstancialidade é a da
espiral, pois não se trata de uma relação circular. Para a autora, relacionar essas três categorias de
análise que compõem as relações sociais, não significa “fazer uma volta em todas as relações
sociais, uma a uma”, mas analisar as “intersecções e interpenetrações que formam esse nó no seio de
uma individualidade ou de um grupo" (KERGOAT, 2012, p.120).

(QUIJANO, 2005). A pesquisa utilizará o conceito de raça a fim de reforçar a presença do racismo em nossa sociedade,
o qual não se trata apenas de cor da pele, mas de todo um contexto social que aloca negros em negras em posições
inferiores na sociedade, numa relação de poder e dominação de superioridade da raça branca, definida pela cor da pele
clara e traços fenotípicos relacionados aos europeus (nariz fino, cabelo liso, etc.) (MUNANGA, 2004).
5
Um episódio que vivi em um dos projetos de extensão de que faço parte também contribui
para esta compreesão. Ao discutir sobre caminhos a serem construídos para uma sociedade mais
justa, uma estudante em sala de alfabetização de adultos me perguntou o que era o socialismo.
Retornei a questão aos estudantes e iniciamos um debate em torno do assunto.
Ao longo de nossos diálogos, destaco três reflexões: uma das estudantes concluiu que o
socialismo só seria alcançado quando todas as pessoas do mundo tivessem o que comer e onde
trabalhar. Outra disse que o caminho de uma sociedade mais justa não seria alcançado apenas
quando acabasse a fome, mas também quando as mulheres não sofressem mais de violência dos
maridos. Nessa direção, outra estudante salientou que, numa sociedade socialista, ela não mais veria
o seu filho negro sendo abordado pela polícia quase todos os dias ao voltar da escola.
Em síntese, cada pessoa compreendeu de modo diferenciado o que poderia ser uma
sociedade mais justa, a partir de suas experiências cotidianas, desejos de mudança e a partir do
cruzamento das relações sociais de dominação em suas vidas. Contudo, observa-se que houve uma
noção de classe, outra de gênero e ainda de raça que indicaram para aquele grupo que uma sociedade
mais justa não poderia ser composta com a exclusão de nenhuma dessas relações sociais.
Dessa forma, esta pesquisa, compreendendo que as relações sociais se dão em termos
consubstanciais, buscou compreender o trabalho associativo e coletivo também de forma
consubstancial. Ou seja, buscou compreender as intersecções entre a classe, a raça e o gênero
existente nas diferentes iniciativas de trabalho coletivo/associativo pesquisadas.
Cabe destacar que o meu envolvimento com esta temática não corresponde a um trabalho
que se iniciou no doutorado, no curso de 2010, mas faz parte de um projeto que veio se
desenvolvendo ao longo de minha formação acadêmica e política.

O caminhar da pesquisa, a pesquisadora e a tese


Iniciei primeiramente minha militância na Economia Solidária durante a graduação, entre os
anos de 2001 e 2005, no curso de comunicação social, na Unesp/Bauru. Naquele momento
vivenciávamos o auge da Economia Solidária com a formação das Incubadoras de Cooperativas
Populares, campo de ação do qual passei a fazer parte. O tema da ES foi se tornando também objeto
de estudo, na medida em que a minha prática demandava tal necessidade. Dessa forma, desenvolvi o
trabalho de conclusão de curso intitulado “Comunicação Popular e Economia Solidária na
Construção do Sujeito Histórico: da fragmentação à totalidade”.
Após a graduação passei a fazer parte da Incubadora de Cooperativas da UFSCar (INCOOP

6
UFSCar) e a ampliar minha formação acadêmica e de militante em torno da Economia Solidária. Já
naquele momento duas principais questões foram se tornando relevantes: a) a dificuldade e as
contradições que afloravam da tentativa de vivenciar os princípios da ES na prática; b) a quantidade
de mulheres nos grupos associativos e a repetição das atividades por elas desenvolvidas (artesanato,
culinária, etc.).
Naquele momento, comecei a aprofundar a discussão em torno das relações de gênero.
Assim, este conceito foi aos poucos se revelando em minha trajetória de pesquisa e me ajudando a
compreender analiticamente alguns desafios observados nos grupos de Economia Solidária.
Comecei, então, a trabalhar com um grupo de mulheres marceneiras, onde pude aprofundar
essas questões e elaborar o mestrado em educação na Universidade Federal de São Carlos -
UFSCar6. A pesquisa foi desenvolvida com um grupo de mulheres do Assentamento Pirituba II –
Itapeva/SP, as quais participaram de um projeto de habitação social e aprenderam o ofício de
marcenaria. O projeto consistia na construção em etapas de mutirão. Parte do grupo dos assentados
trabalhava no canteiro de obras e a outra parte na marcenaria, desenvolvendo o sistema de cobertura,
portas e janelas em madeira das habitações.
Contrariando a história masculina deste ofício, a marcenaria foi assumida por um grupo de
mulheres que continuaram o projeto tentando trabalhar seguindo os ideais da Economia Solidária em
uma marcenaria coletiva. Uma das principais questões ao finalizar o mestrado referia-se às
contradições entre as teorias e as práticas possíveis na construção de um projeto com orientações
para a autogestão, em contraposição a uma série de aprendizados conquistados que esta mesma
orientação proporcionava.
A pesquisa apontou a necessidade de maior aproximação entre as políticas de Economia
Solidária com as relações de gênero, na medida em que mesmo diante de uma proposta de divisão
igualitária de tarefas, buscando superar a dicotomia entre trabalho manual e intelectual, manteve-se
a divisão sexual do trabalho nas atividades desenvolvidas 7. Também apontou os esforços das
marceneiras para serem reconhecidas como capazes e donas da marcenaria, já que em geral as
pessoas sempre se remetiam ao dono da mesma: “onde está o dono daqui?”. Essa era uma questão
constante ao chegarem à marcenaria e se depararem com as mulheres trabalhando.
Observou-se ainda, a necessidade de escolarização e formação técnica das trabalhadoras,

6
Neste momento e durante todo o mestrado fiz parte do Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa
NIASE/UFSCAR, no qual também aprofundei minha ação e pesquisas com grupos de mulheres a partir da perspectiva
dialógica de compreensão do feminismo e da metodologia comunicativa crítica de pesquisa.
7
Embora tenha sido assumida por quatro mulheres, com a ampliação das atividades desenvolvidas, a Marcenaria
incorporou o trabalho de dois jovens e de um marceneiro que desempenhou o papel de instrutor no grupo.
7
advindas de uma história de desigualdades, em que foram impedidas de estudar e de se qualificarem
para o trabalho, no âmbito do espaço público. Foram identificados alguns obstáculos no cotidiano do
trabalho e na incubação pela ausência de escolaridade e qualificação necessária à compreensão de
algumas etapas do processo produtivo de uma marcenaria coletiva.
Dessa forma, a pesquisa de mestrado por mim desenvolvida suscitou outras questões a serem
enfrentadas, trazendo-me, no ano de 2010, ao doutorado com o objetivo inicial de compreender
melhor a questão da qualificação e formação de trabalhadores e trabalhadoras na ES.
Paralelamente, e diante dessa demanda, comecei a direcionar minha militância para as
iniciativas que relacionavam à qualificação de trabalhadores/as, por meio da Educação de Jovens e
Adultos (EJA), à Economia Solidária. Iniciei um projeto de extensão junto ao Coletivo
“Universidade Popular”, da Unicamp e à ITCP UNICAMP, na Cooperativa de Triagem de Resíduos
Sólidos “Bom Sucesso” (Campinas/SP) e no Assentamento Elisabeth Teixeira (Limeira/SP).
Já no âmbito da pesquisa, passei a compreender com maior profundidade o conceito de
Qualificação como construção social, o qual se relaciona diretamente às questões de gênero e raça.
Essa relação se dá em termos de divisão sexual e racial do trabalho, em que as ocupações e
atividades de homens e de mulheres, brancas/os e negras/os acabam sendo definidas segundo
critérios do trabalho produtivo ou reprodutivo atrelado a cada sexo, ou em torno de espaços sociais
que ocupam brancos e negros, o que se refletia nas iniciativas de trabalho associativo agrupados pela
Economia Solidária. Nessa direção, o trabalho da mulher ou da população negra acaba sendo aquele
classificado como desqualificado em relação ao trabalho qualificado desenvolvido pelos homens e
pela população branca.
No caso das mulheres que participavam dos grupos de ES que eu acompanhava, a maior
parte negras, observei que eram altamente qualificadas para algumas atividades, mesmo sem terem
passado pela escola e pelas vias formais do conhecimento, porém, o trabalho delas não era
valorizado e considerado qualificado por essas características compreendidas como naturais. Elas
apresentavam, por exemplo, características como polivalência, destreza e capacidade de
comunicação e organização das necessidades das comunidades em que moravam, além de serem
altamente qualificadas para o trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidado, o que não era
contabilizado e valorizado na cooperativa formada.
Dessa forma, esta pesquisa também apresenta uma preocupação em compreender as
trajetórias de qualificação dos homens e mulheres participantes dos espaços de trabalho pesquisados,
bem como a ampliação de suas qualificações no cotidiano do trabalho coletivo.

8
Ao longo de minha trajetória no doutorado tive ainda a oportunidade de realizar um
doutorado sanduíche na França, por meio do projeto de pesquisa intitulado “Relações de Trabalho
em Cooperativas: análise da Formação e Qualificação de homens e mulheres em empreendimentos
solidários”, no âmbito do acordo CAPES-COFECUB.
O estágio de doutoramento foi realizado no período de julho de 2012 a agosto de 2013, no
laboratório de pesquisa CRESPPA/GTM – Genre, Travail, Mobilités (CNRS - Université Paris 10 e
Paris 8), sob a orientação da Professora Dra. Danièle Linhart, com apoio das Professoras Dras.
Helena Hirata e Danièle Kergoat.
Dentre todas as atividades realizadas nesse período (participação em seminários, congressos,
aulas do mestrado e doutorado como ouvinte, etc.), faz-se necessário ressaltar a oportunidade de
debater a pesquisa em distintos contextos e com diferentes pesquisadoras e pesquisadores franceses.
Destaca-se nesse percurso a minha participação no seminário intitulado Comment penser le
travail au croisement des catégories?8, organizado pelo grupo de estudos coordenado por Danièle
Kergoat no CRESPA/GTM. O seminário foi composto por seis diferentes seções, com distintas
pesquisadoras, as quais discutiram o cruzamento das categorias de dominação que configuram as
relações sociais, a saber, classe, raça e gênero, por meio do conceito de consubstantialité, onde pude
aprofundá-lo.
Nesse seminário, apresentei o texto intitulado Rapports sociaux de genre et de classe dans les
9
expériences de travail collectif au Brésil, no qual comecei a articular as diferentes categorias de
classe, raça e gênero nas análises dos meus dados, bem como relacioná-las ao conceito de
qualificação. Foi a partir dessa análise que ampliei minhas indagações em torno do conceito de raça
relacionado à Economia Solidária e observei a ausência de pesquisas nessa direção.
Dessa forma, o doutorado sanduíche me proporcionou novas provocações teóricas que me
levaram ao desafio de construir uma investigação que contribuísse para pensar a sociedade e o
campo teórico a partir dos diferentes tipos de relações de dominação que configuram a sociedade, o
que significa colocar as relações sociais em cheque a partir da imbricação entre as formas de
dominação de classe, raça e gênero. Foi a partir desta trajetória, durante o doutorado, que esta
pesquisa se configurou e foi ampliada, ganhando as proporções aqui apresentadas 10.

8
Como pensar o trabalho pelo cruzamento das categorias? (categorias de classe, raça e gênero).
9
Relações Sociais de gênero e de classe em experiências de trabalho coletivo no Brasil.
10
Cabe destacar que ao longo desta minha trajetória como pesquisadora, a Economia Solidária propriamente dita deixou
de ser o foco principal da pesquisa. Ela continua sendo o campo em que a investigação se desenvolveu, bem como um
campo importante de militância e luta política. Contudo, minha trajetória acadêmica voltou-se para a compreensão das
relações de classe, raça e gênero no mundo do trabalho associativista e cooperativista, o que será o foco desta tese.
9
Nesse contexto, esta pesquisa pauta-se na tese de que os projetos associativos e de trabalho
coletivo, agrupados pelas políticas de Economia Solidária, apresentam a prioridade de
enfrentamento das relações de classe, focados, sobretudo, no desemprego, oportunidades de geração
de renda e superação da fome e miséria de parte da população brasileira. Contudo, não prioriza as
questões de gênero e raça com a mesma relevância, não considerando, portanto, a coextensividade
dessas relações sociais como estruturantes da sociedade, tanto como a classe. Dessa forma, esta tese
buscará responder como as iniciativas estudadas, em diferentes setores da Economia Solidária,
incorporam a coextensividade das questões de classe, raça e gênero que estruturam a sociedade, em
suas iniciativas, propostas e políticas.
Nessa direção, o objetivo geral da pesquisa é o de compreender e analisar os avanços e
limites de três Organizações Produtivas de Trabalho Associativo/coletivo a partir do cruzamento das
categorias de classe, gênero e raça presentes nas iniciativas pesquisadas e nas trajetórias de
Qualificação de homens e mulheres, brancas/os e negras/os, participantes dessas Organizações.
Já os objetivos específicos, sintetizam-se em: a) Identificar e compreender os aspectos da
coextensividade das categorias de classe, gênero e raça presentes nas organizações de trabalho
associativo pesquisadas; b) Analisar e refletir sobre quais trabalhos as mulheres brancas e negras
realizam e quais lugares elas ocupam nas organizações de trabalho pesquisadas, a partir das
qualificações que lhes foram reservadas e que são vinculadas ao trabalho produtivo e reprodutivo e à
trajetória de trabalho delas; c) Da mesma forma, analisar e refletir qual é o lugar que os homens
brancos e negros ocupam também a partir de suas trajetórias de trabalho produtivo e qualificação; d)
Identificar as diferentes possibilidades de qualificação de homens e mulheres presentes nos trabalhos
das Organizações Sociais Produtivas pesquisadas, com ênfase para a qualificação técnica específica
a cada empreendimento, qualificação para a gestão do trabalho cooperativo e solidário, bem como,
qualificação para a participação política e militante; e) Identificar quais são os limites/contradições e
os avanços/contribuições que as organizações pesquisadas podem conferir à divisão social, sexual e
racial do trabalho e às outras experiências de trabalho coletivo/associativo.
Para elucidar esta tese e responder a esses objetivos, esta investigação foi elaborada a partir
de um caminho metodológico que será descrito nas linhas que seguem.

Metodologia e percurso da pesquisa

Esta investigação foi elaborada seguindo Metodologia Qualitativa coerente com o


desenvolvimento de pesquisas realizadas no âmbito de movimentos sociais, priorizando o diálogo
10
com as pessoas participantes sobre o tema investigado, além de permitir o meu comprometimento
com os grupos e comunidades pesquisadas. Trata-se da proposta de escrever sobre práticas
realizadas em diferentes movimentos sociais, nas quais me insiro, com o compromisso de realizar
uma análise dessa prática (SARDENBERG; COSTA, 1994).
Cabe destacar que eu não realizo um trabalho militante diretamente nos grupos pesquisados,
mas esta investigação faz parte de inquietações que a prática junto a iniciativas de trabalho
associativo/coletivo me despertaram durante minha trajetória de extensão em projetos neste campo
teórico e de ação.
Conforme descreve Bezerra (2006, p.1), muitas das questões a serem estudadas no campo da
Economia Solidária começaram a se revelar a partir das experiências econômicas vivenciadas. Aos
pesquisadores do tema, apresentou-se o desafio de “uma contribuição educativa a esse campo de
intervenção social”. Deste modo, como intelectual militante, apresento a preocupação de que a
pesquisa possa contribuir praticamente com as iniciativas que se lançam ao desafio de organizar o
trabalho de forma coletiva e associativa, numa relação em que a prática observada e vivenciada
indica questões para a pesquisa, e a pesquisa revela contradições e novos caminhos para a prática.
Tal relação tenta ainda ser coerente com os pilares que orientam as Universidades Públicas, a saber:
ensino, pesquisa e extensão, mesmo podendo afirmar que a extensão não apresenta a mesma
relevância para a Universidade, quando comparada aos outros pilares.
Tendo em vista estas orientações, o caminho metodológico percorrido envolveu a adoção de
procedimentos qualitativos, os quais abarcaram: a) aprofundamento do marco teórico sobre os temas
e setores pesquisados no âmbito nacional e internacional; b) pesquisa de campo, envolvendo
observação participante e elaboração de diário de campo; c) entrevistas em profundidade com
trabalhadoras e trabalhadores das organizações coletivas e associativas pesquisadas; d) retorno dos
resultados da pesquisa para a Incubadora, agências de fomento e lideranças que trabalham nos
grupos pesquisados.
Seguindo este percurso metodológico, três iniciativas foram pesquisadas, as quais definiram-
se a partir dos seguintes critérios: a) iniciativas que possibilitassem maior visibilidade da divisão
sexual e racial do trabalho, o que foi possível pelos setores em que elas se inserem; b) iniciativas que
fossem consolidadas e que tivessem mais de dois anos de experiência; c) que buscam seguir os
princípios do trabalho coletivo/associativo explicitados nas teorias de Economia Solidária; d) que se
preocupassem com a qualificação de seus trabalhadores, seja pela educação de adultos ou pela
realização de cursos técnicos e formação política proporcionadas por diferentes agências de

11
fomento; ou ainda pelo estímulo à capacidade de ação 11 dos membros das iniciativas pesquisadas; e)
iniciativas desenvolvidas no Estado de São Paulo, onde resido e tenho maior acesso às mesmas, mas
também selecionei duas iniciativas em Pernambuco, tentando ampliar a pesquisa para além da
realidade privilegiada do Sudeste do país.
Assim, defini as três Organizações Sociais Produtivas descritas abaixo:

1) Empresa Recuperada Catende-Harmonia – Recife/ Pernambuco (Trata-se de uma


cooperativa do setor sucro-alcooleiro, predominantemente masculino. Poucas pesquisas tratam da
divisão sexual ou racial do trabalho nas empresas recuperadas. A maior parte desenvolve pesquisas
quantitativas que descrevem a existência de poucas mulheres no setor).
2) Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana – Recife/Pernambuco
(A Rede é composta por mulheres, negras em sua maioria, trabalhadoras urbanas, que desenvolvem
atividades predominantemente femininas, como de artesanato. Essa Rede é assessorada pela ONG
Casa da Mulher do Nordeste, responsável pela formação dos grupos das mulheres que a compõe).
3) Cooperativa de Resíduos Sólidos Bom Sucesso – Campinas/São Paulo. (Cooperativa
mista, cujo setor vem observando uma tendência de feminização. É um dos setores mais organizados
devido ao Movimento Nacional de Catadores de Reciclagem – MNCR, mas ao mesmo tempo é um
dos mais precários pelas condições de trabalho. É um setor composto por uma significativa parcela
de trabalhadoras/es negras/os. A Bom Sucesso é acompanhada pela Incubadora de Cooperativas
Populares ITCP/UNICAMP).
Cabe destacar que a escolha de trabalhar com três experiências inseridas em setores
diferentes refere-se ao objetivo principal desta tese em compreender a consubstancialidade das
relações sociais no trabalho coletivo/associativo de uma forma ampla e não apenas em uma única
experiência. Dessa forma, optou-se pela escolha de Organizações Produtivas que compõem setores
que se destacam quantitativa e qualitativamente no âmbito da denominada Economia Solidária. Tal
desafio, no entanto, levou-me a compor este trabalho de modo a compreender a especificidade de

11
Segundo Zimmermann (2011), o termo capacidade de agir é utilizado em contraposição ao de empowerment,
traduzido como empoderamento no Brasil. Este último surgiu nos EUA e ganhou certa notoriedade nos movimentos
feministas na década de 1990. Tal noção se tornou forte pela luta de autonomia das mulheres. A ideia era a de empoderar
para dar poder aos oprimidos. Tratava-se de uma visão ideológica de luta contra as desigualdades que fazia sentido no
âmbito dos movimentos de mulheres negras dos EUA. Porém, nos anos 2000 o Banco Mundial se apropriou do conceito
e retirou do mesmo a noção de coletivo, transmitindo a ideia de que as instituições (Estado e empresas privadas) devem
dar o poder e a capacidade de as pessoas refletirem. Assim a responsabilidade de “dar o poder” passou para as
instituições que influenciam as políticas. Nesse contexto, Zimmermann (2011) defende que o termo virou um lobbing de
grupos de interesse. Dessa forma, a autora adotou o termo capacidade de agir representando a capacidade de ação e
reflexão das pessoas e o sentido que a noção de empoderamento havia construído quando surgiu.
12
cada experiência de maneira separada analiticamente.
Essa opção, por sua vez, permitiu-me compreender grandes temas em torno da
consubstancialidade das relações sociais que só foram possíveis diante da análise de cada iniciativa
com as suas particularidades, tendo em vista que cada uma delas representa: a) um setor reconhecido
nas experiências de trabalho coletivo/associativo, predominantemente masculino e com marcada
divisão social e racial do trabalho; b) um setor predominantemente feminino e com grande
participação na construção da própria Economia Solidária; c) um setor misto, com um movimento
social organizado, mas que a precariedade do trabalho indica uma relação estrita com a grande
participação de mulheres, sobretudo negras.
Diante desta exposição, esta pesquisa foi composta em cinco capítulos.

A composição da tese
O primeiro capítulo apresenta o que estou denominando como “pano de fundo da tese”, ou
seja, o contexto e fenômeno social que a sustenta, a Economia Solidária. O tema foi abordado a
partir de uma concepção histórica e considerando a sua diversidade prática e teórica, capaz de
elucidar a sua evolução e contradições ao longo do tempo. O capítulo dividiu-se em quatro fases
consideradas como diferentes momentos do percurso da ES no país.
O segundo capítulo apresenta um capítulo teórico-metodológico, em que descrevi o
conceito de consubstancialidade, referente à compreensão da coextensividade das categorias de
classe, raça e gênero que juntas estruturam a sociedade. Nessa direção, foram abordados
teoricamente os conceitos de classe, raça e gênero e de divisão sexual e racial do trabalho na
atualidade. Por fim, elaborei uma classificação analítica capaz de caracterizar e indicar os grupos de
homens e mulheres, brancas/os e negras/as presentes nas inciativas pesquisadas. Tal classificação me
ajudou a ilustrar a construção dos sujeitos sociais ao ocuparem novos espaços políticos a partir de
suas vivências nos grupos pesquisados.
Depois de descritas as compreensões necessárias para maior entendimento desta tese, o
terceiro capítulo buscou analisar a consubstancialidade das relações sociais numa iniciativa
predominantemente masculina, por meio da experiência do projeto coletivo e desafiador da Fábrica
Recuperada Catende Harmonia. Neste capítulo, destacou-se a discussão da formação de uma
sociedade escravocrata e patriarcal conferindo especificidades à experiência analisada. Foi revelado
ainda o lugar que a mulher e o negro ocuparam nessa história e como esses lugares foram se
ampliando a partir do trabalho coletivo vivenciado. Trata-se de um capítulo em que foram abordadas

13
as contribuições e os desafios da Usina Recuperada Catende-Harmonia para o desenvolvimento de
ações coletivas e associativas no Brasil, em meio à resistência e luta de classes entre grupos de poder
e trabalhadores na região da Zona da Mata.
Já o quarto capítulo, foi composto com destaque para a amplitude das temáticas de gênero,
sobretudo, mas também de raça, na Economia Solidária a partir da descrição das experiências da
Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana. A experiência da Rede, assessorada
pela Casa da Mulher do Nordeste, elucidou o significado da ampliação da qualificação técnica e
política das mulheres na busca de superação da divisão social, sexual e racial do trabalho, tanto nos
âmbitos de suas Organizações Sociais Produtivas, como também em suas relações familiares e nos
diferentes movimentos sociais do qual fazem parte. Tal tentativa apresenta uma série de limites e
contradições específicas do trabalho realizado por mulheres de baixa renda, sobretudo negras,
inseridas em comunidades pobres, como também os avanços importantes conquistados por elas de
modo coletivo.
O quinto capítulo, por sua vez, preocupou-se em analisar uma possível relação entre a
precariedade de algumas iniciativas de trabalho coletivo/associativo e a feminização e a racialização
das mesmas, por meio da experiência da Cooperativa de Triagem de Resíduos Sólidos “Bom
Sucesso”. Tal cooperativa iniciou-se mista e atualmente é formada por cerca de 14 trabalhadoras e
apenas 2 trabalhadores, a maior parte negras/os. O capítulo também buscou identificar os aspectos
quantitativos e qualitativos desta feminização, além das especificidades das questões raciais e da
divisão racial do trabalho na cooperativa pesquisada, bem como da luta de classes entre catadores e
grupos de poder que mantém o domínio da cadeia da reciclagem no país. Foi analisada a
precariedade e os desafios do setor, os quais refletem diretamente no lugar que as cooperativas
ocupam na cadeia produtiva da reciclagem, ficando, na maior parte das vezes, a mercê de empresas
privadas, atravessadores e prefeituras. De outro lado, foi identificado uma série de avanços
conquistados no setor, consequência da resistência de trabalhadoras/es organizadas/es coletivamente
pelo Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável – MNCR.
Ao final desses capítulos foram elaboradas as Considerações Finais, que relacionam todas
essas experiências e fazem uma síntese sobre a consubstancialidade no trabalho coletivo/associativo,
resgatando o potencial analítico desta tese ao relacionar as diferentes organizações pesquisadas.

14
Capítulo 1 – O pano de fundo da tese: A Economia Solidária e sua trajetória

Para falar de Economia Solidária (ES), optou-se neste capítulo por recorrer ao seu histórico e
à sua diversidade prática e teórica, visto que é uma tarefa bastante complicada tentar caracterizá-la
diante da imensidade de interpretações, possibilidades e usos práticos que ela abarca.
Para tal, assume-se como referência a tese de doutorado de Lechat (2004). A autora realizou
um estudo que identificou os diferentes momentos da ES a partir de seus principais eventos. Assim,
ela definiu três principais fases da Economia Solidária.
Contudo, buscou-se avançar nestes estudos a partir da relação dos acontecimentos de cada
uma dessas fases com os principais pensadores teóricos da Economia Solidária, tentando mostrar
como eles influenciaram cada uma dessas etapas. Será incluída ainda uma nova fase, com destaque
para as pesquisas críticas contemporâneas da ES, principalmente por meio da perspectiva dos
estudos de gênero e raça que apresentaram novas questões e problemáticas para este campo teórico e
de ação.
A primeira fase abordada se inicia no final da década de 1980 e vai até início de 1995. Ela é
marcada pela formação de empresas de autogestão, cooperativas e associações diante de um
contexto neoliberal de reestruturação produtiva. Destacam-se nessa fase os estudos de Paul Singer
(2000, 2002, 2003) na tentativa de elaborar uma teoria da ES com ênfase no conceito de autogestão
social e das experiências históricas que influenciaram a sua compreensão e proposta de ES.
Na segunda fase, que vai de meados de 1995 até o ano de 2001, destaca-se a ampliação das
iniciativas de Economia Solidária pela difusão das Incubadoras Universitárias e públicas e pela
organização de uma série de eventos sobre o tema. Do ponto de vista teórico, esta fase constituiu o
campo da pesquisa em ES com grande quantidade de investigações empíricas. De um lado,
destacam-se autores como Gaiger (2000, 2004, 2007) e Coraggio (2000, 2003), e de outro se iniciam
as primeiras críticas à ES, com autores como Castel (2005) e Quijano (1998).
Já a terceira fase iniciou-se mais precisamente no ano de 2001, a partir do I Fórum Social
Mundial. Nesse período de efervescência, destacam-se os principais eventos como as plenárias e
conferências de ES, até o lançamento da Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES.
Também serão descritas diferentes abordagens que tratam sobre os limites e avanços da
institucionalização da ES.
Por fim, a quarta fase não representa um período específico datado, ela é marcada por autoras
e autores contemporâneos (FARIA, 2009; GEORGES, LEITE, 2012; ZIBECHI, 2010) que vêm
questionando o conceito de autogestão e analisando criticamente o que a ES vem conseguindo
15
construir. Destaca-se a intensificação da relação da ES com outros movimentos sociais, sobretudo
com os de raça e gênero que passaram a questionar a invisibilidade e o lugar das mulheres e da
população negra na ES. Dessa forma será possível compor uma compreensão em torno do campo de
estudo que esta tese se insere.

1.1. FASE 1 – O início das experiências práticas de Economia Solidária e do seu campo teórico

Segundo Lechat (2004, p.27), para se tornar uma problemática relevante no país, a Economia
Solidária teve que aparecer como um setor próprio e “digno de interesse específico”, bem como
precisou ser nomeada e construída como um objeto de pesquisa.
Os estudos da autora (ibid.) apontam que as iniciativas da Economia Solidária ficaram
conhecidas no Brasil antes que suas categorias fossem estudadas na Europa. Ao buscar as primeiras
referências nas publicações brasileiras e latino-americanas, a autora encontrou a Revista “Estudos
Avançados”, que publicou o Programa Nacional de Solidariedade no México no ano de 1992.
Também encontrou o livro organizado por Moacir Gadotti com o texto do sociólogo chileno Luís
Razetto sobre o tema, no ano de 1993. Com essa mesma data, localizou ainda textos que faziam
referencias às Cooperativas Agrícolas Brasileiras organizadas em parceria com a Confederação
latino-americana de cooperativas e mutuais de trabalhadores – COLACOR, com sede em Bogotá –
Colômbia. Lechat (2004) também identificou o termo Economia Solidária como título do projeto de
uma cooperativa do Rio Grande do Sul, datando de 1993.
Contudo, as primeiras referências da ES resultam de movimentos de trabalhadores e
trabalhadoras, junto a Sindicatos e apoiadores, que começaram a reagir ao desemprego em massa
diante do fechamento de muitas empresas, bem como diante de uma série de mudanças na
organização do trabalho no início dos anos de 1990.
As alterações no mundo do trabalho em nível mundial advêm de uma série de mudanças na
12
organização do trabalho iniciadas já no fordismo-taylorismo , mas que atingiram sua amplitude a
partir da reestruturação produtiva, impulsionada pelas políticas neoliberais e pelos processos de
13
globalização que se seguiram à crise do pacto fordista . Também são reflexos do desenvolvimento

12
O Fordismo foi idealizado nos Estados Unidos, no pós-Segunda Guerra Mundial. Pautado nas técnicas e nos
processos de padronização da produção de Frederick Taylor, Ford aperfeiçoou a sua linha de montagem por meio de
máquinas e grandes instalações que pouco exigia em qualificação dos trabalhadores, obtendo automóveis mais simples e
acessíveis. A ideia principal era maior produção em menor tempo, por meio da racionalização da divisão do trabalho e
das novas tecnologias. Para Harvey (1999), a produção de massa do fordismo também significava consumo de massa,
por isso deve ser visto como um modo de vida total e não apenas como um sistema de produção.
13
Por “pacto fordista” compreende-se, segundo Castel (2005, p. 431-433), uma associação entre três diferentes atores: 1)
16
da microeletrônica e das tecnologias da informação que se expandiram na década de 1980.
Em meados da década de 1970 houve uma saturação do mercado interno dos países centrais,
com baixa na produtividade e lucratividade, aceleração da inflação e competição internacional. Em
consequência, este foi o período de enfraquecimento e crise do fordismo. A partir disto revela-se
uma fase denominada de fim do “pleno emprego” em que grande quantidade de pessoas ficou sem
trabalho. Paralelamente iniciou-se um processo de diminuição e/ou perda dos direitos trabalhistas
por parte dos trabalhadores assalariados com contrato de trabalho.
14
Assim, estavam dados os elementos para a reestruturação produtiva e acumulação flexível
do capital, marcando o novo cenário do mercado de trabalho. Trata-se de um processo de
reorganização do capital e de seu sistema político e ideológico de dominação, os quais
implementaram novos mecanismos, tais como, a exigência de um trabalhador polivalente,
participativo, qualificado e flexível; um trabalhador moderno e diferente do trabalhador assalariado
do fordismo (CASTEL, 2005; HIRATA, 2001-2002; LEITE, 2009-b).
Cabe destacar a situação do trabalho de alguns grupos específicos nesse contexto, em
especial o das mulheres, visto que o cenário de precariedade trouxe uma situação contraditória para
o trabalho delas. Segundo Hirata (2001-2002), de um lado, a intensificação da concorrência
internacional teve por consequência um aumento do emprego e do trabalho remunerado das
mulheres ao nível mundial, com a exceção apenas da África subsaariana. Por outro lado, essa
participação se traduz principalmente em empregos precários, mal remunerados e destituídos, em
sua maioria, de direitos trabalhistas, como tem sido o caso da Ásia, Europa e América Latina.
Este cenário, por sua vez, vem reforçando a divisão sexual do trabalho, por meio de
múltiplas formas de exclusão. Seja a exclusão de trabalhadoras do setor formal, seja pela
desigualdade entre homens e mulheres nos locais de trabalho e em termos de salários, condições de

trabalhadores organizados representados pelos sindicatos - responsável pela formação de uma “consciência operária” na
luta por direitos advindos do trabalho; 2) Estado de bem-estar-social – que garantiu uma “rede mínima de seguridades
ligadas ao trabalho”, tais como aposentadoria, saúde, educação, habitação, etc.; 3) empresas e seus empregadores – que
aumentaram os salários visando o consumo da população. Nesse contexto, o assalariamento passou a construir a
identidade social dos trabalhadores e trabalhadoras, já que tornar-se assalariado assegurava direitos, além de permitir
uma condição de participação ampliada da vida social: consumo, habitação, instrução e até mesmo lazer. O fim do pacto
fordista, portanto, representou o fim dessa estabilidade. Todavia, há que se atentar para o fato de que tais condições não
atingiram todos os trabalhadores. As mulheres e os negros ao lado de grupos como os de imigrantes europeus ficaram de
fora do pacto fordista; também nos países da periferia do sistema capitalista, como no Brasil, esta configuração do
trabalho que se tornou hegemônica na Europa, nunca teve a mesma magnitude.
14
Ao analisar este processo, Harvey (1999) denomina-o de “acumulação flexível”. Isso porque apresenta traços
essenciais da acumulação capitalista descrita por Marx e mantém o caráter de transformação de valores culturais e
sociais, principalmente no que tange ao individualismo construído numa cultura empreendedora que penetrou em muitos
aspectos da vida, ao mesmo tempo em que prega a ideia de inovação e ampliação de mercados por meio do termo
flexível. Destacam-se três características fundamentais deste processo: a) flexibilização; b) precarização e precariedade;
c) informalidade (para aprofundar nesses conceitos ver LEITE, 2009-ab).
17
trabalho, acesso a profissionalização e promoções, etc., seja reproduzindo desigualdades entre as
próprias mulheres (ARAÚJO, 2004). Nas palavras de Hirata (2007, p. 93), “em todos os casos, a
divisão sexual do trabalho é precondição para a realização da flexibilidade do trabalho”, ou seja, “a
flexibilidade é sexuada” (HIRATA, 2007, p. 104).
No que tange à exclusão de trabalhadoras do setor formal, nota-se aqui um indicativo de um
dos principais motivos que atraiu uma grande quantidade de mulheres para as iniciativas de trabalho
coletivo/associativo pesquisadas nesta tese. Em alguns setores, como os de costura e da reciclagem,
por exemplo, esta realidade poderá ser observada de modo mais evidente, visto que se trata de
setores precários que acabam atraindo mulheres de baixa renda e de baixa escolaridade, acima de 40
anos e que passaram a enfrentar uma realidade complexa de desemprego.
Outro grupo a ser destacado é o da população negra. Devido aos processos históricos desde a
escravidão até a construção da economia moderna industrial, os negros tiveram uma inserção tardia
à educação, às possibilidades de qualificação e consequentemente ao mercado de trabalho. Além
disso, durante o fordismo a estrutura hierárquica do trabalho privilegiou o homem branco,
contribuindo para legitimar a discriminação sexual e racial no mercado de trabalho (CASTRO e
GUIMARÃES, 1993; CARNEIRO, 2003).
De acordo com Harvey (1999, p.8) formou-se uma nítida linha divisória entre uma força de
trabalho predominantemente branca, masculina e fortemente sindicalizada e o “resto”. Com a
transição do fordismo para o regime de acumulação flexível a situação torna-se ainda mais grave.
Assim, os trabalhos flexíveis, ou seja, àqueles não relacionados à estabilidade do branco, poderiam
ser delegados às mulheres e à população negra. Portanto, não apenas a concorrência pelos postos de
trabalho de melhor qualidade se tornou mais intensa, mas também houve uma acentuação do
individualismo e da divisão racial e sexual do trabalho na esfera social, o que vai influenciar o
mercado de trabalho e a inserção desse grupo de trabalhadores na Economia Solidária.
No caso do Brasil, esse histórico do início da reestruturação produtiva no país foi um pouco
diferente, visto que o período ditatorial atrasou tal mudança na organização do trabalho. Entre 1965
e 67 os militares implementaram um conjunto de reformas conservadoras que culminou no
caracterizado “milagre brasileiro”, período que se iniciou em 1968 e perdurou até meados da década
de 1970 (QUADROS, 2001). Nesse período, o país intensificou a configuração social marcada pela
ampliação de desigualdades que vinha se construindo. Este cenário somente se modificou com a
abertura política que se deu no ano de 1974, no governo de Geisel, iniciando um período de
democratização. Porém, esse grande movimento foi surpreendido com uma forte crise econômica a

18
partir do ano de 1979, tendo como consequência uma fase de desemprego até então desconhecida
(DEDECCA, 2005).
Apesar da situação de instabilidade, a década de 1980 foi marcada por períodos de
recuperação. O país conseguiu recompor o nível de emprego industrial e havia uma esperança do
mercado interno se fortalecer. Contudo, essa esperança durou pouco tempo, pois os anos 90
solaparam os sonhos anunciados. No ano de 1989, com a eleição do Presidente Collor, o país
conheceu os discursos da globalização e do neoliberalismo. Esse discurso associava a crise
vivenciada pelo Brasil ao seu “atraso” econômico. Nessa direção, a promessa para resolver os
problemas do país era a reestruturação produtiva e a introdução do modelo de flexibilidade.
Era preciso, portanto, flexibilizar o trabalho aumentando as possibilidades para um número
maior de trabalhadores, o que foi intensificado pelo “novo” plano de Fernando Henrique Cardoso,
ligado ao estímulo à exportação e à utilização dos recursos externos. Nesse período, que data do fim
de 1995, observa-se no país uma contínua deterioração do emprego, acompanhada por uma grande
taxa de desemprego, além do esfacelamento do setor público e grande quantidade de privatizações.
Em números, na década de 1990, o Brasil passou a pertencer ao grupo com maior quantidade
de desempregados do mundo. Durante as décadas de 1940 e 1970, a cada 10 postos de trabalho
gerados, oito eram empregos assalariados, sendo sete com carteira assinada. Entretanto, nos anos
1990, a cada dez empregos criados, somente quatro foram assalariados (DEDECCA, 2005). Os
demais foram marcados pelas formas de trabalho sem registro 15.
Diante deste cenário, os movimentos sindicais, mais precisamente a CUT, começaram a
apoiar a formação de cooperativas de produção com os operários das empresas falidas, buscando
salvar o posto de trabalho antes do fechamento das empresas, na tentativa de evitar uma série de
desempregos em massa. Como consequência desse processo, no ano de 1994, foi criada a ANTEAG
– Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas Autogestionárias e de Participação Acionária,
responsável por apoiar e fortalecer a formação de empresas autogeridas pelos/as trabalhadores/as.
Neste momento, contudo, ainda não havia uma organização ampliada em termos de Economia

15
Cabe ressaltar que o novo momento político, especialmente a partir de 2004, inaugurou um processo de reestruturação
do mercado de trabalho, causando uma reversão de algumas dessas tendências, com a diminuição do desemprego e
aumento da formalização do trabalho. Observa-se no país um aumento de trabalhadores/as com carteira assinada, bem
como o aumento dos rendimentos que apontam para uma diminuição da precariedade do trabalho (LEITE, 2009-ab). Por
outro lado, o enorme passivo trabalhista deste país criou uma grande quantidade de inativos que vão tentando se inserir
no mercado de trabalho na medida em que a economia vai crescendo. Este inativo impede que as taxas de desemprego e
de trabalho informal decresçam mais rapidamente. Por outro lado, dados do IBGE (2012) apontam que a taxa de
informalidade continua atingindo 44,2 milhões de pessoas. As Regiões Norte e Nordeste apresentaram as menores taxas
de formalidade (37,0% e 38,0%, respectivamente) e as taxas de informalidade das mulheres nessas regiões foram as
mais elevadas do País.
19
Solidária.
A experiência da Fábrica Recuperada Catende-Harmonia, uma das iniciativas pesquisadas
nesta tese, revelou que a organização inicial de seus trabalhadores foi fruto da busca de tentativa de
manter os empregos diante da falência da Usina, o que indica que essas experiências influenciaram a
composição do que se tornou a Economia Solidária no país, e não o contrário, tal como revela a fala
de um dos entrevistados:
Na década de 90 a Usina demitiu 2.300 trabalhadores. Ao demitir já havia um caldo na
região: uma articulação dos sindicatos com oposições sindicais, e isso permitiu uma união
dos cinco municípios que compreendem Catende, com o apoio da FETAP 16 e com a CUT 17.
No primeiro momento, não havia na nossa compreensão ainda a questão da autogestão e da
Economia Solidária, não dá pra dizer que tinha porque isso não tinha. Mas tinha a busca de
manter o patrimônio como garantia dos direitos trabalhistas, porque a gente ganhou na
justiça. Só depois que a gente conhece a ANTEAG e aí descobre que tinha mais gente
tentando fazer o que a gente fazia (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Nessa mesma direção, uma das entrevistadas da Casa da Mulher do Nordeste, que
acompanha a Rede de Mulheres Produtoras do Recife, investigada nesta tese, explicou que já era
uma proposta do movimento feminista estimular a organização coletiva de mulheres em busca de
autonomia financeira e econômica, sobretudo das mulheres de baixa renda, o que inclusive motivou
a construção da própria Casa. De acordo com o relato da entrevistada, o “Coletivo Ação Mulher”,
ainda na década de 80, na convivência com partidos políticos, sindicatos e universidades, discutia,
nos chamados “Grupo de Reflexão”, sobre o lugar das mulheres na sociedade e a opressão a que
estavam submetidas, tendo como uma de suas propostas a organização produtiva de mulheres.
Já os escritos teóricos da Economia Solidária surgiram efetivamente no ano de 1998, a partir
das publicações de Paul Singer ao descrever as iniciativas dessas empresas autogeridas, sobretudo
das empresas organizadas pela Anteag.
Contudo, Singer (2000-a) fundamentou teoricamente a Economia Solidária considerando o
processo histórico presente no cooperativismo operário surgido das lutas de resistência contra a
Revolução Industrial, bem como nas experiências britânicas do início do século XIX, inspiradas por
18
Robert Owen e pelo seu projeto de aldeias cooperativas . O autor também buscou inspiração na
experiência de Rochdale, uma sociedade coletiva que se tornou a matriz das cooperativas

16
Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco.
17
Central Única dos Trabalhadores.
18
Nas propostas de Owen, o governo britânico deveria investir um dinheiro no chamado “fundo dos pobres”, o qual seria
aplicado na compra de terras para a construção das aldeias cooperativas. Nessas, por sua vez, as pessoas produziriam
para sua própria subsistência, além de organizarem a produção e o consumo integralmente (SINGER, 2002, p. 25).
Porém, na segunda metade do século XIX, o governo britânico se recusou a colocar em prática o plano de Owen, pois
representava uma mudança completa no sistema social que poderia abolir a empresa capitalista futuramente.
20
modernas19; bem como no Grameen Bank, (Banco da Aldeia), inspirado por Muhammad Yunus
20

(SINGER, 2002).
Numa história mais recente, Singer busca inspiração nas experiências dos Kibutzim
israelenses que têm como objetivo a tentativa de construção de uma sociedade livre; no complexo
espanhol de Mondragón, que, com apoio do governo construíram cerca de 200 cooperativas que
comercializam entre si; e as Horas de Íthaca - experiência canadense baseada na criação de moedas
locais que circulam entre prestadores de serviços e produtores cooperados.
Mas, embora retome suas raízes históricas para definir os princípios da ES, Singer (2003)
compreende que o cooperativismo no Brasil ressurgiu nesse novo contexto acima descrito, ou seja, a
partir do desemprego e imensa desigualdade social que assolou o país principalmente na década de
1990. O autor apresentou a ES, pautada inicialmente no cooperativismo, como uma possível saída
para a população excluída do emprego assalariado regular há mais de duas décadas. Para o autor,
não era mais possível numa “restauração do pleno emprego e dos direitos sociais”, o que o
impulsionou a pensar em novas formas de organização, as quais já vinham, de algum modo,
acontecendo no país (SINGER, 2003, p. 123). Dessa forma, o autor compreende que a Economia
Solidária seria uma saída importante para a população já excluída do mercado de trabalho e para
aqueles/as que ficariam sem emprego. Porém, esta saída estaria pautada em valores históricos de
democracia, solidariedade, cooperação e autogestão, os quais podiam ser resgatados pela história de
luta dos trabalhadores em diferentes momentos e partes do mundo.
Diante desse novo contexto, Singer reconhece que o cooperativismo teria os seus valores e
princípios reinventados, mas, de qualquer forma, não abre mão da ideia de autogestão e democracia
ao caracterizar os denominados empreendimentos solidários 21.
No início de seus escritos, era possível reconhecer o cooperativismo como a grande

19
Rochdale foi a matriz das cooperativas por ter definido oito principais regras: 1) a sociedade seria governada
democraticamente, tendo cada sócio direito a um voto, independentemente do capital investido; 2) seria aberta a
qualquer pessoa que quisesse se associar desde que integrasse uma quota mínima; 3) haveria divisão do excedente, com
a finalidade de evitar sua apropriação pelos investidores; 4) o excedente deveria ser distribuído entre os sócios; 5) a
sociedade só venderia à vista; 6) venderia apenas produtos puros e de boa qualidade; 7) haveria o desenvolvimento da
educação dos sócios seguindo os princípios do cooperativismo; 8) a sociedade seria neutra, política e religiosamente.
20
A experiência de Yunus começou após a identificação de que as pessoas imersas na miséria eram em sua maior parte
mulheres, viúvas, abandonadas ou divorciadas e, quase sempre, com filhos. O “Banco da Aldeia” se tornou uma grande
cooperativa de crédito que percorreu todo o país de Bangladesh. Em 1997 era uma rede composta por 2 milhões e 100
mil membros, em 36 mil aldeias, sendo 94% mulheres.
21
Singer adotou o termo empreendimentos solidários porque, segundo ele, a palavra “cooperativa” estava desgastada no
Brasil. São muitas as cooperativas falsas formadas por grandes empresas e que servem para a redução do custo da mão
de obra. Dessa forma, segundo Singer, os empreendimentos são aqueles que estão tentando resistir e se manter com
orientações para a autogestão. O autor (SINGER, 2000-a, p.116) define a autogestão como “a mais completa igualdade
de direitos” nas organizações.
21
expressão desta economia e como uma forma de organização que traria um novo modo de produção.
Com o passar do tempo, Singer (2003) afirma que, por uma série de fatores, a forma clássica dessa
economia, que é o cooperativismo, vem sendo substituída pelas associações e ainda por outras
manifestações, tais como as formas de crédito, feiras de trocas, etc. Assim, o importante para o autor
são as formas possíveis de trabalho em cooperação, e não o cooperativismo em si.
Eu não acredito que nós vamos ter uma economia toda formada por cooperativas. Não é
isso; nem é desejável. Acho que a produção simples de mercadoria é uma coisa que,
provavelmente, tem uma longa vida. Existem fortes tendências hoje, por causa da
tecnologia, dela se desenvolver em formas semi-combinadas: como clubes de trocas, por
exemplo. Quer dizer, a própria economia individual, os pequenos produtores, os micro-
produtores ou autônomos, têm novas formas de se organizar que também são solidárias.
Não há uma oposição. Eu acredito que numa economia, vamos dizer, dominada por
cooperativas, há espaço para a economia capitalista. Tem que haver liberdade para que,
se alguém quiser criar empresa capitalista e outro quiser ser assalariado, isso devia ser
um direito humano (SINGER, 2000-a, p.163).

Singer (2003) entende, portanto, que é possível a convivência entre ES e capitalismo. Mesmo
demarcando que este modelo está longe do ideal, acredita que é o possível para os grupos de ES. O
autor reconhece que as experiências de ES correm o risco de virar “simulacros das empresas
capitalistas”, não conseguindo se desenvolver no que tange aos processos democráticos, além das
dificuldades financeiras, de créditos, financiamentos e sobrevivência econômica na competição com
o capitalismo.
Contudo, Singer (ibid.) acredita que essas experiências, significativas não só no Brasil, mas
em outras partes do mundo, podem ser fruto do avanço do movimento socialista em diferentes
frentes, tais como, na “extensão da democracia”; na participação da população na elaboração de
orçamentos públicos; na conquista de governos locais e regionais que possam por em prática
“políticas socialistas”, inclusive de apoio a empresas autogestionárias; etc. (SINGER, 2000-b, p.44).
Dessa forma, para o autor, a ES não é o mesmo que uma economia socialista, mas as suas
práticas, somadas a outros elementos, podem representar o “embrião da economia socialista
autogestionária” (SINGER, 2000-b). Nesse caso, as práticas cotidianas e locais dos
empreendimentos seriam as responsáveis por, aos poucos, abrirem os chamados caminhos para a
transformação.
Além de Paul Singer, ainda no final da década de 1990, Lechat (2004) identificou diferentes
estudiosos que começaram a escrever sobre o tema, sem, contudo, se encontrarem naquele
momento. Cita autores como Gaiger e Arruda que descreviam o cooperativismo solidário em
propostas que enfatizavam a cidadania e autonomia por parte das e dos trabalhadoras/es. Tratava-se
da descrição e identificação de projetos sociais com cunho não somente assistencialista e

22
paternalista, aproximando-se do que estava sendo chamado por Singer de Economia Solidária.
No ano de 1995, Gaiger participou do Congresso Nacional de Sociologia e nele apresentou
uma pesquisa sobre essas experiências, as quais foram denominadas “empreendimentos solidários”,
fazendo referência a uma possível “economia popular solidária” (LECHAT, 2004, p.31) que vinha
sendo organizada por trabalhadores e trabalhadoras informais na tentativa de sair do desemprego. O
autor começou a observar as ações de solidariedade existentes nessas iniciativas.
Nesta mesma época, e numa direção mais próxima das teorias de Gaiger em torno de uma
economia popular, inicia-se o surgimento de agências que passaram a fomentar a organização
coletiva de trabalhadores/as, são exemplos: diferentes ONGs, entre elas a FASE 22 do Rio de Janeiro;
a Cáritas Diocesana 23; diferentes prefeituras e sindicatos, etc. Destacam-se as ITCPs - Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares – que pertencem às Universidades e surgiram para se
dedicar à organização da população de baixa renda em cooperativas de produção ou de trabalho,
com apoio administrativo, jurídico, de formação política, pedagógica, etc. Essas ITCPs surgiram em
decorrência do grande movimento Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida,
organizado pelo sociólogo Betinho, que mobilizou milhões de pessoas entre 1992 e 94
(GUIMARÃES, 2000).
Para Lechat (2004), a primeira fase da ES vai até este momento, tendo como base os estudos
de Paul Singer e as primeiras iniciativas cooperativistas, associativas e de trabalho coletivo informal,
além das empresas autogeridas por trabalhadores, e das agências de fomento que passaram a
vislumbrar a ES como possibilidade de geração de renda, sendo contrárias ao voluntarismo.

1.2. FASE 2 – Do velho ao Novo Cooperativismo

A partir de 1995 inicia-se uma segunda fase da Economia Solidária, a qual é sustentada
principalmente pela ampliação de suas iniciativas, pelos eventos organizados para divulgação e
debate desta proposta de organização, pela difusão das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares (ITCP) Universitárias e públicas, além da ampliação dos estudos em torno do tema.
A primeira ITCP foi criada no ano de 1995, na Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, onde professores e técnicos do Centro de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) começaram
a atender diferentes demandas à formação de cooperativas de trabalho. Segundo Guimarães (2000,

22
A FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional - fundada em 1961, atua em seis estados
brasileiros e tem sua sede nacional no Rio de Janeiro (http://www.fase.org.br/v2/pagina.php?id=10).
23
A Cáritas é uma instituição fundada em 1956, mas que apóia iniciativas de geração de renda desde o ano de 1984,
sustentando a ação social da Igreja (http://caritas.org.br/novo/).
23
p.111), a ITCP da Coppe surgiu com o objetivo de: “utilizar os recursos humanos e conhecimento da
universidade na formação, qualificação e assessoria de trabalhadores para a construção de atividades
autogestionárias, visando sua inclusão no mercado de trabalho”. As ITCPs passaram a ser
responsáveis por contribuírem com a ampliação da Economia Solidária pelo país.
Neste mesmo ano destaca-se, no Estado de São Paulo, a experiência da Conforja, que após
falência, passou a se organizar em sistema de cooperativa. Os ex-funcionários da Conforja
adquiriram uma parte da massa falida criando assim a UNIFORJA, consolidada efetivamente no ano
de 1999, sob forte apoio do Sindicato. Também é destaque do período, no Estado de Pernambuco, a
cooperativa Catende-Harmonia, fruto da falência da Usina de açúcar Catende, quando os
trabalhadores se organizaram e entraram com o processo de falência para receberem os seus direitos.
Conforme já explicitado, nesse momento, ambas as experiências ainda não falavam em autogestão e
ES, mas suas iniciativas foram utilizadas e contribuíram para a composição do cenário que vinha se
compondo.
Já o ano de 1996 foi marcado por uma série de eventos, principalmente nos Estados do Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Em 1997, a Fundação Unitrabalho – Rede
Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o trabalho - criou o grupo de estudos da Economia
Solidária, sobre coordenação dos professores Cândido Vieitez, da Unesp, Newton Brian, da
Unicamp e Paul Singer da USP.
No ano de 1998, já com a segunda ITCP em funcionamento, a ITCP do Ceará, surgiu a
proposta de realizar um seminário no Rio de Janeiro para estender a experiência das incubadoras
para outras universidades. O Seminário contou com a participação de estudantes, sindicalistas e dos
próprios cooperados/as. De acordo com Singer (2000-a, p.123), o resultado deste seminário foi a
construção de novas ITCPs a partir do entendimento de que “as universidades poderiam assumir um
papel ativo no combate à pobreza e à exclusão social, mediante a incubação de cooperativas”.
Neste seminário observou-se que a ES contava com o apoio não apenas das Universidades,
como também mobilizava sindicatos, igrejas, ONGs e muitos outros setores da sociedade civil, o
que, segundo Lechat (2004, p. 32), ampliava ainda mais as ações apresentadas e iniciava o caráter de
“movimento social que a Economia Solidária vai adquirir ao longo de sua organização”.
Neste ambiente, a FINEP – Financiadoras de estudos e projetos, lançou o Programa Nacional
de Incubadoras de Cooperativas (PRONINC), no âmbito do Comitê de Entidades Públicas do
combate à fome e pela vida (Coep), em parceria com a Fundação Banco do Brasil (FBB). A partir
daí, as incubadoras conseguiram maiores financiamentos para suas ações e começaram a se

24
organizar em rede para fortalecimento e intercambio de experiências.
No ano de 1999, foi realizado, na Universidade Católica de Salvador, o evento “Economia
dos Setores Populares”, que rendeu uma publicação em torno do que seria essa organização de
grupos excluídos socialmente. Neste mesmo ano realizou-se o Fórum de Cooperativismo Popular no
Rio de Janeiro. Também foi criada a UNISOL - União e Solidariedade das Cooperativas do Estado
de São Paulo - (UNISOL São Paulo e, posteriormente, UNISOL Brasil), com função similar à
ANTEAG, apoiando a incubação de cooperativas e de empresas de autogestão, e atuando nos setores
alimentício, de artesanato, metalúrgico, químico, de reciclagem, serviços, têxtil e agricultura.
Também foi criada a ADS/CUT - Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos
Trabalhadores - com apoio do DIEESE - Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas
Sociais e Econômicas - e de outros sindicatos.
Já no ano de 2000 houve o Primeiro Encontro Brasileiro de cultura e sócioeconomia
solidária, com a formação da Rede de Sócioeconomia solidária na qual foi difundida a experiência
cearense do Banco de Palmas 24.
Nota-se que nesta fase a Economia Solidária foi ganhando certa consistência prática e
teórica, porém, isso não se deu de forma consensual. Cada diferente grupo associado a essas práticas
as denomina de forma diferenciada: economia dos setores populares, economia popular,
sócioeconomia solidária e economia solidária. Contudo, os financiamentos que foram sendo criados
passaram a organizar essas propostas na denominação “Economia Solidária”.
Em relação à constituição do campo de pesquisa da ES, de acordo com Lima (2011), nesta
segunda fase foi elaborada uma grande quantidade de pesquisas empíricas, principalmente devido à
multiplicação de suas experiências. O debate passou a centrar-se nas alternativas ao desemprego,
representadas pelo trabalho associado e pelo cooperativismo. Alguns autores também passaram a
debater o tema refletindo sobre a precarização do trabalho, num contexto de crescimento do terceiro
setor da economia entre o público e o privado.
Para Lima (2011, p.7), embora não se limite às cooperativas, o debate sobre Economia

24
O Banco de Palmas foi criado em Fortaleza, no Ceará, no ano de 1998, com o objetivo de disponibilizar crédito para a
população do Bairro Conjunto Palmeiras, bem como de fomentar o desenvolvimento local. Na ocasião, foi criada uma
moeda social, chamada de “palmas”, que só circulava entre os moradores e comerciantes locais, de forma a forçá-los a
consumir o que era vendido localmente e fazer a economia girar no próprio bairro. Com um primeiro apoio de R$ 2 mil,
de uma organização não governamental do Ceará, o Banco Palmas começou a viabilizar os seus primeiros empréstimos,
os quais foram cedidos a cinco pessoas: um peixeiro, uma fabricante de sandálias, uma artesã, um comerciante de um
mercadinho e uma costureira. Com o passar do tempo a experiência se expandiu e até 2009, cerca de R$5 milhões já
haviam sido emprestados pelos 51 bancos comunitários brasileiros que foram criados a partir do Banco de Palmas.
(http://economia.ig.com.br/mercados/pioneiro+banco+palmas+e+exemplo+em+economia+solidaria/n1237674265643.ht
ml).
25
Solidária nesta fase “legitimou, ideologicamente, a separação entre o que seria o novo e o velho
cooperativismo”, sendo, o primeiro, percebido como alternativa solidária de grupos populares, ao
capitalismo, enquanto, o segundo, afirmado como incorporação ao mercado capitalista. Nas palavras
de Lima (2011, p.8):
Contrapõe-se, agora, o novo cooperativismo, representando o retorno aos ideários
autogestionários de democratização do trabalho e propriedade coletiva, ao velho
cooperativismo de mercado, empresarial, integrado pelas grandes cooperativas agropecuárias
representadas pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Alguns autores brasileiros e latino-americanos contribuíram para esse processo de construção


do campo teórico em torno do chamado “novo cooperativismo” proposto pela ES. O primeiro deles
é o argentino José Luís Coraggio (2000, 2003), que se refere à Economia Solidária como “Economia
do Trabalho”. Esta, por sua vez, seria uma forma de economia social que busca os bens coletivos em
detrimento dos individuais, organizando um novo sistema-mundo, mas não necessariamente um
novo modo de produção.
O autor compara a organização da economia capitalista com a economia do trabalho. Na
primeira formam-se “grandes conglomerados, redes e grupos com interesses comuns”; e na segunda
formam-se “associações, cooperativas, redes e outras iniciativas que venham a contribuir com a
melhoria de condições de reprodução da vida de seus membros” (CORAGGIO, 2003, p.89).
Este termo, reprodução ampliada da vida, representa para Coraggio o interesse do conjunto
de trabalhadores que vivenciam a economia do trabalho. Esse interesse está pautado nas condições
necessárias para que as pessoas tenham uma vida com qualidade, seguindo o desenvolvimento das
capacidades e oportunidades sociais das pessoas em diferentes contextos.
De acordo com Coraggio (2000), a Economia do Trabalho contempla uma série de
atividades, entre as quais fazem parte as cooperativas, as associações, mas também o trabalho por
conta própria e as atividades de produção de bens e serviços que não passam diretamente pelo
mercado, como o trabalho de cuidado, de limpeza, do conserto, trabalho feito na própria casa, etc.
Para Corragio (ibid.), as relações que se formam nestas unidades e, principalmente nas que se
transformam em empreendimentos solidários, precisam ser analisadas compreendendo as novas
racionalidades que se criam, a saber, a racionalidade da produção da vida e não a racionalidade do
negócio, dos lucros. Porém, o autor indica a dificuldade das unidades de trabalho em manter as suas
racionalidades de solidariedade em meio ao contexto perverso do desemprego nas atuais
configurações do trabalho. Apesar das dificuldades, o autor defende que a partir deste mundo das
economias populares é possível que surjam estruturas mais eficientes para a reprodução ampliada da

26
vida, “orientadas por um paradigma de desenvolvimento humano” (CORAGGIO, 2000, p. 111).
Dessa forma, observa-se que Coraggio não fala em autogestão ou em um sistema novo e
totalizador que supere o capitalista, mas de um sistema misto, no interior do capitalismo, que seja
capaz de permitir a reprodução ampliada da vida da sociedade e o desenvolvimento humano mais
digno. Para tal, o autor aponta a necessidade de vontade política e apoio do Estado.
Numa linha teórica semelhante encontra-se Gaiger (2000, 2004), o qual iniciou o
desenvolvimento da teoria da Economia Solidária a partir da identificação de projetos sociais
voltados para a autonomia dos trabalhadores e não apenas para o assistencialismo.
O autor concorda com Coraggio ao apontar que a viabilidade da ES deve ser olhada do ponto
de vista das necessidades das pessoas que estão nos empreendimentos e não apenas da acumulação
de capital: “a viabilidade é pensar se os empreendimentos vêm trazendo respostas às pessoas que
nele estão inseridas” (GAIGER, 2000, p. 181). Sejam elas respostas financeiras, ou de participação e
inclusão social e educativa.
Seguindo esta perspectiva, Gaiger (2007) compreende que a ES reflete interesses subjetivos
dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que responde a condições objetivas, já que eles necessitam
da geração de renda para a sobrevivência no sistema capitalista. Trata-se de uma relação de
necessidade e de contradição, que certamente dificulta a racionalidade solidária, mas, para o autor, é
a composição possível em meio à acumulação flexível da atual forma de manifestação do capital.
Gaiger (ibid.) salienta que a ES não se trata de um novo modo de produção. Remetendo-se a
Marx, o autor descreve que o conceito de modo de produção tem a ver com o estado de
desenvolvimento material e humano possibilitado por uma configuração histórica. Essa
configuração encontra-se no modo como os indivíduos organizam-se, em distintas sociedades, no
que tange “à produção, à distribuição e ao consumo dos bens materiais necessários à sua
subsistência; mais precisamente, na forma que assumem as relações sociais de produção, em
correspondência com um estado histórico de desenvolvimento das forças produtivas” (GAIGER,
2004, p.6).
Em contrapartida, o autor fala em “forma social de produção”, a qual guarda semelhanças
com as relações desenvolvidas pela economia camponesa, principalmente por se tratarem de
relações distintas da forma assalariada. Para o autor existem possibilidades de muitas formas de
produção social conviver no mesmo sistema (solidária, capitalista, familiar, etc). A questão são os
desafios que estão colocados para aquelas formas que não são hegemônicas, principalmente dos
pontos de vista tecnológico, educacional e de apoio político.

27
Cabe observar que Gaiger e Coraggio são teóricos que marcam a passagem da primeira para
a segunda fase da Economia Solidária, isso porque, segundo Lima (2011), os debates da primeira
fase ainda se restringiam às reflexões em torno de um possível socialismo, tendo na autogestão a
principal referência da crítica ao capitalismo. Já para Coraggio e Gaiger a ES se trata de uma forma
social de produção não assalariada e que precisa ser analisada do ponto de vista social.
Porém, além desses intelectuais que começaram a vislumbrar a ES de forma crítica, mas
como possibilidade emancipadora, em contraponto também se apresentava àqueles que a
interpretava como uma consequência da forma de organização do trabalho no capital neoliberal.
Castel (2005), por exemplo, analisa que a Economia Solidária acaba por servir às artimanhas
do capitalismo possibilitando maior exploração da mão de obra barata do trabalhador. O autor
considera que as experiências de ES correspondem a tentativas compensatórias diante da degradação
das condições de trabalho assalariadas, tratando-se, portanto, de experiências voluntaristas e
assistencialistas que não resolveriam a questão do trabalho e do desemprego.
Nessa mesma direção, ao analisar as primeiras iniciativas no âmbito da ES, Quijano (1998)
afirma que a maior parte das chamadas empresas autogestionárias foram iniciadas a partir de
interesses do próprio capital ou do Estado. Ou ainda podem ser experiências iniciadas por ONGs,
Universidades e outras agências de fomento, portanto, não se tratariam de iniciativas advindas da
ideologia dos trabalhadores ou de movimentos sociais organizados.
Exatamente por isso, Quijano analisa que essas organizações solidárias não resistirão às
dificuldades financeiras do capital. Nas palavras do autor, “sua independência do apoio externo, dos
créditos e financiamentos, que foram suas marcas de nascimento podem ser também um elemento
central de sua desintegração” (QUIJANO, 1998, p. 128).
Castel reconhece que algumas iniciativas podem articular a esfera pública e privada,
mobilizar recursos e apresentar algum resultado positivo. Porém, analisa que são, na verdade,
iniciativas pouco visíveis e incapazes de passar do estágio de experimentação. O autor afirma que
representam “declarações de intenção” e não políticas com potenciais de transformação. Nas
palavras do autor, trata-se de uma “preocupação de promover uma “economia solidária”, isto é, de
ligar a questão do emprego à coesão social” (CASTEL, 2005, p.575).
Outro ponto destacado pelos autores em questão refere-se às dificuldades de sobrevivência
de valores solidários no interior de relações hegemônicas antagônicas, tal como já observado por
Coraggio e Gaiger. Castel (2005) questiona se o discurso de democracia e de autogestão se efetiva
na prática dos empreendimentos solidários que se desenvolvem no âmbito da sociedade capitalista,

28
visto que, na contradição posta, os valores de competição e dominação acabam invadindo essas
experiências.
Contudo, Quijano (1998) entende a Economia Solidária como uma iniciativa necessária
diante das tendências atuais das relações capital-trabalho e da concentração de recursos em todo o
mundo, considerando-a como um “produto das atuais condições em que opera o capital”,
principalmente na América Latina (QUIJANO, 1998, p.136). Para Quijano (ibid., 184), essas
experiências são decisivas para a América Latina na atualidade, visto que: a) o trabalho assalariado
nunca foi universal e; b) a sociedade latino-americana nunca foi “descolonizada, democratizada ou
nacionalizada plenamente” e, em alguns casos, nem conta com um “Estado-nação” pleno. Sob esta
perspectiva, o autor até compreende a validade destas experiências, mas ressalta que não se trata de
uma ampla proposta de transformação.
É destacando essa contradição que marca a ES desde o seu início e que se segue até os dias
atuais, que passo para a terceira fase da mesma, momento em que ela se expande no país e começa a
se organizar politicamente. Nota-se aqui que nesta fase de constituição do campo teórico da ES e de
formação das ITCPs, não foram encontradas pesquisas relevantes sobre a grande participação das
mulheres e da população negra nas iniciativas de ES. A preocupação até o momento girava em torno
das propostas transformadoras elaboradas por Singer em contraposição as experiências práticas que
vinham se compondo e qual eram os seus avanços e dificuldades. As pesquisas sob a perspectiva de
gênero e a relevância da participação das mulheres começam a surgir efetivamente a partir da
terceira fase da ES, sobretudo com as teóricas da Economia Feminista, conforme discutido abaixo.

1.3. FASE 3 – A ampliação da Economia Solidária: aproximando-se de uma definição

Para Lechat (2004), a terceira fase da Economia Solidária inicia-se com maior expressão no
ano de 2001, a partir do I Fórum Social Mundial. Neste Fórum foi criado o Grupo de Trabalho (GT)
de Economia Solidária, o que facilitou politicamente algumas articulações e possibilitou que a ES
ganhasse espaço nos II e III Fóruns Social Mundial posteriores, reunindo iniciativas de entidades
nacionais e de organizações e redes internacionais ligadas ao tema.
No ano de 2001 também houveram algumas defesas de teses pioneiras com foco na
25
Economia Solidária. Destacam-se as de Marcos Arruda e Lia Tiriba 26, e no ano de 2002 houve a

25
Tese intitulada Educação para que Trabalho? Trabalho para que Ser Humano? Reflexões sobre Educação e Trabalho,
seu Significado e seu Futuro; defendida na Universidade Federal Fluminense.
26
Tese intitulada Economía popular y crisis del trabajo asalariado: de las estrategias de supervivencia a la producción de
una nueva cultura del trabajo; defendida na Universidade de Madri.
29
criação da Revista UniSinos, que propiciou maior elucidação do campo teórico desta economia no
Brasil.
Em 2002 foi realizada a Primeira Plenária Brasileira de ES, na cidade de São Paulo, em que
foram formuladas diferentes propostas de articulação para transformar a ES numa política de
inclusão social e geração de renda para uma parcela excluída da população. Tais propostas foram
apresentadas ao Governo Lula, sendo, a principal delas, a criação da Secretaria Nacional de
Economia Solidária no Governo Federal.
A partir disto, no ano de 2003, foi criado o Fórum Nacional de ES, ancorado nos Fóruns
regionais e estaduais, que foram preparatórios para o Nacional. Neste Fórum foi elaborado um
texto27 que tentava identificar os princípios e propostas da ES no Brasil, com intenções de ser
apresentado como “carta de princípios” em termos mundiais e também com o intuito de apresentar
um Projeto Nacional de ES. Lechat (2004, p.45-46) destaca os principais aspectos deste texto:

- A Economia Solidária representa a valorização social do trabalho humano, a satisfação plena das
necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da atividade econômica, o
reconhecimento do lugar fundamental da mulher e do feminino numa economia fundada na
solidariedade, a busca da relação de um intercambio respeitoso com a natureza e os valores da
cooperação e da solidariedade.
- A Economia Solidária constitui o fundamento de uma globalização humanizadora, de um
desenvolvimento sustentável, socialmente justo e voltado para a satisfação racional das
necessidades de cada um e de todos os cidadãos da Terra seguindo um caminho intergeracional de
desenvolvimento sustentável na qualidade de sua vida.
- O valor central da Economia Solidária é o trabalho, o saber e a criatividade humanos, e não o
capital- dinheiro e sua propriedade sob quaisquer de suas formas.
- A Economia Solidária representa práticas fundadas em relação de colaboração solidária,
inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade
econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular.
- A Economia Solidária busca unidade entre produção e reprodução, evitando a contradição
fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a produtividade, mas exclui crescentes setores
de trabalhadores do acesso a seus benefícios.
- A Economia Solidária busca outra qualidade de vida e de consumo e isto requer a solidariedade
entre os povos do hemisfério Norte e Sul.
- Para a Economia Solidária, a eficiência não pode limitar-se aos benefícios materiais de um
empreendimento, mas se define também como eficiência social, em função da qualidade de vida e
da felicidade de seus membros e, ao mesmo tempo, de todo ecossistema.
- A Economia Solidária é um poderoso instrumento de combate à exclusão social, pois apresenta
alternativa viável para a geração de trabalho e renda e para a satisfação direta da necessidade de
todos, provando que é possível organizar a produção e a reprodução da sociedade de modo a
eliminar as desigualdades materiais e difundir os valores da solidariedade humana.

Nota-se que, nesse texto, a ES foi apresentada como embate ao capitalismo e como proposta
para acabar com as desigualdades materiais. Também foi enfatizada a relação entre economia e meio
ambiente na busca por maior qualidade de vida, o que foi fortemente influenciado pelos

27
Texto disponível no site do Fórum Brasileiro de ES – FBES: www.fbes.org.br
30
pressupostos teóricos de Marcos Arruda, tal como se observa a seguir.
Ao descrever a sócio-economia solidaria, tal como a define, Arruda (2005, p. 12) resgata o
sentido etimológico da palavra economia, que surgiu na Grécia antiga, “ecus nomia”, significando a
“gestão da casa”, sendo a casa desde o nosso corpo, como o espaço em que vivem as famílias, uma
comunidade, cidade, estado, país, ou o planeta. Nessa perspectiva, o autor compreende a economia
como o “princípio do suficiente e da sustentabilidade”, bem como “a mediação entre o disponível na
natureza e o necessário ao desenvolvimento das potencialidades humanas”.
Arruda (2003) evidencia quatro aspectos fundamentais e que podem ser observados nas
partes do documento acima citado: 1) a preservação do meio ambiente e a ideia de sustentabilidade;
2) a ideia de o ser humano como um ser solidário por natureza; 3) o feminino como uma dimensão
28
que deve ser integrada à economia ; 4) a educação como práxis como proposta essencial para a
construção do ser humano.
Porém, o autor é um pouco mais radical em relação à proposta da sócio-economia solidária,
divergindo dos autores citados até o momento. Ele não defende a ideia de uma ES ao lado ou no
interior da economia capitalista, mas acredita que a primeira precisa formular propostas mais
consolidadas para superar a segunda, o que o leva a ser contrário às opiniões não só de Paul Singer,
como também de Gaiger e Coraggio.
Arruda (2003) compreende a necessidade de uma série de organizações da ES atualmente
(redes de produção, consumo ético e solidário, bancos populares, feiras de trocas, etc.), mas indica
que o grande potencial desta economia está “nos sistemas de comunicação eletrônica e no Fórum
Social Mundial”. Dessa forma, o autor de fato tem uma presença marcante nos espaços dos Fóruns,
o que pode ser percebido nos textos oficiais escritos nesses espaços.
Seguindo no histórico da ES, ainda no ano de 2003, ano de criação do Fórum Nacional, Paul

28
Arruda (2003) resgata que na história da linguagem a sociedade deixou de utilizar os termos genéricos, expressivo em
idiomas como o grego (Anthropos) ou latim (Homo), levando-nos a referir ao gênero humano utilizando o termo homem,
o que evidentemente marca uma relação de dominação. Dessa forma, escolhe o termo homo para representar o gênero
humano genérico: “em latim, homo não se confunde com vir, viris, masculino, que quer dizer homem, em oposição a
mulier, mulieris, feminino, que quer dizer mulher” (ARRUDA, 2003, p.21). Nessa mesma direção, o autor reforça a
importância de trazer o feminino para a economia, visto que numa sociedade desigual, os valores entendidos como
femininos (cuidado, sensibilidade, harmonia) foram solapados da idéia de economia. Para Arruda (2002), a economia,
como organização do coletivo, deve trazer o protagonismo do feminino. Segundo o autor, o patriarcado dividiu as tarefas
de tal forma que o homem transformou-se no elemento dominador, gerando a desumanização de ambos os sexos, pois,
“no momento em que um indivíduo domina o outro, ele está se alienando de si próprio; ele está se distanciando de sua
humanidade” (ARRUDA, 2002, p.2). Dessa forma, o autor salienta a necessidade de pensar o feminino para a busca da
humanização em coerência com o que seria a proposta da Economia Solidária. O autor não faz uma análise sobre a
divisão sexual do trabalho presente nas iniciativas de ES, como também não destaca a grande participação de mulheres
nessas iniciativas, mas começa a indicar a presença de relações de poder pautadas no gênero existente nas teorias
econômicas clássicas, além de incentivar que se falasse das mulheres nos textos oficiais da ES.

31
Singer tomou posse da Secretaria Nacional de Economia Solidária - SENAES, iniciando um novo
cenário para esta proposta. O Fórum passou a ter o papel de interlocutor com a SENAES, no sentido
de apresentar as demandas de seus atores e sugerir políticas.
A SENAES foi criada no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, e apresenta como
principal objetivo “viabilizar e coordenar atividades de apoio à Economia Solidária em todo o
território nacional, visando à geração de trabalho e renda, à inclusão social e à promoção do
desenvolvimento justo e solidário” (http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/).
Segundo o site da SENAES, a Economia Solidária é definida como:
Economia Solidária é um jeito diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que é preciso
para viver. Sem explorar os outros, sem querer levar vantagem, sem destruir o ambiente.
Cooperando, fortalecendo o grupo, cada um pensando no bem de todos e no próprio bem. A
economia solidária vem se apresentando, nos últimos anos, como inovadora alternativa de
geração de trabalho e renda e uma resposta a favor da inclusão social. Compreende uma
diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas,
associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que
realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas,
comércio justo e consumo solidário.

Ao analisar brevemente os textos presentes no site da SENAES, percebe-se que a ES perdeu


o teor de contraposição ao capitalismo presente em alguns de seus teóricos. Embora ainda fale em
autogestão, a sua definição é focada principalmente no protagonismo e participação dos sujeitos da
ES, sem mencionar qualquer ideal transformador que repense as estruturas sociais e políticas de
poder. Ou seja, a ênfase dada é a ES como um projeto político de inclusão social e geração de renda,
organizada em uma diversidade de práticas que permitem a produção pela cooperação e
participação, sem abarcar a proposta de transformação rumo ao socialismo tal como Paul Singer
apresentava em sua teoria inicial.
A fim de cumprir com as suas metas e objetivos, a SENAES implementou entre os anos de
2004 e 2011, em duas fases (Plano Pluri-Anual – PPA de 2004-2007 e de 2008-2011), o Programa
Economia Solidária em Desenvolvimento, que foi responsável pela formulação de políticas públicas
específicas para a ES, viabilizadas por meio de recurso e financiamentos próprios.
Destaca-se o apoio às Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares – ITCPs,
sobretudo por meio de financiamentos específicos à incubação de empreendimentos solidários. No
ano de 2009, por exemplo, foram identificadas 42 incubadoras universitárias, o que aumentou
significativamente o número de iniciativas de trabalho coletivo/associativo no país.
Em seus primeiros anos, a SENAES declarou que a sua proposta foi a de constituir uma
política pública para a ES no Brasil, fomentando diferentes empreendimentos, bem como mapeando
as experiências existentes. Na segunda fase, destacou que o seu objetivo era o de continuar com o
32
plano que sustenta a ES, enfatizando, contudo, a consolidação econômica dos empreendimentos
formados, por meio da abertura de linhas de crédito acessíveis e propícias à sua realidade.
Atualmente a SENAES desenvolve o projeto intitulado Programa de Desenvolvimento
Regional, Territorial Sustentável e Economia Solidária (PPA 2012/2015). Segundo o site da
SENAES, o Programa compreende que a ES “passa a se constituir como estratégia de dinamização
socioeconômica no âmbito de processos de desenvolvimento local ou territorial sustentável,
promovendo a coesão social, a preservação da diversidade cultural e do meio ambiente”.
Observa-se que o atual projeto da SEANES passou a enfatizar a ideia de desenvolvimento
local não mencionada nos outros documentos oficiais aqui em destaque, o que nos leva a abrir um
parêntese para salientar que essa proposta se aproxima das teorias da ES defendidas por alguns
autores franceses, os quais apresentam a ideia de um desenvolvimento local aliado a uma relação
entre mercado, Estado e sociedade 29 (LAVILLE, 2006; CAILLÉ, 2003).
Tais projetos da SENAES acabam por viabilizar a sobrevivência de boa parte dos
empreendimentos solidários em meio às dificuldades de conviverem com o entorno capitalista, mas
é preciso compreender melhor o que isso significa. A literatura sobre a SENAES permite refletir
com maior profundidade sobre o seu papel e sobre as efetivas contribuições que ela permitiu à ES, o
que será abordado brevemente nas próximas linhas deste capítulo.

1.3.1. A SENAES: avanços e contradições da institucionalização


No levantamento bibliográfico em torno do tema, foi identificado dois principais pontos de
vista a serem debatidos, a saber: a) o primeiro refere-se à identificação da SENAES como a grande
conquista da ES, entendendo-a como a possibilidade de contribuir para a sobrevivência dos
empreendimentos solidários; b) o segundo analisa que o Ministério do Trabalho no governo Lula, e
atualmente no governo Dilma, compreende a SENAES apenas como um paliativo num momento de

29
Essa relação seria uma lógica híbrida sem enfatizar a ideia de luta por outra sociedade e sem tocar no conceito de
autogestão, mas com ênfase no caráter plural de uma economia de reciprocidade que não deveria se limitar ao mercado,
mas que contribui para a construção de uma sociedade mais democrática (LAVILLE, 2013). No caso do
desenvolvimento local, a ideia seria explorar as relações internas das associações de Economia Solidária, conferindo-
lhes caráter público e político. Pautado nas ideias de Karl Polanyi, Laville (2013) comprende que a ES nessa perspectiva
trata de repensar as formas de ligação entre a sociedade civil e o Estado, ou de “encarar uma democratização recíproca
da sociedade civil e dos poderes públicos” (LAVILLE, 2006, p. 37) em que a pluralização da democracia e da economia
entram em ressonância. Nesse sentido, a ES depende das formas de regulação pública e dos processos democráticos que
conseguir construir localmente e em seu processo histórico. Nessa mesma direção Caillé (2003, p.65) indica a
necessidade de pensar a ES como uma nova lógica coletiva, superando as tendências que, de um lado buscam substituir
o mercado capitalista pelo solidário, e, de outro, buscam a convivência sem eliminar o Estado ou o mercado. A grande
questão para o autor é a necessidade de se fazer alianças e de chegar a alguns consensos, além de ampliar as experiências
de ES para o desenvolvimento de projetos com o contexto local, o que em muito se aproxima da prática da SENAES.

33
crise e não como incorporação de novas políticas sociais pautadas num modelo cooperativista.
Em relação ao primeiro ponto de vista, destacam-se autores e autoras que compreendem a
SENAES como o principal canal para que as demandas dos atores da ES possam chegar ao Estado
(SINGER, 2004, 2009; KRUPPA, 2005; PRAXEDES, 2009).
Em síntese, esses autores e autoras defendem a ideia de que a SENAES, apesar de suas
contradições, vem obtendo resultados positivos, e destacam principalmente: a amplitude da ES que
passou a incorporar sujeitos históricos importantes; a relação entre os diversos atores da ES com a
SENAES; a articulação entre governo Federal, estadual e municipal e; a articulação da SENAES
com outras Secretarias e Ministérios. Singer (2004, 2009) e Praxedes (2009) salientam
principalmente a incorporação da SENAES ao Ministério do Trabalho, na medida em que isto indica
a possibilidade de que as políticas em torno do trabalho considerem e incorporem também a
Economia Solidária.
Contudo, Kruppa (2005) enfatiza que a força política da SENAES ainda é muito pequena.
Para a autora, estamos falando da institucionalização de políticas voltadas a uma população excluída
e que não são prioridades dos governos, o que dificulta a sua tentativa de articulação. Dessa forma, a
autora analisa que num governo com tantas dificuldades e conservador como o brasileiro, o simples
fato de existir uma política pública de ES já significa uma fase avançada em termos da política de
geração de trabalho e renda no país. Para a autora, ainda que as propostas não sejam compreendidas
em sua ampla relevância, em certa medida vêm sendo incorporadas.
Dessa forma, observa-se que os autores em destaque nesta primeira vertente analisam que a
SENAES é fruto de uma mobilização significativa da sociedade e interpretam o seu percurso de
forma positiva, considerando suas importantes conquistas. Contudo, também destacam que a
SENAES está a frente de muitos desafios de naturezas complexas, o que será mais fortemente
apontado pelo denominado segundo ponto de vista.
Neste, por sua vez, os autores em destaque compreendem que a construção da SENAES
reflete uma característica do governo Lula, na medida em que este governo demonstrou capacidade
para responder a diferentes demandas dos movimentos sociais e da sociedade excluída de muitas
políticas públicas, sem, contudo, integrar efetivamente essas políticas de modo estrutural
(BERTUCCI, 2010; NOVAES, FRANÇA FILHO, 2008).
Para Noaves e França Filho (2008, p. 10), as esferas do governo interpretam as políticas de
ES como necessárias em tempos de desregulamentação do mercado de trabalho e crise do emprego.
Porém, o foco principal continua sendo a retomada do emprego com carteira assinada e não uma

34
proposta de emancipação dos trabalhadores com mudanças estruturais na hierarquia do trabalho.
Nessa mesma direção, Bertucci (2010) indica que, do ponto de vista da criação de uma
política pública efetiva, não é possível pensar um projeto de Economia Solidária sem que haja um
projeto maior de desenvolvimento que a acompanhe. Para o autor, as propostas da SENAES acabam
sendo limitadas em ações específicas de apoio a unidades de produção coletiva, na medida em que
não corresponde a ações transversais. Para os autores, tal dificuldade não está localizada somente na
ES, mas também em outras pautas de movimentos sociais na atualidade que acabam sendo
transformadas em ações específicas, obtendo, na maior parte das vezes, baixo alcance nacional.
Além disto, os autores analisam que existe uma segmentação na forma como ministérios e
secretarias executam as suas atividades, mesmo que sejam voltadas para um objeto comum em
termos de política pública. Segundo Novaes e Lima Filho (2008), o projeto de articulação entre
políticas e secretarias indicado pela SENAES não acontece na prática, principalmente pela
existência de diferentes grupos de poder e de partidos com projetos e entendimentos distintos do que
vem a ser a Economia Solidária.
Dessa forma, Bertucci (2010) considera que somente pela difusão e ampliação de
associações não é possível atingir um nível mais amplo de transformação do tecido social, ao
mesmo tempo em que reconhece que este ainda é um processo histórico que precisa ser ampliado.
Nesta direção encontram-se também as análises das teóricas que compreendem a ES sobre a
perspectiva das relações de gênero (NOBRE, 2003; FARIA, 2011; QUINTELA, 2006). Para elas,
mesmo ciente das desigualdades em torno dos trabalhos das mulheres e da reprodução da divisão
sexual do trabalho na ES, a SENAES não incorpora a questão com a seriedade que deveria ou como
uma política estrutural efetiva, o que as feministas começaram a observar a partir de análises em
torno do mapeamento da Economia Solidária realizado pela SENAES.

1.3.2. O mapeamento de ES e a crítica feminista


Uma das primeiras ações da SENAES, já no ano de 2004, foi a implementação do Sistema
Nacional de Economia Solidária – SIES, com o objetivo de mapear e cadastrar os empreendimentos
solidários existentes no país, bem como de identificar as entidades de apoio, financiamento e
assessoria a eles. O SIES levantou informações quanto ao número de sócios e demais integrantes
dos empreendimentos, quanto aos setores e as atividades desenvolvidas, quanto às principais
dificuldades econômicas, às formas de gestão, entre outros.
Segundo a base de 2007, disponível no site da SENAES, foram identificados 21.859

35
Empreendimentos Econômicos Solidários, dos quais participam 1.687.496 pessoas (um milhão,
seiscentos e oitenta e sete mil, quatrocentos e noventa e seis), sendo 630.382 (38%) mulheres e
1.057.114 (62%) homens. As mulheres, por sua vez, predominam nos empreendimentos com menos
de 10 sócios (66%); e os homens nos que possuem mais de 20 sócios.
Em relação às atividades desenvolvidas, 54,9% dos empreendimentos rurais dedicam-se à
agricultura, pecuária, pesca ou extrativismo. Já os empreendimentos urbanos dedicam-se às
atividades de produção e prestação de serviços em setores de alimentação, confecções e calçados,
artesanato, indústria de transformação, coleta e reciclagem e, ainda, crédito e finanças.
No caso das mulheres, a maior parte delas está na fabricação de produtos têxteis (19,6%).
Elas também podem ser encontradas nas atividades como costura, produção de alimentos e de
bebidas, os quais se referem ao segmento tradicionalmente feminino tanto no mercado de trabalho
formal como nos empreendimentos de ES.
Destes empreendimentos, 48% estão localizados no meio rural, 34,5% no meio urbano, e os
restantes localizam-se nos dois espaços. Considerando a distribuição territorial, há uma maior
concentração dos empreendimentos de ES na região Nordeste e em segundo lugar na Região
Sudeste. Dos empreendimentos pesquisados, 51,8% são associações, 36,5%, grupos informais e
9,7%, cooperativas. Observa-se, portanto, que cerca de um terço (1/3) dos empreendimentos
solidários são informais.
Apesar de terem possibilitado uma visão quantitativa geral em torno do cenário que a
SENAES vinha definindo como Economia Solidária no país, estes dados, brevemente resumidos
aqui nesta tese, receberam algumas críticas relevantes, entre as quais se destacam: a) generalidade da
definição de empreendimentos solidários, que inclui desde distintos tipos de cooperativas (de
serviços, de comercialização, de consumo, de crédito, etc.), associações e grupos informais
envolvidos em atividades variadas, inclusive de caráter filantrópico, além de clubes e grupos de
troca (GAIGER, 2012; LEITE, ARAÚJO, LIMA, 2011); b) trata-se de um levantamento parcial, não
de um censo ou de uma pesquisa amostral representativa (GAIGER, 2012); c) a análise dos dados
requer um maior tratamento no que diz respeito à realidade da participação das mulheres, pois ele
permite a invisibilidade das mesmas e não encara a problemática das desigualdades de gênero que o
mapeamento revela ( QUINTELA, 2006, NOBRE, 2003); d) o mapeamento não permite analisar
com precisão qual é a cor/raça dos e das integrantes dos empreendimentos solidários, o que reforça a
invisibilidade da população negra nos documentos oficiais da Economia Solidária
(GIACCHERINO, 2006; CHERFEM, 2014).

36
Entre essas críticas, destaca-se principalmente a terceira delas, formulada pelas teóricas da
Economia Feminista, que também se configurava neste momento histórico, e que iniciaram as
leituras em torno da ES numa perspectiva de gênero.
As teóricas da Economia Feminista começaram a organizar os seus debates a partir do ano de
1999, junto a Rede Latino-Americana Mulheres Transformando a Economia (REMTE), já que tal
debate ainda não existia no Brasil. No ano de 2001 elas organizaram a Rede Economia e Feminismo,
que aos poucos foi se estruturando no país (FARIA, NOBRE, 2002).
A Economia Feminista questiona a economia dominante pelo fato de esta última contribuir
com a invisibilidade das mulheres. Para as feministas desta corrente, a economia capitalista
contribui para a exploração e subordinação das mulheres e para as desigualdades existentes entre as
próprias mulheres (BUTTO, 2009; FARIA, NOBRE, 2002). Deste modo, elas começaram a indicar,
já nesta terceira fase da Economia Solidária, que, se a ES apresenta propostas contrárias a esta
economia dominante capitalista, necessita refletir em torno do trabalho feminino em maior
profundidade.
O diálogo entre Economia Solidária e Feminista se dá principalmente porque um dos
objetivos desta última é a inserção de mulheres no mercado de trabalho de maneira autônoma.
Segundo Santos (2009), a Economia Feminista defende a luta das mulheres que estão brigando para
construir empreendimentos de geração de renda, que estão tentando superar uma situação de
violência, doméstica ou fora de casa, e que buscam melhores condições de trabalho.
Dessa forma, ao receberem os dados do SIES, as teóricas da Economia Feminista observam
algumas incoerências, além de aspectos importantes a serem considerados numa perspectiva das
relações de gênero. A primeira delas trata-se da quantidade de mulheres, já que, ao trabalhar com os
empreendimentos na prática, era nítida a grande quantidade de mulheres envolvidas com a ES,
contudo, os dados indicaram menor participação entre elas (SANTOS, 2009; CHERFEM, 2009).
Sobre isto, as teóricas da Economia Feminista observaram que a maior parte dos
empreendimentos está localizada no âmbito rural, local em que se concentra uma parcela
significativa do trabalho das mulheres. Contudo, tal como aponta Butto (2009), historicamente o
trabalho feminino sofre com a invisibilidade na produção familiar agrícola, portanto, seria preciso
aprofundar esta análise para saber se as mulheres não estão sub-representadas neste setor. Ao mesmo
tempo, muitas mulheres compreendem que a sua atividade principal é a atividade doméstica, tendo
dificuldade de se reconhecer como protagonistas de um empreendimento solidário, o que também
deveria ser observado com maior atenção em outros setores da ES.

37
Além disso, cabe destacar que o universo mapeado pelo SIES considera uma série de
iniciativas econômicas que extrapolam o universo dos empreendimentos cooperativos e associativos,
sendo que as mulheres se encontram, em especial, nestes últimos (SANTOS, 2009).
Apesar de terem realizado essa análise, segundo Quintela (2006), a SENAES não incorporou
as críticas feitas pelas teóricas da Economia Feminista com seriedade. Ao pesquisar os documentos
oficiais elaborados pela SENAES, a autora analisa que eles não trazem qualquer referência à
especificidade do trabalho das mulheres, nem tampouco explicitam, em seus objetivos, qualquer
perspectiva de gênero.
De acordo com Quintela (2006), observa-se nos textos dos documentos da SENAES apenas
o tratamento a homens e mulheres, além da flexão de gênero, são exemplos: “é objetivo da
economia solidária o estabelecimento de condições de trabalho decente ou digno, desenvolvido por
mulheres e homens”; “[...] Havendo aprofundamento das normas democráticas e do acesso aos
Fundos Públicos, a Economia Solidária tende a conquistar o status de uma nova prática acessível a
todos, enquanto trabalhadores(as), consumidores(as) e cidadãos(ãs)”. Também encontra-se uma
breve citação que corresponde ao respeito as diferenças de forma ampla: “a economia solidária
defende o respeito à equidade de gênero, raça, etnia e geração”. Contudo, isso não se traduz em
projetos efetivos de melhoria do trabalho das mulheres na ES.
Ao analisar as políticas públicas da SENAES e a sua relação com as questões de gênero, a
dissertação de Andrade (2008) observa ainda que há pouca relação entre a SENAES e a Secretaria
Especial de Política para as Mulheres - SPM, que talvez pudesse ampliar essas questões. A autora
apresenta uma preocupação com o fato de a participação das mulheres nesta economia acabar se
relacionando com desregulamentação do trabalho das mulheres no mercado de trabalho e não pelo
seu caráter de possibilidade transformadora no que tange ao trabalho das mesmas. Este aspecto
poderá ser melhor aprofundado na análise das experiências pesquisadas, sobretudo no setor de
reciclagem, em que a relação entre a precariedade do trabalho e o aumento da mão de obra feminina
foi uma das principais questões observadas.
Andrade (2008) também chama atenção para o fato de que o número de trabalhadoras
mulheres no interior da SENAES é muito pequeno em relação à sua participação na ES, o que
também não é discutido e incorporado com prioridade pela SENAES. Essas discussões, no entanto,
começaram a ganhar maior visibilidade na Economia Solidária a partir da II Conferência Nacional
de Economia Solidária – CONAES, realizada no ano de 2010.
A I Conaes, um dos principais eventos de ES em âmbito nacional, foi realizada no ano de

38
2006 com o objetivo de afirmar a ES como uma estratégia política de desenvolvimento. Já a II
Conaes, realizada no ano de 2010, buscou fazer um balanço das políticas desenvolvidas e avançar
em algumas problemáticas 30.
É relevante descrever as quatro principais propostas resultantes da II Conaes: a) criação do
Ministério da Economia Solidária 31; b) fortalecimento das iniciativas de finanças solidárias, além da
ampliação do acesso ao crédito; c) ampliação do acesso ao conhecimento por meio da educação,
formação, assessoria técnica e acesso às tecnologias sociais; d) atualização e criação de leis e
mecanismos capazes de facilitar a formalização e funcionamento dos empreendimentos.
A II Conaes também apresentou uma nova definição de Economia Solidária. Nela observa-se
a ideia de convivência entre capitalismo e ES, presente em autores como Singer, mas também nota-
se a ideia de disputa ideológica entre capitalismo e construção de novas propostas de
desenvolvimento, presente em autores como Gaiger e Coraggio. Ao mesmo tempo, a nova definição
cunhada afirmou que a ES não deve ser uma política compensatória para momentos de crise do
capital, bem como não deve ser compreendida como empreendedorismo. A seleção de alguns
fragmentos do relatório revela estes aspectos:
[...] A economia solidária trava a luta política ideológica contra o neoliberalismo e disputa
com o capitalismo [...] Nos momentos de crise econômica aumenta o interesse pela economia
solidária, suscitando o debate sobre o tema. No entanto, a economia solidária não deve ser
considerada apenas como um conjunto de políticas sociais ou medidas compensatórias aos
danos causados pelo capitalismo, nem como responsabilidade social empresarial. [...] Na
construção de um modelo de desenvolvimento, a Economia Solidária organiza a produção de
bens e de serviços, o acesso e a construção do conhecimento, a distribuição, o consumo e o
crédito, tendo por base os princípios da autogestão, da cooperação e da solidariedade, visando à
gestão democrática e popular, à distribuição eqüitativa das riquezas produzidas coletivamente,
ao desenvolvimento local, regional e territorial integrado e sustentável, ao respeito aos
ecossistemas e preservação ao meio ambiente, à valorização do ser humano, do trabalho, da
cultura, com o estabelecimento de relações igualitárias entre diferentes, em relação a:
gênero, raça, etnia, território, idade e padrões de normalidade. (grifos meu).

Apesar de estas definições ainda estarem bastante amplas e possibilitarem margem a certa
generalidade, este relatório enfatiza alguns aspectos que nos ajudam a compreender um pouco mais
o conceito de ES que foi se formando no Brasil, a partir de sua trajetória e dos diversos atores que
dela fazem parte (incubadoras e outras agências de fomento, igreja, intelectuais, trabalhadores/as,

30
O relatório da II Conaes pode ser encontrado no seguinte link: http://www.mte.gov.br/conaes/noticia41.asp.
31
As deliberações da II CONAES representam um marco para a Economia Solidária. Contudo, no ano de 2011 tramitou
no governo Federal uma proposta de fundir a ideia de um Ministério de Economia Solidária com a Secretaria Especial
de Micro e Pequena Empresa, criando um único Ministério – PL 865, o que provocou grande resistência por parte de
seus atores e atoras. Após uma série de manifestações e articulações, a presidenta Dilma Roussef decidiu manter a
SENAES no Ministério do Trabalho e Emprego, compreendendo que as propostas da ES não se vinculam a ideia de
empreendedorismo presentes no Ministério de micro e pequena empresa.

39
lideranças, gestores públicos, movimentos sociais – MST, feministas, anti-racistas, etc.).
É possível afirmar que nos documentos elaborados nos eventos onde há maior caráter de
movimento social, com a participação dos empreendimentos, ITCPs, ONGs, etc., tal como nas
conferências e nos fóruns, a descrição da Economia Solidária aparece ainda enfatizando uma
proposta mais combativa contra o capitalismo, numa direção de afirmar uma economia alternativa,
mesmo não sendo outro modo de produção. Já na descrição elaborada pela SENAES, a proposta de
ES restringe-se a uma política de inclusão social para uma parcela da população, perdendo o seu
caráter de transformação social.
Observa-se ainda que a partir da II Conaes, além das propostas de sustentabilidade
ambiental, de cidadania e solidariedade, já existentes, novas linhas de atuação começam a aparecer.
São destaques os empreendimentos culturais e as discussões de raça, etnia e gênero que começaram
a fazer parte dos documentos oficiais da ES.
Importante notar que essa preocupação e incorporação no relatório da II CONAES é
resultado da mobilização das mulheres que compõe a ES. Isso porque, alguns grupos feministas
começaram a pensar na ES como possibilidade de ampliação de trabalho para as mulheres e de
questionamento da divisão sexual do trabalho (NOBRE, 2003; FARIA, 2011; QUINTELA, 2006;
SANTOS, 2009). Também começaram a indagar sobre a invisibilidade das mulheres na ES.
Após uma carta escrita pelas mulheres durante a IV plenária de ES 32, houve o lançamento do
Grupo de Trabalho de Gênero no interior do Fórum Brasileiro (FBES – 2008), o qual surgiu com os
seguintes objetivos: aumentar a representação das mulheres e seu efeito na Coordenação Nacional e
Executiva do FBES; visualizar a participação e o lugar das mulheres, seus saberes, suas demandas,
na ES e no FBES; trocar conhecimento, formação, estudo e reflexão visando contribuir para o
debate da produção de conhecimento sobre o mundo do trabalho e as mulheres, além dos direitos
econômicos das mulheres na ES; fortalecimento da ação da assessoria aos grupos de mulheres

32
No relatório final da IV Plenária (p.8), em 2008, estava escrito que “as mulheres emocionaram a todas e todos da
plenária ao fazerem uma mobilização, apontando, de maneira bonita, com músicas e muita poesia, uma moção em
protesto pela pouca atenção dada ao tema no documento-base”. Esta carta foi anexada ao documento final com a
sistematização da plenária. A carta dizia: “Nós mulheres, que somos a grande maioria na Economia Solidária, que
participamos do movimento de mulheres, do movimento feminista, do movimento agroecológico, da luta pela terra, pela
reforma urbana e rural, trabalhadoras da Economia Solidária do campo e da cidade, negras, índias, extrativistas, brancas,
jovens, lésbicas, de todas as crenças e de todas as regiões desse país. Nós, mulheres que contribuímos com a construção
de uma nova sociedade com igualdade e justiça para todas as mulheres e homens, que somos responsáveis pela produção
e reprodução da vida, e pela soberania alimentar e conservação da biodiversidade do planeta. Queremos registrar a nossa
indignação pela invisibilidade das mulheres no documento base da IV Plenária, pela inteira ausência das nossas falas,
questões e propostas vindas dos nossos estados e territórios. Reafirmamos um espaço próprio de auto-organização das
mulheres no FBES, reconhecendo e valorizando a participação das mulheres enquanto sujeitos políticos e econômicos
em todas as instâncias e processos dos Fóruns, municipais, estaduais e regionais. Luziânia, 29 de Março de 2008”.
40
(http://www.fbes.org.br/index).
A partir da formação deste GT, observa-se que uma série de eventos começou a ser
33
organizado para discutir especificamente o papel das mulheres e as relações de gênero na ES ,o
que ampliou a relação entre feminismo e ES e a incorporação do tema em seus documentos oficiais
posteriores, marcando o início da denominada quarta fase da ES.

1.4 – FASE 4 – Novos olhares refazendo a Economia Solidária: a participação das mulheres

Atualmente, a Economia Solidária é reconhecida no Brasil, no âmbito do governo federal,


como um projeto inserido no plano de governo “Brasil Sem Miséria”, o que a coloca, de um lado,
num patamar relevante como estratégia de organização e inclusão social. Mas, de outro, a coloca
num lugar e para um público específico, o que se distancia do plano inicial cunhado por seus
intelectuais idealizadores nas primeiras fases da ES.
Tendo em vista este contexto, o sociólogo uruguaio Raúl Zibechi (2010) elucida que a
ideologia triunfante do Banco Mundial penetrou sobre os intelectuais e governos progressistas da
esquerda, dos sindicatos e em muitos movimentos sociais, os quais defendem e criam projetos para
acabar com a pobreza sem tocar nas estruturas de propriedade e nas relações de poder, tal como
seria, para o autor, a proposta da ES inserida no plano Brasil Sem Miséria.
Para Zibechi (ibid.) o período atual de governabilidade do neoliberalismo apresenta duas
principais características que acabam se complementando na atuação dos governos progressistas. A
primeira é que as grandes multinacionais estão se apropriando dos bens comuns em forma de
expropriação – em particular de água e territórios – “para converter a natureza em mercadoria
(commodities) exportadas aos países centrais emergentes como China e India” (Zibechi, 2010, p.
33). A segunda é que esse tipo de acumulação deve ser compensada necessariamente por políticas
sociais porque estruturalmente a hegemonia do capital financeiro gera exclusão.
Assim, para Zibechi (2010), a questão principal da desigualdade não está nas porcentagens
elevadas da pobreza, mas na extrema riqueza e no modelo extrativista. Segundo o autor, existe uma
“classe social parasitária” que influencia nas políticas estatais, nas agendas públicas e nos meios de
comunicação para “desviar o foco da atenção frente a acumulação exacerbada de sua riqueza” (ibid.,

33
São exemplos: oficina “Enfoques feministas para el cambio estructural”, organizada pela Marcha Mundial de
Mulheres e Rede Latinoamericana de Mulheres Transformando a Economia (REMTE), durante o Fórum Social Mundial
em Belém/PA – 2009; “Seminário de Economia Feminista e Economia Solidária”, organizado pelo GT de Gênero do
Fórum Brasileiro de Economia Solidária, em Recife/PE – 2009; 3ª Ação Internacional da Marcha Mundial de Mulheres -
2010, que ressaltava a Economia Solidária como uma das formas de reconhecimento do trabalho feminino apoiada pelo
movimento; Encontros Nacionais de Mulheres da Anteag (que teve início no ano de 2007); Encontro de Mulheres
Catadoras, que foi realizado em 2011, 2013 e 2014, entre outros eventos.
41
p. 35). Trata-se de uma política das elites globais e do banco mundial para “des-sujeitizar” e
expropriar os saberes populares e, consequentemente evitar diferenças que se convertam em conflito
social, tal como seria para o autor a ES nos governos atuais de esquerda.
Zibechi (2010, p. 38) descreve que no interior dessas políticas são produzidas iniciativas
interessantes e que merecem atenção. O autor refere-se às cooperativas e a uma série de
organizações e associações que mostram a capacidade que “os pobres tem de se organizar e
mobilizarem-se”. No entanto, a crítica é a de que o Estado aproveita o impulso e a energia dos
movimentos sociais e o vincula a ideia de integração e desenvolvimento nacional para construir um
paleativo à miséria.
Segundo o autor, a ES e outros projetos sociais que nasceram como resistência às políticas
34
neoliberais e que estão localizados na América-latina numa visão “não eurocêntrica” , podem até
“ser espaços para que os sujeitos adquiram forças para encarar a luta necessária com melhores
condições”. Mas seria preciso que essas iniciativas conseguissem se organizar para de fato mexerem
nas estruturas de poder. Para o autor, por enquanto, elas nos mostram desafios práticos e teóricos a
serem investigados e superados na tentativa de construção de novas possibilidades.
Tomando como pano de fundo essa análise recente de Zibechi, pode-se dizer que esta quarta
fase da ES é marcada por um apelo dos atores de ES à maior participação, intervenção e
investimento do Estado às suas iniciativas. Intervenções essas que sejam capazes de permitir maior
capacidade de agir por parte dos atores da ES numa perspectiva estrutural e não apenas local.
A V plenária de ES, por exemplo, realizada em dezembro de 201235, apresentou uma carta do
FBES pedindo exatamente maior reconhecimento da ES pelo Estado, além de retomar a discussão
de que a proposta de ES se apresenta de maneira diferenciada da política capitalista e de outros
movimentos sem a mesma expressão e bandeira de luta:

A Economia Solidária tem como princípio a autogestão, a solidariedade, o reconhecimento e


valorização dos saberes tradicionais. É uma estratégia de Desenvolvimento Sustentável e
Solidário, que não se confunde com o microempreendedorismo individual, nem com a
economia criativa, nem com a economia verde e propõe ações urgentes para garantir as
condições de vida no planeta, sem degradar o meio ambiente e respeitando o ciclo completo da
natureza. Na nossa V Plenária afirmamos que a Economia Solidaria é um contraponto ao

34
O autor se refere a alguns movimentos que ele considera de base na América Latina, tais como a teologia da libertação
com as comunidades eclesiais de base, iniciativas pautadas na cultura dos povos indígenas, as comunidades mapuches
no México, a educação popular de base e outros movimentos com a intenção militante que trabalham fundamentalmente
numa ética de mudar o mundo (Zibechi, 2010).
35
Cabe destacar que a III CONAES já está em processo de desenvolvimento a partir dos fóruns regionais e estaduais que
a antecedem. Ela será realizada entre os dias 26 a 29 de novembro de 2014 e terá como tema: “Construindo um Plano
Nacional da Economia Solidária para promover o direito de produzir e viver de forma associativa e sustentável”
(http://portal.mte.gov.br/data/files/).
42
Capitalismo. É uma forma diferente de organizar o trabalho, onde não temos patrão nem
empregado, o trabalho é coletivo e autogestionário e a nossa principal preocupação é com as
pessoas, com a vida, com o meio ambiente e não com os lucros. Com isso, entendemos que é
fundamental fazer valer a igualdade de direitos entre homens e mulheres, respeitando a
diversidade de raça, orientação sexual, gerações, pessoas em situação de vulnerabilidade,
egressos do sistema prisional, portadores de transtornos mentais, usuários de álcool e outras
drogas, comunidades estrangeiras e garantir a defesa dos direitos sociais, políticos e
econômicos destas pessoas […] Mesmo com práticas isoladas, cada movimento vem fazendo a
sua parte em prol de uma nova sociedade. Acreditamos que a convergência de nossas ações só
poderá nos fortalecer na consolidação de uma economia que já acontece, mas é pouco
reconhecida e apoiada pelo Estado (ibid., p.28).

Na definição apresentada observa-se, além da ênfase ao contraponto com o capitalismo e


afirmação de que a ES não se confunde com o micrompreendedorismo, a influencia da relação entre
ES e movimentos sociais, ampliando a definição de ES no sentido do direito humano e descrevendo
uma série de sujeitos dessa proposta, bem como valorizando uma ação conjunta entre ES e
movimentos em busca de fortalecimento, o que marca essa fase da ES.
A V plenária contou novamente com uma carta organizada pelo GT de Gênero que em 2011
passou a ser um GT exclusivo de auto-organização das mulheres, passando a se chamar GT
Mulheres do FBES. Destacam-se alguns trechos desta carta em que o GT reforça a existência da
desigualdade entre homens e mulheres na ES, e mostra que o conceito de trabalho na ES precisa ser
ampliado, compreendendo definitivamente o trabalho produtivo e reprodutivo:

- As mulheres são a maioria na construção da Economia Solidária. Porém, a igualdade de


participação entre homens e mulheres, em todos os seus espaços, ainda é um desafio a ser
superado.
- Um debate central para a construção do feminismo dentro da Economia Solidária é o
questionamento e o rompimento com a divisão sexual do trabalho. Para isto é preciso ampliar o
conceito de trabalho e compreender que as chamadas esferas da produção e da reprodução, não
são separadas e independentes. Pelo contrário, são esferas articuladas.
- As mulheres se concentram em empreendimentos menos valorizados e há uma naturalização
do lugar das mulheres nos empreendimentos mistos. As mulheres são ainda minoria nas
direções e em outros espaços de decisão e, frequentemente, desempenham funções associadas
às tarefas da esfera da reprodução.
- Um elemento fundamental da Economia Solidária, que estabelece relação direta de
contribuição com a luta feminista, é a autogestão. Na construção da autonomia das mulheres, a
autogestão pode nos levar a práticas de igualdade, garantindo às mulheres espaços de decisão e
representação política (www.fbes.org.br, p. 1 e 2).

O GT Mulheres também apresentou uma série de demandas para fortalecimento das


36
mulheres na ES seguindo as bandeiras do movimento feminista . Após essa organização, novas

36
São exemplos de propostas: socializar as tarefas de cuidado; rotatividade de funções nos empreendimentos; combate à
violência contra a mulher; garantia de instrumentos de políticas públicas tais como cozinhas comunitárias, creches,
lavanderias; que a titularidade da terra seja também decidida pelas e para as mulheres; estudos que incorporem a
perspectiva da divisão sexual do trabalho; garantir nos mapeamentos da ES, dados desagregados por sexo, raça e classe;
formação política visando à transformação das desigualdades de gênero, raça e classe; incluir o tema raça e gênero em
43
questões com ênfase na perspectiva de gênero foram incorporadas para a segunda versão do
mapeamento de ES realizado pela SENAES. Neste complemento encontram-se questões que
buscam maior visualização do trabalho reprodutivo das mulheres 37. A ideia é a de que estas análises
possam ser incorporadas às politicas públicas e compreendidas como tão fundamentais como outras
necessidades dos empreendimentos solidários.
Cabe destacar que esse diálogo entre feminismo e ES não se deu sem a luta por um espaço de
visibilidade por parte das mulheres. Segundo a coordenadora da Casa da Mulher no Nordeste,
entrevistada para a realização desta tese e participante deste processo de construção, ao começar a
participar dos espaços de organização da ES ela percebeu, em conjunto com outras organizações
feministas, que, embora fossem a maior parte nas mesmas, as mulheres não eram destacadas como
pertencentes à ES e não eram sujeitos políticos protagonistas das iniciativas de trabalho
coletivo/associativo. Além disso, temas fundamentais como a divisão sexual do trabalho, a violência
contra a mulher e a participação política delas não eram nem sequer mencionados.
Foi dessa forma que esses grupos feministas começam a se organizar para ganhar um espaço
no Fórum e então compor o GT Mulheres para ampliar esta discussão. A entrevistada destacou ainda
que, embora tivessem feito uma grande mobilização para a preparação da IV plenária acima descrita,
as demandas do GT de Gênero não foram incorporados à plenária final. Extamanete por isso que
elas voltaram novamente organizadas para a V plenária, em que conseguiram garantir as suas
reivindicações, pelo menos em forma de um documento oficial e com maior visibilidade ao longo da
plenária.
Tal constatação, por sua vez, já começa a indicar que o debate em torno das questões de
gênero não é um debate tão simples de ser feito no interior da ES, demosntrando que as questões de
gênero, ao lado das questões raciais, não apresentam igual relevância que a classe social para a ES e
sua proposta de autogestão.
No âmbito teórico, as pesquisas em torno das questões de gênero na Economia Solidária
também vêm ganhando destaque ao enfatizar tais discussões. Entre elas, destaca-se, principalmente,
a contribuição das teóricas da Economia Feminista, como já citado no tópico anterior.

todos os programas de formação educativos da ES; ciranda infantil nos espaços dos eventos de ES; entre outras.
37
São exemplos: quem é responsável pelo cuidado com os filhos enquanto as mulheres estão no trabalho?; Como os
empreendimentos lidam com as mulheres que precisam levar os filhos ao trabalho?; Por quais atividades domésticas as
mulheres são responsáveis na família?; A renda da mulher é a principal fonte de renda da família, é complementar?;
Quais são os programas/políticas de comercialização que as mulheres tiveram acesso?; Para os empreendimentos mistos
buscou-se detectar quais atividades são realizadas só por homens ou por mulheres, entre outras questões que podem ser
encontradas no site da SENAES. Tais questões também foram importantes para o desenvolvimento desta tese, que
buscou identificar e analisá-las nas iniciativas de trabalho coletivo/associativo pesquisadas.
44
De acordo com Nobre (2011), a Economia Solidária poderia atuar articulando trabalho
reprodutivo à produção socializada, mostrando como o esforço das mulheres pode gerar riqueza.
Para a autora, isso deveria ser feito de forma a diminuir a sobrecarga de trabalho das mulheres e
melhorar as condições em que seu trabalho é realizado. Porém, Nobre (ibid.) analisa que as
cooperativas de ES, com seus limites e contradições, acabam não fazendo este intercâmbio e
sofrendo com baixos salários, com profissões desqualificadas, com serviços que necessitam de baixa
tecnologia, etc; os quais são frequentemente ocupados pelas mulheres.
Hersent, Guérin e Fraisse (2011, p. 315) analisam que as mulheres na ES acabam
denunciando a hierarquização de uma série de oposições que se reagrupam e se confrontam
mutuamente e que vão além da produção/reprodução, mas que inclusive colaboram para manter essa
separação, tais como “público/privado, mercado/não mercado, profissional/familiar, etc.
A partir dessas pesquisas, nota-se a importância de saber como as mulheres constroem suas
capacidades de ação e consciência de gênero, além de como elas respondem a essas lógicas de
dominação no âmbito da ES, conforme será explorado nesta pesquisa.
Contudo, há que se salientar que as questões de raça não tiveram a mesma magnitude que as
questões de gênero passaram a ter na ES. As pesquisas sobre o tema são recentes e não foram
desenvolvidas com a mesma amplitude das de gênero. Na fase em destaque foram encontrados
poucos programas e propostas voltadas para a população negra nas intervenções estatais de ES.
Nota-se que o GT Mulheres vem conquistando grandes avanços para pensar as questões da divisão
sexual do trabalho na ES, mas e a divisão racial do trabalho? O GT mostra o discurso de inclusão
das questões de raça em seus textos, mas ainda não tem construído propostas específicas. Além
disso, observou-se que o movimento negro não teve a mesma participação que o feminista nos
espaços de organização da ES, o que dificultou a amplitude das discussões raciais nesse contexto.
Os dados do SIES (2007), por exemplo, indicam a participação de 26, 31% de brancos nos
empreendimentos solidários, contra 37,58% de pardos e 8,18% de pretos, ou seja, 45,76% dos/as
participantes podem ser considerados negros e negras, o que não vem ganhando a relevância política
que esses dados indicam.
Analisando os documentos oficiais, notou-se o destaque para o tema raça e etnia apenas no
relatório de preparação para a IV plenária. Porém, a ênfase dada neste documento é para mostrar
como as questões da raça estão entre os fatores que condicionam a forma em que “os indivíduos
vivenciam a pobreza e estão diretamente relacionados aos processos de exclusão social, cultural e
econômica, criando barreiras para mulheres, índios e negras na luta pela inclusão social” (ibid.). O

45
documento destaca ainda que a forma como a ES se organiza vem ao encontro das formas coletivas
como a sociedade quilombola já se organizava, havendo então uma coerência entre a ES e as lutas
do movimento negro.
Segundo Giaccherino (2006, p. 8), existem algumas ações de política pública voltadas à
inclusão da população negra ou das comunidades quilombolas na ES, contudo, a autora afirma que
se tratam de ações afirmativas “limitadas às esferas consideradas culturalmente negras, ou às
experiências historicamente negras como as comunidades quilombolas”. Assim, a autora aponta a
necessidade de aprofundar o debate e prosseguir na inclusão de outras temáticas.
Em minhas pesquisas sobre o tema, identifiquei que a relação entre a ES e o movimento
negro vem se ampliando aos poucos. Algumas iniciativas podem ser citadas: encontro da rede de
ITCPs no ano de 2014 que contou com a presença do movimento negro, iniciativas de ONGs ligadas
a questões de raça ou do próprio movimento negro que começam a incorporar o trabalho associativo
como ação junto às mulheres negras; ou ainda estudos sobre o trabalho nos Quilombos que
apresenta semelhanças da organização do trabalho na ES. Contudo, este é um campo de pesquisa
ainda a ser explorado38.
A ITCP Unicamp se destaca como uma das incubadoras que tem o seu foco de atuação nas
perspectivas de gênero e raça. No ano de 2008 fundou o Grupo de Estudos Temáticos (GEPES) de
Gênero. A partir desse grupo ela passou a orientar ações específicas para mulheres, como a
organização de um grupo de mulheres para gerir um fundo coletivo entre diferentes cooperativas
(ITCP/UNICAMP, 2013). A ITCP também organiza uma série de oficinas sobre relações de gênero e
estimula a auto-organização das mulheres nos grupos em que incuba.
Nos anos de 2011 e 2012 a atuação com ênfase nas questões raciais também se ampliou na
ITCP Unicamp, principalmente com a presença de educadores/formadores do movimento negro em
seu corpo de trabalho. A atuação do GEPES de gênero passou a incorporar a questão específica das
mulheres negras na incubação, bem como passou a organizar oficinas sobre as questões raciais nos
empreendimentos incubados, cursos que ministram e eventos em que participam.
Além da ITCP UNICAMP, destaca-se a atuação de algumas ONGs, tais como a SOS Corpo e
a Casa da Mulher do Nordeste que também pautam suas ações práticas nessa relação entre gênero e
raça. Aos poucos esses trabalhos vêm ganhando relevância e sendo sistematizados, tal como será
revelado neste trabalho. Contudo, esta pesquisa inicial dos documentos e espaços de organização da

38
Em pesquisa realizada em diferentes bases de dados de artigos, teses e dissertações, encontrei apenas uma dissertação
de mestrado com o foco na relação entre a Economia Solidária e as questões de raça. A pesquisa foi realizada nas bases
da Fapesp, Capes, Scielo e nas universidades USP, Unicamp, Federal de Salvador, Pernambuco e Rio de Janeiro.
46
ES, já começa a revelar que discutir gênero e raça representa lutar por um espaço de disputa e de
representação que não está contemplado na ideia de autogestão apresentada pela ES.
Nessa direção, faz-se nescessário compreender o que significa a autogestão neste contexto
estudado e como é possível pensar nessa proposta vinculada às questões de gênero e raça, o que
representa mais uma crítica relevante para esta quarta fase da ES e para a continuidade desta
pesquisa.

1.4.1 Outras críticas relevantes: Economia Solidária e autogestão

Segundo Faria (2009), o cerne do conceito de autogestão está em que ele propõe, de um lado,
destruir a noção de economia atrelada ao lucro, à exploração e à dominação e, de outro, contrapor-se
à ideia de política reservada a um número restrito de políticos com ênfase para a radicalidade da
democracia direta e não representativa.
Para Faria (2009), tal concepção do conceito de autogestão se inscreve na tradição anarquista
de Proudhon (1851), que propôs a construção de unidades federalistas sem um governo central, mas
baseada em comunas autogeridas. Tratava-se de um socialismo mutualista e federativo. Já em 1920
o termo ganha relevância nas correntes marxistas revolucionárias, como com Rosa Luxemburgo, na
oposição operária russa, etc. Porém, o conceito somente ganhou sentido etimológico a partir de
1968, quando o termo autogestão assumiu na França o sentido de uma democracia radical, a qual
propunha a “volta às origens do socialismo baseando-se nas perspectivas do comunismo e recusando
aos partidos de vanguarda o monopólio sobre a representação dos interesses dos cidadãos”
(MOTHÉ, 2009, p. 26).
Num outro momento histórico, Mothé apresenta que, no início do século XX, o termo
autogestão volta a ser utilizado pelos anarcossindicalistas, trazendo a reflexão de que “o trabalho
manual não é somente uma força, mas um produto da inteligência” (MOTHÉ, 2009, p. 28). Ideia
que foi retomada na década de 1970 pelos gestores das empresas industriais, “quando se constatou
que o conhecimento prático dos assalariados de base era indispensável para se melhorar a
racionalidade dos processos de produção” (ibid.).
No início do século XXI, contudo, segundo Monthé, o termo passa então a ser utilizado entre
os “autogestionários que criticavam a separação entre dirigentes e executantes” exigindo a
participação política e democrática dos trabalhadores, não apenas nas empresas, mas na vida social
política como um todo, porém, com um sentido menos revolucionário.
Dessa forma, o termo continuou sendo inspirado pela ideia de democracia direta, em que as
47
pessoas poderiam ter acesso ao capital cultural e às informações necessárias para participarem
diretamente dos processos democráticos, sem precisarem de representantes. Apesar de novos
arranjos, o termo não teria perdido “o desejo de mudança” o qual o inspirou historicamente (ibid.).
Porém, alguns autores como Mothé (2009), alertam para a dificuldade de manter a
autogestão em sua radicalidade, visto que compreende a democracia direta como possível somente
em grupos pequenos. Nas palavras do autor, “as constatações empíricas permitem afirmar que
resultados eficazes da democracia direta podem verificar-se entre um número limitado de pessoas,
em um espaço público em que cada indivíduo possa expressar-se mediante outros recursos, além de
aplausos e gritos” (MOTHÉ, 2009, p. 29). Além disso, o autor afirma que quanto mais distantes
geograficamente estão as pessoas, mais se torna necessário recorrer à democracia representativa.
Compreende-se que é nesta discussão que estaria localizado o termo autogestão para a
Economia Solidária, sobretudo a partir de Singer, que se apropriou do conceito para representar
organizações autônomas de trabalhadores no interior do capitalismo, com uma nova forma de gerir
empreendimentos. Mas, para Faria (2009), ainda que com esta nova utilização, o termo autogestão
sem restrições não deveria ser utilizado, pois na análise do autor essa apropriação causa
ambiguidade, na medida em que o termo ainda pressupõe a ideia de transformação socialista em seu
sentido pleno e social. Assim a ES teria mais pretensões do que ela é capaz de abarcar atualmente.
Com isso, Faria (2009) não despreza a validade da Economia Solidária e suas experiências,
porém, ele enfatiza o erro conceitual em relação ao que denomina autogestão social, que seria a
autogestão plena, mas encontra um campo para a ES na chamada autogestão parcial ou coletivista.
Para o autor, a autogestão parcial ganha espaço nas próprias brechas do capitalismo e propõe
mudanças cruciais na organização do trabalho, mas não propõe a revolução socialista presente na
autogestão social. Trata-se de uma possibilidade encontrada em experiências que o autor denomina
de “Organizações Sociais Produtivas” – OSPs, apresentadas como o enfrentamento com o modo de
produção capitalista pela autogestão parcial, mas não a sua superação.
Embora pareça semelhante à ideia dos empreendimentos solidários sugeridos por Gaiger,
Faria (2009) salienta que a diferença está em que as OSPs referem-se apenas às organizações de
unidade produtiva, tendo como principais objetivos: produção das condições materiais de
sobrevivência, solidariedade e gestão coletivista do trabalho ao nível da unidade de produção.
O autor (ibid.) tampouco se refere a todas as cooperativas e associações, mas àquelas que se
diferenciam pelas suas características de autogestão parcial ao nível das unidades produtivas. Além
disso, Faria (2009) se refere às experiências que sejam capazes de unir os trabalhadores e as

48
trabalhadoras em torno de um projeto social comum e não de caráter unicamente econômico. Com
essas delimitações nota-se que nem todos os empreendimentos mapeados pelo SIES e denominados
como sendo de Economia Solidária poderiam ser considerados uma Organização Social Produtiva
de autogestão parcial. Ou seja, Faria (2009) descreve que a autogestão, mesmo que parcial, não pode
estar reduzida à criação de empregos ou a um status jurídico.
Em sua compreensão define pelo menos três determinações para o conceito de autogestão
parcial: (i) “a superação da distinção entre quem toma as decisões e quem as executa, no que diz
respeito ao destino dos papéis em cada atividade coletiva organizada com base na divisão do
trabalho”; (ii) “a autonomia decisória de cada unidade de atividade”; (iii) valorização da
participação das pessoas em todas as esferas da organização, o que requer envolvimento amplo,
técnico, de gestão e de formação integral (ibid., p.324). Com isso, as OSPs pretendem, pelo menos,
interferir diretamente nas relações de poder dos trabalhadores no processo econômico, ainda que se
mantenham no interior do capitalismo.
De qualquer maneira, mesmo para estas Organizações Sociais Produtivas a principal questão
continua sendo a contradição entre manter as características de autogestão parcial convivendo com o
sistema capitalista. Entre as dificuldades que as OSPs podem enfrentar, Faria salienta que a principal
delas é construir novos estilos de vida e assumir a prática do consumo solidário em meio a tantos
atrativos da sociedade capitalista, priorizando a produção de valores de uso que satisfaçam as
necessidades humanas e construindo um projeto coletivo de vida. Porém, embora reconheça as
dificuldades existentes, Faria (2009) considera que é preciso compreender que a OSP possui outra
lógica e não pretende disputar o terreno com o sistema de capital, pois se configura como sua
contradição.
Com isso observa-se que o autor desenvolve uma crítica à imprecisão conceitual presente na
Economia Solidária, visto que, para ele, é preciso rever o conceito de autogestão a partir do que as
experiências práticas estão efetivamente realizando, sem generalizá-las e sem ter a pretensão do que
elas podem vir a ser sem que tenham condições para isso.
Após essa descrição cabe aqui um posicionamento em relação à utilização do conceito em
questão. Faz-se necessário compreender as ponderações propostas por Faria, o que me fará utilizar o
conceito de autogestão parcial e de Organização Social Produtiva. Neste conceito compreende-se
que é fundamental não perder a importante dimensão da ampla participação popular com vistas à
construção de um processo democrático que permita o protagonismo das e dos trabalhadores que se
lançam às iniciativas de trabalho coletivo/associativo. Contudo, nesta tese, o termo somente será

49
completo se abarcar também a compreensão de que, ao mexer na estrutura hierárquica do trabalho, é
fundamental incluir as dimensões da divisão sexual e racial do trabalho. Ou seja, não basta pensar
apenas nas relações de trabalho manuais e intelectuais e na participação direta nas unidades de
produção, mas também em quem realiza esse trabalho, buscando contribuir para a superação das
desigualdades raciais e sexistas no mundo trabalho. Ao longo desta pesquisa a importância desta
dimensão para a autogestão parcial ficará cada vez mais evidente, uma vez que ela busca provar que
39
não é possível falar em igualdade de divisão social do trabalho quando as OSPs dividem de forma
diferenciada o trabalho de homens e mulheres, brancos ou negros, etc.
Diante disto, o próximo capítulo ampliará os argumentos em torno da divisão sexual e racial
do trabalho para elucidar tal posição e comprovar a necessidade de pensar, não apenas o termo
autogestão, mas a sociedade como um todo, em termos de classe, raça e gênero. Somente assim será
possível ampliar a tentativa de construção da autogestão parcial nas OSPs pesquisadas.

39
Segundo Bottomore (2001, p. 112) ao explicar o pensamento marxista, a divisão do trabalho é uma condição
necessária para a divisão de mercadorias, pois “sem atos de trabalho mutuamente independentes, executados
isoladamente uns dos outros, não haveria mercadorias para trocar no mercado”. Contudo, o autor descreve que a
recíproca não é verdadeira, na medida em que a produção de mercadorias explorada no mercado capitalista, não é uma
condição para a existência de uma divisão do trabalho. As sociedades primitivas, por exemplo, conheciam a divisão do
trabalho, mas os produtos do seu trabalho não eram convertidos em mercadorias. Deste modo, o autor define que
existem dois modos de compreender essa divisão. A primeira seria a divisão social do trabalho, existente na relação de
exploração do trabalhador ao converter os produtos em mercadorias, na troca entre capitalistas e pautada na acumulação
de capital de uma classe em detrimento de outra. E a segunda seria a divisão do trabalho entre trabalhadores, como fruto
de um trabalho coletivo para o desenvolvimento da sociedade. Neste contexto, a ideologia dominante busca “analisar a
divisão de trabalho em termos da distribuição dos indivíduos por empregos segundo preferências e habilitações (sejam
elas inatas ou adquiridas), a proclamar a especialização como fonte de maior desenvolvimento e profundidade, e, em
geral, a ignorar a divisão do trabalho como produtos de determinadas relações econômicas e sociais” (ibid., p. 113).

50
Capítulo 2 – Gênero, Raça e Classe no mundo do Trabalho: um capítulo teórico-metodológico
em torno da consubstancialidade das relações sociais.

Tal como abordado no primeiro capítulo, a participação das mulheres vem aumentando nas
iniciativas de trabalho coletivo/associativo, permitindo, ou tentando reivindicar, algumas mudanças
efetivas em suas práticas, sob orientação das bandeiras do movimento feminista.
A evolução das pesquisas de gênero nestas manifestações é também um indicativo da
necessidade de olhar para essas Organizações Sociais Produtivas buscando compreender o que de
fato significa a grande participação das mulheres nesses espaços: o que existe de especial na
trajetória das mulheres que faz com que elas sejam grandes alvos de projetos como os de Economia
Solidária? Qual a relação entre as desigualdades de gênero e os desafios que impedem o avanço das
mulheres na Economia Solidária? O que elas conseguem conquistar em termos de divisão sexual do
trabalho nesses espaços? Quais são os seus limites? Como a perspectiva das relações de gênero pode
influenciar para a ampliação da autogestão parcial no trabalho coletivo/associativo?
Tais indagações não estão sozinhas enquanto campo de discussão teórico necessário para a
compreensão e ampliação das experiências de trabalho coletivo/associativo. A invisibilidade da
população negra se cruza às questões acima citadas. Segundo Giaccirino (2008), pouco se fala na
quantidade de negros e negras nas iniciativas de trabalho coletivo/associativo e algumas questões
também merecem ser debatidas: Em que medida a ES reproduz ou contribui para a superação da
divisão racial do trabalho e os preconceitos sociais de raça? Como é a participação das mulheres
negras nessas iniciativas? E dos homens negros? Existe diferença entre os setores de ES no que
tange a cor de seus trabalhadores e trabalhadoras?
Faz-se necessário questionar ainda porque as questões raciais e de gênero não ganham a
mesma importância e relevância que outros temas de estudos no âmbito da ES, embora sejam
fundamentais para a compreensão deste fenômeno social. Exatamente por isso, esse capítulo se faz
essencial para compor esta pesquisa. Ele buscará elucidar a importância de compreender as
múltiplas formas de dominação que os estudos de gênero e raça acabam por revelar, sobretudo no
âmbito do trabalho e no cruzamento com a categoria classe social.
Em outras palavras, esse capítulo se apresenta como um capítulo teórico-metodológico, na
tentativa de esclarecer como as diferentes formas de dominação que estruturam a sociedade, a saber,
a classe, a raça e o gênero se relacionam no mundo do trabalho e acabam por influenciar as
Organizações Sociais Produtivas, dificultando ou favorecendo alguns avanços. Exatamente por isso
ele tentará fornecer os elementos teóricos para melhor compreensão dessas relações sociais e para
51
conseguir analisá-las ao longo desta investigação.
Uma das primeiras autoras a citar a complexidade da junção das categorias de classe, raça e
gênero foi Joan Scott já na década de 1990. Ao conceber a “realidade social em termos de gênero”
(1995, p. 83), a autora mostrou como gênero pode ser compreendido como uma categoria analítica
que ajuda a explicar com profundidade as mudanças na sociedade, questionando os significados em
torno do ser homem e do ser mulher em diferentes instituições e organizações da vida social. A
autora indica a necessidade de pensar a mulher e refletir sobre sua vida social não como um
“produto das coisas que faz, mas do significado que as suas atividades adquirem através da interação
social concreta” (ibid, p. 86). Dessa forma, enfatizar as relações de gênero significa à exigência de
situar as relações entre homens e mulheres no espaço e no tempo, o que pode ameaçar a organização
do sistema social por inteiro.
Além disto, Scott (1995) revelou que esta nova forma de analisar os processos históricos
sugere que o gênero seja redefinido em conjunção com uma “visão de igualdade política e social que
inclui não só o sexo, mas também, a classe e a raça” (SCOTT, ibid., p. 93), o que nos permite
ampliar as leituras da sociedade ao questionarmos diferentes e complexas formas de poder.
Já na França essa complexidade da coextensividade entre as categorias raça, classe e sexo
vem sendo discutida desde o final da década de 70 até os dias atuais, principalmente por Danièle
Kergoat (2010, 2012) na utilização do termo “consubstantialité”, que será traduzido nesta pesquisa
por consubstancialidade.
A autora defende a tese de que as relações sociais são consubstanciais, em seu termo mais
simples como “unidade de substancia”. Assim, raça, classe e gênero, embora sejam separadas para a
análise sociológica, compõem uma unidade de substância e atuam em conjunto nas relações sociais.
Nas palavras da autora, "as relações de classe, gênero e raça se reproduzem e se coproduzem
mutuamente" (KERGOAT, 2010, p. 112). Todas as três são categorias socialmente construídas,
como resultado da discriminação e como produção ideológica; e elas estruturam as bases ideológicas
e sociais ao mesmo tempo. Dessa forma, na consubstancialidade, o gênero, ou a classe ou a raça não
são somente unificadores, visto que nenhuma relação social vem primeira. Nos termos da autora,
"não existe contradição principal ou secundária" (ibid., p. 118).
Cabe destacar que, ao se expressar em termos de relações sociais, a autora quer dizer
relações sociais de dominação. Para Kergoat, falar em termo de relações sociais “coloca a luta dos
dominados no coração do problema”. A autora define relações sociais como "uma relação
antagônica entre dois grupos sociais, estabelecida em torno de uma questão. É uma relação de

52
produção material e ideológica" (KERGOAT, 2010, p. 112). Ou seja, falar de relação social para a
Kergoat é pensar a construção ideológica e discursiva dominante que estrutura a sociedade e que se
estabelece numa relação, sendo, portanto, conflitual 40.
Em seus amplos trabalhos teóricos, Kergoat se dedica principalmente aos estudos das
41
relações sociais de sexo , porém, compreende que para entender o complexo das relações sociais
presente nas práticas sociais, somente pensar em termos de relações de sexo não é suficiente, pois
elas são atravessadas por outras relações sociais, as quais imprimem conteúdos concretos às relações
de sexo. Por exemplo, uma mulher não é só uma mulher, ela é trabalhadora, branca ou negra,
migrante ou imigrante, mãe ou não, jovem ou velha, ou seja, existe um conjunto de relações sociais
que operam nos indivíduos e em suas práticas.
Dessa forma, os indivíduos estão submetidos, ou exercem um modo de dominação, segundo
diversas formas de relações sociais. Uma mulher pobre, negra, por exemplo, não é a mesma que uma
mulher rica e branca. Assim como existem elementos que perpassam as duas ao mesmo tempo,
40
Observa-se aqui a centralidade do conceito de classe social na base deste referencial teórico. Segundo Bottomore
(2001), pautado nas elaborações de Marx e Engels, o conceito de classe, produto da burguesia, é a base da sociedade
capitalista, e a luta de classes entre a burguesia e o proletariado é a história da sociedade capitalista. Em O Capital, Marx
discorre que “é sempre a relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtos diretos que revela
o segredo mais íntimo, o fundamento oculto, de todo o edifício social” (apud BOTTOMORO, 2001, p. 62). Nessa
definição, o fundamental em Marx é a relação de poder e dominação estabelecida entre os donos e proprietários dos
meios de produção, a classe intermediária, que é a classe média, e os trabalhadores proletários. Entre essas classes há, no
entanto, uma condição econômica que separa os modos de vida, interesses e culturas entre essas classes, o que,
inclusive, é responsável pela formação dessas classes. Entre as diferentes classes sociais há, não apenas um status
diferenciado, como também um conflito de interesses entre grupos e camadas sociais diferentes. Segundo Bottomore
(ibid.), os grupos dominantes, por sua vez, exercem o poder através dos aparelhos do partido e do Estado. Cabe destacar
que, segundo o autor, os estudos marxistas, desde o final do século XIX, deixaram claro que compreender a estrutura e
os conflitos de classe no desenvolvimento da sociedade capitalista é muito mais complexo e ambíguo do que aparece nos
estudos de Marx e Engels, os quais analisaram o capitalismo em seu tempo histórico. As relações de classe e as lutas de
classe no decorrer dos anos sofreram grandes transformações em suas constituições, a partir das lutas e conflitos
históricos. Contudo, não perderam o seu cerne, a saber: a relação de dominação entre os detentores do poder e dos
meios de produção e os trabalhadores oprimidos por meio da exploração de seu trabalho. Exatamente por isso,
compreender as questões de classe na complexidade que trago aqui, ou seja, na coextensividade com as relações sociais
de gênero e raça, demonstra uma relevancia social e política para a evolução e reelaboração dos estudos de classe. Deste
modo, mesmo sendo central, o conceito de classe, já abordado em inúmeras teses na sociologia do trabalho, não será o
foco principal deste texto. Tendo em vista a quantidade de trabalhos no âmbito da Economia Solidária que abordam
especificamente as relações de classe, o meu esforço teórico aqui se deu principalmente ao relacioná-lo com os conceitos
de gênero e raça, a fim de compreender a complexidade da proposta da coextensividade das relações sociais de
dominação de classe, raça e gênero. Para maior compreensão do conceito de classe ver Bottomore (2001); Lukás (1923);
Marcuse (1964); Poulantzas (1974).
41
Cabe ressaltar que, embora não seja contra o termo “gênero”, Kergoat prefere utilizar o termo sexo somado ao uso de
relações sociais (rapport social de sexe). Segundo a autora, gênero, o termo anglo-saxão, não se opõe às relações sociais
de sexo, na medida em que ambos são polissêmicos. Para a autora trata-se mais de uma “questão de conceitualização
alternativa do que de formalizações preferenciais”. Na explicação da autora, o termo relações “rapport” abarca a ideia de
reciprocidade, o que torna difícil esquecer o outro grupo, o dos homens, já o conceito relações sociais de sexo ajuda a
repensar a epistemologia das relações sociais, das ciências sociais, o que, para ela, não estaria pressuposto no termo
gênero. De qualquer forma, a própria autora utiliza “gênero” e “sexo” em suas pesquisas, embora enfatize a preferência
pelo termo “relações sociais de sexo” por compreender que este é mais apropriado para pensar relações sociais de
dominação que comportam uma base material, o que levará a sua discussão em termos de divisão sexual do trabalho.
53
existem outros que as diferenciam ideológica e praticamente, embora ainda sejam mulheres numa
mesma sociedade machista.
Outro aspecto fundamental para Kergoat (2010, 2012) refere-se ao fato de que o centro
desses sistemas de dominação e exploração é as relações de produção, ou seja, o trabalho e sua base
material pautada no conecito de classe social. Exatamente por isso o foco do termo
consubstancialidade é a relação entre raça, classe e gênero. A autora explica que as relações de
geração, por exemplo, são importantes enquanto categoria de análise e representam relações sociais,
mas não são relações de produção. Para Kergoat (2010, 2012), a ênfase nas relações de produção é
indispensável para compreender o sentido da dominação presente nas relações sociais, pois tal
dominação é efetivada pela “apropriação do trabalho de um grupo social por outro" (KERGOAT,
2010, p.119). Essa compreensão, por sua vez, constitui a base da opressão e exploração existente na
estrutura social42.
Cabe destacar que no conceito em questão não significa que existe um determinismo puro,
visto que os indivíduos não são somente produtos das relações sociais; pelo contrário, segundo
Kergoat (2012), entender essa complexidade nos ajuda a restituir os atores sociais para colocá-los no
centro de suas práticas na tentativa de conquista da consciência de classe, raça e/ou de gênero para
revertê-las.
Em outras palavras, existe uma relação social de dominação que se opera e se exprime de
três formas canônicas: exploração, dominação e opressão. Contudo, no nível das práticas sociais os
sujeitos vêm construindo relações de vínculo social, por exemplo, entre os casais. Mas ainda existem
formas de dominação que se mantém, como a violência, as diferenças salariais, etc. Como bem
sintetiza Kergoat “são as práticas sociais e não as relações sociais que podem desenhar formas de

42
Vale salientar que o conceito francês de consubstancialidade não é o mesmo que o conceito norte-americano de
interseccionalidade. Segundo Kergoat (2010), os estudos pós-coloniais que influenciam a teoria da intersectionnalité,
apresentaram uma vertente importante do cruzamento entre raça e gênero, mas não deram a mesma ênfase para a classe
social. A autora reconhece o mérito de tais estudos ao terem desenvolvido o conceito de raça, sobretudo enfatizando a
resistência dos movimentos sociais negros, bem como os estudos de violência conjugal e de violência entre mulheres
brancas e negras. Como explica Hirata (2014), o termo interseccionalidade surgiu na década de 70 quando o movimento
negro passou a reivindicar múltiplas formas de identidade para compreender as relações de gênero, tal como a
sexualidade, geração, religião, etc. Contudo, para a autora, a discussão note-americana mascara as relações sociais em
termos de relações de dominação e de classe social. Para Kergoat (2012), essa multiplicidade de categorias não fixas
pode diminuir a importância das relações sociais de dominação, a saber, o gênero, a classe e a raça. Além disso, a autora
considera que “os teóricos da interseccionalidade raciocinam em termos de categorias, privilegiando uma ou outra
categoria, como, por exemplo, a nação, a classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las e por vezes não
levando em conta as dimensões materiais da dominação” (HIRATA, 2014, p. 5) A interseccionalidade, contudo,
apresenta uma convergência com a consubstancialidade: não hierarquização das formas de opressão. Porém, segundo
Kergoat (2010), a interseccionalidade é um conceito geral que não analisa as relações sociais de forma histórica e
dinâmica. Coloca grande potência na resistência e nas relações de gênero e raça, mas não as localizam na dominação, ou
seja, em termos de relações sociais de classe.
54
resistência e serem portadoras de uma mudança potencial ao nível das relações sociais dominantes"
(2010, p.113/114). Utilizando outra expressão da autora, ao mesmo tempo tudo muda e nada muda!
As mulheres, por exemplo, podem ser sujeitos sociais coletivos, produtoras de seus atos e de
suas próprias histórias. As mulheres podem superar a ideia de feminino imposta e construir novas
práticas sociais. Por meio de sua capacidade de agir, "o grupo social das mulheres se apropria de
outras maneiras de pensar e de fazer e cria outras formas de produção social da existência humana"
(KERGOAT, 2010, p. 114). Contudo, as dificuldades, barreiras e obstáculos impostos pela sociedade
machista, racista e classista não deixam de existir.
Remeter à língua francesa ajuda nesta compreensão, visto que, nesta língua existem duas
possibilidades para descrever as relações sociais: rapport social e lien social ou relation, ou seja,
relação social e vínculo social. A primeira refere-se às relações sociais dominantes tais como as de
classe, raça e sexo que culminam em grupos sociais com interesses contraditórios e antagônicos. Já a
segunda, remete a relações concretas mantidas por diferentes grupos em distintas práticas sociais.
Assim, as interações entre as pessoas no interior de diferentes grupos e instituições estão marcadas
tanto pela diversidade como pela contradição, podem referir-se tanto ao rapport como ao relation,
podem ser construídas em termos de antagonismo/dominação ou de vínculo: “vínculo social não
invalida relação social e vice-versa” (HIRATA, KERGOAT, 2003, p. 115).
Contudo, cabe salientar que uma coisa diferente é dizer que o vínculo social é o fundador das
relações sociais de sexo, classe ou raça. O que fica explícito nesta discussão é o fato de encarar a
complexidade das relações de dominação que historicamente se apresenta com prejuízos para alguns
grupos sociais.
É possível fazer o esforço de sistematizar o conceito de consubstancialidade em cinco
principais aspectos que se relacionam, a saber: 1) as relações sociais de raça, gênero e classe
modulam umas às outras e se constituem de forma recíproca; 2) o centro das relações sociais são as
relações de produção, representada pelo trabalho; 3) faz-se necessário historicizar as relações sociais
e ter a noção de que elas são dinâmicas; 4) a coextensividade das categorias de classe, raça e gênero
contribui também para identificar as formas de resistência que os sujeitos sociais constroem nas
práticas sociais nas quais se inserem; 5) faz-se necessário identificar os princípios de funcionamento
de cada relação social para então descobrir as suas intersecções.
Salienta-se este último aspecto para dar continuidade a este texto, na medida em que ele se
segue fazendo uma discussão analítica das relações de gênero e classe, de modo separado das
relações de raça e classe, a fim de evidenciar o funcionamento de cada uma delas para seguir nas

55
análises da tese43. O texto abordará ainda como as relações sociais de sexo, raça e classe se
apresentam no mundo do trabalho, principalmente quando essas categorias são justificadas por meio
da noção de qualificação.
Isso porque o conceito de qualificação acaba por legitimar o discurso dominante para manter
a divisão sexual ou racial do trabalho, justificando lugares que as mulheres e a população negra
ocupam no mundo do trabalho, sendo, portanto, outro conceito de fundamental importância nesta
análise.

2.1. A dimensão de gênero e a divisão sexual do trabalho


Conforme elucida Baudelot (2003, p. 320), etnólogos e sociólogos já mostraram que devido
a formas de socialização distintas, “homens e mulheres são portadores de valores diferentes, desde a
mais tenra infância”. As mulheres tendem a adquirir valores de cuidado ao outro, responsabilidade,
atenção e preocupação com as relações familiares. Por outro lado, a educação reservada aos homens
coloca-os como bons competidores, autoconfiantes, desenvolvendo espírito de conquista, etc. Trata-
se de uma “divisão de valores sexuada pela história” (ibid.).
Uma das questões desta problemática é que essas divisões de valores, embora não se
generalize e nem sempre aconteça na prática, são exploradas produtivamente na divisão do trabalho,
primeiramente na divisão entre o trabalho e a casa e depois no mercado de trabalho. A partir desta
divisão sexuada no mercado de trabalho atual, diferentes pesquisas apresentam que os trabalhos
desvalorizados, precarizados e de baixa qualificação vêm sendo ocupados de maneira mais intensa
pelas mulheres, principalmente as de baixa renda, negras e com pouca ou nenhuma escolaridade
(ARAÚJO, 2004; MARUANI e HIRATA, 2003; KERGOAT, 2009; HIRATA, 2001-2002).
Para maior compreensão dessas afirmações, faz-se necessário aprofundar alguns conceitos,
tais como: a) o conceito de relações de gênero, que será analisado a partir de autoras como Scott

43
Cabe notar que se trata de relações sociais completamente imbrincadas, mas cada uma delas também opera seguindo
diferentes funcionamentos. Por exemplo, a pessoa negra sofre preconceito independente de ser mulher ou pobre. Existe
um mecanismo que opera na ideologia do preconceito racial que precisa ser revelado, contextualizado e historicizado. O
mesmo acontece nas questões de gênero. As mulheres são violentadas, independente da classe social que ocupam e da
cor que as descreve. Exatamente por isso consideramos importante ampliar a nossa compreensão em torno das
especificidades de cada relação social. Contudo, a consubstancialidade nos mostra que é necessário compreender como
essas relações operam juntas em cada situação, ou seja, como a intersecção entre elas apontam relações sociais
específicas: mulheres pobres negras; mulheres pobres brancas; homens pobres negros e homens pobres brancos.
Voltando aos exemplos, a mulher, negra e pobre sofre com a realidade de discriminação de maneira mais acentuada e
diferente que do homem, negro e rico, que é diferente ainda da realidade colocada para o homem, branco, pobre, em
comparação com o homem, negro, pobre, assim como uma mulher branca, de classe alta tem outras condições para lidar
com a violência em comparação com a mulher negra e pobre. Nessa pesquisa não faremos uma comparação entre
diferentes realidades, mas utilizaremos tal conceito para compreender a realidade complexa que poderá ser descrita nas
iniciativas pesquisadas quando as analisamos em termos de classe, raça e gênero.
56
(1995), Saffioti (2004) e Louro (2002) e; b) o conceito de divisão sexual do trabalho, a partir de
autoras como Kergoat (2009), Maruani e Hirata (2003), Araújo (2004) e Hirata (2007, 2009).

2.1.1. As relações de Gênero


Uma das primeiras mulheres a escrever sobre o conceito de gênero foi Gayle Rubin, no ano
de 1975, quando afirmou que “um sistema de sexo/gênero consiste numa gramática, segundo a qual
a sexualidade biológica é transformada pela atividade humana” (RUBIN apud SAFFIOTI, 2004, p.
108). Porém, o conceito de gênero ganhou relevância com os estudos feministas em finais de 1980 e
mais precisamente em 1990.
Segundo Guacira Louro (2002), o termo “gênero” faz parte da tentativa das feministas
contemporâneas de reivindicar um certo “terreno de definição”, para sublinhar a inconsistência em
diferentes teorias para explicar as desigualdades entre as mulheres e os homens. Nesse processo, tais
estudiosas começaram a encontrar não somente uma “voz teórica própria”, como também aliados/as
acadêmicos/as e políticos.
No entanto, o esforço em elaborar esse conceito não garantiu, de forma imediata, que as
questões de gênero fossem reconhecidas como igualmente políticas, prioritárias e urgentes. Além de
posturas ideológicas, Louro (2002, p. 228) salienta que, inicialmente, e mesmo na atualidade, o
conceito não possuía uma compreensão única, tampouco se apresentava com uma “tradição teórico-
epistemológica sólida”, tal como o conceito de classe, por exemplo.
As distintas compreensões em torno do gênero foram muito bem elucidadas por Joan Scott
(1995) em seu texto “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Texto este, por sinal, que tem
se apresentado como uma referência para os estudos de gênero, principalmente pelo fato de essa
autora ter introduzido no conceito a presença do poder nas relações entre homens e mulheres.
Segundo Scott (1995), as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” “como uma
maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos” (SCOTT, 1995, p. 1). Na
década de 1990, ganhou destaque com as feministas americanas que “queriam insistir na qualidade
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”. No sentido literal, para as americanas, a
palavra indicava uma “rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo”
ou “diferença sexual””. Portanto, Scott elucida que o “gênero” sublinhava “o aspecto relacional das
definições normativas de feminilidade” (ibid.).
Conforme descrevem Louro (2002) e Saffioti (2004), ainda que limitado, existe um consenso
em torno das relações de gênero, já cunhado por Simone de Beauvoir ao afirmar que “ninguém

57
nasce mulher: torna-se mulher”: as relações de gênero não são um produto biológico, mas uma
construção social do masculino e do feminino, que tem prejudicado especialmente as mulheres.
Portanto, gênero contesta a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres em diferentes
práticas sociais e espaços de luta e de vida. Nas palavras de Scott (1995, p. 76), “o uso do “gênero”
coloca a ênfase sobre todo o sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente
determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade”.
É importante notar que falar de gênero não é o mesmo que falar de mulher ou de sexo, tendo
em vista que as relações de gênero são construídas por mulheres e homens, independente de sua
opção sexual e afeta toda a sociedade. O conceito propõe muito mais do que incorporar as mulheres
nas análises teóricas; propõe mostrar como são relações que também estruturam a sociedade e que
merecem amplo destaque social.
Scott (1995, p. 83) salienta a importância de conceber a “realidade social em termos de
gênero”. Nessa direção, gênero pode ser compreendido como uma categoria analítica que nos ajuda
a explicar com profundidade as mudanças na sociedade, questionando os significados em torno do
ser homem e do ser mulher em diferentes instituições e organização da vida social. A autora indica
que devemos pensar a mulher e refletir sobre sua vida social não como um “produto das coisas que
faz, mas do significado que as suas atividades adquirem através da interação social concreta” (ibid,
p. 86).
Aprofundando esta discussão a partir de uma noção das relações de poder presente em
Michel Foucault, bem como revendo o conceito de gênero em distintas teorias, Scott (1995)
apresenta a sua definição de gênero, abordando dois aspectos em especial: “1) o gênero é um
elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e 2) o
gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).
Nesta elaboração conceitual Scott (1995) salienta ainda quatro elementos que se relacionam.
O primeiro corresponde às representações simbólicas evocadas em torno das relações entre homens
e mulheres, exigindo reflexões sobre como são criados estes símbolos e em que contextos. Num
primeiro plano, as diferenças entre homens e mulheres são evidentes, “já que ocorrem
concretamente em nível do corpo, no funcionamento glandular e nas funções reprodutivas”
(WHITAKER, 1988, p. 10). A questão que se apresenta é que a sociedade busca reinterpretar essas
diferenças de modo simbólico e artificial, transformando-as em desigualdades sociais que atingem
diferencialmente homens e mulheres do mundo inteiro.
O segundo elemento refere-se aos “conceitos normativos que expressam interpretações dos

58
significados simbólicos” (ibid, p. 86). Esses conceitos normativos estão contidos na religião, família,
ciência, política, nas leis e tomam a forma categórica do que significa ser homem e ser mulher, ou
seja, o masculino e o feminino de forma binária, sendo que estas normas acabam por ser impostas
como se fossem “frutos de consensos sociais”.
Em relação ao terceiro aspecto, Scott trata da necessidade de uma visão mais ampla do
conceito de gênero, que deve incluir uma concepção política e fazer referência a como estas relações
se manifestam na economia, no trabalho, nas diferentes instituições e na organização social como
um todo. Já o quarto aspecto refere-se à identidade subjetiva, desde que seja analisada a partir de
uma visão histórica, visto que os homens e as mulheres não cumprem sempre as mesmas prescrições
sociais. Para a autora, as identidades também são construídas, a partir de organizações e
“representações sociais historicamente específicas” (SCOTT, 1995, p. 88).
Esses elementos não são imutáveis, mas se apresentam de distintas formas e com diferentes
contornos em cada cultura, a cada momento histórico, dependendo de interações e construções
sociais. Mesmo mantendo os seus princípios organizadores, estas relações se manifestam de distintas
formas no tempo e no espaço. Tal possibilidade mutável nos permite compreender, em consonância
com distintas autoras (SAFFIOTI, 2004; WHITAKER, 1988; KERGOAT, 2009), que a discussão em
torno das relações de gênero nos faz questionar o “destino natural da espécie” (KERGOAT, 2009, p.
68), revendo o que efetivamente devem ser papéis de homens e mulheres, e, mais do que isso,
compreender como estas desigualdades configura o social. Para essas autoras, a perspectiva de
gênero é uma opção e um compromisso pela mudança de um sistema de dominação e discriminação.
Cabe lembrar, conforme já citado, que, embora haja certa concordância em torno do conceito
de gênero no que tange às diferenças entre homens e mulheres como não biológicas, mas como fruto
de uma construção social que implica em desigualdades, com sérias conseqüências para as mulheres,
não existe ainda um consenso em torno do termo.
Contudo, não serão aprofundadas aqui todas as vertentes que tratam deste tema como
também os seus pontos de convergência e divergência. O objetivo é compreender o cerne das
relações de gênero para pensá-las no mundo do trabalho na atualidade. Exatamente por isso esta
elaboração será ampliada a partir do debate desenvolvido pelas feministas francesas em torno do
tema, as quais pautam a sua teoria a partir do conceito de “relações sociais de sexo” (KERGOAT,
2009; MARUANI e HIRATA, 2003), vertente sobre a qual este texto se dedica a seguir.
Nesta perspectiva, são centrais as discussões em torno da divisão sexual do trabalho, já que,
segundo suas autoras, foi observando as relações de opressão e as bases materiais em torno do

59
trabalho das mulheres que as feministas tomaram consciência do processo de exploração em que
viviam: “tornou-se coletivamente evidente que uma enorme massa de trabalho era realizada
gratuitamente pelas mulheres; que esse trabalho era invisível; que era feito não para si, mas para os
outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal” (KERGOAT, 2009, p. 68).

2.1.2. Divisão sexual do trabalho e a des-qualificação das mulheres


Primeiramente, a expressão “divisão sexual do trabalho” foi apresentada pelos etnólogos
para “designar uma repartição “complementar” das tarefas entre homens e mulheres nas sociedades
que estudavam” (KERGOAT, 2009, p. 67). Tal expressão foi utilizada por Lévi-Strauss para explicar
a estruturação da sociedade em família. Contudo, as antropólogas feministas foram as primeiras a
utilizar a divisão sexual do trabalho enquanto conceito, dando-lhe um novo conteúdo:
“demonstrando que não traduzia uma complementaridade de tarefas, mas uma relação de poder dos
homens sobre as mulheres” (ibid.). Utilizado pela sociologia e pelas ciências humanas, o conceito
adquiriu então um novo valor analítico.
Os estudos sobre as mulheres no mercado de trabalho começaram a ganhar visibilidade nos
anos 1950-60, mas as mulheres eram tratadas como uma categoria específica que ficava à parte
(MARUANI E HIRATA, 2003). Como teoria e problemática de pesquisa sociológica, os estudos
sobre a divisão sexual do trabalho surgiram efetivamente nos anos 1970. Suas primeiras análises
iniciaram com as feministas de esquerda, ancoradas nos estudos marxistas em torno das relações de
produção e classes sociais definidas pelo antagonismo entre capital e trabalho. Mas com o tempo foi
se dando a desvinculação desta vertente para analisar “o trabalho doméstico com o mesmo peso do
trabalho profissional”, o que permitiu o raciocínio em termos de divisão sexual do trabalho
(KERGOAT, 2009, p. 70).
Cabe salientar que, segundo Gardey (2003, p.37), “as mulheres sempre trabalharam”, mas os
estudos capazes de resgatar a história do trabalho das mulheres eram (e ainda são) pouco
conhecidos. Para a autora, é preciso compreender o trabalho das mulheres em perspectiva histórica
ainda antes do século XIX, visto que, neste século, os estudos reconheceram as mulheres
trabalhadoras assalariadas, mas acabaram relegando as empregadas domésticas, as campesinas e
donas de casa, ou ainda as mulheres negras que foram escravizadas e sempre trabalharam, mas nem
sempre foram reconhecidas, inclusive pelas feministas da época.
Gardey (ibid.) aponta que no início do século XIX os historiadores se preocuparam em
estudar o tema do corpo das mulheres negras, já que eram amas de leite e domésticas e sofriam

60
freqüentemente de abuso e violência sexual. O trabalho dessas mulheres, por sua vez, era a
possibilidade de existência da mulher ociosa, aristocrata e burguesa. Além disso, na primeira metade
do século XIX já havia o “trabalho externo”, realizado por moças e jovens mulheres no trabalho de
ajuda no lar, no campo, no comércio, confecção, costura, etc. Essas trabalhadoras já recebiam por
isso bem antes da sociedade salarial (SCOTT apud GARDEY, 2003).
Dessa forma, fica evidente que historicamente o trabalho feminino não foi valorizado como
uma utilidade social, mesmo que tenha se iniciado antes do reconhecimento da sociedade
assalariada. Nas palavras de Gardey (ibid., p.45), “não há dois tempos históricos radicalmente
oponíveis: aquele em que as mulheres trabalhariam majoritariamente em domicilio e seriam não-
assalariadas, e aquele em que as mulheres trabalhadoras seriam majoritariamente assalariadas e fora
de seu domicílio”.
Seguindo a própria evolução dos estudos de gênero, primeiramente se desfez a ideia de
família como categoria biológica, para aparecer como “lugar de exercício de um trabalho”
(KERGOAT, 2009, p. 71). Na sequência, se desfez a ideia de um trabalhador assalariado único,
branco, masculino, qualificado. Esse duplo movimento permitiu repensar o trabalho e suas
categorias, bem como as divisões por ele produzidas, significando um avanço nas análises.
Segundo Kergoat (1986), no caso da França, foram as feministas que trouxeram a categoria
sexo para os estudos sobre os operários e permitiram revelar as diferenças entre grupos de operários.
Para entender as distinções entre eles era preciso estudar o campo da reprodução e por isso a família
e a divisão do trabalho na organização da casa, como lugar de resistência contra os patrões e também
lugar da exploração da força de trabalho da mulher. A autora reforça que, independentemente de
estarmos estudando homens ou mulheres, é fundamental articular as esferas da produção e
reprodução. Observa-se que tal formulação permitiu ainda uma nova forma de compreender o
próprio trabalho, o qual passou a ser visualizado em nova amplitude, articulando produção e
reprodução e não somente se restringindo ao trabalho assalariado ou ao trabalho-emprego. Esses
estudos permitiram revelar a mulher como atora social da história.
Conforme descreve Kergoat (1986), os primeiros estudos sobre as mulheres nas fábricas
diziam que elas ocupavam escalas inferiores porque eram mal formadas, não tinham consciência e
lutavam pouco44. À época a autora se perguntava: resolvendo a formação das mulheres e

44
Fossem as mulheres brancas, com estudo, trabalhadoras nos escritórios e nas atividades de rotina, como no caso da
França, ou fossem as mulheres pardas, sem estudo, nas ocupações de piores rendimentos nas indústrias, como no caso do
Brasil. Porém, como aponta Sueli Carneiro (1985), tais estudos ainda não enfatizavam a questão das mulheres negras e a
forma como elas foram incorporadas no mercado de trabalho, tampouco destacavam a questão do trabalho da mulher
61
compreendendo melhor a relação capital/trabalho se eliminaria o problema de exploração/opressão
das mulheres?
Assim, Kergoat (ibid.) começou a analisar a relação entre a ideia de qualificação como
construção social e como justificativa do lugar que as mulheres ocupavam numa sociedade de
classes. A autora descreveu que as mulheres “têm a formação adaptada aos empregos industriais que
lhes são propostos”, ao mesmo tempo em que “são bem formadas pela totalidade do trabalho
reprodutivo” (KERGOAT, 1986, p.84).
Nessa direção, durante os anos 80, ampliam-se pesquisas cujo objetivo era investigar estudos
de casos concretos capazes de apreender as relações entre trabalho, técnica, relações sociais de sexo,
organização e qualificação. Tais estudos observaram que existe uma relação intrínseca entre
qualificação, como uma construção social, atrelada ao gênero (CHABAUD-RYCHTER, GARDEY,
2009, p.243).
Uma das grandes problemáticas para compreender o trabalho das mulheres era porque as
habilidades por elas desenvolvidas eram (e ainda são) interpretadas como inatas e não como
adquiridas socialmente, não sendo dignas do status de qualificadas. Trata-se de características como
a destreza, minúcia, rapidez, delicadeza, etc. Se interpretadas como construção social, tais
habilidades poderiam atuar sobre elas mudando a história do trabalho das mulheres, permitindo-lhes
outras formações e ocupações de novos cargos. Em contrapartida, mantendo a interpretação das
habilidades inatas, o trabalho das mulheres pode continuar sendo explorado por ser “natural”.
Nota-se então que o trabalhador considerado qualificado deve possuir determinadas
habilidades e conhecimentos, tais como desempenho técnico, aprendizagens teórico-práticas,
treinamentos formais, etc. (LIEDKE, 2005). Habilidades essas “adquiridas” e não “inatas”. Porém, a
cada momento histórico tais habilidades que configuram o trabalhador qualificado se alteram, sem,
contudo, deixar de atrelar-se à ideia de trabalho destinado a homens e mulheres.
No final da década de 90, Neves e Leite (1998) explicavam que a sociologia do trabalho foi
desvendando a relação antes estabelecida entre qualidade do emprego e qualificação do trabalho, já
que esta relação foi perdendo o seu sentido e ganhando novos contornos após a reestruturação
produtiva e as novas formas de organização do trabalho. Nesse período, por exemplo, as empresas
passaram a requisitar mão de obra qualificada, apontando um novo perfil que exigia heterogeneidade

negra, primeiro escravizada e violentada, tendo que servir os seus senhores sexualmente e sendo amas de leite; e depois
como continuaram por um longo período histórico sendo exploradas no serviço doméstico para que as mulheres brancas
pudessem trabalhar. Há que se considerar ainda que os estudos aqui em pauta nesse momento deram-se na França, num
contexto diferente de colonização e colonizados quando pensamos a coextensividade de gênero e classe somado a raça.
Ao longo deste capítulo esse olhar para as mulheres negras, sobretudo no caso do Brasil, será aprofundado.
62
e diversidade da classe trabalhadora. Em outras palavras, o parâmetro de qualificação foi alterado,
requisitando novos saberes técnicos e competências pessoais por parte dos trabalhadores e das
trablhadoras. Segundo Neves e Leite (1998), as exigências em torno dos atributos pessoais,
diferentemente demandados para homens e mulheres, passaram a referir-se à capacidade de assumir
riscos de um trabalho não mais prescrito, capacidade de desenvolver um trabalho em equipe, de
comunicar-se, entre outras.
Isso não significa, no entanto, que todos os tipos de trabalho tenham se tornado mais
qualificado, visto que a precarização 45 do emprego passou a acompanhar a manutenção do trabalho.
No novo cenário, de um lado, o trabalho compreendido como qualificado sofreu precarização; e de
outro, os trabalhadores desempregados e compreendidos como pouco qualificados passaram a ter
oportunidades, ocupando trabalhos destituídos de conteúdo, precários e informais, os quais se
tornaram cada vez mais entrelaçados e interconectados com o mercado formal de trabalho. Cabe
ressaltar que as mulheres, em especial, junto a outros grupos excluídos (jovens, negros), passaram a
ocupar consideravelmente os trabalhos deste segundo grupo. Nesse momento, novamente o fato de
terem qualidades compreendidas como inatas e não “adquiridas em qualificações profissionais” foi
uma das justificativas para as mulheres ocuparem os novos postos a elas destinados.
Neves e Leite (1998, p.46) chamam atenção para o complexo processo produtivo que produz,
ao mesmo tempo, o trabalho qualificado, e o trabalho precário, sendo que “ambos se alimentam e
complementam enquanto faces de um mesmo processo”.
Observa-se, portanto, que as mudanças em direção a uma inovação paradigmática trouxeram
novas concepções para a classe trabalhadora, reforçando a divisão do trabalho onde “alguns poucos
são mais especializados e qualificados e uma maioria desqualificada” (NEVES e LEITE, 1998,
p.11). Nesse caso, as mulheres, que foram (e continuam sendo) formadas e qualificadas para o
trabalho reprodutivo, mesmo sendo exploradas pelas empresas, não recebem o título de qualificadas.
Assim, elas continuam ocupando lugares determinados para elas, cujos postos são menos
valorizados, de menores salários, capazes de conciliar trabalho produtivo e reprodutivo, etc. Cabe
considerar que, por ser uma construção social, a exigência de qualificação muda a cada período

45
Segundo Castel, (2005), é preciso cuidado ao analisar a precarização do trabalho, visto que é um conceito histórico e
formulado em relação ao emprego entendido como “normal” construído na sociedade salarial. Leite (2009-a), pautada
em Rodgers, explica que a precarização do trabalho apresenta consequências diretas sobre a qualidade do emprego:
quanto mais inseguro, instável e temporário for o conjunto dos empregos, maiores são as chances de precarização; na
mesma medida, quanto maiores forem as condições dos/as empregados/as de impor salários, menores são as chances de
precarização. A precarização significa, portanto, “a deterioração das condições de trabalho” e só pode ser utilizada de
forma relacional, ou seja, comparando uma situação determinada, em relação à outra que lhe antecede.

63
histórico. O trabalhador flexível, comunicativo e pró-ativo da contemporaneidade não era o mesmo
trabalhador rígido e estável do fordismo, por exemplo. Contudo, o mecanismo que define a mulher
como não qualificada continuará prevalecendo no conceito de qualificação profissional, seja na era
fordista, seja na era da flexibilização.
Nessa direção, a grande questão da divisão sexual do trabalho que vem se mantendo
historicamente, embora com diferentes nuances, se dá em termos de trabalho reprodutivo,
desqualificado e menos valorizado, e trabalho produtivo, no outro extremo. Nas palavras de Kergoat
(2009), a forma de divisão sexual do trabalho decorrente de relações sociais de sexo,

é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a destinação prioritária


dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a
ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas,
militares etc.) (KERGOAT, 2009, p. 67).

Nessa forma de divisão do trabalho, são dois os principais elementos organizativos: o da


separação – existem trabalhos de homem e outros de mulher – e o da hierarquização – o trabalho de
homem vale mais do que o de mulher. Nos estudos que se conhecem até o momento, esta forma de
divisão do trabalho é encontrada em todas as sociedades, datando do início da humanidade.
O trabalho produtivo corresponde ao trabalho valorizado socialmente, remunerado
economicamente e que atribui prestígio social a quem o realiza, enquanto o reprodutivo refere-se ao
trabalho de cuidado e engloba as tarefas destinadas a reproduzir a vida cotidiana.
O IBGE (2012) apontou que a jornada dos homens é maior que a jornada feminina em 6,3
horas. Já no trabalho reprodutivo, a jornada média semanal das mulheres é 2,5 vezes maior que a
masculina. Em 2012, as mulheres dedicavam, em média, 27,7 horas semanais a afazeres domésticos,
enquanto os homens destinavam 11,2 horas (IBGE, 2012).
Evidentemente o trabalho reprodutivo está vinculado ao trabalho doméstico, porém, quando
inseridas no mercado de trabalho, as funções de reprodução desenvolvidas pelas mulheres adquirem
distintos contornos. Estão designadas às funções de reprodução como na escola ou na saúde, às
funções de conservação de empresas e escritórios (limpeza, hotelaria e funções de secretariado, da
relação: vendedoras, caixas e empregos terciários, etc.). Quando chegam à indústria, são mais
fortemente encontradas em trabalhos como de costura, limpeza ou de cozinha (BAUDELOT, 2003).
Tal relação varia enormemente no tempo e no espaço. Entretanto, o que se torna importante
nesta discussão é o “valor” destinado a cada um dos trabalhos, valor não apenas econômico, mas no
sentido antropológico e ético. Este valor induz a uma hierarquia social: “o trabalho dos homens vale

64
mais do que o das mulheres” (ibid.).
É esse “valor”, atrelado a uma ideia de qualificação do trabalho que acaba justificando postos
de ocupação de homens e mulheres de forma dicotômica. Sobre esta justificativa, o trabalho das
mulheres passou a representar o trabalho mal qualificado e mal pago, sendo confinadas nos
trabalhos manuais e que exigem baixa qualificação. Cabe destacar ainda a dificuldade de algumas
mulheres em se qualificarem para obter melhor colocação profissional, devido o seu compromisso
com as atividades domésticas (LEITE e RIZEK, 1998).
Desde o século XIX, Gardey (2003) observa que as características compreendidas como
femininas não representam habilidades suficientes para um trabalho ser considerado qualificado.
Portanto, há que se compreender que os processos de qualificação são sexuados e que as
representações sociais de gênero influenciam diretamente nesta questão.
Inicialmente, a baixa qualificação dos postos de trabalho femininos era atribuída ao menor
valor de seu capital humano, medido pelo diploma e pela experiência. Porém, nos últimos anos, as
mulheres se destacaram significativamente no que tange à escolaridade, mas essa melhora na
qualificação das mulheres não representa ainda melhora equivalente nos postos de trabalho que
ocupam, nem em termos de rendimento, nem em termos de status.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, divulgados pelo relatório intitulado
"Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da população Brasileira" (IBGE,
2012); revelaram que conquistar um diploma de curso superior não garante às mulheres a
equiparação salarial com os homens. Nos últimos anos, as mulheres alcançaram maior
escolaridade46 que os homens, contudo, no ano de 2012, comparando a média anual de rendimentos
dos homens e das mulheres, verificou-se que as mulheres ganham 73,3% do rendimento recebido
pelos homens. Além disso, nota-se que o desemprego feminino é maior que o masculino. Entre os

46
Faz-se necessário indicar que existe uma ordem no nível de estudo da população brasileira a qual corresponde a
mulheres brancas, homens brancos, mulheres negras, homens negros, logo, nem todas as mulheres possuem níveis de
estudos mais elevados. Segundo Lima, Rios e França (2013), ao analisarem os dados para o IPEA (2013), o ensino
fundamental vem apontando taxas muito semelhantes para homens e mulheres, brancos ou negros. Já no ensino médio,
observa-se que as mulheres negras chegaram a uma taxa de participação de 49,8%, aproximando-se dos homens brancos
com 55,5%. Estes, por sua vez, distanciaram-se dos homens negros, que computaram uma taxa de 37,7%, enquanto as
mulheres brancas apresentaram uma taxa de 67% no ensino médio. No ensino superior mulheres negras e homens negros
apresentam taxas muito baixas em comparação às mulheres e homens brancos. Os brancos estão numa faixa em média
de 20%, o que também se modifica por região do país, enquanto as mulheres negras e homens negros atingem juntos
uma faixa de 5%. Além disso, há diferenças entre a qualidade de ensino entre mulheres brancas e negras e homens
brancos, já que os últimos podem ser mais encontrados nas Universidades Públicas e as primeiras nas Particulares. A
isso se somam as diferenças nos cursos frequentados, sendo os homens voltados às áreas de tecnologia e de maiores
rendimentos. Mais informações ver LIMA, Márcia, RIOS, Flávia, FRANÇA, Daniel. Articulando gênero e raça: a
participação das mulheres negras no mercado de trabalho (1995-2009). In MARCONDES, Mariana Mazzini [et al].
Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013.
65
mais escolarizados (12 anos ou mais de estudo), a desigualdade de rendimentos é ainda mais
elevada, tendo em vista que as mulheres recebem 59,2% do rendimento auferido pelos homens. Já
entre os analfabetos, a renda média mensal era de R$ 614,80 para os homens, enquanto para as
mulheres analfabetas ficava em R$ 506,95.
Além disso, segundo Lima, Rios e França (2013, p. 52), as mulheres frequentam cursos
menos valorizados no mercado de trabalho. Para as autoras, “o desafio para as mulheres mais
escolarizadas é participar de forma equitativa nas carreiras consideradas guetos ocupacionais
masculinos, em que há salários mais altos, e alcançar posições de comando nos diferentes setores do
mundo do trabalho”.
Somado a isto, um grande contingente das mulheres trabalhadoras ainda está concentrado no
serviço doméstico remunerado, o qual corresponde, sobretudo, às mulheres negras, com baixo nível
de escolaridade e com os menores rendimentos na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003).
Dessa forma, é possível concluir que, mesmo tendo sido elevado o nível de formação das
mulheres, a valorização do diploma feminino e de suas qualificações, interpretadas como inatas,
ainda é um processo mais difícil, principalmente ao fazer o recorte entre as mulheres brancas e
negras. De um lado, como afirma Cacoualt (2003), a alta escolaridade das mulheres é uma conquista
a ser considerada, na medida em que pode protegê-las da não-atividade e do desemprego, mas de
outro, como define Abramo (2004), as desigualdades de remuneração entre homens e mulheres
aumentam quanto maior é o nível de escolaridade.
Conforme explica Daune-Richard (2003, p.67), mesmo havendo evolução na atividade
feminina, ela ocorre principalmente nos espaços já feminizados e com poucas possibilidades de
planos de carreira ou aumento de salários. Esta situação, por sua vez, complexificou-se ainda mais
nas atuais configurações do trabalho, tal como segue-se descrevendo abaixo.

2.1.3. Novas configurações e o processo de bipolarização do trabalho das mulheres


As novas configurações do trabalho, a partir dos anos de 1980 e 90, complexificaram ainda
mais as contradições do trabalho da mulher. Segundo Hirata (2001-2002), houve um processo
denominado de bipolarização, o qual passou a separar o trabalho das mulheres de acordo com os
níveis de estudo e novas construções implicadas à ideia de qualificação:
Num extremo, profissionais altamente qualificadas, com salários relativamente bons no
conjunto da mão-de-obra feminina (engenheiras, arquitetas, médicas, professoras, gerentes,
advogadas, magistradas, juízas, etc.), e, no outro extremo, trabalhadoras ditas de “baixa
qualificação”, com baixos salários e tarefas sem reconhecimento nem valorização social
(Hirata, 2001-2002, p. 143).

66
Segundo Hirata e Kergoat (2003), no que tange à ocupação feminina, existe um forte
crescimento da categoria “profissões executivas e intelectuais superiores”. Entretanto, no extremo
inferior e atingindo a grande maioria das mulheres, assistimos ao crescimento do trabalho precário,
em tempo parcial e temporário, mal pago e sem grandes perspectivas de carreira.
Nota-se, em consonância com Lima, Rios e França (2013), que o processo de bipolarização
também está vinculado às questões de raça, classe e gênero. Isso porque as mulheres brancas, com
alta escolaridade e de classes sociais altas, ocupam espaços diferentes das mulheres brancas e negras
com baixa escolaridade e de baixa renda. Seguindo a coextensividade dessas categorias de
dominação, as mulheres desempenham papeis diferentes quando pensamos na colocação no mercado
de trabalho.
As autoras apontam que as mulheres brancas, em geral, apresentam nível de estudo
significativamente mais alto que as negras, na medida em que, a estas últimas, são reservadas as
ocupações de menor qualidade, com alta informalidade e menor renda, sobretudo o trabalho
doméstico, de prestação de serviços, inclusive os ligados à produção na indústria. Já as primeiras,
cada vez mais se movimentam para ocupações de nível superior, para a prestação de serviços nas
áreas administrativas ou de educação e saúde (LIMA, RIOS, e FRANÇA, 2013). As mulheres
negras também chegam mais cedo ao mercado de trabalho, vivenciando precocemente a
concorrência entre trabalho e escola.
Noutra direção, conforme elucida Hirata (2003, p. 19), nos países do Norte, o modelo de
trabalho precário se encarnou na figura do trabalho em tempo parcial, ocupado majoritariamente por
mulheres (80% na França e 95% no Japão), e significando também um salário parcial. Tal situação
agrava as disparidades existentes na repartição do trabalho doméstico nestes países. Já no caso dos
países do Sul, ele ganha representatividade na figura do trabalho informal, sem nenhuma proteção
social, e, por isso, “exposta a um processo de precarização gradativo que altera as suas condições de
vida e torna sua força de trabalho um apêndice descartável do processo produtivo” (ibid.).
Tomando como base as tendências atuais da flexibilidade - trabalho domiciliar, teletrabalho,
trabalho à distância, em empresas terceirizadas, etc - as trabalhadoras podem ser vistas como
“cobaias para o desmantelamento das normas de emprego predominantes até então” (HIRATA,
2001-2002, p. 145). Isso porque as mulheres estão menos protegidas, tanto pela legislação do
trabalho quanto pelas organizações sindicais, e acabam por serem absorvidas nesta multiplicação de
espaços de trabalho.
Segundo Araujo (2004), mesmo após a reestruturação produtiva os critérios de seleção das

67
empresas acabaram incorporando a mão de obra feminina especialmente nos trabalhos
compreendidos como femininos.
Nesse sentido, ocorre uma feminização das habilidades e competências exigidas pelas
empresas, observada em diferentes setores do trabalho. Diferentes investigações em torno das
mudanças ocorridas na divisão sexual do trabalho no interior das empresas, e ao longo das cadeias
produtivas, apontam o deslocamento do emprego feminino para as empresas de menor porte, em
função do enxugamento das grandes empresas e da intensificação da terceirização (ARAÚJO, 2005).
A partir disto, observa-se que as atuais configurações do trabalho vêm reforçando a divisão
sexual do trabalho, por meio de múltiplas formas de exclusão: seja a exclusão de trabalhadoras do
setor formal, seja pela desigualdade entre homens e mulheres nos locais de trabalho e em termos de
salários, condições de trabalho, acesso a profissionalização e promoções, etc. (ARAÚJO, 2004), seja
reforçando desigualdades entre as próprias mulheres. Segundo Araújo (2005, p. 94), “as novas
formas de segregação e precarização se sobrepõem aos antigos mecanismos de exclusão de gênero,
potencializando-os”.
Dessa forma, faz-se necessário olhar com atenção para as condições das mulheres no
mercado de trabalho, criando medidas para elevar a sua participação, tanto no que se refere aos
rendimentos, proteção social, acesso à capacitação e formação profissional, como no que concerne à
ampliação dos serviços e estabelecimento de soluções equitativas para a tarefa de compatibilizar o
trabalho remunerado com as responsabilidades domésticas e familiares. Tema este, em pleno século
XXI, ainda tão penoso para muitas mulheres no mundo todo.

2.2. A dimensão de raça e a divisão racial do trabalho


Para o desenvolvimento deste tópico, serão enfatizados três principais momentos referentes à
construção social da raça e à inserção do negro no mercado de trabalho: 1) Primeiramente destaca-se
a construção social da ideia da raça a partir da colonização da América Latina (QUIJANO, 2005;
IANNI, 1972, CARNEIRO, 1985); 2) Na sequência, serão abordados os novos contornos da divisão
racial do trabalho entre o fim da abolição e o início do “trabalho livre”, até a industrialização,
período que marcou a noção de desqualificação da população negra (IANNI, 1972; GUIMARÃES,
2001, FERNANDES, 1978); 3) Por fim, serão tratadas as questões da divisão racial do trabalho na
atualidade, a fim de mostrar como o preconceito racial se atualiza com os novos contornos da
sociedade (MUNANGA, 2004, 2006; CARNEIRO, 2003; COELHO JÚNIOR, 2011;
HASENBALG, VALLE SILVA, 1999).

68
2.2.1 A construção social da raça
O autor peruano Aníbal Quijano (2005) explica que a ideia de raça e, consequentemente o
racismo, partiram de uma noção eurocêntrica de mundo, que a fabricou por meio de uma
classificação da população sobre o parâmetro racial. O autor explica que os europeus que chegaram
nas Américas criaram uma ideia de dualidade “colonizados/colonizadores”, cuja superioridade ou
inferioridade era explicada de acordo com características biológicas inatas, pertencentes a distintas
raças humanas. Segundo Santos e Jesus (2010, p. 7), o Brasil foi o país que importou a maior
quantidade de escravos, chegando a um número de quase quatro milhões de africanos. Esse número
aumenta relativamente se consideramos as crianças que nasciam das escravas já no Brasil.
Como explica Quijano (ibid., p. 229), “os colonizadores codificaram como cor os traços
fenotípicos dos colonizados e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial”.
Essa codificação teria se estabelecido entre os negros, os explorados, de um lado, e os
colonizadores, de outro lado, os quais se definiram como pertencentes da raça branca.
Dessa forma, na medida em que as relações sociais que estavam se configurando eram
relações de dominação, as identidades formadas em torno do negro e do branco também foram se
associando à hierarquia, e aos papéis sociais que cada um deveria desempenhar no padrão de
dominação que se impunha. Nesse processo, a riqueza dos brancos, que reforçava a sua
superioridade, dependia exclusivamente do trabalho explorado dos negros.
A noção de raça passou a ser ideologicamente imposta como naturalização das relações
coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Dessa forma, incutiu-se a ideia de que os
brancos europeus eram naturalmente superiores, e por isso desempenhavam funções de mando e de
exploração, enquanto os negros, compreendidos como naturalmente inferiores, deveriam ter o
trabalho explorado garantindo o andamento da economia colonial (ibid.).
Para Quijano (2005), essa dominação se deu principalmente pelo controle do trabalho, e
depois pelo controle e negação de toda forma de expressão cultural da população dominada.
Observa-se que não apenas os seus traços fenotípicos foram negativados, mas também todas as suas
descobertas mentais e culturais. Em especial, o conhecimento e a produção do conhecimento
compreendido como válido foi relacionada aos brancos, enquanto o conhecimento tradicional
africano e/ou indígena foi inferiorizado e mitificado, passando a ser compreendido como primitivo.
Segundo o autor, os colonizados foram reprimidos em seus padrões de expressão e de objetivação da
subjetividade, bem como nas formas de produção de seu universo simbólico. Nesta nova
subjetividade, o negro interiorizou a ideologia da inferioridade e submissão.

69
A partir desse conceito de raça difundido ao longo da história, as novas identidades
produzidas foram associadas aos papeis sociais desempenhados na nova estrutura de controle do
trabalho, ou seja, raça e divisão do trabalho foram “estruturalmente associados e reforçaram-se
mutuamente” (QUIJANO, 2005, p. 230).
Dessa forma, houve uma imposição sistemática de divisão do trabalho: os índios 47, relegados
a servos, e os negros africanos à escravidão. Já os postos de mando da administração colonial foram
reservados aos brancos. Nas palavras de Quijano (2005, p. 232),
cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma raça particular.
Consequentemente o controle de uma forma específica de trabalho podia ser ao mesmo tempo
um controle de um grupo específico de gente dominada. Uma nova tecnologia de
dominação/exploração, neste caso raça/trabalho, articulou-se de maneira que aparecesse
como naturalmente associada, o que, até o momento tem sido excepcionalmente bem sucedido
(grifo nosso).

No caso das mulheres escravizadas, elas não tinham direito a existência própria, na medida
em que ficaram à mercê de seus donos. Além de trabalhar no trabalho produtivo, assim como o
escravo, elas tinham ainda a responsabilidade de reproduzir biologicamente, além de serem
48
utilizadas como objeto sexual dos senhores e como amas de leite. A partir disso, a imagem da
mulher escrava foi relacionada à mulher super sexuada (THEODORO, 2012).
Após o período da escravidão, com a chamada abolição da escravatura, esta forma de
exploração do trabalho ganhou novos contornos, mas isso não significou melhoria das condições de
vida e inserção da população negra de maneira justa na sociedade brasileira.

2.2.2. Da abolição ao trabalhador e trabalhadora “livres”


Segundo Ianni (1972), com a evolução do mercado capitalista no Brasil, a produção
organizada com base na escravatura, a qual girava em torno de produzir para o mercado
internacional tendo como fundamento o trabalhador escravizado, tornou-se insuportável, até ser
superada. A cafeicultura passou a dominar o país, paralelamente à prosperidade da cana-de-açúcar,
47
Seguindo os estudos de Santos e Jesus (2010, p. 8-10), os primeiros negros chegaram ao Brasil em meados do século
XVI. Nesse período o pau-brasil era o principal produto da época, mas cedeu espaço para o plantio de cana-de-açúcar. O
trabalho na cana, contudo, exigia mão-de-obra braçal, permanente e intensiva, a qual era desempenhada pelos índios
brasileiros. Porém, segundo os autores em questão, “o índio reagiu de forma marcante, tornando-se ameaça para
capitanias como Espírito Santo e Maranhão, reagindo com fugas, alcoolismo, suicídio, pois estava acostumado a
trabalhar somente o necessário para sua sobrevivência, através da caça, coleta e pesca”. Com isso, foram considerados
pelos europeus como preguiçosos e passaram a ser explorados de maneira distinta dos negros no processo de
colonização. Além disso, havia uma contradição de interesses na dominação dos índios entre os colonizadores e os
missionários cristãos, os quais objetivavam, sobretudo, catequizar os índios.
48
Cabe observar brevemente que algumas mulheres conseguiam fugir desta situação e iniciaram, junto a outros escravos
fugitivos, a formação dos quilombos, local de refúgio dos escravos e escravas. Contudo, a grande maioria não conseguiu
participar dessa construção e foram escravizadas, além de exploradas sexualmente (THEODORO, 2012).
70
algodão, borracha, etc. Houve ainda a expansão dos setores manufatureiros e de serviços. Essa nova
condição econômica, por sua vez, se estruturou a partir da dependência de centros comerciais,
financeiros e culturais externos e ocasionou a progressiva diferenciação das ocupações e das
relações sociais. Assim, a nova condição econômica e as exigências de transformações no modo de
produção brasileiro passaram a ser incompatíveis com a condição de escravatura, exigindo um
trabalhador “livre” e multiplicando as ocupações para o novo funcionamento econômico.
Como em qualquer sistema capitalista de produção, a participação da mão-de-obra
trabalhadora precisa sustentar o lucro dos seus financiadores. Logo, como descreveu Ianni (ibid), a
transformação do trabalhador livre foi uma necessidade, na medida em que ele deixou de ser meio
de produção.
Paralelamente a este momento de nova configuração da economia brasileira, o mercado de
fornecimento de escravos entrou em colapso, causando a denominada “escassez de braços”, o que
confirmou que o regime de escravidão não mais se sustentava. Era preciso então abolir a escravidão
e iniciar um novo processo econômico e social com o trabalhador livre e assalariado (IANNI, 1972).
Como forma de convencimento da população para o fim da escravidão, começou a ser difundida a
ideia de que a escravidão era contra a humanidade e contra os valores morais do ser-humano.
Observa-se então que as transformações da estrutura econômica impuseram a libertação do
escravo. No novo sistema de assalariamento, a remuneração do trabalhador deixou de ser feita com a
divisão do produto, passando a ser feita com salário. Contudo, qual trabalhador passou a ser
identificado como trabalhador assalariado? Aqui está uma questão bastante importante da tese de
Ianni (1972) e que marca de forma peculiar a divisão racial do trabalho no país.
Conforme descrito pelo autor, o antigo escravo, ou seja, o trabalhador negro, não foi aquele
que passou a ser o trabalhador assalariado responsável por “elevar o patamar da economia
brasileira”, tal como proclamava o discurso nacional. Pelo contrário, o governo passou a fazer
propaganda para receber estrangeiros para ocupar este trabalho, pagando inclusive o transporte até o
Brasil. Chegando aqui, esses estrangeiros eram distribuídos nas diferentes fazendas de acordo com
as demandas de trabalho.
Segundo Fernandes (1978), essa imigração européia estimulou a vinda para o Brasil de
milhões de portugueses, espanhóis, italianos, japoneses, alemães, sírios e libaneses no final do
século XIX e início do século XX, os quais passaram a contribuir com a tentativa de branqueamento
da população brasileira, tal como almejada pelo governo. Nesse processo, o trabalho assalariado,
pago e privilegiado foi associado ao trabalho dos brancos.

71
Como descrito pelo autor (ibid.), o Estado não realizou nenhuma ação que corrigisse as
desigualdades criadas pela escravização dos negros. Na contramão do que deveria ter acontecido,
foram os senhores de engenho que se beneficiaram de medidas compensatórias, na medida em que
foram indenizados pelo Estado brasileiro por perderem parte do seu patrimônio, a saber, os negros
comprados com os quais teriam perdido o investimento de anos.
Observa-se que é desta forma que a sociedade de classes vai se configurando no país,
formando uma elite dominante branca com privilégios, além de uma classe média branca que vai
viver do salário como pagamento de seu trabalho livre. Enquanto, do outro lado, os negros foram
relegados a classe excluída, explorada nos trabalhos braçais, numa perspectiva ideológica do modelo
de trabalho/exploração da escravidão, que continuou marcando a vida desses trabalhadores.
No caso especifico da mulher negra, após a escravidão ela continuou trabalhando nas casas
das famílias brancas, no trabalho de reprodução, entre eles no cuidado e educação dos filhos e filhas
dos senhores. Elas continuaram tendo que realizar o serviço doméstico e atender ao patrão no
trabalho produtivo, além de ter que servir a patroa. Algumas ainda eram exploradas sexualmente.
Nota-se que, quando as mulheres brancas começaram a reivindicar o direito ao estudo e trabalho, as
mulheres negras ficaram em casa cuidando dos filhos e maridos, permitindo a emancipação das
mulheres brancas (CARNEIRO, 1985).
Com base em Cunha Jr (2008), a escravidão permaneceu após o 13 de maio de 1888, durante
décadas, por meio de práticas escravistas de exploração do trabalho e no pensamento das pessoas
que compreendiam o negro como uma sub-raça. A ideologia de inferioridade dos negros se
perpetuou nas relações sociais entre os negros ex-escravos e os brancos, fossem com os novos
imigrantes, fossem com os antigos colonizadores e seus descendentes.
Dessa forma, novamente a ideia da naturalização de uma raça inferior ou superior volta a
ganhar espaço, agora sob nova configuração, visto que o trabalho digno, com pagamento de salário
era trabalho de branco, enquanto os negros estavam destinados “naturalmente” a trabalhar para os
seus amos (CUNHA JÚNIOR, 2008).
Para Quijano (2005) essa mesma lógica de pensamento pode ser observada até os dias atuais.
Segundo o autor, não é difícil encontrarmos ainda brancos que compreendem que os negros devem
servi-los e que pensem que os negros fazem parte de uma raça inferior – é o denominado racismo 49.

49
Segundo Algarve (2005, p.25), o racismo é um comportamento, uma ação resultante da aversão em relação a pessoas
que possuem um pertencimento racial pautado em fatores observáveis, como a cor da pele, o tipo de cabelo, o formato
do olho, etc; ou seja, está ligado às características físicas. No racismo compreende-se que existem raças melhores ou
piores, cuja valoração é pautada em traços fenotípicos. Já o preconceito é um julgamento negativo e prévio que os
72
Nesse período houve uma valorização do trabalho assalariado, destinado aos brancos, em que
se passou a valorizar não só o trabalho, mas também quem o realiza: o trabalhador branco, livre e do
sexo masculino. Já o negro, como pessoa e como trabalhador, passou a ser desvalorizado, pois não
conseguiu vender a sua força de trabalho no mercado. O negro foi então relacionado à preguiça de
trabalhar e ao ócio, ampliando os preconceitos contra os mesmos.
Faz-se necessário salientar aqui, que muitas pesquisas foram influenciadas por esses
preconceitos difundidos e pela ideologia pautada na biologização do termo raça. Segundo Munanga
(2004), a palavra raça esteve originalmente ligada às ciências naturais, sobretudo à zoologia e à
botânica. Tratava-se de um conceito utilizado na classificação de espécies animais e vegetais. Já no
latim medieval, raça passou a designar a descendência, a linhagem, isto é, um grupo de pessoas que
têm o mesmo ancestral e algumas características físicas em comum (ibid.).
A classificação da humanidade em raças hierarquizadas, no entanto, originou, segundo
Munanga (2004), uma teoria pseudocientífica, a raciologia, que ganhou espaço no início do século
XX, ultrapassando os círculos intelectuais e acadêmicos e se disseminando no conjunto da
sociedade. Tal teoria procurava legitimar os parâmetros impostos pela dominação e divisão racial do
trabalho, tentando explicar biologicamente a raça negra como inferior e a branca como superior.
Alguns autores como Nina Rodrigues, por exemplo, chegaram a escrever a partir de uma
concepção biológica de raça. Segundo Munanga (2004), Nina Rodrigues teria criticado as
autoridades do país por ter incentivado a mistura de raças. Isso porque tal mistura entre raças de
homens dessemelhantes produziria “um tipo sem valor, que não serve nem para o modo de viver da
raça superior, nem para o da raça inferior” (NINA RODRIGUES apud MUNANGA, 2004, p. 8). Em
outra direção, mas ainda sob enfoque biológico, autores como Silvio Romero, Oliveira Vianna e
João Batista de Lacerda descreveram que o branqueamento da população brasileira poderia elevar o
país ao patamar de uma grande potência (MUNANGA, 2004).
Porém, a própria biologia afirmou que raça não qualifica naturalmente as pessoas e que não
poderia ser utilizado para a espécie humana. Munanga (2004) explica que houve a descoberta de que
apenas 1% dos genes que constituem o patrimônio genético de um indivíduo está implicado na
transmissão da cor da pele, bem como dos olhos e dos cabelos.
Assim, foi demonstrado que, do ponto de vista da biologia, a utilização do conceito de raça

membros de uma raça, de uma etnia, de um grupo, de uma religião ou mesmo de indivíduos, constroem em relação ao
outro. Por fim, a discriminação compreende qualquer distinção, exclusão ou preferência com base em motivos de
raça/etnia, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito anular ou
alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego e na ocupação.
73
não possui nenhuma utilidade científica, não podendo, portanto, ser aplicado para explicar a
superioridade de alguns grupos étnicos sobre os outros. Isso levou alguns biólogos a sugerirem que a
palavra raça fosse até mesmo retirada dos textos científicos e dos dicionários, devendo ser
substituído pelo vocábulo população (MUNANGA, 2004; GUIMARÃES, 2001).
Contudo, falar ou não de raça é um pouco mais complexo. Segundo Munanga (2004),
assumir que existe raça em termos sociológicos significa assumir que existe racismo, visto que
embora o termo não exista para os estudos científicos biológicos destinados aos humanos, ele ainda
está presente nas representações coletivas construídas em diversas sociedades contemporâneas.
Dessa forma, o autor considera prematuro o abandono do termo, mas salienta que o mesmo deve ser
entendido como uma realidade sócio-cultural e política, ou seja, como um instrumento de
dominação e exclusão nos termos descritos ao longo desse capítulo. Trata-se, portanto, de um
conceito sociológico e não biológico que expressa uma construção social e que se aplica numa
relação social de dominação, em que a cor da pele escura e os traços fenotípicos (como nariz largo e
cabelo crespo/enrolado) implicam segregação racial (GUIMARÃES, 2001).
Seguindo nesta contextualização histórica, na sequência do período pós-abolição e do
surgimento do trabalhador livre, branco e imigrante, houve o processo de industrialização,
inaugurando a produção fabril no país. As fábricas e indústrias passam a se dedicar a atividades
como mineração de ferro, cal, mármore, preparo de gás e óleos minerais, artefatos cerâmicos e de
ferro, madeira para construção, entre outros. Destaca-se ainda a produção do algodão e com isso o
advento das fábricas de tecido (IANNI, 1972).
Nesse período, para enaltecer o processo industrial do país, tem-se uma preocupação com o
denominado progresso nacional, e novamente o governo se utiliza da estratégia de incentivar a vinda
de imigrantes para suprir a necessidade de mão-de-obra nas fábricas (ibid.).

2.2.3. A industrialização e os novos contornos do racismo


Seguindo a descrição de Ianni (1972), o período da industrialização correspondeu àquele no
qual a cidade começou a suplantar o campo como ambiente sócio-cultural e político distinto. Os
negros, por sua vez, apesar de terem ido para as cidades, não progrediram com ela, na medida em
que ficaram mais uma vez à margem dos postos de trabalho assalariado, bem como dos jogos
políticos e administrativos das cidades. Novamente eles foram submetidos aos trabalhos subalternos
e informais, dessa vez, alojados nas periferias das cidades.
Contraditoriamente, para manter a ideia de progresso nacional, os governos tiveram que lidar

74
com uma questão de problemática social, descrita por Guimarães (2001, p. 101) da seguinte forma:
“não temos mais escravos e agora não podemos mais fazer de conta que o negro livre é caboclo, que
o negro livre é índio. Vai ser preciso incorporar agora esse povo, essa raça, nessa nação nova, criar
símbolos nacionais”. Assim, iniciou-se um movimento de criação de símbolos que pudessem
transmitir uma ideologia da democracia racial que mascarasse o processo de exclusão da população
negra. A ideia transmitida era a de que “a cor é apenas um acidente. Somos todos brasileiros e por
um acidente temos diferentes cores; cor não é uma coisa importante; “raça”, então, nem se fala, esta
não existe, quem fala em raça é racista” (GUIMARÃES, 2011, p. 101).
Entre os símbolos criados encontra-se principalmente o carnaval, o samba, algumas comidas
e a mulher negra como uma crença de que ela é “mais erótica ou mais ardente sexualmente do que
as demais” (CARNEIRO, 2003, p. 6).
O autor Gilberto Freire acabou contribuindo nessa direção, a partir de sua obra Casa Grande
e Senzala nos anos 1930. O autor descreveu um Brasil com cara de paraíso racial, onde brancos,
negros e índios conviviam harmoniosamente. Ele também incentivava a ideia de mestiçagem,
contribuindo para a tentativa de branqueamento do país. Segundo Carneiro (2003), obras como a de
Gilberto Freire converteram a violência sexual contra as mulheres negras em romance e impediram-
nas de mostrar o papel delas para a formação da cultura nacional.
Contudo, o discurso da democracia racial não se desenvolvia na prática. Tratava-se de uma
50
forma de acalmar a população negra sem inseri-la de fato na sociedade de classes que se formava
nas cidades, embora tivesse efeitos discursivos importantes, visto que grande parte da população se
convenceu com esse discurso.
Outro aspecto relevante no período é que, durante o processo de industrialização e formação
das cidades, houve uma segregação geográfica da população negra, pois o desenvolvimento da
indústria se deu de maneira mais intensa nas regiões Sul e especialmente no Sudeste, basicamente
com o trabalho do imigrante (MELLO, 2005). Já nas regiões Norte e Nordeste, notadamente agrárias
e menos desenvolvidas no campo industrial, predominou-se a mão-de-obra negra.
Tal como descrevem Hasenbalg, Valle Silva e Lima (1999), em São Paulo houve uma disputa
entre os negros e os imigrantes pelos postos de trabalho que se abriam nas indústrias e a maior parte
dos negros estava inserida fora deste mercado dinâmico. Mas no Rio de Janeiro, por exemplo, os

50
Cabe destacar que até o período colonial falávamos em brancos e negros remetendo-nos aos colonizadores e escravos.
Após o período de miscigenação e tentativa de branqueamento da população, novos conceitos em relação à cor da
população foram sendo criados. Nesta tese, optou-se pela denominação do IBGE, em que a definição da cor é separada
entre brancos, pretos e pardos, sendo que os pretos e pardos juntos representam os negros. Também utilizaremos a
expressão não-brancos para nos referir aos negros (pretos + pardos).
75
negros formaram 30% da mão-de-obra do setor industrial, o que se ampliou ainda mais com o fim
das imigrações, a partir da década de 30. Já no Nordeste e em Minas Gerais, a imigração quase não
existiu, logo foram os negros que ocuparam os postos de trabalho nas indústrias. Porém, o processo
de industrialização nessas regiões foi menos intenso que em São Paulo.
Cabe destacar que foi somente na década de 1960 que o trabalho na agricultura se tornou
assalariado no Nordeste . Já no Sul e no Sudeste, foi na década de 1950, mais precisamente, que os
negros começaram a ampliar sua participação como proletários nas indústrias. Contudo, como
explicam Hasenbalg, Valle Silva e Lima (1999), entre 1950 a 1980 não houve produção de
estatísticas oficiais sobre cor ou raça da população negra no Brasil. O senso de 1960 apresentou uma
série de problemas técnicos; o de 1970 excluiu a pergunta cor, que só foi reincorporada em 1980.
Portanto, há uma carência de dados em torno da participação da população negra no período.
De qualquer forma, os autores apontam que entre 1950 e 80 havia grande diferença salarial
por ocupação e também forte desnivelamento educacional entre brancos e negros. O rendimento
médio dos profissionais liberais, maior parte homens brancos, era vinte vezes maior do que o do
trabalhador negro (ibid.). Aos não brancos, analfabetos ou semi-analfabetos, com cerca de dois anos
de estudo, era destinado principalmente o trabalho na agricultura, mas também havia os
trabalhadores manuais que trabalhavam por conta própria no setor informal urbano, como os
ambulantes, além das empregadas domésticas.
No outro extremo, havia ainda os empresários, empregadores e os trabalhadores não-
manuais, na maior parte homens brancos. Já os trabalhos de escritório foram destinados às mulheres
brancas que estudaram. De maneira geral, as mulheres brancas e negras tiveram uma participação
bastante reduzida entre a classe operária industrial, sobretudo nas indústrias tradicionais. Os
proprietários de terra, por sua vez, eram 0,7% da população e exclusivamente homens brancos
(HASENBALG; VALLE SILVA; LIMA, 1999).
Com esta configuração do trabalho, na formação econômica-brasileira, os negros se
mantiveram, sobretudo, na classe proletária devido o aumento da demanda de trabalho nas indústrias
a partir de 1950. Alguns chegaram à classe média e muito poucos nas classes altas, especialmente os
profissionais liberais com prestígio social. De qualquer forma, a principal questão a ser destacada é
que os negros, na sua imensa maioria, ficaram segregados aos lugares específicos a eles reservados
numa sociedade que se configurou na estrutura de classes (IANNI, 1972).
A partir dos teóricos descritos até o momento, buscou-se mostrar como o mercado de
trabalho e a própria sociedade brasileira se estruturou baseada em um referencial de desqualificação

76
da raça negra, que tem consequências até hoje, não só na inclusão do negro no mercado de trabalho,
como também na ideologia racista dominante e no preconceito de cor 51, bem como na
desvalorização do universo simbólico da cultura afro-brasileira.
Pautadas nos estudos de Quijano, Ianni, Munanga, Hasembalg e Silva, entre outros autores,
tentou-se mostrar como os negros foram integrados numa sociedade de classes pela divisão racial do
trabalho, o que tornou a sua condição de vida bastante difícil. Tais discussões também foram de
fundamental importância para compreender como a formação da sociedade de classes no Brasil
acentuou e redefiniu o racismo.
Contudo, cabe aqui fazer um parêntese para discutir sobre o fato de que o preconceito racial
não pode ser confundido com o de classe, visto que mesmo entre as mesmas classes sociais
continua-se encontrando preconceito de raça.
Ao estudar desigualdades no mercado de trabalho, por exemplo, Mello (2005), observa que a
desigualdade racial entre brancos e negros é uma dimensão fundamental da explicação da
desigualdade entre ricos e pobres, mas isso não é o mesmo que dizer que as questões raciais se
limitam a uma questão de classe. Ou seja, a sociedade de classes se estruturou através da opressão
de raça e, com o passar do tempo, essa estruturação em classes sociais passou então a acentuar e
criar novos mecanismos para a ampliação do racismo e desproteção social da população negra.
Nessa mesma direção, Hasenbalg (1999), descreve que a maioria dos brancos se aproveitou e
continua se aproveitando do racismo e da opressão racial para obter vantagem no preenchimento das
posições na estrutura de classes. O autor aponta, a partir de suas pesquisas em análise de dados
quantitativos, que quanto mais uma pessoa for identificada como negra pelos seus traços fenotípicos
e pela sua cor, menores serão as suas chances de inserção em determinados postos de trabalho
reconhecidos social e financeiramente, o que poderia permitir uma possível mobilidade social.
Segundo Hasembalg e Silva (1992), a história do país gerou um “ciclo cumulativo de
desvantagens dos negros”. Para os autores, não apenas o ponto de partida dos negros no mercado de
trabalho é historicamente desvantajoso, mas as novas descriminações aumentam a sua desvantagem
em diversas esferas da dinâmica social, como a educação e as condições reais de vida e de acesso a
direitos humanos. Portanto, não se pode explicar as desvantagens dos negros na sociedade atual,
olhando somente para o passado colonial, ou se limitando a uma explicação de classe social que

51
Não aprofundarei aqui o debate em torno da cor, mas cabe apenas um parêntese para destacar, tal como sugere
Guimarães (2001), que a classificação por cor está intimamente ligada ao conceito de raça. Nas palavras do autor, “cor
não é uma categoria objetiva, cor é uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou
pardos, é a ideia de raça que orienta essa forma de classificação” (GUIMARÃES, 2001, p. 104). Dessa forma, cor seria o
discurso que as pessoas utilizam para falar de raça.
77
tenta convencer de que os negros são desvalorizados simplesmente porque são pobres.
É preciso compreender quais são as dinâmicas históricas e da sociedade atual que contribuem
para manter a desigualdade social na distribuição das oportunidades e da riqueza entre negros e
brancos. É preciso compreender como o preconceito racial se atualiza na dinâmica da divisão racial
do trabalho com os novos contornos da sociedade, o que segue-se aprofundando na sequência deste
capítulo.

2.2.4. Divisão racial do trabalho e a des-qualificação dos negros na atualidade


A desigualdade racial no mercado de trabalho vem sendo objeto de investigação sociológica
desde a década de 60, revelando, como acima descrito, primeiramente, a história de inserção do
negro no trabalho assalariado, e depois, no processo de industrialização do país. Nos anos 70 e 80,
autores como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1999), demonstraram que, mesmo após o
período da industrialização, o racismo ainda persistia no mercado de trabalho, embora com
contornos diferentes dos períodos anteriores.
Já no início dos anos 90, a pesquisa realizada por Castro e Barreto na região metropolitana de
Salvador, publicada em livro no ano de 1998, comprovou a hipótese de Hasenbalg e Valle Silva. As
autoras observaram que mesmo na indústria baiana, onde havia uma predominância numérica
expressiva de trabalhadores e uma mobilização político-cultural de negros, persistia uma forte
divisão do trabalho de acordo com as marcas físicas da cor, privilegiando os brancos, sobretudo nos
cargos de prestígios, como nas chefias e cargos administrativos das empresas (CASTRO E
BARRETO, 1998).
Outra contribuição importante de Castro e Barreto (1998) foi a de demonstrar como o
cenário de precariedade, após a reestruturação produtiva, foi responsável por aumentar as
desigualdades raciais no mercado de trabalho. As autoras observaram que trabalhadores brancos e
negros foram afetados com o desemprego, mas, de maneira geral, o emprego estável que restou foi
reservado aos brancos. Enquanto, no outro extremo, os negros, ao lado das mulheres, foram
relegados aos trabalhos precários e de forte fragilidade do vínculo empregatício. Observa-se que a
flexibilização possibilitou um aumento de postos de trabalhos para os negros, mas estes espaços
foram os mais atingidas pela precarização, o que não significou uma melhoria em seu trabalho.
Dessa forma, o que houve foi, de um lado, uma piora das condições de trabalho dos brancos,
e, de outro, um aumento de atividades precárias que passaram a ser destinadas aos negros. Nas
palavras das autoras “a aparente atenuação da desigualdade resulta antes do empobrecimento de

78
brancos que da melhoria na inserção ocupacional de negros. Longe estamos de vê-los conquistando
a dignidade que o emprego estável e bem remunerado pode propiciar” (CASTRO e BARRETO,
1998, p. 20).
52
Em outro texto, presente no livro que relata o mesmo estudo em questão , Bairros, Castro e
Barreto (1998) destacaram principalmente a maior instabilidade no trabalho entre os negros quando
comparados aos brancos, além das alternativas ocupacionais serem mais transitórias para os
primeiros. Elas observaram, por exemplo, grandes oscilações nas taxas de ocupação dos negros, o
que revelou que eles entram e saem com grande frequência da condição de ocupados no mercado de
trabalho para o desemprego.
Foi identificado também que uma parcela dos trabalhadores negros de Salvador apresenta
ocupações tão precárias que os aproxima dos trabalhadores negros desempregados, os quais vivem
de bico e à espera de um trabalho regular (BAIRROS, CASTRO E BARRETO, 1998). Na ausência
de um emprego formal, a população negra desenvolve uma série de atividades no mercado informal,
a maior parte precários, o que muitas vezes os livra das estatísticas de desempregados, mas não
significa que eles estão bem colocados no mercado de trabalho.
Incluindo aqui mais uma variável, o gênero, nesse mesmo estudo, as autoras observaram que
entre os brancos, existem mais mulheres desempregadas do que homens. Já entre os negros esse
número se equilibra. Contudo, as mulheres negras estão mais susceptíveis ao desemprego por
desalento, ou seja, muitas delas deixaram de procurar emprego por não conseguirem e, desalentadas,
desistem de seguir procurando.
Já no que tange aos lugares ocupados pelos brancos e negros na região metropolitana de
Salvador, Dos Santos (1998), identificou que o trabalho com título universitário era quase
exclusivamente um trabalho de branco, enquanto o setor primário, a construção civil e o trabalho
doméstico eram predominantemente negros. No trabalho doméstico, por sua vez, de cada 100
trabalhadores, somente 7 eram brancos.
Dessa forma, ao longo desses anos, as pesquisas mostraram que a explicação de que existe
uma divisão racial do trabalho porque os negros são menos qualificados ou apresentam menos anos
de estudo não são suficientes para compreender a divisão racial do trabalho. Embora isso seja um
fato, diante das menores chances que os negros possuem para se qualificarem e se escolarizar, a

52
Abordarei algumas discussões presentes nos diferentes textos que compõem o livro de Castro e Barreto referente ao
estudo sobre as questões raciais no mercado de trabalho na década de 90. CASTRO, Nadya Araujo. BARRETO, Vanda
Sá (orgs.). Trabalho e Desigualdades Raciais. Negros e Brancos no mercado de trabalho em Salvador. São Paulo:
Annablume, A cor da Bahia, 1998.
79
divisão racial do trabalho é um todo histórico e complexo que não se restringe a esta explicação.
Nas palavras de Mello (2013, p. 8), “a noção de divisão racial do trabalho remete à ideia de
que existe uma divisão social do trabalho que decorre do modo como se relacionam os indivíduos
negros e brancos na sociedade como um todo. Tal divisão pode ser pensada em analogia com o
conceito de divisão sexual do trabalho”.
As pesquisas atuais que se dedicam ao tema vêm observando alguns aspectos que se repetem
quando o assunto são as desigualdades raciais no mundo do trabalho (CARNEIRO, 2003; MELLO,
2013, 2005; COELHO Jr., 2011; LIMA et al, 2013), a saber: a) reprodução da história de exclusão
da população negra no mercado de trabalho que se perpetua pelas ocupações de menor prestígio,
remuneração e poder, sendo que o acesso à educação é um dos principais fatores de reprodução
dessa desigualdade; b) ausência da população negra principalmente nos cargos de nível de direção e
gerência, seja em virtude da baixa escolarização, seja em virtude da discriminação racial; c)
processos seletivos das empresas que priorizam “boa aparência”, na qual a população negra não se
inclui, sobretudo as mulheres negras; d) diferenças significativas entre negros e brancos no que
tange aos rendimentos e salários no mercado de trabalho; e) desigualdades raciais observadas nas
poucas chances de mobilidade social, e na maior desigualdade racial entre mais escolarizados, em
posições ocupacionais de maior status; f) lugar que as mulheres negras ocupam no mercado de
trabalho e o trabalho doméstico a elas destinado; g) a questão racial a partir das novas configurações
do trabalho e flexibilização dos direitos trabalhistas, o que leva à continuação da exploração
histórica da mão-de-obra negra no trabalho precário e destituído de direitos no Brasil.
Segundo Mello (2013), as desigualdades raciais vêm diminuindo no país, principalmente
após uma série de políticas de ações afirmativas incorporadas pelos últimos governos brasileiros.
Contudo, ainda se nota um importante hiato entre brancos e negros no mercado de trabalho. A renda
dos indivíduos pretos e pardos, por exemplo, teve um ganho de 66,3% e 85,5%, respectivamente,
enquanto que a renda dos brasileiros que se auto-classificam como branco cresceu 47,6%, no
período entre 2001 e 2012 53. Todavia, faz-se necessário considerar que o ponto de partida da renda
dos negros era significativamente inferior, logo tais dados não significam que os primeiros estão
ultrapassando a renda dos brancos.
Em relação à educação, dados do IBGE (2012) indicam que o país tem experimentado
também importantes avanços nessa área em termos quantitativos, embora ainda encontremos a

53
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012) divulgados pelo relatório intitulado "Síntese de
indicadores sociais”.
80
permanência da desigualdade que limita as chances de acesso, progressão e oportunidades,
sobretudo, da população negra, nordestina e rural, que começa a trabalhar mais cedo do que os
brancos, prejudicando seus rendimentos escolares.
Sobre a média de anos de estudo, apesar de a população negra ter aumentado em 2,4 anos a
sua média, em 2012 os negros tinham 6,7 anos de estudos, contra 8,4 anos da população branca. Já a
taxa de escolarização líquida no ensino superior – que mede a proporção de pessoas matriculadas no
nível adequado para sua idade – em 2012, era de 22,3% entre a população branca, contra 9,3% da
população negra.
Os dados também revelam que a participação dos negros na pobreza é sempre maior que a
dos brancos. Entre os mais pobres da população (10% mais pobres), os negros correspondiam a 72%
em 2012.
No que tange às ocupações no mercado de trabalho atual, a pesquisa de Coelho Jr (2011)
sobre os negros nos cargos de nível executivo, apresenta outras informações importantes. Segundo o
pesquisador, ao analisar dados do Instituto Ethos entre 2001 e 2010, visando mapear o perfil social,
racial e de gênero das 500 maiores empresas que atuam no Brasil, no nível executivo, os negros
representavam apenas 1,8% em 2003, passando para 5,3% em 2010. Já nas posições gerenciais, a
participação teve uma elevação maior, saltando de 8,8% em 2003 para 13,2% em 2010. Dessa
forma, a pesquisa de Coelho Jr. (ibid.) evidencia uma sub-representação dos negros nos postos de
maior poder, prestígio e remuneração das empresas.
Outro aspecto observado é que, no geral, as mulheres brancas ocupam uma situação um
pouco melhor que os homens negros e que as mulheres negras nos cargos de alto nível das empresas.
Segundo o autor, as mulheres totalizam 22,1% dos indivíduos que ocupam cargos de gerência e
13,7% daqueles situados em postos de direção. Já os negros e negras correspondem a 13,2% dos que
estão posicionados no nível gerencial e apenas 5,3% do total de diretores. Na realidade, as mulheres
negras somam menos de 1% nos cargos de gerência e direção das empresas.
Segundo Carneiro (2003), as mulheres negras, de modo geral, não conseguem reconverter
suas aquisições educacionais em melhores rendimentos e posicionamentos no mercado de trabalho.
Contudo, em estratos ocupacionais com baixo prestígio e menor remuneração, elas apresentam
maior participação, como no caso dos empregos domésticos.
Dessa forma, embora os dados atuais venham melhorando relativamente e aos poucos, é
preciso notar que a população negra vinha acumulando desvantagens em relação aos brancos no
mercado de trabalho até muito recentemente. Desafio bastante relevante ainda nos dias atuais e que

81
demonstram a importância de considerar a categoria raça nesta pesquisa, na tentativa de analisar
como as propostas de trabalho coletivo e associativo vêm contribuindo ou reforçando este cenário de
desqualificação da população negra no mercado de trabalho.

2.3. A consubstancialidade na pesquisa: classificação analítica orientadora da tese


Após compreender as principais nuances a serem analisadas nesta pesquisa, retomo aqui o
seu objetivo principal: Compreender e analisar os avanços e limites de quatro Organizações
Produtivas de Trabalho Associativo/coletivo a partir do cruzamento das categorias de classe, gênero
e raça, presentes nas iniciativas pesquisadas e nas trajetórias de Qualificação de homens e mulheres,
brancas/os e negras/os participantes dessas Organizações.
A fim de atingir este objetivo, relembro quais são as três Organizações Sociais Produtivas
(OSP) pesquisadas:

1. Empresa Recuperada Catende-Harmonia – Recife/ Pernambuco.


2. Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana –
Recife/Pernambuco.
3. Cooperativa de Resíduos Sólidos Bom Sucesso – Campinas/São Paulo.

A partir deste campo de pesquisa e das reflexões que o desenvolvimento deste capítulo
teórico-metodológico possibilitou, apresentam-se as principais questões a serem analisadas nessas
OSPs:
a) Como as diferentes categorias das relações de dominação de classe, raça e gênero
aparecem nas iniciativas pesquisadas e como elas são consideradas tendo em vista a hierarquia
presente na divisão social, sexual e racial do trabalho?
b) Quais são as bases ideológicas e materiais de cada sistema de opressão/exclusão (raça,
sexo e classe) que estão presentes no interior dessas iniciativas? Esses sistemas aparecem com a
mesma força explicativa de análise? Se não, alguns deles se sobressaem? Por quê?
c) O que acontece quando existe o deslocamento de uma das linhas de tensão? Ou seja, se a
questão de classe é superada pela geração de renda, as relações de gênero e raça permanecem
intactas? E se o deslocamento se dá no nível das relações de gênero? O que acontecem com as
relações de raça e de classe? Essas linhas de tensões operam juntas o tempo todo?

Pensando nessas questões e para maior rigor analítico e descritivo, os dados desta pesquisa
82
serão analisados segundo quatro agrupamentos que articulam classe, gênero e raça. Além do
conceito de consubstancialidade, alguns aspectos relevantes foram escolhidos para este
agrupamento: a escolaridade, devido a sua importância na inserção das pessoas no trabalho
associativo, nos diferentes casos pesquisados; esse aspecto (escolaridade) será associado à trajetória
de trabalho produtivo e reprodutivo; ao sexo, à cor, à idade e à situação familiar dos homens e
mulheres que compõem as OSP pesquisadas.

Classificação Analítica:

- Homens do primeiro grupo: aqueles que apresentam mais anos de estudos (ensino médio
completo ou incompleto e alguns cursando faculdade) e que já tiveram formação anterior no espaço
público de trabalho, passagem por outros movimentos sociais, partido político, ou ainda passagem
por outros trabalhos em empresas e com grandes chances de se tornarem lideranças. Este grupo de
homens foi encontrado, sobretudo, na empresa recuperada do Nordeste e há um equilíbrio entre
brancos e negros (pretos e pardos), embora a maior parte seja identificada como branca. Maior parte
numa faixa etária de 40 anos ou mais. Geralmente casados e com filhos.
- Homens do segundo grupo: com menos anos de estudos (ensino fundamental e médio
incompleto), com dificuldades de conseguir emprego no mercado formal de trabalho produtivo.
Maior parte acima de 45 anos e outros já aposentados. Experiências de trabalhos bastante variadas
com ou sem carteira assinada (agricultura, construção civil, serviços gerais, etc.), mas todos já
tiveram carteira assinada. Maior parte negra (pretos e pardos) e nordestina. Maior parte casados e
com filhos. Homens encontrados no setor de reciclagem e nas atividades gerais na empresa
recuperada (sobretudo plantação e na cooperativa, mas não como lideranças).
- Homens do terceiro grupo: baixa escolaridade (analfabetos ou analfabetos funcionais com
ensino fundamental incompleto), com ou sem experiências de emprego formal. Trajetória de
trabalhos pesados, como carregador e na construção civil ou na agricultura familiar e no corte da
cana. Geralmente negros, com mais de 45 anos. Maior parte casado e/ou com filhos. Homens
encontrados no setor de reciclagem e na empresa recuperada, sobretudo na agricultura familiar e no
corte da cana.
- Mulheres do primeiro grupo: mulheres com mais anos de estudos (ensino médio
completo ou incompleto e algumas com faculdade) e que já obtiveram formação anterior no espaço
produtivo, além de muitos anos dedicados ao trabalho reprodutivo. Provavelmente mulheres que

83
conseguiriam outros empregos fora da cooperativa por terem certa experiência profissional
(agricultoras, secretárias, professoras, trabalhadoras da área da saúde). Mulheres que ocupam
lideranças ou costumam representar as iniciativas nos espaços públicos. Equilíbrio entre mulheres
brancas e negras, encontradas na Rede de mulheres produtoras do Nordeste e na empresa
Recuperada. Mulheres de diferentes faixas etárias, a partir de 25 anos. Algumas são mulheres chefes
de família, outras são casadas com filhos.
- Mulheres do segundo grupo: mulheres com menos anos de estudos, mas que são
alfabetizadas (ensino fundamental completo ou incompleto e médio incompleto). Trajetória de
emprego doméstico, trabalhos na cozinha, de cuidadoras, costureiras e outras atividades que
reproduzem o lugar da mulher no trabalho reprodutivo, ou seja, que não são valorizadas
socialmente. Trajetórias de trabalho com ou sem carteira assinada. Algumas nunca trabalharam no
âmbito produtivo. Na maior parte mulheres chefes de família, brancas e negras. Também de
diferentes faixas etárias entre 30 e 60 anos. Mulheres encontradas em todas as iniciativas
pesquisadas.
- Mulheres do terceiro grupo: baixa escolaridade (analfabetas ou analfabetas funcionais
com ensino fundamental incompleto), sem experiências de emprego formal. Trajetória de trabalhos
domésticos e de cuidadora, além de grande dedicação ao trabalho reprodutivo, mas sempre
trabalharam fora de casa também. Mulheres que trabalharam no lixão e com reciclagem, ou no corte
de cana e na agricultura familiar. Maior parte negra ou parda. Grande quantidade de mulheres chefes
de família. A partir de 25 anos até 73 anos. Mulheres encontradas em todas as iniciativas
pesquisadas.
Observa-se que as questões da qualificação, das possibilidades de estudo e trajetória
profissional são também relevantes para compor estes grupos, as quais, por sua vez, estão
relacionadas às categorias de classe, raça e sexo e ao cruzamento das mesmas na vida dos sujeitos
que formam cada um dos grupos identificados. Nota-se ainda que as características que separam
homens e mulheres, referentes às suas ocupações e qualificações correspondem nitidamente ao
trabalho produtivo e reprodutivo discutidos no âmbito da divisão sexual do trabalho, somado à
construção social da raça que separa ainda mais a condição destes homens e mulheres.
As análises que seguem buscarão relacionar os dados identificados a essa classificação, na
tentativa de compreender se há mobilidade entre esses grupos e como eles aparecem no trabalho
coletivo/associativo.

84
Capítulo 3. Disputa, Resistências e Contradições de um Projeto Coletivo predominantemente
masculino

Não há empresa de economia solidária que nasça de projetos. Elas


nascem da resistência dos trabalhadores, diante da grande injustiça da
concentração de renda pelo Estado e pelas elites brasileiras. As grandes
empresas capitalistas, todavia, nascem de projetos. Elas são financiadas
por si mesmas ou pelo Estado […] Os filhos dos excluídos sociais ou
políticas públicas para excluídos socialmente, nascem na rua, na greve,
na resistência, na ocupação. Assim é Catende. É algo bonito por um lado,
mas é injusto por outro. Não há empresa de economia solidária pautada
pela autogestão, que tenha sido criada a partir de um investimento de um
banco. Ainda não faz parte da política a criação dessas condições.
Portanto, esses projetos desenvolvem-se a partir das necessidades das
pessoas (RIBEIRO, 2010, p. 85).

O projeto coletivo originário da massa falida da Usina Catende, pertencente ao setor


sucroalcooleiro e localizado na região da Zona da Mata em Pernambuco, consiste na experiência de
um grupo de trabalhadores e trabalhadoras, em conjunto com os sindicatos e movimentos sociais e
religiosos da região, que, após a falência da Usina Catende, entrou com um processo judicial para
recuperá-la com o objetivo de manter os empregos e os direitos de cerca de 4.000 trabalhadores/as
do campo e da cidade. Esse projeto denominou-se Catende-Harmonia 54, tendo se iniciado no ano de
1995, quando os trabalhadores decretaram a falência da Usina, e finalizado no ano de 2009, quando
foi interrompido devido a uma série de dificuldades, problemas e contradições da luta de classes no
Brasil, que serão reveladas ao longo das páginas que seguem.
No mesmo momento da falência da Usina Catende, período da reestruturação produtiva e
auge do neoliberalismo no país, muitas outras usinas faliram e fecharam suas portas na Zona da
Mata, causando grande desemprego e uma situação desesperadora na região, que era totalmente
dependente do setor. Tal cenário foi discutido no primeiro capítulo desta pesquisa ao descrever o
contexto brasileiro que impulsionou iniciativas coletivas de organização de trabalhadores/as diante
do desemprego em massa dos anos 90. Com a falência da Usina, Catende optou por seguir em sua
produção, a partir de uma organização de lideranças e trabalhadores da região, conforme explicou
um dos entrevistados:

54
O processo de recuperação da Usina Catende será identificado como Projeto Coletivo Catende-Harmonia, o qual se
refere ao período de 1995 até 2009, com auge entre os anos de 2004 a 2009, até a saída do síndico Marivaldo. Isso
porque houve um projeto dos trabalhadores, sobretudo das lideranças sindicais e dos movimentos sociais e religiosos da
Zona da Mata, que foi se consolidando na recuperação da Usina, com adesão de novos trabalhadores/as do campo e da
cidade. Esse projeto coletivo foi um processo, com avanços e contradições e que foi se consolidando na experiência
coletiva da Usina.
85
Nas outras usinas com os mesmos problemas, a forma como os trabalhadores enfrentaram
esse problema todo foi diferente da forma que enfrentaram em Catende. Em Catende, os
trabalhadores decretaram falência, tiraram os donos da usina, e com isso acolheram a usina
para si, ao redor do sindicato e ao redor de outras organizações (Hugo 55/liderança no projeto
Catende-Harmonia).

Ao longo de sua história, os trabalhadores de Catende conseguiram decretar a falência da


Usina e mantê-la em funcionamento durante cerca de treze anos sob a condição de massa falida.
Com a sindicância do trabalhador Mário Borba, iniciou-se um processo de formalização da Usina
com os objetivos de garantir boa parte dos empregos e direitos, superar a sua condição falimentar e
estabelecer mecanismos de participação dos trabalhadores. O auge do projeto se deu entre os anos de
2004 e 2008, com o síndico Marivaldo de Andrade, que substituiu Mário Borba. Nesse período,
houve a formação da Cooperativa Harmonia, composta por trabalhadores do Campo e da Usina.
Além da massa falida, o projeto se efetivou pela constituição de um Assentamento Rural a
partir da divisão de cerca de 26.000 hectares de terra, patrimônio dos usineiros falidos, que passou
aos trabalhadores do campo como pagamento de parte dos direitos trabalhistas.
O projeto Catende-Harmonia foi idealizado e vivenciado por um grupo de homens, brancos e
negros, pertencentes à própria Usina Catende, a movimentos sociais, religiosos e sindicais da região,
que tinham como objetivo inicial a preservação dos empregos e a conquista dos direitos trabalhistas
após a falência da Usina. Também foi vivenciado por muitos trabalhadores do campo, a maior parte
negros, sem estudo, que foram se alfabetizando e se qualificando técnica e politicamente no
processo de construção do projeto. Esses trabalhadores tinham como foco principal o fato de não
deixar de ser assalariados.
Foi ainda uma iniciativa construída por muitas mulheres, brancas e negras, algumas também
pertencentes aos mesmos movimentos sociais, outras companheiras e esposas das lideranças, ou
então mulheres trabalhadoras do campo no corte da cana, a maior parte negras, analfabetas e que
foram as primeiras trabalhadoras a serem demitidas da Usina durante o processo de falência. Muitas
dessas mulheres foram invisibilizadas e parecem não ter feito parte dessa história. Descobri-las e
resgatá-las foi um desafio, e o simples fato de mencioná-las com a relevância que merecem já traz

55
Todos os nomes utilizados ao longo da pesquisa são fictícios. Optou-se pela troca dos nomes a fim de preservar as
pessoas entrevistadas. Para a transcrição, busquei seguir as orientações de Whitaker et al (2002) que alerta para a
diferença entre a fala e a escrita. Para a autora o importante é ser fiel à fala e cultura da pessoa entrevistada e não às
marcas de linguagem que produzem erros de fala. A autora explica que a transcrição não precisa ser feita com ortografia
incorreta, visto que escrever errado prejudica a fala do outro. Por exemplo, na fala, as pessoas dizem “num”, ao invés de
não; pra, ao invés de para; tava, ao invés de estava; entre outras marcas linguísticas que serão corrigidos para manter a
boa compreensão das falas sem estigmatizar os grupos sociais entrevistados. Já o modo de falar e as expressões próprias
dos locais onde as pessoas vivem serão mantidos.

86
um elemento novo para esta pesquisa no que tange aos estudos sobre Catende.
A organização pesquisada se parece com muitas outras experiências de Fábricas Recuperadas
na década de 90, em que os trabalhadores, orientados por algumas lideranças, sem ter outra saída,
pedem a falência de uma série de empresas. Contudo, Catende apresenta uma particularidade: trata-
se de uma experiência que envolvia cerca de 450 trabalhadores de uma Usina, localizada na cidade
de Catende, portanto urbana, mas também cerca de 3.800 famílias alojadas no campo, em cinco
municípios diferentes (Jaqueiras, Palmares, Catende, Água Preta e Xexéu). Nesse âmbito, estavam
os trabalhadores e trabalhadoras rurais, que desenvolviam suas atividades especialmente no corte da
cana.
Outro aspecto a ser considerado em suas especificidades é que o projeto Catende-Harmonia é
conhecido como a maior experiência em Economia Solidária e de Autogestão da América Latina
(KLEIMAN, 2008; DA SILVA, 2011). Contudo, a recuperação da Usina surge muito mais para
manter os empregos, para a obtenção dos direitos dos trabalhadores e para evitar uma tragédia social
na região da Zona da Mata, do que de um projeto de autogestão previamente formulado. O objetivo
dos trabalhadores era manter a Usina moendo. Depois foram expandindo os ideais de participação
dos trabalhadores na administração e a ideia de possibilitar um trabalho de menor submissão quando
comparado com a relação entre usineiros e trabalhadores. Também começaram a melhorar as
condições de vida e de moradia do trabalhador do campo.
Conforme contou Cristina, membro da equipe de educação do Projeto Catende-Harmonia, a
região sofria de muita pobreza e miséria e um dos grandes objetivos da recuperação da Usina era
mudar essa realidade:
Eu me lembro muito da primeira Assembléia do projeto Catende. A primeira! Foi decidido
que ninguém mais ia passar fome! No território da Catende ninguém ia passar fome e a
gente ia combater o analfabetismo. Então isso já é sintomático de que ali estava acontecendo
uma coisa diferente, que ia mudar essa relação da Usina, com os trabalhadores...eu me
emocionei muito naquela ocasião (Cristina/membro da equipe de educação do Projeto
Catende-Harmonia).

É já no fim da década de 90 e início dos anos 2000 que os trabalhadores conhecem a


ANTEAG e começam a perceber que suas iniciativas faziam parte de uma proposta que vinha se
organizando no país, denominada Economia Solidária. As lideranças entrevistadas explicaram que
esse diálogo com a ANTEAG foi importante para a ampliação do processo coletivo que já vinha se
iniciando em Catende, sobretudo no diálogo com os/as trabalhadores/as do campo. As principais
contribuições nessa direção foram a expansão das Assembléias e o aumento de circulação de

87
informações e das reuniões com representantes dos 48 Engenhos 56 da região.
Diante deste contexto, as análises que seguem não estarão preocupadas em revelar se
Catende-Harmonia é ou não autogestionária, ou se ela pode ou não ser considerada como uma
iniciativa de ES. Pelo contrário, objetiva-se entender o que teve de novo nessa experiência que a fez
avançar na direção de tentar romper com a estrutura hierarquizada, racializada e patriarcal do setor
sucroalcooleiro na região, bem como identificar quais foram os seus limites em torno dessas
questões e da explícita luta de classes que o projeto representou. Quais foram os seus avanços e
quais foram as suas dificuldades para a formação de um projeto coletivo de trabalhadores? E
finalmente, como essa experiência contribuiu para o próprio conceito de autogestão parcial que foi
se formando no país?
Para responder a essas e a questão principal desta tese, a pesquisa se deu em dois momentos.
Primeiramente visitei Catende no ano de 2011, quando o projeto coletivo já havia acabado, com a
saída de Marivaldo de Andrade.
Nesse momento pude me familiarizar de fato com a região e com a complexa história de
Catende, para além dos artigos e livros lidos. Fui recebida por uma das lideranças e foi ele quem
possibilitou os contatos para a realização das entrevistas. Consegui fazer duas entrevistas coletivas
com cerca de doze trabalhadores/as do campo, além de entrevistar duas lideranças do projeto
Catende-Harmonia, sendo uma delas um diretor da cooperativa e outra uma senhora que era
vereadora no momento e acompanhou toda história de Catende. Também entrevistei dois técnicos da
Usina e realizei entrevista coletiva com oito educadores do projeto de educação do campo, Saberes
da Terra, que acontecia no momento em que estive em Catende. Visitei ainda quatro salas de aula de
diferentes engenhos da região e elaborei diários de campo de minhas observações.
No segundo momento, em 2014, após ampliação dos desafios analíticos desta tese, também
fui recebida por uma das lideranças, o diretor da Cooperativa-Harmonia na atualidade, que articulou
as entrevistas e conversas realizadas. Além deste diretor, entrevistei outra liderança; antigos
trabalhadores da Usina que ainda são atuantes na região; duas trabalhadoras e dois trabalhadores do
campo; um trabalhador da Usina que passou de mecânico a diretor da cooperativa; a esposa de um
dos líderes que nasceu e cresceu na região, tendo acompanhado todo o projeto; um jovem que
participa dos projetos educativos atuais; um presidente e uma presidenta de Associações que ainda

56
Os engenhos foram construídos na Zona da Mata no período colonial. Eram formados basicamente a partir de quatro
construções: Casa Grande, capela, fábrica e senzala. Na região pesquisada havia 48 engenhos que, mesmo desativados,
continuaram sendo uma referência para dividir e localizar cada região. Em cada engenho foi formada uma associação
com um presidente para representar os trabalhadores e trabalhadoras nas reuniões e Assembléias da Usina.
88
existem na atualidade; um agrônomo da Usina que trabalhava com os trabalhadores do campo; uma
educadora que fez parte durante dez anos do Projeto Catende-Harmonia e trabalhou no interior da
Usina; além do secretário da agricultura de Jaqueiras, totalizando assim quatorze entrevistas.
Dessa forma, a pesquisa se pautou nos diários de campo referentes às visitas dos dois
momentos, além das entrevistas realizadas. Ela também se valeu de uma bibliografia escrita sobre a
Usina, já que não pude acompanhar o projeto durante o auge de seu funcionamento, ficando
dependente das memórias dos entrevistados para recompor o quadro pesquisado (LIMA, 2003;
SCHÄFERS, 2007; KLEIMAN, 2008; MELO NETO, 2003; DA SILVA, 2011). Destaca-se um livro
que ganhei em minha primeira visita escrito pelas lideranças do Projeto Catende-Harmonia 57.
Além da dificuldade de não ter podido acompanhar o projeto em seu funcionamento, cabe
destacar que as entrevistas feitas foram restritas à forma como pude me locomover na região,
composta por cinco municípios e que abarca uma área de mais de 28.000 hectares de terra. Tal
estrutura torna muito difícil andar pelo Assentamento para conversar com os trabalhadores do
campo, visto que além das longas distâncias, a estrada é de terra e significativamente irregular, o que
dificulta o acesso às pessoas, principalmente sem conhecê-las. Dessa forma, fiquei dependente das
caronas e dos contatos feitos a partir das lideranças que me receberam.
Também ressalto que fui muito bem recebida por essas lideranças e trabalhadores, o que
devo ao fato de as pessoas saberem de meu comprometimento e militância na área pesquisada.
Conforme relatou um dos entrevistados, “Estamos muito contente de você estar aqui. Muita gente
diz que pesquisa Catende, mas só lê livros. Ainda mais menina, branca...tem que vir, pisar no barro,
ver gente, falar com as pessoas”.
Outra dificuldade foi conseguir entrevistar as mulheres participantes do projeto. As
lideranças eram, em sua maioria, homens, e poucas mulheres trabalharam no interior da Usina.
Quanto às mulheres do campo, era difícil encontrá-las nos lugares públicos, andando pelos
engenhos. Além disso, parecia não haver certa prioridade para que eu entrevistasse as mulheres, não
consideradas com a mesma importância no projeto. Ressalto ainda que, em algumas entrevistas com
trabalhadores homens do campo, eu notava que havia certa dificuldade de olharem nos meus olhos e
de conversarem somente comigo. Quando havia uma liderança masculina me acompanhando, esses
trabalhadores olhavam para ele buscando uma referencia. A isso se soma o curto tempo disponível
para a estadia em Catende para a construção de relações diferentes nessa direção.

57
MELO NETO, João Francisco de; LIMA, Lenivaldo Marques da Silva. Usina Catende. Para além dos vapores do
diabo. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2010.
89
Tendo esclarecido as primeiras informações essenciais para compreender esta Organização
Produtiva pesquisada, seguirei neste capítulo descrevendo e analisando a experiência propriamente
dita. Tal explanação será dividida em 4 momentos: 1) Primeiramente descreverei a história do setor
sucroalcooleiro na região da Zona da Mata de Pernambuco, a qual se concretizou por meio do tripé
latifúndio, monocultura e escravidão, conferindo algumas especificidades ao trabalhador do campo;
2) Num segundo momento analisarei o processo de falência da Usina Catende e a tomada da mesma
pelos trabalhadores; 3) Na sequência, darei destaque para a fase auge do projeto entre os anos de
2004 e 2008, com a posse do síndico Marivaldo de Andrade e; 4) Por fim, tratarei do encerramento
do projeto, com a expulsão de Marivaldo e a entrada de um novo síndico. Cabe destacar que em
todas essas etapas será enfatizada a participação das mulheres e as desigualdades de gênero e raça
nelas identificadas, buscando analisar a consubstancialidade das relações sociais num projeto
considerado de êxito e predominantemente masculino.

3.1. Histórico: cana, escravidão e a construção de uma sociedade patriarcal racializada

A Zona da Mata pernambucana se desenvolveu a partir do cultivo da cana-de-açúcar trazida


para a região pelos portugueses no período colonial. Desde então, ela apresenta significativa
relevância econômica para a região (ANDRADE, 1998; 2001). Porém, tal como explica Melo Neto
(2003), juntamente com a cana, os portugueses trouxeram um modelo escravocrata de trabalho
pautado na exploração total da terra e do trabalhador negro, trazido da África para o Brasil. Com
este modelo de exploração, o cultivo da cana impactou as relações de poder que foram se
configurando na região, primeiramente entre senhores de engenhos e escravos e depois entre
usineiros e trabalhadores que continuaram sendo explorados em regime de assalariamento.
Segundo Andrade (1998; 2011) e Da Silva (2011), Portugal introduziu primeiramente o
cultivo da cana na África, na Ilha da Madeira, com exploração da mão de obra negra e escrava para
o trabalho braçal, tendo buscado as mudas e mão de obra branca, especializada e intelectualizada na
Itália, configurando a divisão racial do trabalho no setor, que perdurou durante anos.
A partir dos resultados alcançados, Portugal expandiu tal cultivo pela África, sobretudo em
Cabo Verde e São Tomé. Logo começou a vender para a Inglaterra, Alemanha e outros países,
passando a ser o principal exportador Europeu. Após invadir o Brasil, os portugueses trouxeram o
cultivo da cana de açúcar para cá (DA SILVA, 2011; ANDRADE, 2001).
Esse movimento foi também uma forma encontrada para trazer as pessoas da metrópole para
a colônia com fins de investimento, o que iniciou o processo de distribuição de terras no Brasil.
90
Como explica Da Silva (2011), todos que solicitassem terra no Brasil para o cultivo da cana a
recebia sobre o acordo de trabalhar durante três anos na mesma para consegui-la legalmente. Trata-
se do período das Capitanias Hereditárias e das primeiras etapas de concentração fundiária no país
(ANDRADE, 1998, 2001). É também um marco de uma sociedade de classes, já que os donos da
terra detinham o poder econômico sobre os que não possuíam terras e eram explorados na mesma.
Os portugueses começaram a investir e a consolidar as empresas para a produção do açúcar
no Brasil seguindo o regime escravocrata. Houve ainda uma prioridade à cana, eliminando outras
culturas, inclusive das lavouras de subsistência. Nesse momento se cristalizam as bases da
colonização brasileira com total dependência da colônia. Essas bases se pautavam na escravidão, na
monocultura da cana e no latifúndio, ou seja, plantar a cana em grande extensão territorial para que
fosse viável economicamente (ANDRADE, 2001).
Há de salientar que, nesse período, a exploração do trabalho seguia um regime sobre-
humano. Conforme descreve Andrade (1998), na época da safra os escravos chegavam a trabalhar
20h diárias e muitos morreram nesse processo. Eram mal tratados, comiam alimentos de péssima
qualidade, eram vendidos como mercadorias e foram impedidos de seguir sua religião de origem
africana. Trata-se, portanto, de um exemplo concreto em torno de como a raça branca foi criando a
ideologia de ser superior e enriquecendo a custa da exploração do trabalhador negro, compreendido
como raça inferior, tal como discutido no segundo capítulo desta pesquisa ao explicar a base da
formação da sociedade brasileira pautada no racismo.
Além disso, como também já retratado, o processo de escravidão se deu de forma diferente
para os homens e mulheres negras, visto que, além da exploração do trabalho no corte da cana e nos
serviços pesados, as mulheres foram exploradas sexualmente e no âmbito do trabalho reprodutivo
58
pelas atividades domésticas, o que também deixou marcas profundas de uma sociedade patriarcal
na região.
Segundo Theodoro (2012), o modelo patriarcal se estendeu do inicio da colonização até o
século XIX e atingiu as mulheres brancas e negras. As mulheres brancas eram completamente
submissas aos senhores, mas, por outro lado, possuíam uma relação de poder manifestada em maus
tratos com as mulheres negras, acusadas de atraírem a atenção de seus maridos. Como se destacou a
partir de Gardey (2003), no capítulo anterior, o trabalho das mulheres negras era a possibilidade de

58
Conforme explica Saffioti (2004, p. 57) o conceito de patriarcado apresenta duas especificidades relevantes: “não se
trata de uma relação privada, mas civil; e dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição”.
A autora complementa o conceito dizendo que se trata de uma relação de poder hierárquica que invade todos os espaços
da sociedade, tendo uma base material pautada tanto na ideologia como na violência.
91
existência da mulher branca, ociosa, aristocrata e burguesa.
As mulheres negras, além do trabalho nos engenhos e no corte da cana, também realizavam
as tarefas domésticas na Casa Grande e eram exploradas sexualmente, seguindo a tarefa de
59
reproduzirem biologicamente (THEODORO, 2012), o que permitiu grande miscigenação na
região. Tal miscigenação não significou, contudo, diferença no tratamento dos filhos das negras, que
eram escravizados da mesma maneira.
Analisando textos deixados pelos jesuítas, Theodoro (2012) descreve que as mulheres negras
usavam foices e enxadas tal como os homens. Já no corte da cana havia certa divisão sexual mais
acentuada: os homens cortavam a cana e as mulheres amarravam os feixes e semeavam a terra.
Essa descrição sobre o trabalho das mulheres na cana apareceu na fala de uma das
entrevistadas na atualidade. Para ela, de fato era melhor amarrar do que cortar. Ela contou que as
mulheres trabalhavam duramente na cana assim como os homens, mas havia certa divisão das
tarefas que ainda seguiam àquelas do período colonial acima descrito:
Eu trabalhei muito na cana, já cortar eu não era muito de cortar porque eu sempre levava
muita porrada na cabeça e eles faziam, aí eu gostava mais de amarrar. Eu cheguei a trabalhar
no campo limpando a cana, cobrindo, semeando para passar o trator. Antigamente passava o
gado, aquele arado, né? Eu cheguei a semear adubo, deixar a terra limpa no ponto de plantar
a cana, eu já fiz uma porção de coisas já. Hoje eu peço a Deus para que não chegue essa
hora porque...pra falar a verdade eu não tenho mais coragem. Quando você pensa assim a
palha da cana batendo no rosto, aquele sol quente, eu não tenho mais coragem. Tem as
lagartas também, ela cai na roupa e morde (Diva/trabalhadora do campo).

Já na fala dos homens trabalhadores do campo, embora relatem à submissão que deviam aos
capangas dos usineiros, e as condições difíceis de trabalho, eles descrevem com orgulho o corte da
cana, a produção deles e o quanto conseguiam “encarar” o trabalho. Esse orgulho observado
representa a qualificação e a profissão deles. Nota-se, portanto, desde o período colonial, a presença
da divisão sexual do trabalho descrita no capítulo anterior, em que o trabalho pesado foi sendo
identificado ao homem, valorizando-o, enquanto o trabalho das mulheres passou a ter menor
utilidade social (GARDEY, 2003).

59
Segundo Munanga (2004), a mestiçagem no Brasil teve dois momentos: a) pela exploração sexual das escravas que
tiveram filhos dos senhores brancos, gerando uma vasta população mestiça, mas não menos explorada; b) a mestiçagem
pelo cruzamento forçado entre negros e brancos. Esta foi incentivada pelos governos a fim de manter o modelo
hegemônico racial e cultural branco, ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raças. Tratava-se da tentativa de
branqueamento da população e consequente assimilação total da cultura branca, européia. Nas palavras do autor, era o
genocídio da população negra para “criar uma nova raça e uma nova civilização” (ibid., p. 99). Porém, o mestiço,
denominado também mulato, não passou a gozar um status diferenciado do negro, nem na miscigenação pela escravidão,
nem na tentativa de branqueamento da população. Segundo Munanga (ibid.), eles são, na atualidade, filhos e filhas de
famílias pobres sendo vítimas de discriminações raciais devido à ambiguidade raça/classe e chegam a ser mais
numerosos que os negros no Brasil. Além disso, os mestiços alimentaram um sentimento de inferioridade perante sua
identidade cultural africana e foram assimilados ao desejo de branquitude.
92
Dessa forma, as heranças do período colonial na Zona da Mata, pautadas na exploração do
trabalho do negro, e do corpo da mulher negra, além da divisão sexual das tarefas, faz parte de uma
história que se perpetuou durante muito tempo e ainda apresenta os seus vestígios na região. Uma
das entrevistadas relatou que, ainda nas décadas de 60 a 80, as mulheres daquela região que ficavam
sem marido acabavam sendo reconhecidas como prostitutas60. Na realidade, muitas tiveram que
seguir esse caminho:
Se eu trabalhei no corte da cana? Sim, no corte da cana, no roçado, já faz muito tempo que
não estou, mas comecei com nove anos de idade. Minha mãe viúva, dez filhos pequenos,
sem condições...aí tinha o roçado e o corte da cana. Do roçado a gente ia para a feira e
vendia coentro, alface e foi assim que ela foi sobrevivendo e ajudando a gente a sobreviver.
Na região tem uma questão que é muito forte: quando a mulher fica sem pai havia uma
leitura e um senso comum que o caminho é a prostituição, inclusive da família, então
achavam que as filhas de Dona Helena todas iriam ser putas. Isso não aconteceu e não
aconteceu por conta dela, porque mulher sem pai numa determinada região, ou quase todas
as regiões, não dá pra muita coisa, só da pra servir aos homens no caminho da prostituição
[…] E essa história da gente não difere muito das outras histórias […] Daqui do engenho eu
lembro que só a gente saia pra estudar e depois foi que os vizinhos daqui começaram a olhar
pra gente e começaram a sair também. O direito a educação nos foi negado durante décadas,
séculos (Leila/educadora da Zona da Mata).

A partir desta fala podemos notar os resquícios de uma sociedade patriarcal na vida das
mulheres e na ideologia que se perpetuou na região. Quando se fala das mulheres em Catende
facilmente ouvimos “a região aqui é muito machista”; “você sabe que a coisa aqui para as mulheres
é difícil”, ou ainda como a fala de um trabalhador entrevistado: “aqui na nossa região não é como lá
do seu lado (em São Paulo)”.
Além dessa marca para as mulheres, a escravidão também deixou uma relação de profunda
dependência entre trabalhadores e usineiros, advinda da opressão entre senhores e escravos, que teve
origem no período colonial e se perpetuou na configuração do assalariamento, ao manter os mesmos
moldes de divisão e exploração do trabalho.
O período de prosperidade do açúcar no Brasil foi longo. Só foi abalado quando os
holandeses começaram a concorrer com os portugueses causando a primeira crise do setor. Nesse
momento os portugueses passaram a modernizar a produção. Surgiram os chamados engenhos
centrais, que passaram a ser a vapor (DA SILVA, 2011, p. 103).
Essa modernização, em meados de 1817, proporcionou a vinda de trabalhadores brancos e
estrangeiros para o Brasil, com a justificativa de suas especialidades. Os engenhos centrais foram

60
Segundo Munanga (2004), as escravas negras, vulneráveis às agressões sexuais dos senhores brancos, foram, em sua
maioria, transformadas em prostitutas como meio de renda e, dessa forma, foram impedidas de estabelecer uma estrutura
familiar estável. Observa-se que essa história influenciou a vida de muitas mulheres da Zona da Mata que continuaram
sendo identificadas como prostitutas como forma de conseguirem renda na ausência de seus maridos.
93
desenvolvendo a vida urbana e, com o passar do tempo, acabaram sendo transformados em Usinas.
Aos poucos, o trabalhador negro do campo foi se tornando assalariado da Usina, mas manteve-se no
corte da cana; enquanto o trabalhador branco foi para o interior da Usina, nas tarefas
administrativas, de gerência, tarefas técnicas, de pesquisa, etc., seguindo o histórico da divisão racial
do trabalho na passagem da escravidão para o assalariamento, como já descrito anteriormente.
Nota-se que, com a evolução do mercado capitalista na região pela construção das Usinas, a
produção organizada com base na escravatura foi sendo superada e a nova condição econômica se
estruturou a partir da dependência das Usinas.
Embora não com a mesma relação de poder anterior, os capatazes e administradores ainda
tratavam os assalariados do campo com violência e relação de submissão. Esses últimos
trabalhavam em extensões de terras sempre maiores do que o previsto por lei, com jornadas longas e
situações de moradia precárias. Além disso, eles ainda dependiam dos usineiros para comer,
trabalhar e morar.
O salário do trabalhador era quase todo gasto nos armazéns, os chamados barracões, onde
compravam a comida, mas ficavam devendo ao usineiro. Esse sistema perdurou até a década de
1970: compravam-se os produtos diretos do mercado do patrão a preços elevados, fazendo com que
nunca conseguissem pagar 61. Um dos trabalhadores entrevistados descreveu essa situação:
Tinha um barracão que é feito uma venda, um supermercado, e tem de tudo de comida. Só
que lá você come e é anotado. Quando vem no dia do seu pagamento, o que você comprou
vai ser descontado ali. Aí todo mundo passava a viver comendo de barracão, porque depois
que você entrava primeiro não saía mais nunca […] Olha, o usineiro aqui, no tempo que eu
era criança, o boi caía, quebrava uma perna, um braço, aquele boi ia ser sacrificado, mas ele
ia ser esquartejado todinho pra vender a carne pro trabalhador. Minha mãe tinha nojo, sabia
que era cortada no chão, aí quando vinha o rapaz trazer a carne ela fechava a porta. Mas
estava anotado, se comeu ou se não comeu, era dessa forma. E podia ser morto de acidente,
ou se foi uma cobra que mordeu, não queriam nem saber a causa da morte: esquarteja e vai
pro trabalhador, e é descontado do salário dele. Se está com a porta fechada, bota a carne na
porta e pronto! (Inácio/técnico da Usina que chegou a ser diretor da cooperativa).

O que chama atenção é que, até o projeto Catende-Harmonia ser iniciado, na década de 90,
embora com algumas mudanças, essa condição do trabalhador do campo de dependência dos
usineiros, ainda seguia os mesmos moldes dos tempos da escravidão, conforme descreve o relato

61
O livro “Homens livres na ordem escravocrata”, da tese de Maria Sylvia Carvalho Franco, defendida em 1964,
descreve esse processo da formação histórica da sociedade brasileira, em que muitas nuances do regime escravocrata
permaneceram com o advento do trabalhador livre. A autora explica que essas características do trabalho escravo
permaneceram na estrutura social e definiu o destino dos “trabalhadores livres”, não se tratando, portanto, de uma
simples co-existência entre dois modos de produção, o escravocrata e o capitalista. Dessa forma, a contradição das
origens da sociedade brasileira, ao nível da economia, desdobrou-se, ao nível da organização social e política, bem como
na unidade da vida pública e da vida privada. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem
Escravocrata. 3ª Edição. São Paulo: Kairós, 1983.
94
abaixo:
Nas casas, tudo era vigiado. Se uma telha saía do lugar e começava cair uma ¨pingueira¨, aí
ninguém mexia nada, aí chamava a usina. A usina tinha um grupo, uma turma para a
manutenção das casas. Aí iam lá e colocavam a peça no lugar. Isso criou uma grande
dependência, as pessoas praticamente ficavam isoladas aqui nesse mundo...porque tinha
uma figura que era o barraqueiro, que era o cara que tinha o barracão, que aí tinha aquilo
básico que as pessoas precisavam para se alimentar, o arroz, o feijão, a farinha, o charque.
Era o cara que preparava a cachaça. E o trabalhador começava a tirar coisas, a comprar fiado
e quando chegava na sexta-feira, que era dia de pagamento, aí o cara fazia a conta, e os
caras ficavam sempre devendo alguma coisa (Júlio/trabalhador da Usina e do campo).

Devido à baixa industrialização do Nordeste e consequentemente menor imigração dos


brancos para essa região, alguns trabalhadores assalariados, principalmente os mestiços, acabaram
indo trabalhar nas Usinas, sobretudo no chão de fábrica. Os cargos administrativos eram ocupados
principalmente pelos filhos e famílias dos antigos senhores de engenho que se tornaram usineiros, e
pelos poucos imigrantes que ali chegaram, o que marcou a divisão racial do trabalho na região.
Importante destacar que o trabalhador assalariado do campo é, na verdade, neto ou filho dos antigos
escravos, ou os ex-escravos com mais de 60 anos.
Nas “novas” relações de trabalho configuradas, surgiu também o empreiteiro contratante.
Assim, o usineiro não tinha nenhuma relação com o trabalhador, o que era também uma forma de
não cumprir os direitos trabalhistas e de os trabalhadores não terem para quem reclamar.
Nota-se na Zona da Mata pernambucana a formação de um cenário com uma herança
colonialista, patriarcal e racial, responsável pela concentração do poder econômico, político e
cultural representado pelos usineiros. O modelo de trabalho livre foi, portanto, uma “abolição
inacabada”, utilizando o conceito de Cunha Jr (2008), pois não permitiu uma revolução social na
vida dos escravos, deixando-os numa situação de exclusão do trabalho que se perpetuou por muitos
anos. Tal como descrevem Araújo, Lima e Melo Neto (2003),
a modernização econômica da região não rompeu com a estrutura básica que fundamentou
as relações sociais da casa-grande e da senzala. Antigos engenhos de açúcar absorveram
engenhos menores. Modificaram as suas estruturas produtivas, transformando-se nas atuais
usinas produtoras de açúcar e destilarias. Essa modernização manifestou-se, com maior
vigor, na década de 80, com o estímulo do Programa de Apoio ao Álcool, mas não alterou a
estrutura fundiária que permaneceu baseada na grande propriedade. Manteve a monocultura
da cana de açúcar e, pouco a pouco, transformou as relações de trabalho pré-capitalistas,
ainda existentes no inicio do século XX, para o assalariamento clássico das relações
convencionadas entre trabalho e capital.

Segundo Kleiman (2008), a Usina Catende foi criada em 1891, mas só em 1920 produziu sua
primeira safra de cana de açúcar. Nove anos mais tarde era uma das maiores Usinas do Brasil, tanto
em produção como em capacidade. Na década de 30 o seu patrimônio era avaliado em 43
propriedades agrícolas, uma via férrea de 140 km, 11 locomotivas e 266 vagões, capacidade para
95
processar 1.500 toneladas de cana, fabricando 4.000 litros de álcool em 22 horas. Além de uma vila
operária com 200 casas e uma escola com cerca de 50 alunos para os filhos dos usineiros. Com esse
patrimônio, nas décadas de 40 e 50 a Usina Catende foi considerada a maior da América Latina.
Diferentes estudos mostram que o Nordeste sempre contou com subsídio do governo para
manter a produção de açúcar (ANDRADE, 1998, 2001). Com a crise de 1929, o governo criou o
IAA, Instituto do Álcool e do Açúcar, que, conforme descreve Kleiman (2008, p. 53) “mais do que
uma entidade de pesquisa, ele tinha como função ajustar os preços do produto para a necessidade do
produtor”. Apesar de algumas dificuldades do setor, o IAA permitiu que Catende e muitas outras
usinas da região mantivessem sua larga produção. Contudo, durante o período da Segunda Guerra
Mundial, o governo brasileiro passou a investir em outras Usinas do Centro do país, o que iniciou
uma situação desfavorável às Usinas do Nordeste.
Já na década de 1970, os usineiros conseguiram mais verbas públicas para investir no setor e
para a chamada “modernização” da lavoura, pelo Programa Nacional do Álcool – Próalcool. Nesse
período, alguns estados que não tinham trajetória em plantar açúcar começaram a produção (Paraná,
Goias e Mato Grosso), diminuindo ainda mais o potencial de Pernambuco.
O Próalcool não foi suficiente para que as Usinas da região da Zona da Mata não sentissem a
competição com as usinas do sudeste e as novas criadas, iniciando um período de crise do setor. Os
usineiros endividados começaram então a demitir trabalhadores e descumprir direitos trabalhistas.
Esses episódios geraram grande mobilização dos trabalhadores apoiados pelos sindicatos e pelos
movimentos sociais e religiosos da região (KLEIMAN, 2008).
Vale ressaltar que os movimentos sociais começaram a se organizar na Zona da Mata de
Pernambuco já da década de 60. Destaca-se a atuação da Federação dos Trabalhadores da
Agricultura de Pernambuco – FETAP e da Central Única dos Trabalhadores – CUT. Tal mobilização
buscava fazer frente aos sindicatos existentes, até o momento criados para defender os usineiros.
Segundo Kleiman (2008), os primeiros sindicatos contavam com o apoio das entidades patronais e
eram marcos referenciais nas disputas políticas locais, tendo o IAA apoiando suas ações.
Contudo, com a ditadura militar, esses movimentos de contestação dos sindicatos patronais
foram abafados. Os que conseguiram maior destaque no período eram àqueles organizados pelas
igrejas e pelos movimentos eclesiais de base, os quais sempre tiveram grande atuação na região.
Houve um avanço que foi respaldando, só que veio o golpe em 64 e os usineiros foram
grandes colaboradores do golpe, grandes. Então todos os trabalhadores que tinham se
organizado, os sindicalistas, foram cassados na Zona da Mata, todos os sindicatos sofreram
intervenção, todos. E muita gente foi morta, presa, massacrada e outras pessoas fugiram, foi
um massacre nessa região e foi muito complicado isso tudo. E isso vem reaparecer em 78,
79, muito tempo depois, mais de dez anos (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).
96
Apesar das dificuldades de mobilização no período, no ano de 1979 houve uma grande greve
que atingiu mais de 20.000 trabalhadores de várias Usinas da região da Zona da Mata. Para Artur
“foi a greve mais expressiva da Zona da Mata”. Segundo Kleiman (2008, p. 63), nesse momento já
houve uma obrigatoriedade de cessão de 2 hectares para o cultivo próprio dos trabalhadores, além da
elaboração de um documento “limitando a super-exploração sempre presente no setor”. Os
trabalhadores também conseguiram aumento no salário e as conquistas obtidas acabaram ganhando a
simpatia dos mesmos para esse tipo de manifestação. Essa primeira grande greve foi destaque na
fala de praticamente todas as pessoas por mim entrevistadas. Cabe ressaltar que esses também eram
momentos que aproximavam o trabalhador do campo e o da usina, o que não era comum na região.
Após essa greve e, com o fim da ditadura, já na década de 80, esses movimentos passaram a
se organizar e nos anos 90 consolidaram o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, o que
engendrou forte contestação à exploração do trabalho e ao não cumprimento dos direitos
trabalhistas.
Dessa forma, houve um cenário de resistência e de luta que foi se consolidando na região da
Zona da Mata e permitindo a mobilização dos trabalhadores até conquistarem o projeto Catende-
Harmonia. De um lado, havia um cenário político desfavorável para os usineiros, já que, com a
reestruturação produtiva e o aumento das políticas neoliberais no país, o IAA foi extinto. Dessa
forma, sem os subsídios estatais e tendo que competir com as Usinas do Estado de São Paulo, bem
como dependentes do mercado instável do setor sucroalcooleiro a nível mundial, as Usinas na Zona
da Mata começam a falir e Catende está entre elas. O despreparo para a organização administrativa
dos usineiros, acostumados com os privilégios e uso da força, também atuaram como causadores da
falência, já que começaram a acumular débitos que não conseguiam mais pagar.
De outro lado, despontam as greves e a movimentação geral de trabalhadores com medo de
perder seus empregos. Segundo a fala de um dos entrevistados:
E aí eles não estavam preparados, eles não se incomodavam com a parte da formalização da
coisa, eram senhores de si, não tinham porque se preocupar com isso. E muitas coisas eles
foram vencidos porque não conseguiam montar os argumentos coerentes contra os
trabalhadores e os seus advogados. E aí esse pessoal começou a se perder na condução das
coisas (Júlio/trabalhador da Usina e do Campo).

No ano de 1993 houve uma demissão de 2.300 trabalhadores e trabalhadoras e a expulsão


deles de suas casas, as antigas senzalas, o que causou revolta e medo nos trabalhadores que ainda
não haviam sido demitidos. Esse medo atingiu tanto os trabalhadores do campo como os da usina e
novamente possibilitou a organização dos mesmos. Também possibilitou o fortalecimento dos
97
movimentos sociais e dos sindicatos que organizaram diferentes paralisações, greves e ocupações,
marcando uma nova fase dessa história que levará ao pedido de falência da Usina Catende.

3.1.1. As trabalhadoras demitidas e a reestruturação produtiva


Cabe aqui um destaque para uma questão de extrema relevância e que não se encontra nos
estudos e registros sobre Catende. Dentre esses trabalhadores demitidos, a maior parte era
mulheres62, seguindo a ideologia da divisão sexual do trabalho já imposta na região.
Artur explicou que em 93 “foi feito um levantamento e praticamente todas as mulheres
foram demitidas no campo”. Ele mesmo se questionou: “por quê?”; e respondeu: “Acha-se que o
homem produz mais”. Além disso, ele salienta a questão da maternidade: “e quem arca com as
despesas da maternidade? E as mulheres ficavam muito grávidas. Tudo ia para a justiça do trabalho
e mandar as mulheres embora era cortar o mal pela raiz. Mulher grávida jamais seria contratada”.
Como visto no primeiro capítulo, alguns grupos, como as mulheres e os negros, acabaram
sendo os mais atingidos pelos processos de reestruturação que reorganizaram o capital e permitiram
o advento das políticas neoliberais no país, sofrendo mais intensamente com o desemprego
(HIRATA, 2003). No caso de Catende, que a reestruturação acelerou a falência da Usina, as
mulheres foram as primeiras prejudicadas pela demissão.
Devido à estrutura ideológica que separa as atividades dos homens e mulheres,
desvalorizando aquelas realizadas pelas mulheres, elas são compreendidas como as menos
produtivas e são vistas como um problema pela exigência de mais direitos trabalhistas diante das
necessidades de licença maternidade. As faltas das mulheres para cuidar dos filhos e da família
também são argumentos para reforçar a ideia de sua baixa produtividade. Em outras palavras, todo o
contexto reprodutivo que sustenta a sociedade é visto como um peso e reduzido a um custo para os
empresários, e não como uma composição de vida necessária socialmente.
Ao estudar os custos do trabalho feminino em duas empresas no ABC paulista, no entanto,
Leite e Souza (2005) revelaram que esses custos, associados principalmente à questão da
maternidade e ao cuidado infantil, apresentaram-se como pouco significativos para as empresas
estudadas. As autoras identificaram uma porcentagem pequena de licenças-maternidade e não

62
Não tenho os dados de quantas eram as mulheres e quantos eram os homens demitidos no ano de 1993. A maior parte
dos documentos foi destruído nas enchentes que ocorreram na região. Contudo, consegui descobrir esta informação no
terceiro dia de entrevista ao perguntar para as lideranças como passaram a discutir as questões de gênero no projeto. Foi
então que Artur me contou da quantidade de mulheres que foram demitidas e explicou que aquele fato despertou o olhar
dos movimentos sociais e religiosos para a questão das mulheres. Algumas lideranças passaram a tentar compreender
melhor a situação da mulher da Zona da Mata e o significado das relações de gênero. Mais tarde, eles foram
responsáveis pelos projetos de inclusão de mulheres desenvolvidos pelo projeto Catende-Harmonia.
98
encontraram a contratação de mão-de-obra substituta para esses casos, o que não implicaria em mais
gastos para a empresa. Além disso, os casos de licença são cobertos pelo INSS, o que tenderia a
significar inclusive uma economia para a empresa.
Dessa forma, Leite e Souza (2005, p. 146) concluem nessa pesquisa que há uma inadequação
do discurso de que a licença-maternidade e o cuidado com os filhos seriam os maiores empecilhos
para a contratação de mulheres. Nas palavras das autoras, “a manutenção do discurso baseado nos
custos do trabalho da mulher se apoiaria, portanto, muito mais na persistência de imagens
estereotipadas de gênero do que na realidade”.
Nessa direção das imagens estereotipadas em torno do trabalho produtivo da mulher, os
estudos de Torns (2003) explicam que o desemprego das mulheres é mais tolerável socialmente. Por
serem relacionadas a um tipo de função social e trabalho específico, o reprodutivo, a demissão delas
do âmbito produtivo não representaria algo tão grave. A autora complementa que, com a demissão
das mulheres, elas deixam de participar de determinados espaços públicos, o que, no imaginário
social, também não teria o mesmo peso da ausência de participação dos homens. Principalmente
porque ela voltaria a se dedicar ao espaço reprodutivo, retomando o seu “lugar”.
Como bem ilustra Araújo (2005, p. 94), as novas formas de segregação e precarização que os
novos contextos da década de 90 proporcionaram acabaram se sobrepondo “aos antigos mecanismos
de exclusão de gênero, potencializando-os”, o que de fato foi ilustrativo na região. Muitas dessas
mulheres nunca mais foram incorporadas pela Usina, nem mesmo pelo projeto Catende-Harmonia,
tal como veremos ao longo destas páginas.
Há ainda outro elemento nesta análise: a maior parte das mulheres do campo em Catende é
negra, estando ainda mais expostas pela situação de desemprego e de ocupação de trabalhos
precários.
As mulheres da Zona da Mata conquistaram certa autonomia por serem assalariadas. Logo,
elas não dependiam da renda dos homens e a maior parte assumia o cuidado dos filhos e filhas
sozinhas, sendo chefes de família. Essa condição foi imposta para a mulher negra desde o tempo da
escravidão: ou elas eram prostitutas e exploradas sexualmente pelos senhores, tendo que cuidar de
seus filhos sozinhas, ou elas tiveram suas famílias fragmentadas por terem os maridos tirados de
casa, já que eles eram tratados como mercadoria (MUNANGA, 2004).
Conforme explica Theodoro (2012), tal situação marcou a experiência histórica diferenciada
da mulher negra pela sujeição ao homem branco e por ter que buscar formas de se manter
financeiramente. Logo a concepção da família negra sempre foi diferenciada. Paralelamente, o

99
homem negro também sofreu com essa situação, visto que ele nunca teve o papel de provedor por ter
sido “castrado de tal poder enquanto escravo e posteriormente enquanto alijado do processo de
industrialização nascente” (ibid., p. 43)
No caso da mulher negra da Zona da Mata, após a demissão da Usina, ela ficou
desamparada, causando novamente uma situação de dependência da qual ela já vinha se libertando,
pelo menos em relação a sua autonomia financeira. Uma das lideranças entrevistadas explicou um
pouco essa situação:
A mulher da Zona da Mata muito tempo trabalhou assalariada, mesmo se era ela e o marido.
Como ela trabalhava, ela tinha autonomia em relação ao pai e ao marido. Na prática ainda é
isso de que quem assume o filho é a mulher, e ela ia embora com os filhos [...] Era muito
comum até recente, a mulher, mesmo fora da escravidão, ser praticamente forçada a servir
sexualmente, a ser mulher de transa de prazer do cabo, do administrador. É ele que mede a
tarefa, defini o valor da tarefa e aponta o ganho mensal. Ele condicionava as mulheres. Foi
criado por imposição, mas criou rotina, era um aspecto natural você se apaixonar pelo seu
torturador, isso foi virando cotidiano. Então as famílias ainda são muito frágeis, mas essa
autonomia da mulher da Zona da Mata por ter renda sempre existiu. O desemprego traz um
prejuízo para as mulheres porque elas passaram a ser dependentes de alguém
(Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Dessa forma, a opressão da mulher negra, que já tem especificidades históricas, ganhou
novos contornos na reestruturação produtiva, forçando-a ao exercício de diferentes estratégias de
sobrevivência, já que ficou cada vez mais difícil para essa mulher ser inserida num trabalho
assalariado, sobretudo na região.
Nesse contexto, observa-se que os impactos da reestruturação produtiva de fato atingiram
alguns grupos em especial, deixando marcas significativas para os trabalhadores e, sobretudo, para
as trabalhadoras negras. Nas palavras de Martins (2012, p. 11), “no caso do Brasil, o racismo, ao se
associar às "novas" relações, tem influenciado efetivamente para a concentração da classe
trabalhadora negra no desemprego e/ou nas ocupações/empregos informais, com precárias relações
de trabalho”.

3.1.2. Resistência dos trabalhadores até o pedido de falência


No final de 94, os trabalhadores da indústria e do campo não receberam o salário de
dezembro e nem o décimo terceiro, mas aconteceu uma grande festa de Réveillon em Recife, onde
muitos dos usineiros saíram nos jornais como os responsáveis pela sua organização. Houve então
uma revolta geral entre os trabalhadores e uma grande paralisação foi organizada na região em plena
época de safra.
Nesse momento, Miguel Arraes foi eleito para o governo de Pernambuco e começou a

100
interferir no caso com o objetivo de manter os empregos na Zona da Mata e fazer as Usinas voltarem
a moer no menor tempo possível. Segundo Da Silva (2011), Arraes doou cerca de 500 mil para que
os usineiros pagassem os trabalhadores e seguissem a produção.
Arraes também financiou um projeto para a superação das demandas educativas dos
trabalhadores da região. Conforme relatou um dos entrevistados, uma pesquisa sobre o
analfabetismo na região, à época, mostrou que cerca de 80% dos trabalhadores e trabalhadoras do
campo eram analfabetos, o que motivou a construção deste projeto. Por fim, o governador também
63,
alocou um administrador para manter a Usina Catende em funcionamento. Os sindicatos por sua
vez, aproximaram-se dessa administração a fim de obter maiores informações sobre o contexto da
Usina.
Segundo Kleiman (2008), com acesso a algumas informações, os sindicatos começam a
perceber que os usineiros haviam criado empresas próprias com outra personalidade jurídica para
resgatar o patrimônio da Usina.
Para impedir o golpe em andamento, os trabalhadores, representados pelo sindicato em
diálogo com o governo, chegaram numa proposta: realizar um pedido coletivo de falência feito pelas
2.300 trabalhadoras/es demitidas/os, com as quais os usineiros possuíam débitos em aberto. Ao
saber disso, os usineiros se anteciparam e passaram a sede da empresa para Recife. Eles então
pediram a falência da Usina Catende na comarca de Recife (KLEIMAN, 2008).
Enquanto isso, os sindicatos pediram a falência da Usina na comarca de Catende, iniciando
uma disputa entre os dois juízes para decidir o destino da Usina e quem a administraria. Os juízes
acordaram então, que o maior credor seria o síndico, ou seja, o Banco do Brasil com a junta de
Recife. Os sindicatos e os trabalhadores organizados conseguiram, contudo, a autoria do pedido da
falência. Dessa forma, os trabalhadores de Catende tornam-se os primeiros a entrarem com pedido
judicial de falência contra os patrões. Essas mobilizações e organização dos trabalhadores/as foram
momentos importantes para o projeto Catende-Harmonia que começou a ser construído a partir de
então.
Os usineiros foram afastados e a administração da Usina passou para o síndico, um
funcionário do Banco do Brasil. O governo distribuiu cestas básicas aos trabalhadores que estavam
passando fome e alguns deles foram readmitidos na Usina Catende, a maior parte homens.
Entre 1995 a 1998 a massa falida foi gerida pelo Banco do Brasil. Nesse último ano,

63
Cada uma das cidades vinculadas à Usina tinha um Sindicato Rural organizado, ligado à FETAPE e à CONTAG. A
Usina também tinha um “sindicalista de base” vinculado ao Sindicato dos Trabalhadores da indústria e do álcool. Além
desses, os setores de transporte e de segurança também possuíam representações sindicais (KLEIMAN, 2008).
101
contudo, divergências entre os sindicatos e o síndico, que iniciou tentativas de vender a usina para
ressarcir o Banco, sem consultar os representantes dos trabalhadores, levou à sua substituição por
um gestor indicado pelos sindicatos e nomeado pelo poder Judiciário:
O Banco do Brasil, é lógico, com seu critério de banco, chegou um momento que ele achou
que a usina era inviável. Como era o maior credor, ficava de síndico, mas o Banco do Brasil
não tinha, vamos dizer, ideologia para entender o que se queria fazer. E o Banco do Brasil
viu que isso não era um negócio viável e propôs fechar a usina e sair da sindicatura, e então
aqui tinha um gerente geral, que era Dr. Mário Borba, uma pessoa que deu uma grande
contribuição aqui e então ele foi indicado pelo trabalhador.

Assim, a administração da Usina passou a ser coordenada por Mário Borba, que iniciou um
processo de formalização mais coerente com as propostas e pautas dos trabalhadores e dos
movimentos sociais e sindicais da região, inaugurando um novo momento na história de Catende.

3.2. A falência e a construção do projeto coletivo Catende-Harmonia

A primeira dificuldade enfrentada para a conquista do pedido de falência da Usina Catende


se deu no âmbito jurídico, principalmente porque no ano de 1995 ainda não havia uma lei que
regulamentasse a falência no país. Segundo o advogado da Usina, essa lei só foi aprovada no Brasil
dez anos depois e até o fim do projeto, embora os trabalhadores tivessem conquistado a falência,
eles não conseguiram a sua desapropriação de fato. Dessa forma, sob tutela do juiz e do Banco do
Brasil, a Usina seguiu em falência com Mário Borba na sindicância e com apoio dos sindicatos e
lideranças dos movimentos sociais e religiosos que formaram a Equipe Catende-Harmonia.
Segundo Da Silva (2011), no momento da falência, o patrimônio da Usina foi definido em 62
milhões, sendo que pelo menos 32 milhões já tinha sido passado para outras empresas. Já o débito
era de 465 milhões de créditos e a Usina devia 350 milhões em INSS aos trabalhadores e mais 100
milhões de FGTS. Ou seja, o cenário de recuperação da empresa apresentava grandes dificuldades
do ponto de vista administrativo e da viabilidade financeira.
Diferentes estudos sobre as fábricas recuperadas salientam essa questão, visto que um projeto
de recuperação de uma fábrica já se inicia com os problemas jurídicos e financeiros que deram início
a ela (JUVENAL, 2006; ESTEVES, 2010). Conforme explica Juvenal (2006), as empresas
recuperadas iniciam a falência com dificuldades diante do descrédito que a empresa anterior
assumiu no mercado. Assim, não conseguem investir em questões básicas como matéria-prima,
tecnologia e muitas vezes não conseguem manter o pagamento dos salários dos trabalhadores. O
autor também chama atenção para a relação conflituosa que se cria entre os clientes e fornecedores,
já que a antiga empresa descumpriu acordos, prazos e pagamentos.
102
No caso da Usina Catende, o que contribuiu para sanar essas dificuldades iniciais foi a
presença do síndico Mário Borba, que entendia da administração da Usina e tinha uma boa relação
com os credores e fornecedores por já ter pertencido à gerência de outras Usinas na Zona da Mata.
Ele também estava disposto a iniciar um diálogo com os trabalhadores da Usina e do campo.
Júlio explicou ainda que, nesse momento, havia uma proposta de um projeto social, mas com
as dívidas da Usina era preciso pensar nos custos desse projeto e essa também foi uma das grandes
dificuldades para manter a Usina numa outra perspectiva. Ou seja, havia a necessidade de
recuperação financeira da empresa, o que já seria difícil. E somado a isto havia o desejo de construir
um projeto que priorizasse a melhoria da qualidade de vida dos e das trabalhadoras, o que ainda não
era claro nem para Mario Borba nem para as lideranças e sindicatos que assumiram com ele:
A fronteira onde está isso e onde começa uma empresa, isso não estava claro, não podia
estar claro. Então a empresa tem essa situação. Por uma parte, as pessoas querem ter uma
autogestão que estabelecem uma relação nova na produção, mas por outra também querem
que o trabalhador vá tendo mais, mais e mais benefícios. E isso tem um ponto, porque se
você não melhora a tecnologia e a produtividade do trabalho, você chega num momento em
que não pode diminuir o que um trabalhador faz por um dia, porque num momento em que a
produtividade desse trabalhador é menor do que o custo de produção, aí isso começa
afundar. E isso foi um processo que passou, que tinha que passar.

Nota-se que foi na prática cotidiana e com muitas dificuldades iniciais que esse projeto
coletivo foi se desenvolvendo. Os administradores, os trabalhadores e todos os envolvidos de
maneira geral não possuíam uma qualificação prévia para a gestão coletiva e para a construção de
um projeto diferenciado como o que se pretendia. Isso acontece também com outras fábricas
recuperadas, principalmente porque os antigos trabalhadores da empresa que se tornam os novos
trabalhadores da fábrica recuperada possuem uma trajetória de trabalho em empresas com formatos
que seguem a rigidez da divisão social hierárquica de trabalho. Em outras palavras, na década de 90
e sem conhecimento e apoio de agências como a ANTEAG, as lideranças tiveram que construir um
projeto coletivo como podiam e com as condições que tinham naquele momento.
A proposta de um trabalho diferenciado vinha, principalmente, das lideranças da região, ou
seja, dos homens e mulheres do primeiro grupo e de homens do segundo grupo, segundo a
classificação criada no segundo capítulo desta tese. A maior parte dos trabalhadores e trabalhadoras
do campo, alocada no terceiro grupo de homens e segundo e terceiro de mulheres, ainda não fazia
parte dessa luta ativamente, mesmo tendo participado das greves e mobilizações da Usina. A
ampliação da participação desses trabalhadores no projeto coletivo foi acontecendo aos poucos.
Além disso, havia também grande dificuldade em dialogar com os trabalhadores da Usina.
Esses trabalhadores, sobretudo dos primeiro e segundo grupo de homens classificados, queriam
103
receber os seus direitos trabalhistas e manter o seu emprego e a sua cultura de assalariado. No caso
desses trabalhadores, havia ainda menos tradição de lutas e maior proximidade dos patrões. Também
apresentavam uma trajetória de trabalho mais solidificada no que tange os direitos trabalhistas e
recebimento de salários de acordo com o lugar de status que ocupavam na empresa:
Nós tivemos sempre uma certa reação da indústria. Mesmo após a falência e a
desapropriação, havia uma reação patronal da indústria um pouco mais conservadora e que
não tinha a mesma tradição de luta que tinham os trabalhadores do campo, porque não
tinham e, ainda hoje não tem, uma experiência de sindicato que ajude. Era um trabalhador
mais próximo do patrão... (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

A possibilidade de igualdade salarial, por exemplo, não foi uma questão discutida em
Catende. Havia inclusive um consenso entre os trabalhadores de que alguns obrigatoriamente
deveriam receber mais do que outros de acordo com a sua profissão: “Porque um gerente não podia
ganhar igual um varredor, né? É a profissão!” (Inácio/trabalhador, técnico da Usina que chegou a ser
diretor da cooperativa).
A pesquisa de Schäfers (2007) descreve que as diferenças salariais em Catende eram
menores que aquelas observadas nas outras usinas da região. Porém, a autora elucida que o
funcionário da Usina chegava a ganhar cinco vezes mais do que ganhava o trabalhador do campo. Já
o síndico, embora ganhasse bem menos que um usineiro, chegava a ganhar vinte vezes mais que um
trabalhador do campo. Nota-se que essa desigualdade representa a continuação de um sistema de
divisão social do trabalho que hierarquiza trabalho manual e trabalho intelectual, em que as
diferenças de conhecimento produzem desigualdade de classe.
Ao longo do projeto Catende Harmonia alguns trabalhadores da Usina foram compreendendo
e aderindo às propostas coletivas. Passaram a participar das Assembléias, a contribuir com os
projetos educativos e a repensar formas mais justas na relação de desigualdades salariais entre
trabalhadores. Um exemplo disso é o fato de que, em períodos em que a Usina teve dificuldade
financeira e teria que atrasar o pagamento, aqueles que recebiam mais aguardavam maior tempo
para receber, ou recebiam menos até chegar a outra parte do dinheiro da Usina:
Mas a gente fazia o seguinte, o gerente vai ganhar 20%, o trabalhador como ganha pouco
vai ganhar 80%, tá entendendo? [...] E se não desse, o gerente não recebia, o primeiro corte
começava por quem tinha mais, porque, por exemplo, você tem cartão de crédito, o outro
não tem, então uma semana que você não receber, você não fica sem comer
(Inácio/trabalhador, técnico da Usina que chegou a ser diretor da cooperativa).

Porém, iniciativas como estas não eram consensuais e os estudos apontam conflitos entre os
trabalhadores da Usina com a proposta de gestão coletiva (DA SILA, 2011; SCHÄFERS, 2007).
Conforme observado na pesquisa de Schafers (2007), os trabalhadores da Usina, mais precisamente
104
os operários, não possuíam um órgão de representação política. Eles eram representados unicamente
pelos funcionários técnicos da usina, mas os seus interesses não eram defendidos na mesma medida
que os interesses dos trabalhadores do campo, causando alguns conflitos.
Já o trabalhador do campo, embora quisesse mudar a condição de vida e apresentasse maior
trajetória de luta por conquistas de direitos, não acreditava na possibilidade de uma mudança radical
onde poderia de fato intervir na Usina ou onde poderia se sentir dono daquele patrimônio. A maior
parte via Mário Borba como um novo usineiro que entrou em Catende, assim deveria cobrá-lo pelos
seus direitos tal como cobrava qualquer outro usineiro.
Além disso, os trabalhadores pensavam que seriam explorados por Mário Borba tal como
sempre foram explorados por qualquer outro usineiro.

3.2.1. Donos? Nós? Donos do que?


Os trabalhadores do campo, que sempre tiveram que lutar pelo direito ao assalariamento, não
queriam ser donos da Usina ou donos de terra e não pensavam ter potencial para isso. É comum
ouvir uma frase que os trabalhadores repetem ao contar a história de Catende: “eu não sou godo
(minhoca) pra querer terra”. Eles não viam sentido na reforma agrária e se perguntavam: o que fazer
com terra? Tal questionamento parecia óbvio diante da história da região que passou da colonização
para o assalariamento exploratório dos usineiros. Eles não dominavam a agricultura e pensavam que
os usineiros roubariam tudo o que plantassem, tal como ilustra um dos entrevistados:
Os trabalhadores, por toda vida deles, conheceram seus bisavôs, avôs, pais, e eles eram
assalariados, trabalhavam sete dias na semana, sexta-feira recebiam seu dinheiro. Então seu
planejamento era só pra sete dias! Eu tenho que comprar isso para sete dias, tenho que ter
farinha para sete dias, tenho que ter charque para sete dias, porque a cada sete dias esse ciclo
volta a se fazer. Então, a tarefa geral era a de fazer de um assalariado, com mentalidade de
assalariado, à mentalidade de um produtor; de uma pessoa que tem que ter outra missão para
a produção, de uma pessoa que tem que se preocupar com o que está plantando, que uma
variável é mais produtiva do que a outra, que tecnologia eu vou empregar […] Então, no
princípio, os trabalhadores eles não queriam terra para produzir. Não, que não sou bom para
mexer com terra e não sei quê, mas depois começaram a plantar, mas com medo porque ali
por toda a vida a usina proibiu plantar, toda a vida...plantavam e vinham e arrancavam. E
cana? nem se fala, era o mais proibido de todos! (Júlio/trabalhador da Usina e do Campo).

Conforme descreveu Kleiman (2008), além de tamanha opressão e exploração que marcam a
trajetória de trabalho dessas pessoas, a forma prática pela falência causou uma confusão na cabeça
dos trabalhadores. Como havia um síndico que vinha dos sindicatos, mas que era representante do
Banco do Brasil, ele ainda simbolizava um patrão. Logo, não sentiam que eram donos da empresa
ou não queriam trabalhar numa “empresa sem patrão”. Alguns trabalhadores que ao longo do tempo
aderiram ao projeto descreveram que não acreditavam inicialmente: “Eu mesmo achava que não
105
dava certo, no começo. Depois a gente viu que dá. Agora existe uma pressão muito grande dos
próprios Usineiros de ver uma coisa tocada por trabalhador” (Inácio/trabalhador, técnico da Usina
que chegou a ser diretor da cooperativa).
Outras pesquisas desenvolvidas em Empresas Recuperadas abordam essa questão. Segundo
Holzmann (2001, p. 16), por exemplo, em sua pesquisa realizada em três grandes experiências no
Sul do país, muitos trabalhadores diziam sentir falta da “organização” da fábrica anterior, visto que
foi a partir das antigas experiências de trabalho que eles reelaboraram seu cotidiano nas fábricas. A
autora identifica uma série de problemas vivenciados pelas fábricas recuperadas em virtude do
choque cultural que vive os trabalhadores com a brusca transformação das relações de trabalho.
A ideia de uma empresa sem patrão era negativa em Catende, trazia uma noção de
desorganizada e os trabalhadores não queriam trabalhar nesse lugar, principalmente no formato de
uma cooperativa. Devido à história da região em que cooperativas foram criadas pelos patrões para
burlar direitos trabalhistas, muitos trabalhadores pensavam que o discurso de um projeto coletivo ou
de uma cooperativa era para lhes enrolar mais uma vez:
[...] o cooperativismo nessa região tem um aspecto muito negativo, muito ruim e a história
só vê reforçar isso. As cooperativas aqui surgiram na década de sessenta, surgiram atreladas
as usinas e serviam como cooperativas de compra e venda; elas surgiam para os
trabalhadores adquirirem alimentos com o seu trabalho. A usina passava um vale, e o
trabalhador ia à cooperativa trocar o vale por mercadorias super faturadas […] isso ficou na
memória popular: cooperativa com usina não dá certo! (Hugo/liderança no projeto Catende-
Harmonia).

Contudo, por outro lado, o projeto começava a ganhar simpatia de alguns trabalhadores tanto
da Usina como do campo, porque a maior parte não estava satisfeito com a exploração dos usineiros.
Para eles, o emprego era primordial, mas depois que começaram a participar das greves e de
algumas mobilizações sindicais começaram a perceber que não aceitariam tamanha exploração
como experimentaram a vida inteira. Esteves (2010) indica que muitos trabalhadores nas empresas
recuperadas de fato adquirem certa identidade nas manifestações, greves e organizações iniciais.
Mas, nem sempre essa identidade permanece ao longo do tempo, principalmente porque ela é
construída com o motivador de lutar para manter o emprego.
Nesta pesquisa, foi observada certa mudança na mentalidade dos trabalhadores para a
construção de novas relações de trabalho. No entanto, a forma de os trabalhadores expressarem o
que queriam era dizendo “queremos um usineiro bom”, como explicou Artur ao contar sobre uma
pesquisa feita com os trabalhadores logo após o pedido de falência:
O outro dado que preocupou à época era porque 98% queria de volta o emprego com um
usineiro bom, era um dado impossível de ter isso, você poderia até ter a possibilidade de
emprego, mas com um usineiro bom não tinha e 100% queria receber a indenização dos

106
direitos, ai perfeitamente compreensível […] Trabalho os doze meses, de inverno à verão e o
salário em dia e a moradia, isso é um usineiro bom. Dar férias, o décimo terceiro, os direitos.
E isso hoje é impossível nessa região, você pode ter uma ou outra que cumpre, mas não entra
nessa questão de ser bom (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Observa-se que os trabalhadores queriam manter a relação patrão/empregado assalariado, o


que caracteriza uma relação de dependência e não de autonomia, mas, por outro lado, queriam
ampliar os seus direitos e acessos. No entanto, a noção de direitos era distorcida, visto que o
cumprimento dos mesmos não fazia parte de um direito do trabalho ou de um direito humano, mas
da bondade de uma pessoa64.
A partir destes dados, as lideranças da Usina com alguns trabalhadores mais engajados
iniciaram uma série de ciclo de debates a fim de discutir a situação da Usina e ampliar a construção
de um projeto coletivo com uma noção mais ampla em torno dos direitos dos trabalhadores.
Também estimularam a formação de Associações nos Engenhos para conseguir representações na
Usina e aumentar a participação. Foi formado um Conselho Gestor composto por representantes das
Associações, pelos representantes dos sindicatos e do Projeto Catende-Harmonia. Esse Conselho era
convocado para as reuniões e atuava ao lado da administração da Usina 65.
Além das Associações, uma das estratégias criadas foi a questão da qualificação dos
trabalhadores, que passava primeiramente pela alfabetização. Esta era atrelada a discussões sobre

64
A luta pelos direitos iniciou-se e tomou corpo na segunda metade do século XIX. Segundo Marshall (1967), é somente
a partir da formação do Estado moderno que podemos falar em direitos sociais. Embora tenham surgido com limites em
meio à tensão entre os direitos e a lógica de mercado, os direitos sociais tiveram um papel importante na luta pela
igualdade, evidenciando algumas desigualdades até então ignoradas. Contudo, Marshall (1967) considera que a luta por
sua efetivação é permanente e sempre dependeu de mediação política, sindicatos e partidos fortes, associações e
organização civil. Nessa direção, Bobbio (2004), elucida que os direitos humanos estão em constante evolução, seguindo
as mudanças sociais. Os direitos humanos foram construídos historicamente para o “aprimoramento político da
convivência coletiva” (BOBBIO, 2004, p. 42). Tal consenso foi expresso primeiramente na Carta das Nações Unidas de
1945 e depois retomado e definido na Declaração dos Direitos Humanos em 1948. Foi ainda reforçado e adensado pela
Conferência de Viena da ONU, de 1993. Esta evolução histórica foi assim resumida por Bobbio (2004, p. 50): “os
direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para
finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”. Porém, na atualidade sabemos que os
direitos são conquistas a serem perseguidas e não uma simples existência. Embora os direitos tenham nascidos com este
propósito “natural”, a história mostrou que precisam ser protegidos, uma vez que os direitos nasceram com o propósito
universal, mas se desenvolveram particularistas. Bobbio (2004) apresenta uma problemática: os direitos sociais
dependem não somente da proteção do Estado, mas também de reconhecimento e vontade dos sujeitos. Ou seja, embora
a Declaração e os direitos universais seja um avanço histórico, não se apresenta ausente de problemas, tensões e
conflitos. Os direitos humanos são fins perseguidos/buscados, contudo, sua desejabilidade exige algum consenso para
que possamos reconhecê-los como direito. A Declaração, embora com alguns limites, já fundamentou os direitos, agora
o movimento histórico apresenta a necessidade de protegê-los e fazê-los valer. A questão não é somente filosófica, mas é
jurídica e também política.
65
Neste conselho faziam parte homens e mulheres de todos os agrupamentos classificados no capítulo anterior, com
exceção das mulheres do terceiro grupo, mas a participação não se dava da mesma forma. Os homens do primeiro e
segundo grupo, por exemplo, tinham maior poder de fala e participavam mais que os do terceiro grupo. Já entre as
mulheres, havia apenas uma delas do primeiro grupo e as do segundo grupo eram representantes das Associações. Ao
longo do texto iremos aprofundar mais essa questão.
107
projeto coletivo, direitos humanos, sobre a realidade de Catende, bem como sobre a possibilidade de
o trabalhador ter sua própria cana e plantar outras culturas, conquistando cada vez mais autonomia.

3.2.2. Qualificação dos trabalhadores e as Mulheres no projeto Catende-Harmonia


No ano de 1996 foi desenvolvido em Catende um programa de qualificação com ênfase na
alfabetização dos trabalhadores e trabalhadoras, chamado de “Catendão”, e financiado pelo Governo
do Estado de Pernambuco. Faziam parte do projeto cem monitores para a alfabetização e dez
professores. Havia aula à tarde e a noite, com cerca de cem turmas trabalhando nos 48 Engenhos.
Posteriormente, vários cursos de formação e de progressão escolar continuaram a ser oferecidos com
suporte de várias entidades religiosas.
Segundo Kleiman (2008), estes projetos permitiram uma queda no analfabetismo na região
de 82% para 16,5% entre 1995 e 2002. Também possibilitou conhecer mais os trabalhadores do
campo, articular as áreas e os engenhos, ampliar as Associações e começar a criação de uma
identidade para o projeto, que passou a ser chamado Catende-Harmonia:
Bom, esse trabalho ajudou para além da qualificação das pessoas com alfabetização na parte
profissional: uma outra coisa que era chave, que nós não tínhamos, que era a articulação de
várias áreas. Então começou a se criar uma identidade que nós chamamos de projeto
Catende-Harmonia. Daí nasce uma identidade, precisava de alguma coisa que ajudasse as
pessoas a se identificarem e ela começam a falar “eu sou do projeto Catende”. Porque era
muito amplo, muita gente, e isso foi nascendo naturalmente, não foi sistematicamente, isso
foi se dando no dia-a-dia... (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Cursos como este seguiram acontecendo em Catende, contando com apoio do Estado, ou da
sociedade civil, ou ainda com recursos da própria Usina. Houve também uma série de cursos
técnicos para a profissionalização dos trabalhadores: “Teve até curso de técnico de segurança do
trabalho...dois trabalhadores formaram financiado pelo projeto. Curso técnico na área de
piscicultura. Várias áreas”. Havia ainda uma escola mantida pela própria Usina. Essa escola era dos
filhos dos usineiros e com o projeto os filhos dos trabalhadores começaram a frequentar também.
A Usina mantinha um grupo escolar, mas na época do tenente se criou um grupo para que
estudassem os filhos dos operários da usina, aí não estudavam os filhos do campo. Mas
então, já como campo e indústria deviam ser iguais, então o filho do camponês também
tinha direito de estudar no grupo. Então o grupo é uma coisa que sempre foi o lugar
convencional para todo pai mandar o menino estudar, na época, um grupo bem organizado,
com professores bons...(Júlio/trabalhador da Usina e do Campo).

Já entre 1999 e 2000 foi criado um novo projeto educativo para alfabetizar e qualificar os
trabalhadores. No entanto, este projeto tinha como ênfase a qualificação de jovens, filhos e filhas
dos trabalhadores, possibilitando um estágio para os mesmos no interior da Usina. Ele foi financiado

108
por um convênio internacional e atendeu aproximadamente 60 jovens em cursos técnicos de campo
e fábrica voltados para as atividades típicas de Usina.
Segundo Lima (2003), que realizou uma pesquisa de mestrado para verificar as propostas
educativas realizadas em Catende, essa experiência foi a mais citada pelos trabalhadores em suas
entrevistas. Ela representou uma possibilidade de qualificação bastante relevante, além de
oportunidades de ocupação de novos espaços sociais, visto que jovens, homens e mulheres,
passaram do terceiro para o segundo grupo, a partir da escolaridade. Muitos foram alocados na
administração da Usina, no laboratório, na organização do chão de fábrica, até mesmo nas
Associações nos Engenhos.
Há que salientar que, junto com a inclusão dos jovens esse projeto, pensava-se também na
inclusão das mulheres no interior da Usina. De fato isso aconteceu no projeto, porém, tal como
explicou Cristina, uma de nossas entrevistadas, essa inclusão se deu de forma a reforçar a divisão
sexual do trabalho, uma vez que homens e mulheres foram alocados em funções específicas. Tais
funções seguem um dos pilares da divisão sexual do trabalho, que é o da separação, ou seja,
separam-se funções de homens e de mulheres a partir de elementos reservados a cada sexo, tal como
força e qualificação tecnológica, por exemplo:
Em Catende, nós desenvolvemos um projeto com a juventude, trabalhamos a
profissionalização e a politização desses jovens e aí nós introduzimos algumas mulheres no
chão da fábrica, mas a grande maioria ainda assim preferiram ficar nos laboratórios, porque
o chão de fábrica é de força e ainda faz parte do universo masculino [...] O pessoal que
trabalhava mesmo na fabricação do açúcar, caldeiras, moagem, eram homens...a mulher ia
para o laboratório fazer a análise do açúcar que é uma coisa que seria mais leve...a gente não
conseguiu entrar ainda nesse universo da hegemonia masculina (Cristina/membro da equipe
de educação do Projeto Catende-Harmonia).

De um lado observa-se a importância de começarem a pensar a questão de gênero nas


atividades de qualificação realizadas pelo projeto, mas, de outro, ainda se encontra a dificuldade de
romper com as barreiras da divisão sexual do trabalho presentes tanto na região como nas empresas
recuperadas de maneira geral. Nestas, as mulheres constituem uma minoria pouco expressiva, visto
que, seguindo o mesmo pilar da separação, elas não são comumente encontradas nas atividades
industriais.
Ao realizar uma pesquisa em cinco fábricas de ramos e tamanhos diferentes, Rodrigues
(1994) descreve que em nenhuma delas encontrou homens e mulheres desenvolvendo exatamente a
mesma tarefa. Contudo, a autora observou que o que correspondia à mulher ou ao homem era
diferente no interior de cada empresa. Ou seja, uma tarefa alocada às mulheres em uma empresa, só
mulheres irão desenvolvê-la, em outra empresa poderia ser desenvolvida por homens, mas só
109
homens a desenvolveriam. Isso sem considerar aquelas atividades “obrigatoriamente femininas”,
como as tarefas de limpeza e o serviço de secretaria.
No caso de Catende, essa ausência das mulheres na indústria explica-se também pela
representação do feminino e do masculino na região: “tem muita mulher que teve que parar de
estudar porque teve filho” “os homens pararam de estudar porque eles têm que trabalhar, porque os
caminhões das Usinas do Brasil todo chegam e levam eles para trabalhar”; “a mulher tem marido pra
cuidar”; “o homem tem que levar o dinheiro pra família”; “pensa o que é um homem desempregado
sem poder levar o sustento da família”.
Conforme explicou Cristina, a partir de representações como essas, as mulheres eram
alocadas principalmente em espaços referentes a serviços de escritório e projetos educativos:
historicamente, quer dizer, a Zona da Mata, a história nossa aqui de Pernambuco, do
Nordeste e do setor surco-alcooleiro sempre foi muito machista, muito. É um ambiente
muito masculino. Eu acho que durante o projeto, quando o projeto era forte, teve o interesse
de trazer os sujeitos femininos para o interior. Embora para algumas funções específicas.
Por exemplo, as mulheres na Usina, não só na Catende, mas em toda essa região, quando
muito são as secretárias, secretárias da administração, poucas estão em outros lugares. Se
você for ver no chão da fábrica não existem mulheres. Não existe mesmo!

Inclusive a própria Cristina explica que só trabalhava em Catende porque era educadora e já
desenvolvia projetos na região com algumas lideranças, por meio das pastorais de movimentos
sociais religiosos. Ou seja, ela também tinha um lugar específico no trabalho e indicou a ausência
das mulheres na administração da Usina:
Eu fui à Catende porque era educadora da CUT, que tem uma escola Nordeste, que é a
escola de formação, que desenvolvia um projeto de alfabetização e de escolarização dos
trabalhadores; e nós optamos por ter uma turma dentro do projeto Catende, e eu vim como
educadora da Catende, então passei dois anos trabalhando como educadora. Eu já tinha uma
relação muito antiga trabalhando nas pastorais populares aqui na diocese. Então, desde a
minha adolescência, a gente se conhecia. E fomos trabalhando...eu fui me apropriando do
projeto Catende e quando acabou o projeto eu fui convidada a integrar a equipe de
educadores do projeto, porque uma das metas era acabar com o analfabetismo e investir no
processo de educação para que aqueles trabalhadores e trabalhadoras começassem a
compreender o que era a implicação da Economia Solidária, de você criar outros pilares de
relação da economia diferente da economia capitalista […] mas ainda assim eu fui como
educadora. Fui para integrar a equipe de formação. Eu não estava e não tinha nenhuma outra
mulher na gestão ou também como dirigente da cooperativa.

Ela descreveu ainda que, com o passar dos anos, outra mulher adentrou a Usina para
substituir um tesoureiro que teve que se afastar. Mas toda a equipe pensante e formuladora da
política do projeto Catende-Harmonia sempre foi masculina. Nestes exemplos evidencia-se a
reprodução do denominado “telhado de vidro”, expressão que surgiu nos estudos da divisão sexual
do trabalho na década de 90 e que indica que as mulheres têm um limite até onde podem estar
(HIRATA, KERGOAT, 2003). Ou seja, elas eram incentivadas a participar das Associações, dos
110
projetos educativos, de alguns projetos específicos, mas não do grupo de maior poder da Usina.
Conforme explica Gardey (2003), na direção das considerações tecidas no segundo capítulo
desta pesquisa, por terem sido excluídas do trabalho produtivo durante muito tempo, as mulheres
não são vistas como tendo a mesma capacidade para ocupar espaços de poder e de tomada de
decisões. Em outras palavras, as suas qualificações compreendidas como inatas, não são suficientes
para que elas ocupem determinadas funções, sobretudo nas indústrias e em locais onde o mando
masculino é historicamente cristalizado.
Observa-se que as mulheres que chegaram ao interior da Usina, com melhores condições de
trabalho, eram escolarizadas e qualificadas politicamente, compondo o primeiro grupo
classificatório desta tese. Os homens do terceiro grupo chegavam à Usina no chão de fábrica, e do
segundo grupo eram espalhados pelas atividades técnicas, sendo que alguns chegaram à
administração da Usina. Já entre as mulheres, poucas eram as do primeiro grupo no interior da Usina
e algumas do terceiro grupo chegaram à limpeza. As outras não passaram pelo interior da Usina e se
mantiveram ou nas atividades domésticas, ou no serviço público em Catende (primeiro e segundo
grupo), ou no corte da cana (segundo e terceiro grupo), chegando, no máximo às Associações, mas
nunca em número de igualdade com os homens.
A esta ausência das mulheres soma-se o trabalho invisível por elas realizado, ou seja, o
trabalho reprodutivo que manteve a participação dos líderes homens da Usina e que não é
compreendido como trabalho com a mesma relevância. Um exemplo é o caso da companheira de um
dos líderes entrevistados. Ela contou que não participou do projeto, mas ao longo da entrevista
identifiquei que ela foi voluntária na região durante alguns anos, mas que depois decidiu ir trabalhar
e cuidar dos filhos para que o seu companheiro pudesse fazer parte do projeto. A problemática em
torno do trabalho reprodutivo que cabe às mulheres não aparece com a mesma expressão ou como
uma questão a ser enfrentada para os homens.

- Mas eu não participei de todo esse processo não, viu? Tinha algumas informações de
alguma forma, mas eu acompanhei junto ao movimento sindical e da igreja até o
acampamento na usina pra não deixar os usineiros levarem, mas eu não fiz parte do projeto
Catende não, no sentido de acompanhar eu já estava fora há um tempo.
- Por qual motivo? Foi uma escolha abandonar o projeto?
- Condição de vida mesmo, né? Precisava trabalhar fora, cuidar da família e aí não tinha
mais tempo. Todos os trabalhos que eu fiz aqui eu fiz como voluntária e no momento que eu
não tive mais condição de fazer como voluntária, não tinha aula aqui por perto aí não deu.
Aí tive que trabalhar fora, em Recife, aí chega os filhos, não tinha mais condições […]
Então não foi uma opção, foi uma condição mesmo. E meu marido abandonou a família
para se dedicar cem por cento a isso, mas aqui ele trabalhava sem ganhar nada, e como ia
fazer se eu não trabalhasse? (Leila/educadora da Zona da Mata).

111
Cabe notar que isso não aparecia como um problema para o casal, e não é meu papel aqui
julgar os acordos conjugais realizados em Catende. O que interessa é revelar o trabalho reprodutivo
e invisível de mulheres que fizeram com que essa experiência fosse possível. Ou seja, revelar como
o trabalho invisível que mantém a sociedade não é contabilizado e nem tampouco valorizado pelas
próprias mulheres. Tal como descrevem Abramovay e Silva (2000), trata-se de um trabalho de base
das mulheres que é subvalorizado e, muitas vezes, passa de forma despercebida, porém é
imprescindível para a sociedade e para a economia.
Dessa forma, embora notam-se avanços durante o projeto Catende-Harmonia, a experiência
não contribuiu de forma significativa para mudanças na estrutura patriarcal da região, nem mesmo
no interior do projeto. As mulheres não eram contratadas para trabalhar na Usina nem na época dos
Usineiros, nem durante o projeto coletivo que se desenvolveu.
Na experiência de Cristina, ela descreve que este enfrentamento não era a prioridade do
projeto. Ela destaca que, muitos trabalhadores machistas, a fim de manter os seus privilégios, não a
viam com bons olhos no interior da Usina, pois a sua simples presença colocava algumas questões
em discussão:
Eu tive dificuldades em algumas situações com alguns companheiros. Porque aí você já tem
uma mulher e traz um olhar diferente, começa a problematizar algumas situações, querer
mudar e aí encontra algumas resistências. Eu não digo nem pelos companheiros que
iniciaram tudo e estavam mais a frente, mas os companheiros que tinham essa relação de
gênero muito mais enraizada mesmo nas tradições, na cultura e na história aqui da região.
Mas eu acho mesmo que essa é uma lacuna que a gente observava e a gente sabe que tem,
muitos companheiros reconhecem isso, mas a própria dinâmica do processo da Catende que
se tinha talvez não permitiu isso da gente ter esse avanço, essa progressão.

Ao ser questionada sobre esta desigualdade, Cristina descreve que em alguns momentos as
mulheres se posicionavam, mas que suas reivindicações não tinham muito “eco”. Para ela, “Catende
era uma complexidade tão grande, tinha tantos problemas a serem enfrentados, que parecia ser
secundário começar fazer essa discussão de gênero e começar a implantar novas metodologias e
relações diferenciadas nesse sentido”.
Dessa forma, a entrevistada observa que Catende teve muitas conquistas e cumpriu com o
objetivo de as pessoas não sofrerem mais com miserabilidade e fome. Para ela, o fato de um
trabalhador poder compreender sobre administração da Usina, estudar, plantar, reivindicar direitos,
já era uma grande conquista. A entrevistada acreditava que ao longo do projeto as questões de
gênero poderiam ser enfrentadas com maior dedicação, principalmente após maior estabilidade
financeira da Usina.
Assim como em Catende, a questão da divisão sexual do trabalho e as desigualdades
112
enfrentadas pelas mulheres não é prioridade em muitos movimentos sociais, na Economia Solidária
e em muitas experiências que se dizem revolucionárias, o que é um aspecto essencial desta tese.
Jules Falquet (2006) discute essa questão em um artigo sobre as mulheres e os movimentos
sociais e contribui com uma reflexão de extrema relevância: os movimentos sociais compreendidos
como “progressistas” (lutas revolucionárias ou movimentos da luta contra a globalização neoliberal)
raramente refletem explicitamente sobre o tipo de modelos familiares sobre os quais se apóiam. Nas
palavras da autora: “é surpreendente que um movimento que busca uma transformação social radical
seja cego à exploração das mulheres e saia em defesa de um modelo familiar patriarcal”.
Segundo a autora, esses movimentos atacam de frente o sistema de exploração capitalista,
mas não enfrentam a opressão sexista, tal como observado em Catende. Em pesquisa desenvolvida
com diferentes movimentos sociais onde as lideranças são compostas majoritariamente por homens,
entre eles os movimentos Zapatista e o MST, a autora revela que a discussão de gênero fica numa
declaração de princípios e se limita à inclusão de mulheres em algumas atividades. Atividades essas
que muitas vezes seguem o padrão da divisão sexual do trabalho. Para Falquet (2006), a sociologia
dos movimentos sociais também não se debruçou sobre este paradoxo com devida relevância.
No caso de Catende, em relação às trabalhadoras do campo havia uma diferença de
participação das mulheres, visto que elas eram encontradas em muitas Associações chegando à
liderança de algumas. Conforme explicou Cristina,
nesses espaços do campo já tinha um número mais significativo de mulheres. Onde a gente
via aparecer mais mulheres era em função das associações rurais que tinha mulheres à
frente. Mas também talvez em função da disponibilidade maior das mulheres em participar
das reuniões. A Associação existia muito mais em função de trabalhar as coisas e as
necessidades da comunidade. Buscar tanto com a Usina, como com a cooperativa, como
com o poder público, resolver questões da escola, de alguma situação específica que tivesse
que resolver da comunidade, e a mulher tinha um tempo mais livre e uma sensibilidade
maior pra correr atrás dessas questões. Então, no campo mudava um pouco essa
representação, mas não era em torno de um projeto de sociedade que as mulheres estava
exercendo seu protagonismo. Era em consequência de ser uma representante direta da
comunidade e teria condições de correr atrás das necessidades básicas e imediatas que se
apresentavam.

Este fragmento confirma a tese de Isabelle Guérin (2005), ao dizer que as mulheres
participam mais dos projetos coletivos por esse já ser um hábito em suas vidas. Em suas pesquisas
no âmbito da Economia Solidária, a autora constatou que as relações de proximidade desenvolvidas
pelas mulheres facilitam o ingresso em trabalhos coletivos e o acesso a distintos direitos sociais.
A autora explica que, ao longo da história, as mulheres foram criando certa identidade em
torno das reuniões em grupo, o que as levou a criar, por exemplo, profissões como o serviço social e
os centros de assistência. Guérin (2005) observa que até os dias atuais muitas mulheres estão
113
envolvidas em relações de reciprocidade que proporcionam coesão à família e à sociedade, sendo
estas relações expressas nas práticas de se reunir em grupos. Dessa forma, ela conclui que existe
maior possibilidade de as mulheres se engajarem em movimentos solidários e coletivos,
principalmente se eles tiverem como foco a discussão dos problemas comunitários.
Nobre (2003) concorda com essa discussão e analisa que pelas relações de proximidade nas
quais sempre estiveram envolvidas, as mulheres são importantes interlocutoras e conhecem os
problemas dos bairros, das comunidades em que vivem, podendo desenvolver projetos que vão ao
encontro das necessidades delas e do entorno. As Associações, no caso de Catende, tinham essa
função de levantar as demandas dos Engenhos para serem discutidas pela Usina.
Nas entrevistas realizadas em Catende, foi diagnosticado que cerca de 10 Associações
apresentavam mulheres como presidentas: “hoje nós temos Lucia e Jacira, Dona Helena, temos
Claudia, Cristina em Bela Vista, tem a Marli também. A Quitéria de Alencar, tem a de Diamante é
uma mulher, uma consultora lá...” (Hugo/liderança no projeto Catende-Harmonia). Embora ainda
fosse possível contar nos dedos quantas mulheres eram presidentas das Associações, a participação
delas nesses espaços era significativa.
Nota-se que se trata de mulheres do terceiro e, sobretudo, do segundo grupo da metodologia
de análise desta pesquisa, ou seja, mulheres do campo com algum nível de escolaridade, brancas e
negras, com trajetória de trabalho reprodutivo e produtivo e com alguma participação em
movimentos sociais, religiosos ou sindicais, o que indica avanços na proposta.
Essas lideranças femininas incentivavam a formação de trabalhos coletivos desenvolvidos
por mulheres, como também Associações destinadas às mulheres com exclusividade. É o caso do
Centro de Mulheres de Jaqueira, responsável por fazer exames preventivos e cuidar da saúde da
mulher. Incentivavam também a participação das mulheres nas atividades de alfabetização e nos
projetos educativos da Usina. Destaca-se também Dona Helena, uma educadora da região que
passou a ser vereadora de Jaqueiras e em muito contribuiu com o projeto e incentivou a participação
política das mulheres.
Porém, tal como aponta Cristina, embora participassem das reuniões, as mulheres tinham
poucos espaços de fala e de decisão:
Elas participavam das reuniões no Chalé porque elas eram representantes e eram sempre
convocadas nas reuniões. Então estavam presentes, embora as intervenções de mulheres
fossem mínimas, mínimas...você conta nos dedos. E olha que nós tínhamos reuniões
intermináveis. Tinha reunião que nós íamos até duas da manhã seguidas, na exaustão, e as
mulheres presentes, mas sem uma participação de formular, de discutir, de questionar, muito
mais de expectadoras. É claro que elas tinham direito a voz e voto e votavam. Mas pouco
protagonizavam essa relação de discussão mesmo da questão do projeto.

114
Com isso, nota-se que ocupar espaços é fundamental, mas novos desafios são apresentados
às mulheres no que tange a sua participação, qualificação e espaço para o posicionamento político.
Questões como essas revelam uma série de aspectos a serem enfrentados quando o foco são as
relações de gênero e a participação das mulheres em diferentes movimentos sociais e na ES, o que
nem sempre é analisado como uma questão de gênero a ser trabalhada com seriedade.
Para além das questões da desigualdade entre homens e mulheres não questionada pelos
trabalhadores, a partir das ações dos projetos de qualificação supracitadas, os trabalhadores, de
maneira geral, foram ganhando mais confiança no projeto. Eles sentiam na prática novas mudanças
acontecendo e essa era a melhor linguagem para dialogar com aqueles trabalhadores do campo.
Foi criada então a Equipe Harmonia, uma equipe educativa formada por militantes dos
movimentos sociais que passou a integrar o conjunto de trabalhadores da Usina com objetivo de
pensar nas propostas de qualificação do projeto Catende-Harmonia que estavam se consolidando.
O foco educativo para a qualificação de trabalhadores em Catende voltou-se para o eixo
educação/trabalho, em que o trabalhador passou a ser o ponto de partida. Aos poucos a Equipe
Harmonia foi percebendo que o ambiente de trabalho também era educativo e que essa era uma
estratégia importante para pensar em qualificar trabalhadores, não tendo que se limitar somente aos
projetos específicos ou escolarizados.

3.2.3. O eixo Educação/Trabalho nas atividades de Qualificação


Essa nova visão fez com que muitos trabalhadores que eram do chão de fábrica, tais como
mecânicos, eletricistas, entre outros com postos de trabalho compreendidos como menos
qualificados, começassem a participar mais intensamente das Assembléias e até da administração da
Usina, possibilitando uma nova construção das relações de trabalho. No caso dos trabalhadores do
campo, essa nova perspectiva fez com que as suas qualificações fossem valorizadas e ampliadas,
passando a compreender da plantação da cana e aprendendo tecnicamente sobre agricultura, bem
como ampliando à participação política nas reuniões e Assembléias organizadas pela Usina.
Com isso, em alguma medida, houve uma mudança de paradigma no próprio conceito de
qualificação atrelado à ocupação de alguns espaços, marcado por uma construção social onde é mais
qualificado quem tem mais estudo e quem cumpre com alguns pré-requisitos que combinam saberes
técnicos e atributos pessoais impostos pelo mercado de trabalho.
Neves e Leite (1998, p.11) explicam que, de uma maneira ampla, “a qualificação do
trabalhador compõe um conjunto de saberes escolares, técnicos e sociais, que o tornam capacitado
115
profissionalmente”, no entanto, essa capacitação não acontece isolada nas relações econômicas, mas
também se compõem no âmbito cultural e das representações simbólicas. Tal constatação nos leva a
entender qualificação como relação social, ou seja, “é na dinâmica entre capital e trabalho que se
estabelece a qualificação dos trabalhadores” (ibid.). Nessa relação, por meio de uma construção
social hierárquica definem-se quais são as profissões mais ou menos qualificadas, sendo que as mais
qualificadas são valorizadas em forma de salário. Ao revisar a literatura sobre qualificação e
Organizações Sociais Produtivas identificadas pela Economia Solidária, observa-se uma tentativa de
questionar essa imposição social.
De um lado, esses estudos fazem uma crítica à ausência de formação dos trabalhadores e
trabalhadoras, excluídos/as, em sua maioria, do direito humano da escolarização e das boas
condições de trabalho, como era o caso dos/as trabalhadores/as analfabetos de Catende (KRUPPA,
2005; TIRIBA, FISCHER, 2009). Mas, em contrapartida, os estudos valorizam os aprendizados que
esses trabalhadores conquistam na prática cotidiana ao longo da vida e nos processos de construção
dos empreendimentos coletivos, assim como buscam revelar que as pessoas se qualificam no
cotidiano de trabalho e que os espaços coletivos contribuem nessa direção.
Segundo Mello (2005, p.47), as frentes de qualificação para o trabalho advindas do Estado e
municípios oferecem cursos distantes da possibilidade real de uma conquista de emprego. Nas
palavras da autora, “qualificar seria uma espécie de mágica que, pela sua simples aplicação,
transformaria o trabalhador desempregado em empregado”. Trata-se de um trabalhador que vem
sendo condicionado pelo capital: os trabalhadores recebem a qualificação que o mercado lhes
reserva, ajustando-lhes às suas necessidades. Não há nessa proposta uma relação direta entre
trabalho e educação, tal como foi proposto em Catende, por exemplo.
A discussão sobre a qualificação e escolarização de trabalhadores e trabalhadoras é histórica
no Brasil. Segundo Ireland et al (2005, p. 95) a “educação como direito humano básico que poderia
mostrar-se uma das ferramentas mais eficazes de inclusão social, tornou-se, no nosso caso, um
instrumento nocivamente eficiente de exclusão”. Um breve olhar sobre a história da formação de
trabalhadores no país indica, de um lado, a prioridade do conhecimento a uma elite privilegiada
educada para o trabalho qualificado; e no outro extremo, uma população sem escolarização que fica
a mercê dos processos de industrialização do país, bem como das demandas dos mercados. Embora
essa mão de obra seja extremamente necessária para o desenvolvimento do país, explorá-la com
baixos salários corresponde à divisão social histórica do trabalho.
Para Kruppa (2005), a escola vem agindo nessa direção, contribuindo para disciplinar os

116
trabalhadores. Além disso, acaba atuando no sentido de individualizar e especializar as pessoas. Nas
palavras da autora:
Baseada na divisão social do trabalho – quanto mais o indivíduo especializa-se mais define
sua área de atuação – a sociedade atual perdeu a disponibilidade de ensinar os que não são
do mesmo segmento profissional. Essa divisão do saber legitima que o engenheiro saiba o
que o peão da fábrica não sabe, sem que se pergunte porque isso ocorre. O conhecimento da
Física pertence ao físico, o conhecimento da Química ao químico, mas o trabalhador na
Usina Catende, ao produzir o açúcar, provoca uma série de fenômenos físico-químicos,
cujos processos precisam, na autogestão, ser compreendidos e renomeados por ele próprio
na relação ensino-aprendizagem, o que pode, também, consolidar, ainda mais, os
mecanismos da autogestão (KRUPPA, 2005, p.24).

Os autores e autoras que discutem o tema vêm tentando apontar a diferença de educação
necessária às práticas coletivas e associativas de trabalho e a educação que serve ao capital. Embora
reconheçam que na prática dos empreendimentos ambas as vertentes se relacionam, consideram
importante pontuar que uma construção solidária exige um novo educar-se para a solidariedade
(TIRIBA, FISCHER, 2009; MELLO, 2005).
Nessa direção, observou-se que houve em Catende um novo significado em torno da
qualificação de trabalhadores, que contribui para uma nova forma de pensar esse conceito no âmbito
das Organizações Sociais Produtivas. Nesses espaços, as exigências de formação e qualificação não
são as mesmas do mercado de trabalho convencional e se expressam de diferentes maneiras. Logo,
terão que criar novas categorias de qualificação para desenvolverem suas atividades no âmbito do
trabalho associativo.
Cabe destacar que, nesta tese, tal como vem sendo discutido desde a introdução, o conceito
de qualificação, além de compreendido como construção social, não se refere apenas ao acesso
educacional (escolar, profissionalizante, etc.) que as pessoas tiveram ao longo de suas vidas. Refere-
se também às diferentes aprendizagens e saberes adquiridos, bem como à capacidade de agir dos
sujeitos sociais que constroem as Organizações Sociais Produtivas pesquisadas. Embora os
trabalhadores e trabalhadoras das OSPs não sejam considerados qualificados pelo mercado de
trabalho, não significa que não tenham espaço no mesmo. A questão é que sua qualificação, que é
naturalizada e não passou pelos canais formais de qualificação do mercado, não é valorizada e é
explorada por ele66.

66
Para maior compreensão, considera-se uma mulher que sempre trabalhou como doméstica, por exemplo, como uma
pessoa altamente qualificada para a atividade reprodutiva fundamental que ela desempenha, embora não seja
socialmente reconhecida como tal. Concordamos com Kergoat (1986) ao dizer que as mulheres possuem a qualificação
que lhes são reservadas. Assim como os homens, brancos ou negros, pobres ou ricos, e as mulheres brancas ou negras,
pobres ou ricas também apresentam grandes chances de possuírem diferentes qualificações à medida da coextensividade
das categorias de classe, raça e gênero em suas trajetórias de vida e trabalho. Somado a isso, há ainda o desenvolvimento
117
Seguindo estas perspectivas e pautada nessa experiência de Catende, é possível identificar
três diferentes categorias de qualificação exigidas para o trabalho nas Organizações Sociais
Produtivas (OSP), a saber: 1) Qualificação e aprendizagens Técnicas (exigida por cada OSP e que
correspondem aos elementos que as pessoas precisam para compreender o trabalho e aos
conhecimentos que permitem ocupar espaços administrativos, de presidência, etc.); 2) Qualificação
para a Gestão Coletiva e para a ampliação e exercício da autogestão parcial; 3) Qualificação política
que permite participação (falar em público, militância, etc.), bem como consciência das diferentes
formas de dominação de raça, classe e gênero que estruturam a sociedade.
Este seria então o desafio presente nos processos de qualificação de trabalhadores nas
propostas coletivas/associativas de trabalho, principalmente se considerarmos que a história de
qualificação de trabalhadores no país acompanha o desenvolvimento econômico e não a aquisição
crítica de conhecimentos para a autonomia humana.
Essas discussões se ampliaram nos anos 2000 em Catende quando as lideranças do projeto
Catende-Harmonia foram convidadas a conhecer a ANTEAG. Foi quando os trabalhadores souberam
da existência de outras iniciativas de recuperação de empresas em toda América Latina e começaram
a se aproximar das discussões sobre autogestão e Economia Solidária.
Ao longo da pesquisa, foram identificados três grandes momentos educativos em Catende: o
primeiro de alfabetização em massa, preocupado também com a articulação entre os trabalhadores e
ampliação do diálogo com os mesmos. Já num segundo momento, embora tenha mantido a
preocupação com a alfabetização, a ênfase dada era para a educação sistematizada com cursos que
aproveitassem a experiência de Catende por meio de atividades práticas e da participação de jovens.
Além do estágio na Usina, esses jovens fizeram cursos de sementeira, ovinocultura, piscicultura,
além de gestão da cooperativa, etc. Por fim, houve um terceiro momento voltado mais
especificamente para a denominada Economia Solidária, com apoio da ANTEAG e da SENAES,
com propostas de ampliação da noção de qualificação existente, que veio se consolidar em 2003.
Esse também foi um momento de intensificar a ideia das Associações para ampliar as
informações sobre o projeto Catende-Harmonia, bem como para ampliar o diálogo com os
trabalhadores. Nas Associações, os trabalhadores e trabalhadoras passaram por um significativo
processo de qualificação e participação política.

das aprendizagens que estão no âmbito da resistência e das práticas sociais de que os sujeitos participam ao longo de
suas vidas, como por exemplo, aquelas aprendizagens adquiridas em outras oportunidades de trabalho, como no caso das
organizações de trabalho coletivo que estamos pesquisando. Este aspecto voltará a ser aprofundado nos próximos
capítulos desta pesquisa.
118
As Associações foram formadas em cada Engenho, somando cerca de 48 delas. Os
presidentes faziam reuniões nos engenhos para levar as questões e solicitações dos trabalhadores nas
reuniões que aconteciam no Chalé, a antiga Casa Grande. Cabe destacar que a Casa Grande conferia
um valor simbólico ao trabalhador, já que ele passou a frequentar espaços a que jamais teve acesso e
que representava o poder que diferenciava trabalhadores e usineiros. Era uma forma concreta de
mostrar aos trabalhadores que eles estavam adquirindo um novo status no projeto.
A fala de Inácio mostra a quantidade de aprendizados advindos das experiências das reuniões
e das Assembléias por parte dos trabalhadores:
E eles opinavam, toda semana tinha uma reunião na casa que foi do usineiro, o usineiro mais
bravo que tinha aqui. Virou uma casa de decisão do trabalhador, o trabalhador ia pra lá
decidir o destino da usina. O trabalhador rural e o trabalhador da usina iam pra lá toda
quarta-feira, juntava tudo, tinha almoço pra todo mundo, lanche, era o dia todinho essa
reunião para decidir todo o destino da usina, toda semana […] O trabalhador rural não sabia
nem o que era um adubo, quanto era o quilo do adubo, passou a conhecer o preço de frete,
de cana, de rendimento de cana. Ele passou a saber tudo, e escrevia tudo e dizia “epa, pera aí
deu errado aí, minha cana deu tanto, eu quero ela, o frete é 4 km eu quero receber”, era
assim. Eles aprenderam coisas que a gente não sabia. Antes era que nem criança, quer a
mamadeira, mas não quer saber da onde vem. Agora o trabalhador, quando passou a essa
gestão aí, ele passou a conhecer tudo, se envolveu, passou a trabalhar no lucro também; a
cooperativa comprava o adubo e ele sabia distribuir o adubo, sabia quanto ia pagar de
adubo, sabia preço de frete. Parecia um usineiro, sabia tudo (Inácio/trabalhador, técnico da
Usina que chegou a ser diretor da cooperativa).

Dessa forma, a partir dos novos conhecimentos adquiridos, o trabalhador passou não
somente a ser ouvido e considerado pela administração da Usina, como também a compreender mais
claramente o processo de trabalho no qual estava envolvido, diminuindo a alienação do trabalhador:
Eu era um mecânico, eu sabia que esse caminhão se ele rodasse mais um mês, ele teria um
desgaste maior no motor, e o prejuízo seria maior pra usina. Então o chefe dizia que não
estava olhando pro prejuízo, queria que o caminhão rodasse mais um mês porque queria
mais cana na usina, e a gente calava a boca e tinha que fazer o que o encarregado mandasse.
Depois daí não, “esse caminhão aí, dá pra rodar?”, “dá”, então vai. Mas se o prejuízo pode
ser maior, mais de R$ 10.000, então é melhor parar e fazer o serviço. Quer dizer, a gente
passou a conversar com o encarregado, passou a distribuir as tarefas, ele não ia direto “eu
quero assim”, não (Inácio/trabalhador, técnico da Usina que chegou a ser diretor da
cooperativa).

Alguns trabalhadores passaram a ser lideranças nesse processo e houve um aumento da


participação de maneira geral, o que também possibilita certa mobilidade entre os grupos
classificados nesta pesquisa. Segundo a pesquisa de Lima (2006), contudo, esse processo não
aconteceu sem contradições. A autora observou que “Catende é um todo educativo”, já que todas as
atividades permitiam um processo educativo para além de espaços escolares, por exemplo. Contudo,
ela observou que havia alguns limites na participação dos trabalhadores nessas Assembléias e

119
reuniões.
Conforme a autora descreveu em sua investigação, muitas vezes os trabalhadores do campo e
da Usina “ficavam na posição de platéia, ou de educandos, e um grupo de técnicos, assessores,
dirigentes se colocava à frente e entre eles” (LIMA, 2006, p. 62). Ela observou uma diferença entre
as lideranças que falavam e os trabalhadores que se colocavam em posição de escuta.
Em entrevista com um trabalhador do campo ele nos contou que gostava muito de participar
dessas reuniões do Conselho, embora não conseguisse entender tudo: “não é tudo que eu entendo,
mas gostava de participar das reuniões. A gente vai entendendo uma coisa, o outro entende outra,
depois junta”. Damião também dizia que apesar de sua dificuldade era um momento de ampliar as
aprendizagens: “a gente participava, apesar de eu não entender muito das coisas. Cada Engenho
tinha um representante. Então a gente se reunia todo mês. Tinha mês que até duas vezes a gente era
chamado lá. A gente acompanhava a coisa. Tava sempre por dentro. Tinha informação para o
pessoal”
Dessa forma, observa-se que houve grandes avanços no que tange à ampliação de
informações sobre a Usina e qualificação técnica e política que poderia garantir a autonomia dos
trabalhadores, sobretudo do campo. Mas, como face do mesmo processo, ainda havia lacunas no que
tange à participação na construção de um projeto de autogestão parcial.
Para alguns entrevistados é muito claro todo o trabalho feito depois do processo de falência e
todo o esforço das lideranças para aumentar a participação e qualificação dos trabalhadores. Mas,
para outros, embora reconheçam as conquistas explicitadas, Mário Borba e o síndico sucessor não
passavam de usineiros que conseguiram manter a Usina Catende funcionando, num processo onde
eles eram trabalhadores assalariados e subordinados da Usina.
Nota-se, dessa forma, que havia uma série de limites e contradições na participação dos
trabalhadores em Catende e que nem todos se envolveram de maneira igualitária com o projeto.
Contudo, há de se reconhecer que, apesar dos limites históricos da região, essa visão de educação e
qualificação no processo de trabalho foi proporcionando aos poucos a construção de um projeto
coletivo.
Nesses processos de qualificação, outro tema relevante foi o da diversificação de culturas
plantadas na Zona da Mata. Primeiro para que os trabalhadores pudessem plantar a cana, entender
sobre as variedades da mesma e começarem a pensar em ter a cana deles próprios para vender à
Usina. Paralelamente, a principal ideia era diversificar a produção para um dia acabar com a
monocultura, criando novas possibilidades de renda e de alimentação para os trabalhadores.

120
Porém, nesse período houve uma grande enchente que teve consequências muito difíceis para
a Usina e para toda a população local. Como descreve Kleiman (2008), foi uma catástrofe que
acabou com muitas máquinas, automóveis, computadores, plantação e mobílias das casas. Os
trabalhadores articularam uma Assembléia de emergência para pensar em soluções e uma série de
mutirões e de doações foi iniciada. Eles conseguiram recuperar a destilaria da Usina, mas muitas
coisas se perderam nessa tragédia.
Mal recuperados deste episódio, houve um incêndio na Usina: um curto circuito acontecido
na casa de força causou um incêndio no complexo industrial. Os trabalhadores narram esse
momento e contam que eles arriscaram suas vidas para apagar o fogo. Acabada a água dos
bombeiros, os trabalhadores iam buscar água no rio abastecendo o caminhão. Segundo os
entrevistados, mesmo os bombeiros ficaram impressionados com a atuação dos trabalhadores:
O povo foi pra dentro do fogo, apartou, quando o bombeiro chegou, o fogo tava isolado na
casa de força, tinha gente que subia, se agarrava no ferro e chutava as telhas queimando para
não passar o fogo para dentro da usina. Quando o bombeiro chegou queria tirar o povo que
não saía, queria ajudar, o pessoal com balde, o povo abasteceu o tanque do rio assim,
carregando água, botando no tanque. Ai o bombeiro falou que nunca tinha visto isso, mas
isso aqui é a vida da gente (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Isso levou mais um tempo para que a Usina pudesse se recuperar de um grande período sem
atividade, o que causava insegurança nos trabalhadores. Em 2001, por sua vez, inicia-se o projeto
Cana de Morador, retomando as propostas voltadas ao plantio e à capacitação técnica do trabalhador
do campo para plantar cana e diversificar a plantação, tal como será detalhado abaixo.

3.2.4 Cana de Morador: o significado dos créditos sociais


O programa denominado Cana de Morador corresponde a um incentivo do projeto Catende-
Harmonia para que os trabalhadores começassem a plantar a sua própria cana e pudessem vendê-la à
Usina. Também tinha o interesse de incentivar que os trabalhadores ampliassem e diversificassem a
sua produção, diminuindo a dependência da cana. Trata-se de uma proposta para romper com um
modelo histórico de latifúndio existente na região, na medida em que buscava que os moradores
tivessem a sua própria cana, quebrando o monopólio dos usineiros.
Tendo em vista esses objetivos, o processo de Reforma Agrária em Catende foi pensado a
partir de uma divisão de terras em que as pessoas teriam um espaço individual, para plantar em seu
próprio lote, e um espaço coletivo para plantar cana a ser processada na Usina Catende.
Primeiramente, o programa começou com uma espécie de crédito concedido aos trabalhadores,
advindo da própria Usina. A Usina fornecia adubo, semente e capacitação técnica para os

121
trabalhadores numa espécie de crédito rotativo. Eles pagariam esses insumos ao venderem a cana
para a Usina.
Diante do sucesso do projeto e da necessidade de créditos para ampliá-lo, em diálogo com o
Banco do Brasil, os agricultores conseguiram acessar o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar - PRONAF. O crédito era acessado individualmente, mas a decisão foi uma
proposta de investimento coletivo. Uma parte da verba recebida o trabalhador podia usar
individualmente para investir no seu lote. A outra parte era para investir no coletivo.
Este recurso potencializou o projeto Cana de Morador, que passou a funcionar como um
fundo rotativo entre os agricultores. Conforme explicou um dos trabalhadores do campo, eles
conseguiram progredir e chegaram a ter quase a mesma quantidade de cana da Usina:
A Usina facilitava pra gente o seguinte, semente de cana pra nós plantar as encostas. A gente
foi se estirando, ficou até bom. Agora eu acho que se essa Usina não tivesse caído o
morador tinha cana igual à Usina. Quer dizer, o morador não, os moradores. Tinham mais
cana que a Usina se tivesse conseguido. Eu comecei a moer a minha cana foi com 49
(toneladas), cheguei a 200, quase 300. Esse da esquina quase 400. O tempo que a gente
moía na Usina e recebia certo, a tendência era só a gente crescer, mas a Usina deu esse
problema e ficou difícil (João/trabalhador do campo).

Cabe aqui um parêntese para uma reflexão importante no âmbito dos créditos para os
projetos coletivos agrupados pela Economia Solidária, visto que este projeto Cana de Morador é um
bom exemplo de como os financiamentos e créditos são executados de maneira diferente nas
propostas coletivas de trabalho onde há o objetivo de emancipação dos trabalhadores.
O projeto em questão criou um fundo rotativo e propôs uma nova maneira de gerenciar e
utilizar um recurso federal, o que nem sempre é aceito burocraticamente pelos financiadores. Silva
et al (2014) discutem essa questão do financiamento para projetos solidários a partir de alguns
exemplos nos quais observam-se incoerências entre a burocracia dos créditos e a realidade dos
empreendimentos solidários, principalmente porque os trabalhadores beneficiados acabam não tendo
participação e influência sobre a concessão do crédito, o que causa um descompasso entre a
necessidade dos empreendimentos e a forma de liberação de recursos. Para os autores, sem a
apropriação por parte dos próprios trabalhadores do sistema financeiro, sua forma de funcionamento,
gestão e as escolhas políticas aí embutidas, as demandas de créditos dificilmente serão alcançadas.
Lima (2010, p. 47) analisa ainda que a Economia Solidária fica a mercê dos micro-créditos e
não consegue linhas de financiamento para grandes projetos. No caso do Projeto Cana de Morador, a
Usina teve que inventar uma forma de crédito que dependesse dos pequenos investimentos
individuais, correndo o risco de o prejuízo cair sobre o trabalhador. Na visão de Lima (ibid.), parece

122
haver uma proposta de que “o micro tem que continuar micro, o pequeno continuar pequeno”.
Há que salientar que o trabalhador teve muito receio no início do projeto, principalmente por
ser o responsável direto ao acessar os créditos do PRONAF. Somado a isso, as terras ainda não
estavam legalizadas, e muitos achavam que a qualquer momento a Usina tiraria a cana deles. Assim,
o projeto foi iniciado com poucas pessoas e com o passar do tempo ele foi crescendo.
No tempo do Usineiro era proibido a gente ter um roçado, se plantasse um pé de banana
vinha alguém da Usina e arrancava. Cana então nem se fala. Aí quando entrou essa
administração do Doutor Mário começou a incentivar o povo a plantar. Isso aí equilibrou
muita gente. Hoje em dia não tem uma casa dessa que não tenha um puxado atrás. No tempo
do Usineiro ninguém falava, ninguém tinha vez, era perseguição total. O pessoal era
verdadeiro escravo dele mesmo. Então agora melhorou as casas, comprou moto, carrinho,
plantou, o pessoal se equilibrou mesmo. Aqui a gente assistiu trabalhador plantar e o vigia
da Usina arrancar (Damião/trabalhador do campo e presidente de uma associação).

O projeto possibilitou melhoria de condições de vida, bem como ampliou a participação dos
trabalhadores do campo, pois eles passaram a compreender o processo produtivo da cana e
consequentemente a participar mais da administração da Usina. Além disso, Inácio destacou que o
projeto incentivou a união entre os próprios trabalhadores do campo.
Toda essa organização de Catende começou também a despertar a atenção de outros
usineiros e dos chamados inimigos do projeto, pois os trabalhadores começaram a ter conquistas
importantes, como terra e cana, além de estarem se fortalecendo coletivamente.
A produção dos moradores dobrava todo ano, se num ano moíam 50 mil toneladas, para o
outro ano moíam 100 mil. Não era de uma pessoa, era uma produção de todos. A usina moía
a cana, a usina vendia o açúcar, vendia o melaço e com isso nunca arriou, porque nunca
houve lucro pra distribuir, lucro entre os cooperativistas, entre as pessoas [...] Bom, aí
começa o projeto a ter mais solidez. Por outra parte, começa também a aparecer, já de forma
ativa, os inimigos do projeto. No primeiro momento os próprios donos, os usineiros e depois
outros movimentos de luta da terra (Júlio/trabalhador da Usina e do Campo).

Entre os grupos que foram despertados para essa questão encontra-se o MST, iniciando um
período difícil de conflitos entre os diferentes movimentos sociais de luta pela terra na Zona da Mata
pernambucana. De um lado, estava o INCRA apoiando o projeto de Reforma Agrária que vinha se
construindo na região com apoio da FETAPE. De outro lado, o MST era contra a monocultura da
cana e contra o processo histórico de exploração dos trabalhadores pelas Usinas na região. Para este
movimento, a plantação de cana-de-açúcar favorece o regime da grande propriedade e,
consequentemente, explora os trabalhadores.
Segundo a pesquisa de Schäfers (2007), o MST defendia os trabalhadores que não queriam
aderir às propostas de modelo coletivo da Usina e desejavam se tornar agricultores familiares sem
ter que depender da cana. Assim, o MST iniciou um processo de ocupação nas terras que eram da

123
Usina, mas que estavam sendo passadas para os trabalhadores do campo.
Tal como descreve Kleiman (2008), o projeto dos trabalhadores era a desapropriação das
terras da Usina para que eles mesmos pudessem plantar a cana e aos poucos iniciarem uma
diversificação de culturas, diminuindo os impactos da monocultura. Para Ribeiro (2011, p. 86), o
MST condenava a cana em si, mas se esquecia que o problema a ser combatido era “as relações
sociais e culturais entre cana, terra e exploração do trabalho”. Somado a isto, a defesa do projeto
Catende-Harmonia era a de que os trabalhadores da Catende somente sabem plantar cana e é com
ela que conseguem renda superior à que obteriam vendendo macaxeira no mercado, por exemplo.
Houve um rompimento entre os movimentos e o Engenho organizado pelo MST se separou
daqueles organizados pelo Projeto e pela FETAPE. 48 engenhos se mantiveram na organização de
Catende. Cerca de 4 engenhos passaram a ser do MST, numa proposta desvinculada da Usina.
No ano de 2004, houve a mudança do síndico da Usina, passando de Mário Borba para
Marivaldo de Andrade, um trabalhador, agricultor, com ensino médio, nascido nas terras de Catende,
presidente de um dos sindicatos combativos da região. O período em que Marivaldo administrou a
Usina foi criada a Cooperativa Catende-Harmonia, ganhando maior expressão como um projeto
coletivo de trabalhadores e como um projeto de autogestão parcial, tal como será descrito na
sequência.

3.3. O auge do Projeto Coletivo Catende-Harmonia


O período de sindicância de Marivaldo de Andrade, entre 2004 e 2009, é considerado como o
auge do projeto Catende-Harmonia. Para a equipe de liderança, Marivaldo representava um
trabalhador com o histórico de muitos outros trabalhadores de Catende, visto que ele trabalhou no
corte da cana, tornou-se agricultor e toda a sua formação técnica e política se deu pela participação
nos sindicatos combativos da Zona da Mata e como trabalhador nas Usinas da região.
Foi um período de grande produtividade da Usina, com o aumento das atividades industriais,
sobretudo porque o setor sucroalcooleiro também apresentava um bom momento. Paralelamente, o
novo síndico tentou intensificar os processos democráticos de participação dos trabalhadores, já que
a Equipe Harmonia enxergava que existiam falhas geradoras de conflitos que abalavam o projeto.
Foi elaborado um documento para guiar as ações da Usina, descrevendo a preocupação com o bem
estar e melhoria das condições de vida da população como o objetivo principal do projeto.
Também ampliaram as reuniões do Conselho Gestor e nas Associações, a fim de esclarecer
cada vez mais os detalhes da Usina e do setor, tal como o preço do açúcar, a necessidade de realizar

124
o pagamento dos empréstimos e a logística de funcionamento da Usina como um todo.
A partir desses investimentos, no ano de 2005, é que efetivamente conseguiram consolidar a
Cooperativa Harmonia. Fazia parte de sua diretoria cerca de quatorze trabalhadores, todos homens,
sendo esses representantes das Associações, alguns militantes do projeto e representantes dos
trabalhadores da Usina.
Conforme descreveu Ribeiro (2010), essa direção da Cooperativa não possuía uma formação
específica em processos coletivos de gestão e foi na prática que foram aprendendo esse jeito de
trabalhar. O autor enfatiza que a cooperativa não podia tomar decisões sozinha, tendo que consultar
o Conselho Gestor, por meio das reuniões realizadas. Nas palavras de Ribeiro (2010, p. 87): “hoje a
gente que é advogado, assessor, nunca tínhamos sido nada. Agora temos que aprender outro trabalho
e a continuar humilde, o que é outra aprendizagem. Faltam profissionais especializados. As pessoas
foram se especializando ao longo do tempo”.
Cabe notar que esta dificuldade encontrada em Catende será também identificada nas outras
iniciativas pesquisadas e se apresenta em consonância com a preocupação dos autores que estudam a
Economia Solidária, como Gaiger (2007) e Coraggio (2003). Já que essas iniciativas se encontram
como contradição ao capitalismo, mas no cerne do mesmo (FARRIA, 2009), as pessoas não são
formadas para trabalhar coletivamente, o que precisam aprender na prática e o que não se dá sem
contradições e disputa.
Além desta qualificação para a gestão coletiva, a criação da Cooperativa foi um momento
para que outros trabalhadores pudessem chegar mais próximos à diretoria e se tornarem lideranças.
É o caso de Inácio que passou de mecânico a diretor industrial da Catende-Harmonia, e de Pedro,
que era agricultor, assentado e sempre participou do Projeto, chegando também a diretor na
Cooperativa, responsável pelo diálogo entre Usina e Campo. Observa-se mobilidade entre o grupo
dos homens, entre os quais muitos pertencentes do segundo grupo passaram para o primeiro.
Contudo, o mesmo não aconteceu entre as mulheres. Elas não tiveram iguais oportunidades na
Cooperativa.

3.3.1. Projetos específicos para as mulheres


No período da sindicância de Marivaldo, alguns projetos de inclusão de mulheres foram
executados. Projetos estes compreendidos como específicos para as mulheres, tais como floricultura,
artesanato, incentivo à participação das mulheres nas Associações de Moradores, fornecimento de
marmita para os trabalhadores da Usina, etc. Conforme explicou Cristina:

125
O trabalho com as mulheres ficou em função de organizar alguns grupos produtivos que
trabalhavam com flores, que trabalhavam com artesanato, que cuidavam de atividades
sociais, que a gente tinha essa preocupação de fazer com as comunidades. Então, as
mulheres eram colocadas para executar tarefas entendidas como de mulheres.

Ou seja, novamente os projetos foram organizados por uma maioria masculina que definiu o
lugar específico que as mulheres deveriam ocupar, seguindo as nuances do trabalho reprodutivo e o
imaginário do trabalho apropriado a elas. Além disso, as atividades apresentadas às mulheres não
foram igualmente apresentadas aos homens como uma possibilidade de trabalho.
Pedro, um dos diretores da cooperativa, explicou a importância de pensar em atividades que
permitissem a autonomia das mulheres e que “focassem nos princípios coletivos da Economia
Solidária”. Também descreveu alguns avanços dessa iniciativa, como discutir sobre direitos das
mulheres e a participação delas em organizações como a Marcha das Margaridas. Contudo, apesar
desses avanços, faz-se necessário acentuar que se tratava de atividades consideradas secundárias e
que não possuem o mesmo valor social e econômico que o trabalho na Usina.
Com o passar do tempo algumas mulheres começaram a fazer parte da Executiva da
Cooperativa, sobretudo na parte de secretaria e organização burocrática. Elas também coordenavam
as ações de atividades produtivas com as mulheres nos Engenhos. Segundo Cristina, essas ações,
mesmo sendo pontuais e sem o mesmo valor social, tiveram resultados positivos, sobretudo com as
mulheres dos Engenhos mais distantes e que não participavam de nenhuma ação da Usina.
Muitas mulheres tinham em sua trajetória de trabalho somente o corte da cana e o trabalho
doméstico em seus lares. Com essas iniciativas, passaram a conhecer outras mulheres, discutir novos
temas, valorizar e conquistar novas aprendizagens. Nas palavras de Cristina:
na Catende eu pensava isso...aquelas mulheres que estão lá nos Engenhos mais distantes,
com aquela vida mais simples que se tem, trabalhando a vida toda, se dedicando aos filhos e
à família e o que Catende representava para essas mulheres? Em alguns momentos, em
algumas reuniões que nós fazíamos, quando trabalhávamos os projetos produtivos com
mulheres, eu via, Catende possibilitou sonhar. Possibilitou ver que era possível mais. Elas
não iriam sair dali, do local onde vivem. Elas não iam ficar mais ricas, mais novas, mais
bonitas, mas podiam sonhar. A gente pode fazer uma vida diferente, muito melhor, ver
outras possibilidades e ter uma vida digna...não tão limitada como sempre foi.

Alguns estudos que relacionam as questões de gênero à Economia Solidária apontam essa
contradição. Se, de um lado, as mulheres conquistam novos aprendizados e encontram a
possibilidade de geração de renda e conquista de outros ganhos advindos do trabalho coletivo
organizado, o que é de extrema relevância social; de outro lado, ainda restam pontos cruciais para
superar a divisão sexual do trabalho que são difíceis de transpor, sobretudo a partir da hegemonia
masculina em que muitos desses projetos são pensados.
126
Em Catende, a principal marca da questão da divisão sexual do trabalho está nos espaços
limitados para as mulheres e no valor das atividades a ela destinadas. Embora seja importante
considerar os esforços e avanços dos projetos desenvolvidos para as mulheres, algumas lacunas não
foram enfrentadas, ou seja, novamente assistimos um limite colocado para o exercício da capacidade
de agir das mulheres e da construção da consciência de gênero para homens e mulheres.
Se no caso das mulheres observamos lacunas, mas também podemos salientar avanços, no
caso das questões raciais não podemos dizer o mesmo. Foram identificados muitos avanços no que
tange aos espaços que os negros, sobretudo os homens, passaram a ocupar, principalmente pelas
chances de ocupação de novos espaços sociais entre os grupos classificados. Mas, houve lacunas
enquanto tema capaz de refletir em termos de consciência de raça. As questões raciais não
apareceram espontaneamente em nenhuma entrevista. Embora muitas das mulheres que participaram
desses projetos específicos fossem mulheres negras, não foi identificado nenhum projeto ou
discussão que caminhasse ao encontro das questões raciais, mesmo neste momento auge do projeto.

3.3.2. Raça: silenciamento da questão


Em minhas entrevistas observei o silêncio sobre a questão, o que é uma marca de muitas
Organizações Sociais Produtivas, como será identificado ao longo desta tese. De fato poucas são as
iniciativas que vêm se debruçando sobre a presença dos negros no trabalho coletivo/associativo e
sua implicação nos mesmos. Mesmo em uma região cuja grande parte da população é afro-
descendente e teve sua origem fincada no trabalho escravo, não se fala sobre os e as participantes
negros/as do projeto.
A maior parte das pessoas dizia que ali na região “ninguém era branco, branco”, dizia que
“todo mundo era escurinho”, então chegavam à conclusão de que na Usina também muitos
trabalhadores eram negros. Porém, a maior parte não se reconhecia como negro e isso não era um
tema a ser discutido e debatido.
Em outras palavras, pelo fato de a maior parte ser considerada não branca, parecia não haver
motivo para debater, ou seja, o tema era tratado como superado pela suposta igualdade natural
existente. Não consegui descobrir, por exemplo, quantos trabalhadores negros havia na diretoria da
Cooperativa, ou envolvidos no Projeto Catende-Harmonia. A resposta era sempre a mesma: “aqui
todo mundo é escuro”. E logo depois da resposta vinha o silêncio que me indicava que essa era uma
questão que não precisava ser trabalhada.
A partir disto, nota-se o peso do mito da democracia racial na região. Depois de descoberto

127
por Florestan Fernandes na década de 50, este conceito continua sendo bastante coerente para
explicar o silenciamento sobre as questões raciais ainda na atualidade.
Como explicam Hasenbalg, Valle Silva e Lima (1999), este mito passou a fazer parte de uma
conformação ilusória de integração de raças, operando no imaginário popular e justificando a
ausência da discussão sobre o tema. Isso ganha mais relevância no caso da região da Zona da Mata,
onde a presença de pretos e pardos no campo é consideravelmente alta devido à história de
colonização da região.
No entanto, não se discute, por exemplo, os privilégios que os usineiros brancos,
descendentes dos portugueses e colonizadores tiveram, em contraposição à exploração dos
descendentes de escravos que se tornaram os assalariados dependentes dos trabalhos oferecidos
pelos primeiros. A questão de classe em Catende, por exemplo, não é interpretada também como
uma questão racial, o que dificulta a própria identidade negra desses trabalhadores.
Na entrevista com Pedro, contudo, ele apontou uma pista de como essa participação entre
brancos e negros não era igualitária, pois ele revelou que chegaram a fazer algumas discussões sobre
cotas para negros nos projetos de qualificação desenvolvidos pela Usina:
Tinha a preocupação de incluir os negros. Aqui tem poucos indígenas, mas a gente pensava
em cotas. É tão ruim tratar disso, tem que falar de cotas como se uma parte não fosse gente,
mas se não tivesse isso a inclusão não ia acontecer. Cotas para inserir nos cursos, na
formação das diretorias...a gente discutia sobre incluir mulheres e jovens. Não tinha muito
isso de branco e preto e tal, a participação já existia.

Observa-se certa contradição nesta fala, pois ao mesmo tempo em que Pedro explicita a
necessidade de cotas e de inclusão, diz que a participação dos pretos já existia. Ao falar sobre cotas,
ele se referia principalmente aos jovens e às mulheres em relação aos projetos já descritos neste
capítulo.
Já Artur descreve que notava a desigualdade existente, mas que esse não era um tema
prioritário, mesmo porque, assim como outros temas de Catende, as questões apareciam a partir da
realidade prática e não foi observada a necessidade de investir nessa questão, tal como sentiram no
caso das mulheres e dos jovens independente de serem brancas ou não-brancas.
Em minha compreensão, a Zona da Mata incorporou o discurso da mestiçagem, como
descrito por Guimarães (2002), em que, por serem todos “mestiços”, não haveria um divisor entre
brancos e negros. Ao nos remetermos a história da Zona da Mata descrita neste capítulo, de fato se
trata de uma região onde há uma grande parcela da população mestiça. Essa concepção, no entanto,
foi cunhada como crença pelos abolicionistas brasileiros e pelos colonizadores europeus, na
tentativa de esconder a exploração dos negros.
128
Após a abolição, Guimarães (2002, p. 139) explica que “o Brasil moderno deu lugar à
construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais”. Este Brasil é
exatamente o que transformou o escravo em trabalhador assalariado, negando-lhe o seu
pertencimento aos seus grupos étnicos. Paralelo a essa negação do que era próprio desses grupos,
negou-se também o espaço no campo político e o acesso a determinados espaços de poder, mas com
a impressão de que as oportunidades eram as mesmas, afinal, todos são considerados iguais.
Santos (2007) acrescenta ainda que o colonialismo deixou uma marca que se tornou difícil
reconhecer “o outro”, ou seja, o negro, como ser-humano. Tornou-se difícil reconhecer a força de
trabalho do negro como fundamental, uma vez que o colonialismo a desvalorizou em comparação
com a mão de obra branca especializada. Contudo, isso foi maquiado pelo mito da democracia racial
e pelo convencimento de que todos são iguais.
É nesse não reconhecimento que o autor indica o papel do silêncio, ou melhor, do
silenciamento, visto que a cultura ocidental e a modernidade, por meio do contato colonial de
desprezo, apagaram outras culturas (indígena e africana), chegando a destruí-las. No lugar delas,
ficou justamente o silenciamento. Para o autor esse é um de nossos grandes desafios: “como fazer o
silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução do silenciamento”
(SANTOS, 2007, p. 12).
Partindo de minhas observações descritas em diário, notei que a maior parte dos
trabalhadores do campo que eu entrevistei eram negros, homens e mulheres. Assim como eram
negros os presidentes de Associações que tive contato, bem como o agricultor e o mecânico que
viraram diretores da cooperativa. Já as lideranças do Projeto entrevistadas, as quais vieram dos
movimentos religiosos e sindicatos da região, eram brancas. Contudo, não é possível tirar maiores
conclusões em torno da divisão racial do trabalho no projeto, pois não pude observar a Usina em
época de funcionamento. Também não existem dados que digam quantos trabalhadores brancos ou
negros trabalhavam no campo ou na Usina e quais lugares ocupavam na Usina, e tampouco existe
pesquisa que tenha investigado essa questão.
Porém, há que salientar que os estudos da região (ANDRADE, 1998, 2001) revelam que os
ex-escravos continuaram trabalhando nas propriedades rurais, sob regime de baixa remuneração,
como assalariados no corte da cana, tal como já descrevemos nesta tese. De maneira geral,
historicamente na região, os negros foram qualificados para um trabalho específico, o do corte da
cana, e poucos foram qualificados para o trabalho nas Usinas. Quando chegavam nas Usinas eram
encontrados principalmente no chão de fábrica. Essa história se perpetuou na região e configurou a

129
divisão racial do trabalho marcada pelo lugar do negro na área rural e no corte da cana, e pelo lugar
do branco na cidade e na Usina. Embora alguns deles tenham adentrado na Usina no chão de fábrica,
formou-se um sub-grupo dos trabalhadores negros que não foram para as áreas administrativas das
Usinas, o que acabou de refletindo em Catende.
A fala de Cristina nos ajuda a compreender um novo elemento que se trata da consciência em
torno deste tema e desta história da região. No caso das mulheres, mesmo com todas as
contradições, tratava-se de um tema que aos poucos foi ganhando espaço e entrando em pauta,
acompanhando inclusive a evolução do movimento feminista, as políticas públicas de gênero e a
contribuição de algumas mulheres conscientes sobre a temática, como no caso de Cristina, de Dona
Helena (educadora que se tornou vereadora na região), das filhas de Dona Helena, entre outras. Mas
a questão racial não atingiu a mesma relevância.
Encontrava muitos negros no projeto, mas também discutir a negritude aqui é difícil. Que
nem, eu sou negra e a maioria era negros, embora não tivessem essa consciência. É bom
dizer isso, porque se você perguntar pra eles, a grande maioria vai dizer que não é negro.
Aqui essa questão da identidade étnico-racial ainda é muito complicada aqui. Não existiu a
discussão aqui. Nunca, em nenhum momento eu me lembro da gente fazer uma discussão
sobre isso aqui, em nenhum momento de Catende. Eu, Artur e Hugo tínhamos essa
consciência, mas mesmo a gente nunca colocou essa discussão para ser pautada. Eu me
lembro inclusive quando nós tivemos o projeto de juventude, que foi muito bom, pra mim
também foi um marco, um divisor de águas num projeto de educação em Catende. E a gente
colocava a questão da cor pra preencher a fixa e nenhum se colocava como negro. Nenhum.
Eles eram negros, mas não diziam. E a gente discutiu essa questão, mas não colocamos como
um elemento para ser discutido com os grupos.

Como descreveu Cristina, mesmo percebendo que os jovens não se identificavam como
negros, essa discussão acabou sendo silenciada, assim como as questões raciais foram silenciadas
historicamente. No caso dos jovens que não se reconhecem como negros, eles seguem o movimento
de branquear-se para serem aceitos e intelectualmente reconhecidos. Conforme elucida Ianni (1972,
p. 236), a ideologia dominante do branco colocou o negro como intelectualmente inferior. Já a
ideologia racial do negro foi fundada na relação de inferioridade com o branco. Assim, o negro se vê
a partir “das abstrações falsas engendradas na mente do branco”. Logo tentar branquear-se e ser o
que ele não é a partir do referencial do branco é uma tentativa de ser aceito e ocupar espaços.
Observa-se que o mito da democracia racial e da mestiçagem ainda impera e o tema não foi
encarado como uma necessidade pelo Projeto. Além disso, as políticas públicas voltadas à população
negra são mais recentes e os seus ecos demoraram um pouco mais para se difundir.
Segundo Jaccoud (2008), o debate público em torno das questões raciais tem se
intensificado. Desde a década de 1980, um conjunto diverso de ações vem sendo implementado,
primeiramente nos governos estaduais e municipais e, progressivamente, passaram a ser
130
desenvolvidas também pela esfera federal. Mas a autora afirma que foi somente nos anos 2000 que
as iniciativas conquistaram a devida importância, ganhando espaço em algumas instituições
públicas, como a Universidade e o Ministério Público do Trabalho. Ações como o estabelecimento
de cotas, combate ao racismo institucional, além de formação sobre o tema nas escolas e no mercado
de trabalho, bem como programas de valorização da cultura e da história negra, reforçando a própria
identidade nacional, também apoiaram a amplitude da discussão, auxiliando para o fim do
silenciamento em torno do tema.
Porém, essas questões ainda eram muito novas para Catende, que tinha uma prioridade em
manter a Usina e pensar na renda de toda a população, brancos e não-brancos; nos empregos e em
como manter minimante alguns direitos trabalhistas, ou seja, no eixo classe social. Os eixos em
torno da consciência de gênero e raça não tinham a mesma magnitude.

3.3.3. As principais conquistas X os conflitos internos e externos


No ano de 2005, foi realizado um estudo pela ANTEAG e Banco do Nordeste do Brasil para
fazer um diagnóstico dos processos necessários ao fim da falência de Catende para passá-la
definitivamente aos trabalhadores. A gestão de Marivaldo se preocupou com essa questão e
despendeu alguns esforços para isso. Houve também uma venda de sete milhões de açúcar, iniciando
um período de pagamento aos trabalhadores com maior regularidade, devido o bom momento do
setor que Catende conseguiu acompanhar.
Nesse ano, também se iniciou o processo de distribuição das terras pelo INCRA. No ano
seguinte, os trabalhadores e trabalhadoras conquistaram de vez a Reforma Agrária e poderiam ter
acesso aos créditos para o cultivo de suas terras. Porém, esses recursos só foram liberados no final
de 2006 devido a uma greve no INCRA. Com os novos créditos conquistados, os trabalhadores
seguiram ampliando o projeto Cana de Morador.
No ano de 2007, conseguiram anular atos fraudulentos cometidos pelos usineiros antes do
processo da falência, por exemplo a transferência ilegal de mais de 8 mil hectares de terra para
terceiros. Esse fato deveria ter facilitado o processo para conseguirem a desapropriação da Usina,
mas não foi o que aconteceu. Diante disso, os trabalhadores organizaram uma manifestação na Sede
regional do INCRA em Recife.
De acordo com alguns entrevistados, este foi um momento importante de mobilização
política e de aproximação dos trabalhadores, já que novamente conseguiram organizar cerca de
2.000 deles para uma ação de luta política coletiva:

131
Em 2007 nós fizemos uma ida, porque já havia as reações do judiciário e ai nós fomos a
Recife com 50 ônibus e duas mil e quinhentas pessoas, foi bonito! Foi a segunda marcha
que a gente fez a Recife, a primeira em 95 e a segunda em 2007. O nosso pedido era apenas
este, encerre a falência e vamos utilizar o dinheiro das terras para pagar os demitidos e a
cooperativa assume a gestão. Mas, a partir dali nós começamos a levar os verdadeiros
coices. Nosso erro foi querer encerrar a falência (Artur/liderança no projeto
Catende/Harmonia).

Como explica Artur, este ato acabou despertando a atenção de alguns inimigos do projeto,
que puderam visualizar a Usina Catende como um empreendimento que estava bem novamente. A
safra de 2007/2008 rendeu aos trabalhadores cerca de um milhão. Em 2008 não tiveram o mesmo
resultado porque houve uma quebra na moenda. Mesmo assim, tiveram uma boa produção. Foram
momentos em que começaram a investir em novas tecnologias na Usina, como, por exemplo, em
automatização das moendas e conquista de novos equipamentos mais modernos. Além disso, o
mercado do açúcar passava por um bom momento.
Para Inácio, também foi um período de maior envolvimento do trabalhador. Ele cita vários
momentos em que identificava um processo de solidariedade entre eles:

Muita gente boa passou ali, também muita gente mal. Mas ficou muita história boa, muitos
momentos bons que passamos ali. Muitas vezes a gente ia para Brasília, eu fui para Brasília
já umas 4 ou 5 vezes atrás de recursos, e teve vez da gente chupar laranja ou comer uma
sopa de galinha já oferecida por alguém, e dormir dez homens num quarto, porque a gente
não tinha um centavo pra alugar um hotel ou ir pra um restaurante comer, e a gente ia atrás
de recursos. Quando não tinha dinheiro, a gente arrumava uma cesta básica, quando chegava
um trabalhador com alguma doença, precisando de um remédio, a gente ia na farmácia,
comprava fiado, falava com o dono para que a gente pagasse a conta quando chegasse
dinheiro; estava com algum parente doente, filha ou mulher doente, precisando de transporte
a gente alugava o carro, com dinheiro ou sem dinheiro. A diretoria nunca desapoiou isso,
nunca ficou um trabalhador aí abandonado, nunca ficou aí um trabalhador com fome.

Inácio comentou também das atividades de lazer, que a Usina começou a proporcionar. Entre
elas destacou o time de futebol, voltado para os homens, que era um espaço de atividade física,
descontração e aproximação dos trabalhadores: “A gente chegou a pegar o time da usina aqui e botar
no campeonato estadual na segunda divisão, e quando ia ali pro estádio, a casa cheia...teve uma
Copa do Açúcar, também o pessoal alegre, bebendo, contente, era a maior alegria do mundo”.
Ele destacou também a intensificação das atividades do Centro das Mulheres, que fazia as
prevenções em relação à saúde da mulher. Em síntese, Inácio relata que se tratou de um período em
que o trabalhador foi se envolvendo mais com o projeto: “Esse tempo que eu passei como diretor,
trabalhador chegava “Inácio, tá acontecendo isso na usina, vai lá”, preocupado com os prejuízos, se
ele é o dono ele tem que se preocupar. E a gente ia bem, tava com um sonho quase realizado”.
Os trabalhadores do campo, por sua vez, não falam de projeto coletivo, autogestão e
132
participação política. Alguns citam a importância das Associações para a circulação de informações
sobre a Usina. O que se evidenciou nas entrevistas foi que os trabalhadores não fizeram uma escolha
consciente por um projeto coletivo organizado por eles. Eles quiseram continuar recebendo os seus
salários, sustentar suas famílias, pagar as suas contas e ter seus direitos reconhecidos, o que nesse
período estava acontecendo. De maneira geral, os trabalhadores sentiram as mudanças concretas que
passaram a acontecer em suas vidas a partir da recuperação da Usina.
Entre as mudanças objetivas que apresentaram significado para eles, os trabalhadores
destacam: a) melhoras nas condições de vida em relação ao acesso material e ampliação das
possibilidades de consumo, b) direito de plantar cana na área coletiva e individual, com horta de
subsistência, c) melhor condição de moradia e liberdade para reformar suas casas, d) possibilidade
de entrar na Usina e no Chalé, a antiga Casa Grande que se tornou espaço de formação e reunião,
para dizer o que pensavam e para se qualificar.
Já a Equipe Harmonia tinha um projeto coletivo, de vida e de mudança social e aos poucos
foram construindo esse grande complexo que se tornou Catende. Dessa forma, o projeto foi
crescendo e conquistando muitos trabalhadores, mesmo que de maneira diferenciada.
Nesse período, foi destacado também o apoio da SEANES e da ANTEAG por meio de
cursos de ES oferecidos para os trabalhadores, além da participação das lideranças nos Fóruns
Brasileiros de Economia Solidária. Alguns trabalhadores, sobretudo as lideranças, também fizeram
cursos fora de Catende e chegaram a conhecer experiências de referência como Mondragón, na
Espanha. A partir dessa relação com a SENAES, Catende também se tornou uma referência no bojo
das experiências de autogestão. Mas continuavam afirmando que o principal objetivo não era este.
Do ponto de vista de Ribeiro (2010), advogado da massa falida, a Economia Solidária é na
verdade uma iniciativa prática de trabalhadores diante das desigualdades de classe existentes no
país. Nas palavras dessa liderança, já destacada na epígrafe deste capítulo:
Não há empresa de economia solidária que nasça de projetos. Elas nascem da resistência dos
trabalhadores, diante da grande injustiça da concentração de renda pelo Estado e pelas elites
brasileiras. As grandes empresas capitalistas, todavia, nascem de projetos. Elas são
financiadas por si mesmas ou pelo Estado […] os filhos dos excluídos sociais ou políticas
públicas para excluídos socialmente nascem na rua, na greve, na resistência, na ocupação.
Assim é Catende. É algo bonito por um lado, mas é injusto por outro. Não há empresa de
economia solidária pautada pela autogestão, que tenha sido criada a partir de um
investimento de um banco. Ainda não faz parte da política a criação dessas condições.
Portanto, esses projetos desenvolvem-se a partir das necessidades das pessoas (RIBEIRO,
2010, p. 85).

Com esta fala, Ribeiro resume um pouco o que as lideranças de Catende pensavam da
Economia Solidária, visto que nesse período eles passaram a se identificar com essas propostas, mas

133
sempre enfatizaram as dificuldades e contradições existentes para segui-las. Entre essas contradições
destacavam a tentativa de construção de um projeto coletivo e solidário em que todos tivessem a
mesma concepção de solidariedade. Destacavam ainda a falta de apoio político e a luta pela disputa
de poder que um projeto deste representa.
As safras exitosas dos anos de 2007 e 2008 permaneceram em 2009. Havia uma quantidade
grande de cana da Usina e do trabalhador e Catende estava conseguindo manter os empregos e
desfrutar de algumas conquistas construídas ao longo do projeto. Porém, nesse mesmo ano de 2009,
o síndico Marivaldo foi surpreendido com uma denúncia de trabalho escravo e corrupção e foi
retirado bruscamente do projeto Catende-Harmonia. Tal fato fez com que os líderes do projeto
também se afastassem, iniciando o processo que levou ao fim do projeto, já que o novo síndico não
deu continuidade às ações sociais da Cooperativa e do projeto Harmonia.
De acordo com as lideranças entrevistadas, foi um grande golpe que o projeto sofreu num
momento em que a Usina estava se recuperando e com perspectivas de avanços cada vez maiores.
Nas análises de Girlan (2010), tratou-se de um conjunto de forças políticas para atender a interesses
econômicos dos usineiros da região, como também de políticos eleitorais que se juntaram para
derrubar e destruir o projeto.
Porém, para analisarmos esse fato é necessário destacar que, mesmo estando num período de
maior afinidade com os trabalhadores do campo e da Usina diante das conquistas adquiridas, ainda
existiam muitos conflitos internos entre os trabalhadores e o projeto que se desenvolvia, o que o
deixou frágil o suficiente para não terem como lutar contra esta imposição externa.
Havia o fato de o sucesso financeiro da Usina como massa falida ter despertado os usineiros
e políticos da região, os quais se organizaram para este golpe de maneira a cooptar muitos
trabalhadores com promessas de um novo tempo.
Como explicou Artur, um grupo formado por sindicalistas, usineiros e políticos locais,
apoiados pelo governo estadual, começou a dizer que Catende era lucrativa e que podia pagar as
dívidas dos trabalhadores, causando revolta e desconfiança entre os mesmos.
Nós tivemos alguns sindicalistas de Palmares e de Catende apoiando o sindicato que é
ligado à indústria, que sempre foi contrário aos trabalhadores, e representa o usineiro. Os
prefeitos da região apoiavam o juiz que dizia ter apoio do governo do estado. O fato é que
esse apoio que vinha dessas pessoas empolgou muita gente, porque o juiz dizia “Catende é
lucrativa, dá dinheiro, nós vamos apurar, vamos pagar porque Catende dá dinheiro e vamos
fazer uma boa gestão”

Esse grupo acabou conquistando boa parte dos trabalhadores do campo, pois muitos ainda
queriam receber os seus direitos trabalhistas a qualquer custo. Alguns também viam Marivaldo e a
134
Cooperativa como um grupo de usineiros que poderia enganá-los a qualquer momento. Ao mesmo
tempo, no interior da Usina, muitos trabalhadores especializados eram contra o projeto coletivo, pois
sabiam que poderiam receber maiores salários numa outra proposta de gestão que não fosse coletiva
e que não priorizasse os projetos sociais de Catende. Assim, a vinda de um novo síndico, com perfil
de Usineiro, animava-os. Paralelamente, alguns sindicatos patronais também começaram a agir nas
Associações reanimando discussões sobre o assalariamento e sobre os direitos trabalhistas.
Conforme indica Schäfers (2007), havia ainda uma desconfiança em relação à diretoria da
Cooperativa que era relacionada à desinformação, pois alguns engenhos estão muito distantes da
cidade de Catende onde se encontra a sede da Usina. Em época de chuva, por exemplo, é quase
impossível ir até alguns desses engenhos, já que, com a lama dos caminhos, os moradores não
chegam às reuniões nas quais fluem as discussões e as informações novas.
Na análise de Júlio, a quantidade de diretores existentes na Cooperativa também dificultou o
fortalecimento que o projeto precisava naquele momento, visto que havia muita disputa e
contradição de interesses entre esses diretores. Além disso, as lideranças reconheceram que na
diretoria da Cooperativa havia pessoas com pouco entendimento em relação à forma de gestão
coletiva do projeto. Alguns deles chegaram a apoiar a entrada do novo síndico.
Como descreve Artur: “Quando você está sadio, resistente às bactérias, os vírus não vêm tão
forte. Quando você está desestabilizado, as resistências baixas vêm mais forte, foi o nosso caso”. Em
outras palavras, algumas lideranças compreendem que se estivessem num momento melhor, teriam
resistido a este golpe, mas foi uma conjuntura de desafios que permitiu o fim do projeto.
Para Júlio, os conflitos internos foram desviando algumas lideranças comunitárias, deixando
o projeto mais frágil: “você sabe que uma consciência social se forma com muito tempo, não é uma
coisa que acontece da noite para o dia, é impossível. Qualquer outra reforma ou qualquer outra
mudança se pode fazer por lei, mas a cabeça da pessoa num se pode”.
Contudo, para ele, o projeto já havia enfrentado muitas dificuldades internas e poderia
enfrentar mais esses conflitos. Porém, dessa vez se tratava de um combinado de dificuldades
internas e externas ao mesmo tempo, e o projeto não teve como se recuperar e agir:
Exatamente no momento em que o projeto estava mais fragilizado, vamos dizer, na
autoridade, na liderança das pessoas que conduziam ele. Talvez se isso tivesse acontecido
em outros anos anteriores, ou acontecido 6, 8 meses depois não teria sido assim, mas
aconteceu num momento de extrema dificuldade, com o inimigo por toda parte virando
canhões, com até certa dificuldade no comando interno. Aí os trabalhadores precisaram de
um tempo para perceber o que estava acontecendo […] O síndico ali chegou como salvador
da pátria, aí começa a debater sobre essa cooperativa, começa toda uma propaganda
midiática com isso. Foi um pessoal que veio acabar com isso, e acho que isso também criou
problema. Junto com isso, a associação, o prefeito foi manobrando, apareceram grupos

135
que...eram 48 engenhos, alguns tinham até mais de uma associação, acho que eram 52
associações. Aí começou um grupo a debater sobre o projeto, a criticar, coisa que era certa e
coisa que não era certa, criar mentira, criar dificuldade (Júlio/trabalhador da Usina e do
Campo).

Após denúncia feita contra Marivaldo, o juiz o afastou e indicou um novo nome para
comandar a massa falida da Usina, o usineiro Carlos Antônio Fernandes Ferreira. Esse afastamento
aconteceu de forma violenta, com o objetivo de causar espanto e assustar os trabalhadores:

Marivaldo foi acusado pelos fiscais do Ministério do Trabalho e do Ministério Público


Federal de prática de trabalho escravo. Criou-se uma força tarefa de fiscalização do trabalho
nas usinas de Pernambuco e do Nordeste e essa fiscalização era a nível federal, Ministério
do Trabalho, a nível de Brasil. E era para chegar aqui polícia federal, helicóptero na cidade
com metralhadora, as pessoas ficaram com medo (Leila/educadora da Zona da Mata).

A equipe Harmonia saiu do projeto junto com Marivaldo e neste momento o projeto
começou a se esfacelar. No ano de 2009 com tudo pronto para a safra, o novo síndico conseguiu
manter o sucesso econômico e pagar os trabalhadores. Contudo, para as próximas safras parou de
investir e faliu novamente a Usina. Assim, começou a demitir os trabalhadores outra vez.
No ano de 2010 houve duas novas enchentes que acabaram danificando máquinas,
instalações e inclusive a hidrelétrica, que deixou de funcionar. Os prejuízos foram calculados em
cerca de 22 milhões de reais. A Usina ficou paralisada por quase sete meses, voltando a moer apenas
em janeiro de 2011, mas nesse momento o síndico já havia parado de investir no projeto Cana de
Morador e em todas as outras linhas de atuação do projeto Catende-Harmonia.
De acordo com os trabalhadores que continuaram na Usina, como é o caso de Inácio, o novo
síndico já chegou colocando os trabalhadores contra a gestão de Marivaldo e a Cooperativa.
Também realocou os trabalhadores em seus cargos e funções originais. No caso de Inácio, por
exemplo, de diretor industrial teve que voltar a ser mecânico seguindo a mesma exploração e
opressão do tempo dos usineiros, antes do pedido da falência da Usina.
Segundo Da Silva (2011, p. 167), a saída de Marivaldo se deu de uma forma ilegal, visto que
o novo síndico indicado estava a cargo de outro processo falimentar antes de entrar em Catende, a da
Usina Central Barreiros. Isso também aconteceu sem diálogo com os credores e trabalhadores da
massa falida e a lei diz que “o síndico será escolhido entre os maiores credores do falido, residentes
ou domiciliados no foro de falência, de reconhecida idoneidade moral e financeira”.
Dessa forma, ficou claro que a ação do juiz correspondeu a uma relação de forças com o
intuito de tirar a Usina dos trabalhadores e devolvê-la para um único dono ou para o conjunto de
usineiros. Inácio relata que o síndico dizia “é isso mesmo, então vamos fechar, pra mim não é
136
problema isso, bota um cadeado no portão, põe um vigia aí e acabou”.
Na análise das lideranças, até 2008 ninguém se interessava por Catende. Eram dívidas e
problemas que ninguém imaginava que poderiam ser contornados. Já no auge da Catende, com
melhor preço do açúcar, cana boa e produção alta, ela voltou a ser visível, a ter valor. Isso despertou
a ganância de grupos que começaram a se “interessar” novamente por Catende.
Para Cristina, os trabalhadores não apoiaram Marivaldo porque eram muitas informações
desencontradas e mesmo com os benefícios do projeto, eles não perderam o sonho de ser
trabalhadores assalariados e receber seus direitos, como dizia a promessa do novo síndico.
Catende tem grupos bem distintos. Nós temos grupos que já vem a muitos anos nas lutas
sociais, nas lutas populares, no movimento social, que tem uma concepção de mundo e de
sociedade diferenciada e Catende era a utopia sendo concretizada, e a gente dava o sangue
da gente, a alma da gente. O sonho da gente a história da gente estava ali. A gente viu
materializado ali em Catende. Mas aí você tinha outras pessoas que entraram no meio do
caminho e começaram...mesmo a gente trabalhando e falando o que o projeto representava,
mas não tinha uma concepção forte, não acreditavam e talvez não tivessem como acreditar,
porque aqui na região a relação capital trabalho sempre foi muito desigual, muito injusta, de
muita exploração. Muitos que estavam na cooperativa enchiam os olhos e se sentiam
pseudo-usineiros e era muito difícil lidar com essa situação, porque eram pessoas que
tinham o poder de decidir, mas o projeto deles não era o coletivo, era o individual.

No ano de 2012 Marivaldo foi candidato a prefeito em Jaqueiras e ganhou a eleição. No


mesmo ano houve o seu julgamento e ele foi absolvido. Como descreveu Artur, o juiz inclusive
declarou que não havia provas contra Marivaldo para aquelas acusações dizendo: “Não sei porque
esse processo veio pra cá, não deveria o estado ter gasto dinheiro com esse processo porque não
existe o crime, provas, nada”.
Assim, houve o fim do projeto Catende-Harmonia e atualmente a região se encontra numa
situação consideravelmente complicada. Chegou a haver uma proposta de leilão da Usina, mas não
existem mais interessados, já que o patrimônio foi sendo depredado. Os trabalhadores ficaram sem
receber e agora não possuem mais cana e onde processá-la. Muitos se aposentaram e outros estão
vivendo de bolsa família, conforme segue-se descrevendo.

3.4. O fim do sonho

Após o fim do projeto Catende-Harmonia, juntamente com o fechamento de outras Usinas da


região, a situação da Zona da Mata de Pernambuco apresenta alguns desafios do ponto de vista
social, principalmente no que tange ao desemprego. O projeto Cana de Morador alcançou muitos
êxitos, mas apenas conseguiu iniciar o processo de diversificação das culturas de plantação, não
tendo sido suficiente para transformar o trabalhador e a trabalhadora do corte da cana em agricultor

137
familiar, o que limita a possibilidade de geração de renda na região.
Ao se deparar com a situação atual, muitos trabalhadores passaram a reconhecer o valor do
projeto nos períodos de Mário Borba e Marivaldo, percebendo as diferenças de acesso que existiram
naqueles momentos.
E a gente só veio sentir o peso quando tirou o Marivaldo, colocou outro, aí acabou. Pegou o
dinheiro, não pagou o banco, ficou o pessoal inadimplente e não se planta mais. Tem um ou
outro que planta uma coisinha, mas a maioria não. Ele moeu a cana e não pagou o povo,
porque era o povo que segurava a Usina (Damião/trabalhador do campo e presidente de uma
associação).

A maior parte valoriza o Assentamento que ficou para os trabalhadores do campo e a


possibilidade de plantar em suas terras, mas, ao mesmo tempo, muitos ficaram com o nome
inadimplente sem conseguir acesso aos créditos que viabilizam a utilização da terra. Isso porque, o
novo síndico, ao não pagar os trabalhadores, também não permitiu o pagamento do PRONAF,
deixando o trabalhador com dívidas, já que o acesso a este crédito se dava de maneira individual.
Segundo Inácio, o síndico alegava que não sabia a quem pagar, pois não “compreendia esse processo
coletivo”. Além disso, ele descumpriu todos os acordos feitos pela Cooperativa.
Atualmente o Assentamento está passando por uma redivisão dos lotes dos trabalhadores,
visto que não existe mais um projeto coletivo para que plantem e produzam juntos, como era o caso
da cana no projeto Cana de Morador. Como havia a Usina para manter a viabilidade econômica da
cana plantada, o Assentamento foi dividido em formato de agrovila. Ou seja, as casas ficam
próximas umas das outras, com espaços para hortas de subsistência e o lote de plantação era coletivo
e afastado das casas. Agora a proposta é separar tudo em lotes individuais:
Nós sempre entendemos e ainda acho que um projeto produtivo coletivo é mais eficiente, é
mais eficaz, a possibilidade de dar certo é melhor desde que hajam instrumentos. Desde que
as condições sejam dadas. Nós tínhamos esses instrumentos, tínhamos uma unidade
industrial que dava unidade econômica, dava unidade política, do ponto de vista de
organização e favorecia esse trabalho articulado, conjunto […] Hoje eu mesmo defendo que
as terras sejam cortadas, infelizmente acho que é isso, pedindo que o INCRA faça o
parcelamento das terras pra que as famílias que queiram ser agricultoras familiares tenham
apoio para isso, tendo direito. É o fim do projeto coletivo, mas é a tentativa de parte como
agricultor familiar sobreviver (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

De outro lado, muitos trabalhadores continuam não satisfeitos com o Assentamento, pois não
querem ser agricultores, mas assalariados e acabam indo para a cidade, deixando seus lotes. Muitos
também continuam sem saber plantar e sem ter como plantar pela falta de créditos.
Houve recentemente um projeto educativo denominado Saberes da Terra que tentou articular
alfabetização com qualificação para que os filhos dos trabalhadores, jovens de 18 a 29 anos,
pudessem aprender a plantar e começar a pensar sobre novos destinos para o Assentamento,
138
inclusive com perspectivas coletivas. Este projeto foi articulado por antigas lideranças do projeto
Catende-Harmonia em parceria com o governo do Estado de Pernambuco e tentou retomar a
discussão coletiva em torno de Catende. Também pretendia ampliar a qualificação do trabalhador do
campo e as possibilidades de geração de renda no local.
Dos 48 engenhos existentes em Catende, pelo menos 30 foram contemplados com o projeto.
As salas de aula foram montadas nas próprias comunidades dos Engenhos e em cada sala participam
duas professoras ou professores, sendo uma da área de humanas e uma de exatas, além de um
técnico agrícola para o desenvolvimento das atividades práticas. A maior parte desses técnicos
pertenceu ao projeto Catende-Harmonia e os professores e professoras são moradores da
comunidade do entorno, das cinco regiões que Catende envolve.
Inicialmente o projeto passou por um período chamado de equalização, que buscou certificar
os estudantes que não tinham a formação do ensino fundamental completo. Após esse período o
projeto começou a articular os eixos temáticos (agricultura familiar, diversidade, trabalho, economia
solidária), com as aulas práticas de agricultura realizadas pelos técnicos do programa.
No que tange à formação profissional, à qualificação técnica dos trabalhadores e
trabalhadoras, foi observada a satisfação dos jovens com o projeto. Primeiramente, porque puderam
certificar-se dos estudos básicos e, sobretudo, porque aprenderam novas habilidades no campo, tal
como ilustra a fala abaixo:
é bom porque a gente estuda e a gente aprende. Porque às vezes a gente mora ali na terra,
mas não sabe como é que planta as coisas... e os professores ensinam e a gente aprende. Por
exemplo, a cuidar dos peixes, a gente só sabia que o peixe estava lá no rio (risos), mas não
sabia sobre o poço, a história da ração, a gente aprende muito (Samanta/trabalhadora rural).

No final, o projeto teve alguns resultados positivos: alfabetizou e formou os estudantes para
seguirem os estudos no ensino médio na rede pública e possibilitou algumas experiências coletivas,
tal como a produção de frango caipira, peixes e hortas, além do artesanato escolhido por alguns
grupos de mulheres como atividade produtiva.
Quem mais frequentou as aulas foram as mulheres e, de acordo com algumas educadoras
entrevistadas, elas se mostraram mais dispostas a pensar em outras possibilidades coletivas. Os
homens ainda estavam mais focados em se qualificarem para arrumar emprego em outras regiões.
Esta questão voltará a ser destaque nas outras experiências pesquisadas, sobretudo ao
compararmos o trabalho de homens e de mulheres na cooperativa de triagem de resíduos sólidos
pesquisada. Observou-se que os homens, por conseguirem melhores trabalhos no que tange ao
mercado formal, com acesso a carteira assinada, acabam escolhendo outras atividades produtivas
139
como fonte de renda. Já as mulheres, com menores perspectivas de trabalho no mercado formal,
acabam sendo atraídas pela ideia de trabalho coletivo/associativo. Mesmo porque as suas
habilidades consideradas inatas podem ser mais aproveitadas nessas experiências.
Outros projetos educativos com os jovens também vêm acontecendo, na perspectiva de
qualificá-los para a agricultura familiar, tal como nos explicou um jovem entrevistado: “aprende de
frutas, legumes, árvores, terra pra plantar ou não, plantar sem agrotóxicos. São 30 estudantes, tem 6
meninas...a gente está querendo reutilizar a estufa lá em baixo...está com projeto pra gente distribuir
mudas, frutos e polpas”.
Além desses, há um projeto de construção de 2.400 casas em diferentes engenhos,
desenvolvido pelo governo federal. Os pedreiros, eletricistas e outros trabalhadores homens do
projeto são moradores da região que foram qualificados para essa atividade, numa tentativa de
articular a possibilidade de geração de renda com os projetos sociais que estão sendo desenvolvidos.
Todos esses projetos foram conseguidos para apoiar o Assentamento e foi com eles que me
deparei durante minha segunda visita à Catende em 2014. Outros novos projetos também vêm
acontecendo estimulados por poderes locais e desenvolvidos em articulação com o governo federal,
tais como feiras de economia solidária e agricultura familiar. A Secretaria da Agricultura se vinculou
ao Programa de aquisição de Alimentos – PAA, em que a prefeitura compra os produtos da
agricultura familiar para serem utilizados nas instituições públicas, como nas escolas, creches, etc.
Também está começando a articular projetos junto a redes de supermercados para comprar os
produtos do Assentamento.
Quanto à Usina, “sumiu, acabou”, como descreveu Júlio. Os entrevistados disseram que os
equipamentos ficaram “expostos ao sol, sereno e chuva, houve saqueamento, desvio de peças,
equipamentos e implementos”. Nas palavras de Inácio:
No primeiro dia que ele chegou, ele me procurou e disse que a cooperativa tinha sido
destituída de dentro da fábrica, fora não, mas dentro da fábrica, ele tinha destituído ela. Eu,
ele soube que eu era diretor industrial, aí mandou escolher, ou eu ficava como diretor lá
fora, ou se eu ficasse na usina, eu tinha que voltar pra minha profissão. Aí fiquei na
profissão até o final, mas eu tinha certeza que a gente não ia muito longe não. Em 2012 foi o
fechamento geral. Não prestaram conta de nada, ninguém sabe se existe dinheiro, ninguém
sabe mais nada. A usina tá aí, deteriorada, a ferrugem comendo, acabou! Acabou o sonho,
acabou o projeto, acabou tudo do trabalhador!

Como resultado deste fim, as pessoas ficaram dispersas, cada uma em seu lote e a dificuldade
de diálogo, comunicação e mobilização é maior. Algumas Associações seguiram ativas, mas não se
fala em projeto coletivo ou na Usina. Muitos conseguiram se aposentar e estão vivendo de projetos
como o Bolsa Família. Como descreveu Júlio, a situação de desemprego na região é desesperadora

140
por não terem perspectiva alguma, bem como por não terem uma célula que sustente a geração de
renda na região, como era o caso da Usina.
O colégio e o hospital foram vendidos à prefeitura de Catende como patrimônio histórico. Os
trabalhadores também não sabem o que aconteceu com as terras da Usina. Segundo Artur, alguns
militantes que sonharam o projeto entraram em depressão, mas a maioria está trabalhando nas
prefeituras da região e desenvolvendo os projetos sociais acima citados.
Também se identificaram alguns projetos destinados às mulheres em parceria com a
Secretaria de Políticas para as mulheres de Palmares. Elas estão desenvolvendo os Conselhos de
Mulheres com propostas de projetos para pensar a participação política das mulheres. Cristina
também faz parte de um projeto onde fundaram a União Brasileira de Mulheres (UBM) da região e
descreveu que querem saber qual é a política pensada para as mulheres em cada localidade para
começarem suas ações. Também iniciaram a rádio mulheres em Palmares.
De maneira geral, as lideranças do projeto, embora apresentem profunda tristeza pela história
de Catende, não avaliam a experiência como um fracasso e refletem sobre a importância da
construção de um projeto coletivo, que é de fato um grande desafio:

Olha, não vejo a situação aqui como um fracasso. Eu acho que foi uma experiência positiva,
acho que o trabalhador ganhou muito, e que nunca mais vai voltar o que ele era no ano 96,
97; ele conseguiu se libertar de muita coisa, conseguiu ter consciência daquilo que pensava
quando uma telha tinha saído do lugar e tinha uma pingueira de água que era problema do
outro, ele passou a entender que era problema dele, que ele que tinha que resolver isso, o
trabalhador ganhou muito com isso […] Eu sou otimista, eu acho que para todos nós o
projeto Catende foi um aprendizado, eu olho ele com muito carinho, eu fui um fã do projeto,
com meus erros e meus acertos (Júlio/trabalhador da Usina e do Campo).

Agora, eu lamento muito, Catende foi uma experiência. Eu digo que foi por causa dessa
situação que a gente está vivendo...mas era uma revolução. Catende foi uma revolução. Não
foi a toa que você teve em várias frentes muita gente querendo minar o projeto. Das forças
políticas da região, do poder econômico, de grupos locais mesmo em cada município que
via despontar dali uma coisa diferente e que podia crescer muito e mudar toda uma ordem
estabelecida aqui. Verdadeiramente Catende foi isso, mas precisava de um suporte e
estrutura para conseguir ir, mas era minada de várias formas, inclusive internamente pela
formação de cada um, pela história cultural que cada pessoa trazia (Cristina/membro da
equipe de educação do Projeto Catende-Harmonia).

Algumas lideranças apresentaram idéias possíveis para seguir com pequenos projetos
coletivos em Catende, tais como estímulo à agricultura familiar pelas associações, estímulo à
ampliação das feiras da região, trabalhar com apoio das prefeituras locais para preparar a terra para
plantar, pensam em estudos para mapear a região a fim de identificar o que estão plantando e os
êxitos que estão tendo. Alguns citam projetos mais ousados como mini destilaria, fábrica de polpas,
etc. Mas reforçam a necessidade de vontade política e apoio do governo estadual e federal para isso,
141
bem como falam da vontade dos trabalhadores de realmente quererem um novo projeto coletivo.
Dessa forma, observa-se que Catende foi uma iniciativa que contribuiu muito para
pensarmos projetos de autogestão parcial no Brasil. Ela revelou muitas possibilidades de um projeto
coletivo com grandes amplitudes numa sociedade classista, sexista e racista, ao mesmo tempo em
que evidenciou a complexidade de romper com essa estrutura em diferentes níveis, interna e externa
à própria iniciativa. Ao analisar a história da Usina Catende, nota-se que se trata de um exemplo
concreto das possibilidades e dos avanços de um empreendimento constituído sobre o controle dos
trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo, observa-se a reprodução de uma série de desigualdades, ao
lado de inúmeras dificuldades e contradições políticas que apresentam limites aos avanços dos
projetos que pretendem, de alguma forma, modificar a ordem estabelecida.

Considerações do capítulo
Pesquisar e escrever sobre Catende foi um convite à compreensão em torno da ousadia e
dificuldade de tentar construir um projeto coletivo com ênfase na melhoria das condições de
trabalho e vida de determinados grupos sociais no Brasil, numa sociedade classista, racializada e
sexista.
O projeto Catende-Harmonia na região da Zona da Mata demonstrou uma série de
contradições. Foi um projeto pensado por lideranças, não proporcionou os mesmos avanços para
homens e mulheres, silenciou as questões raciais e houve uma série de conflitos entre trabalhadores
ancorados na divisão social e racial do trabalho e na história do assalariamento na região.
Ao mesmo tempo, demonstrou a experiência concreta de uma Organização Social Produtiva
que vai aprendendo na prática da luta de classes a superar as suas contradições e os seus limites. O
projeto ainda estava em construção e novos horizontes vinham sendo traçados. Os trabalhadores
estavam cada vez mais aderindo e compreendendo o projeto e muitas conquistas foram vivenciadas,
sobretudo no âmbito da luta de classes entre trabalhadores e usineiros e grupos políticos da região.
Destacam-se os projetos de qualificação técnica, proporcionados pela alfabetização e qualificação
como agricultores familiares, além da qualificação política e de gestão coletiva, proporcionados
pelas reuniões e Assembléias organizadas, bem como pela participação dos trabalhadores no projeto.
Destaca-se o modelo de disseminação da informação construído, com base na democracia
representativa67 devido ao tamanho da experiência.

67
A discussão em torno do modelo de democracia, representativa ou direta, faz parte do conceito de autogestão, tal como
discutido no primeiro capítulo deste trabalho. Segundo Mothé (2009), na origem do conceito de autogestão
ressignificado pela Economia Solidária, buscava-se o desenvolvimento da democracia direta, em que as pessoas, tendo
142
Também há que se considerar o projeto coletivo de Reforma Agrária construído, o modelo
rotativo de crédito social que foi criado, a mudança na qualidade de vida dos trabalhadores,
principalmente dos trabalhadores do campo historicamente explorados e oprimidos na região, entre
outras conquistas sociais difíceis de serem mensuradas.
Nesse contexto, Catende revela contradições explícitas nas lutas sociais: de um lado, o papel
importante dos movimentos sociais, religiosos e sindicais num projeto coletivo, e de outro, a força
de alguns grupos hegemônicos do país, como o caso dos usineiros aliados a grupos políticos que
dominam o Estado e têm força inclusive para retirar uma pessoa do poder de uma Usina em massa
falida de modo ilegal. Dessa forma, Catende evidencia a dificuldade da luta de classes no Brasil e é
um exemplo de como os projetos de organização social produtiva não conseguem crescer sem apoio
do Estado e das forças que marcam as relações de poder no país.
Ao analisar a ES, Corragio (2000, p. 120) indica que os empreendimentos não conseguem
obter resultados apenas com “microintervenções solidárias”. É necessário alcançar uma “escala
adequada, uma revolução moral, para que toda a sociedade decida investir na economia popular:
através de fundo para desmercantilizar a educação permanente para todos, de créditos responsáveis,
de investimentos em infra-estrutura produtiva”.
Numa direção contrária do que aponta o autor como necessidade da ES, Catende mostra
como a construção de projetos como este apresenta limites e são relegadas a projetos pequenos sem
grandes capacidades de desenvolvimento local e de afetar com profundidade as estruturas e grupos
de poder que dominam o país. Essa acaba sendo a proposta das políticas atuais de Economia
Solidária, que não apresentam força suficiente para apoiar projetos como Catende.
Nesse sentido, cabe destacar que nem mesmo a SENAES, representante da Economia
Solidária no Estado, foi capaz de inteferir no processo de modo a apoiar com mais forças a Fábrica
Recuperada pelos trabalhadores em Catende. Não me dediquei a aprofundar essa questão na própria
SENAES, mas, ao questionar os entrevistados, a resposta obtida é que, na prática, não houve este
apoio. Ou seja, a SENAES não se mobilizou para interferir no processo e apoiar os trabalhadores
para manter a Usina em funcionamento. Retoma-se aqui a análise de Kruppa (2005), ao afirmar que

posse das informações necessárias, poderiam decidir coletivamente os caminhos políticos e decisórios de uma
comunidade, sem precisar de representações. Porém, para o autor, na prática de autogestão dos empreendimentos
solidários observou-se certa dificuldade em manter este modelo, principalmente devido ao tamanho das iniciativas, das
distâncias geográficas e da necessidade de agilizar alguns processos burocráticos. Em Catende observou-se que o
modelo de democracia representativa pode apresentar falhas, visto que em muitos momentos nem todos os trabalhadores
se sentiam representados pelas pessoas que deveriam ter esse papel. Muitos trabalhadores nem sequer ficavam sabendo
de todas as informações sobre a Usina. Contudo, diante do tamanho da experiência e da necessidade de resolver alguns
processos no tempo do mercado, o modelo de democracia direta não se apresentava como viável.

143
a força política da SENAES ainda é muito pequena. Para a autora, estamos falando da
institucionalização de políticas voltadas a uma população excluída e que não são prioridades dos
governos, o que dificulta a sua tentativa de articulação.
Tal como apontado por Zibecchi (2010) no primeiro capítulo desta tese, de fato é complexo
tentar lutar contra a pobreza sem tocar nas estruturas de propriedade e nas relações de poder.
Conforme o autor apresenta ao se referir às cooperativas, Catende mostrou a capacidade que “os
pobres tem de se organizar e mobilizarem-se”, no entanto, acabaram se tornando iniciativas
paleativas à miséria sem forças para interferir na estrutura do poder, no caso, dos Usineiros e grupos
políticos da região.
Ao analisar teoricamente a Economia Solidária, Gaiger compreende a eficiência de um
empreendimento à medida que ele consiga por si só sustentar a sua reprodução. Porém, o autor
explica que essa sustentação não é sinônimo de “independência financeira, ou independência social
e econômica plena, o que não existe em nenhum setor econômico” (GAIGER, 2000, p.180). Em
outras palavras, quando pensamos em empresas capitalistas essa relação é evidente, visto que muitas
dependem do Estado para sobreviver. No caso das Organizações Sociais Produtivas, elas também
necessitam de certas “políticas de alavancagem”, porém, esse não tem sido o foco de investimento
do Estado.
Outro aspecto a ser destacado é a opressão em que viviam os trabalhadores do campo,
sobretudo os trabalhadores e trabalhadoras negras/os e as mulheres da região da Zona da Mata
pernambucana. Eles/as são reflexos de uma sociedade colonizada, patriarcal e de classe, cujo
imaginário indicava que deixar de ser assalariado era quase como voltar a ser escravo, já que são
esses os regimes de organização que os trabalhadores conheciam, tamanha era a alienação existente
na região. Os senhores do açúcar enraizaram um modo de vida e de exploração do trabalho que
insiste em permanecer e essa forma de exploração humana pouco evoluiu na região, até os dias
atuais.
Nesse cenário, Catende buscou unir trabalhadores em torno de um projeto social comum e
não apenas econômico, ampliando cada vez mais a participação dos mesmos, diminuindo formas de
opressão do trabalho e, principalmente, a escuta em torno das necessidades dos trabalhadores.
Dessa forma, Catende apresenta avanços em relação aos seus objetivos, documentados em
carta de princípio, elaborada coletivamente: proporcionar o bem estar e melhoria das condições de
vida da população, acabar com a fome e com o analfabetismo, ampliar a informação e a participação
dos trabalhadores, bem como mudar o cenário de exploração do trabalhador na região. Com isso, a

144
iniciativa apresenta avanços para as propostas de autogestão parcial a serem construídas no país.
De outro lado, tendo como foco o conceito de consubstancialidade, que é a base analítica
desta tese, considera-se que, nos objetivos almejados, a experiência em análise acabou priorizando
um dos pilares constituintes da estrutura social, no caso a classe, apesar das dificuldades neste
embate, mas excluindo os pilares de raça e gênero, o que acaba permitindo a desvalorização do
trabalho das mulheres e dos negros como utilidade social, mesmo numa experiência com tantos
avanços no que tange a organização coletiva como em Catende.
Ao priorizar a questão de classe, automaticamente ocorreram avanços nos âmbitos do gênero
e da raça, principalmente no que tange à melhoria de condições básicas de vida, de moradia, de
alimentação, de trabalho e de acesso a bens materiais para homens e mulheres, brancos e negros, o
que se reflete em maior autonomia de modo geral. Contudo, as conquistas, os avanços e as
oportunidades sociais criadas não se deram da mesma maneira para os grupos de homens e mulheres
envolvidos no projeto.
Embora também tenham tido chances de ocupar novos espaços, as mulheres não tiveram as
mesmas oportunidades que os homens da região em termos de constituição de sujeitos sociais:
algumas mulheres do primeiro grupo chegaram ao interior da Usina, sobretudo nas áreas de
secretaria e dos projetos educativos, mas não chegaram à direção da Usina e da cooperativa. As
mulheres do segundo grupo, por sua vez, conseguiram chegar às Associações e algumas tiveram a
chance de mobilidade para o primeiro grupo por meio dos projetos educativos. Já as mulheres do
terceiro grupo, foram as primeiras a serem demitidas da Usina e foram relegadas ao trabalho
reprodutivo e à luta individual na busca de sobrevivência. Participando dos projetos de qualificação
e dos projetos específicos da Usina, algumas tiveram a chance de mobilidade para o segundo grupo,
ou ainda a chance de trabalhar como assalariada na limpeza da Usina. Contudo, a invisibilidade das
mesmas operava e a participação de homens e mulheres nunca se deu de forma igualitária ou a
superar o modelo patriarcal de construção que domina muitos movimentos sociais.
Quanto aos homens, as lideranças eram compostas, sobretudo, pelos homens do primeiro
grupo, mas há que notar que muitos homens do segundo grupo conquistaram a mobilidade para o
primeiro. Assim como muitos homens do terceiro grupo passaram para o segundo a partir da
participação nas Associações e nos projetos de qualificação. Entre os homens, as chances de
ocupação de novos espaços que permitiram a construção de novos sujeitos sociais foram realmente
notável no projeto Catende-Harmonia.
Estes seriam aspectos a serem trabalhados ainda na região e que ficam de aprendizados para

145
outros projetos de Organizações Sociais Produtivas que busquem orientações em Catende.
Concordo com Miriam Nobre (2011) ao dizer que é urgente que as iniciativas de Economia Solidária
reivindiquem práticas coerentes com o modelo pelo qual lutam. A autora reivindica, por exemplo, o
feminismo como modo de pensar dos movimentos sociais. A isso acrescenta-se aqui a importância
da consciência em torno das questões raciais nesses projetos. Sem a imbricação entre classe, raça e
gênero não é possível pensar na possibilidade de novos avanços para a construção da autogestão
parcial no país.
De qualquer forma, nota-se a importância metodológica de analisar esses projetos tendo os
seus contextos e objetivos em vista, sem querer enquadrá-los num modelo que na prática não
conseguirão atingir, como bem expressou Arnaldo,
às vezes você fica fazendo discurso e depois que você experimenta a vida você vê que não é
viável. Então é burrice ficar fazendo determinadas coisas. Então você perde a possibilidade
de evoluir em algumas coisas por causa de insistências pouco produtivas que nunca foram
provadas, a gente vivenciou muitas coisas para saber que não adianta discurso bobo, tem
que provar as coisas, tem que experimentar as coisas, nem tudo o que a gente acredita é o
mais correto e nem tudo o que os outros acreditam é errado. O movimento social perdeu
muito por causa dessas questões [...] Quem nasce e cresce trabalhando pra viver, sabe que a
vida não é feita de muita ilusão, ela é real, é o que é. E que você precisa ter muita sabedoria
pra sobreviver […] Então a gente fez e faz o que dá na realidade que tem (Artur/liderança
no projeto Catende/Harmonia).

Deste modo, Catende conquistou o que foi possível diante da realidade da região e do
momento histórico em que a experiência se desenvolveu. No caso das pesquisas realizadas em
iniciativas de trabalho coletivo/associativo como Catende e dos movimentos que trabalham com a
questão, cabe compreender a iniciativa e levantar aspectos que podem ser repensados para outras
propostas. Contudo, como descreve Arnaldo, faz-se necessário compreender como é possível lutar
com as armas que se tem em cada contexto social vivenciado e em cada momento histórico e
político possível.

146
Capítulo 4. Contribuições Feministas à Economia Solidária
Eu comecei a participar no anos 80, foi lá no Morro que eu comecei a
participar. Foi um convite de uma amiga, na fila...na época tinha uns
tickets de leite que distribuíam para as famílias e eu recebia esses
tickets […] Eu fui, gostei, fui gostando e pronto, não parei mais.
Minha formação foi praticamente...foi o movimento feminista que me
formou. Eu terminei os estudos acho que três anos atrás. Quero fazer
uma faculdade, mas não tive tempo, e não estou arrependida por não
ter feito. Está certo, formação acadêmica é bom, mas olha, faço muito
mais coisa que as meninas que estão lá no acadêmico! (Bia –
representante da Rede em grupo político).

A Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana foi criada no ano de 1996
para fortalecer a solidariedade entre mulheres produtoras e para dar visibilidade ao trabalho
desenvolvido por elas nas diferentes Organizações Sociais Produtivas (OSPs) de que fazem parte.
Atualmente a Rede é formada por doze OSPs, que envolvem mulheres participantes de diferentes
grupos informais, associações e cooperativas com atividade produtiva voltada ao artesanato.
A Rede recebe o apoio e é fomentada pela Casa da Mulher do Nordeste (CMN), uma
organização não governamental feminista, fundada em 1980 e localizada no Recife/ Pernambuco.
Em entrevista com a Coordenadora da CMN, ela explicou que a Casa é uma organização
feminista desde a sua criação. Surgiu na década de 80, num período de redemocratização do Brasil
em que uma série de movimentos feministas começam a se articular. Tratava-se da organização de
mulheres militantes de partidos políticos, mulheres lideranças populares e de sindicatos, entre as
quais muitas haviam sido exiladas e entrado em contato com o movimento feminista internacional.
Uma das organizações feministas do período era o “Coletivo Ação Mulher”, que na
convivência com partidos políticos, sindicatos e universidades, discutia, nos chamados “Grupo de
Reflexão”, sobre o lugar das mulheres na sociedade e a opressão a que estavam submetidas.
De acordo com o relato da entrevistada, entre os encaminhamentos de ação prática desse
Coletivo Ação Mulher, estava a demanda por trabalhos que estimulassem a autonomia financeira e
econômica das mulheres, sobretudo das de baixa renda, o que impulsionou a construção da Casa da
Mulher do Nordeste:
O grupo de reflexão trazia essa discussão muito forte da emancipação, da autonomia
econômica, ou seja, a libertação das mulheres se daria a partir do momento em que elas
tivessem o acesso a recursos, autonomia econômica, etc. E digamos que essa libertação, essa
emancipação se daria a partir do momento que as mulheres também tivessem uma renda,
uma autonomia econômica para decidir sobre suas vidas. E foi daí que a Casa surge, e no
contexto do movimento feminista, onde na verdade as bandeiras era liberdade, direito a
decidir pelo corpo, a sexualidade. Isso eram questões mais fortes do próprio movimento
feminista no âmbito internacional e no Brasil depois desse período de pós-ditadura
(Coordenadora da CMN).
147
Deste modo, a CMN surgiu no bojo das organizações feministas no Brasil, tendo como
principal objetivo fortalecer a autonomia econômica e política das mulheres com base no feminismo.
Assim, ela não surgiu vinculada a iniciativas como as de Economia Solidária, mas ela irá se vincular
a essas propostas como um meio de corresponder à possibilidade de construção de estratégias para a
geração de renda de mulheres, tendo as discussões feministas como eixo central.
Cabe destacar que esta questão da iniciativa pesquisada ser anterior à Economia Solidária já
apareceu nesta pesquisa ao ser descrita a experiência da Fábrica Recuperada Catende Harmonia.
Mais uma vez nota-se que muitas iniciativas agrupadas pela chamada ES já existiam anteriormente a
sua formulação. Contudo, observa-se também que, no decorrer do tempo, essas iniciativas ganharam
visibilidade e novas maneiras de atuar a partir dessa relação com a ES. Ao longo deste capítulo essa
vinculação entre ES e movimento feminista será aprofundada.
De acordo com a coordenadora, a Casa experienciou várias formas e estratégias para cumprir
os seus objetivos e atualmente organiza a sua atuação em dois programas: Mulher e Vida Rural, que
busca fortalecer a capacidade produtiva e de participação política das mulheres nos espaços rurais,
mediante a construção de conhecimentos agroecológicos e a auto-organização em Rede; e Mulher
Trabalho e Vida Urbana, que busca fortalecer a capacidade produtiva e de participação política das
mulheres, tendo como perspectiva o Feminismo e a Economia Solidária, a partir da ação em Rede na
região Metropolitana do Recife. Esta última é o foco desta pesquisa.
Por meio desses programas, a Casa da Mulher do Nordeste realiza trabalhos educativos, de
formação econômica e assessoria técnica; contribui para a elaboração de projetos para a conquista de
recursos financeiros; e busca incentivar a auto-organização política por meio da participação das
mulheres em diferentes fóruns, movimentos sociais, atividades feministas e de Economia Solidária.
Esse acompanhamento, por sua vez, segundo a Coordenadora da CMN,
tem como ação estratégica a assessoria técnico-social, que a gente enfatiza como
emancipadora. Então ela não é uma assistência técnica, ela rompe com a ideia da assistência
técnica, mas sim uma assessoria em conjunto com as mulheres, reconhecendo as mulheres
como produtoras de conhecimento. Ela é social, pois ela não é só uma visão técnica, mas
considera todas as relações, desigualdades e todas as condições...racismo, de gênero e tal.
Ela é emancipadora, porque tem essa perspectiva de que as mulheres se constituam como
sujeitos que possam ter autonomia de decidir sobre seu projeto econômico, a sua
intervenção política, incidir na vida política em relação ao acesso aos recursos, tecnologia e
que rompam com essa ideia de assessoria constituída a partir de uma relação de
dependência, mas sim na perspectiva da autonomia. Dizendo isso, a gente também se
considera uma organização que é um sujeito político, que está dentro desse campo, embora
sejamos uma organização de assessoria técnica, mas também uma organização feminista que
está nesse campo e também precisa demarcar.

148
Inicialmente a CMN desenvolvia assessoria para mulheres produtoras de modo individual,
porém perceberam que a proposta de emancipação das mulheres não tinha grandes impactos dessa
forma. Foi assim que elas optaram por incentivar a organização de coletivos de mulheres, os quais
poderiam atuar numa perspectiva de desenvolvimento local, ou seja, não apenas de gerar renda para
uma quantidade de mulheres, mas na tentativa de unir geração de renda e de desenvolvimento de um
bairro ou da comunidade em que elas estivessem inseridas. A ideia era unir as pautas do movimento
feminista à organização produtiva de mulheres pela geração de renda, objetivo difícil de ser
alcançado assessorando-as individualmente.
Nessa perspectiva, a CMN percebeu que em grupos coletivos também seria maior a chance
de essas mulheres participarem de fóruns, de debates, marchas, entre outras atividades organizadas
pelo movimento feminista. Cabe destacar, que as propostas cunhadas pela chamada Economia
Solidária acabam contribuindo com a Casa nessa mudança de perspectiva, na medida em que ela
indica a formação de organizações sociais coletivas, como associações, cooperativas e a formação
de redes.
Em síntese, o projeto político da CMN busca fortalecer a organização produtiva das mulheres
e, ao mesmo tempo, ampliar a representação política das mesmas nos espaços de poder. Também
atua no sentido de inseri-las nas políticas públicas, com o intuito de implementar seus direitos. A
formação de uma Rede de mulheres é uma das estratégias nesta direção.
No que tange ao trabalho de assessoria à Rede, especificamente, a CMN realiza um
acompanhamento das reuniões e contribui com os debates que as representantes das OSPs que
compõem a Rede apresentam. Também apóiam na elaboração de uma agenda, articulando os eventos
dos fóruns feministas, de mulheres negras e de Economia Solidária nos âmbitos regional e nacional,
bem como assessoram na composição de um planejamento das atividades da Rede e na elaboração
de projetos para a captação de recursos ou para a participação de feiras. Além disso, um dos focos
principais da CMN, é o desenvolvimento de cursos de formação e qualificação técnica e política
com ênfase na perspectiva feminista.
Em relação à organização da Rede, cada OSP pertencente elege uma representante para
desenvolver as atividades na mesma. Essas representantes podem convidar mais mulheres do seu
grupo para participar dos encontros mensais que acontecem no espaço da CMN. Esse encontro, por
sua vez, é dividido em dois períodos: na parte da manhã existe uma reunião entre as representantes
da Rede, chamada reunião colegiada, em que elas organizam as demandas para a reunião da Rede
com a CMN, que acontece no período da tarde.

149
Cabe destacar que cada grupo que compõe a Rede desenvolve uma atividade produtiva
diferente e com um ritmo de trabalho também distinto, porém, a base é o artesanato. Alguns grupos
trabalham, por exemplo, com o artesanato em material reciclável. Outros com costura, outros com
confecção, ou acessórios, bolsas, etc. Dessa forma, as demandas por assessoria técnica específica
também são diferenciadas.
As Organizações Sociais Produtivas que compõem atualmente a rede são: 1) Amigas
Preparadas – grupo informal que existe há oito anos e trabalha com reaproveitamento de folhas
secas, bolsas e outros. 2) Ateliê Costurando Arte – grupo informal que iniciou no ano de 2009,
sobretudo com mulheres da terceira idade, que trabalham com a técnica de patchwork. 3) Ateliê
Moda Recife – iniciou em 2004, a partir de um curso de corte e costura oferecido pela prefeitura e se
tornou uma Associação no ano de 2006. Trabalha com customização, especializada em moda praia e
roupas de ginástica. 4) Associação Artes Curado – as participantes fundaram a Associação a partir de
um projeto chamado “Escola Aberta” e trabalham com bolsas, decoração infantil, acessórios e
presentes. 5) Criando Artes – Iniciou-se no ano de 2010 quando um grupo informal de mulheres
juntou suas habilidades em fazer artesanato com material reciclável (PET, CD, disco de vinil,
madeiras). 6) Espaço Mulher – Associação em que trabalham com artesanato, mas o foco é a
organização política das mulheres da Comunidade de Passarinho. Surgiu há treze anos, a partir da
união de um grupo de empregadas domésticas para resolver os problemas do bairro e lutar pelos
direitos das mulheres. 7) L'Artes - Grupo informal com caráter terapêutico que iniciou-se há cinco
anos pela tentativa de mulheres gerarem renda e saírem da depressão. Trabalham com a produção de
porta-chaves, caixas e casinhas de madeira. 8) Mulheres D'Arts – Grupo informal que existe há 5
anos e é composto por mulheres que trabalham com crochê, bordado e pintura em tecido. 9) Pano e
Arte – grupo informal que foi criado há sete anos, a partir de um curso de Estamparia realizado pela
Prefeitura do Recife. Trabalham com estamparia, bordado e crochê, entre outras técnicas. 10) Prazer
de Viver – grupo informal de mulheres da terceira idade que há dez anos se reúnem para
desenvolver atividades lúdicas, recreativas e para aprender o artesanato. Num dado momento,
decidiram fazer da venda do artesanato uma fonte de renda. 11) Grupo de Reciclagem de Brasília
Teimosa – o grupo informal surgiu a partir da iniciativa de uma ONG localizada no Bairro de
Brasília Teimosa que viu a necessidade de iniciar um trabalho com mulheres. Elas passaram a
desenvolver o artesanato, como também a se envolver nas questões da comunidade. 12) União de
Mulheres Artesãs – o grupo de mulheres iniciou suas atividades a partir de um projeto da prefeitura
e atualmente trabalha com costura e artesanato em material reciclado.

150
Esta pesquisa se deu na Rede como um todo, porém, devido ao tempo restrito para a coleta
de dados em outro Estado e a disponibilidade dos grupos, as Organizações entrevistadas foram
selecionadas buscando manter a diversidade da Rede, ou seja, selecionando grupos cujo foco é
essencialmente a produção, outros com foco na formação política de mulheres e ainda um grupo
com ênfase na convivência entre mulheres (grupo recreativo). A partir disso selecionei seis
Organizações Sociais Produtivas que compõem a Rede para realizar as entrevistas e observações.
No primeiro momento da coleta de dados, no ano de 2011, a pesquisa de campo foi restrita
ao espaço da Casa da Mulher do Nordeste (CMN); assim, participei das reuniões e formações que
aconteceram na própria Casa. Também realizei entrevistas com mulheres, sobretudo lideranças, das
seguintes OSPs: Ateliê Moda Recife, Pano e Arte, União + Mulheres Artesãs. Já no segundo
momento, em 2014, além das entrevistas na própria CMN, com uma assessora e com a
coordenadora, estive nas seguintes Organizações Sociais Produtivas: Espaço Mulher, Ateliê
Costurando Arte e Grupo de Reciclagem de Brasília Teimosa. Nesse momento, entrevistei não
somente as lideranças que representam seus grupos na Rede, como também realizei entrevistas
coletivas com as mulheres desses grupos em seus espaços de trabalho. No total, foram realizadas
seis entrevistas com as representantes das diferentes OSPs na Rede, compreendidas como lideranças
nos grupos em que atuam; duas entrevistas com trabalhadoras da CMN (assessora de comunicação e
coordenadora geral); além de três entrevistas coletivas com observações nos espaços de trabalho.
Tendo em vista a composição da Rede de Mulheres Produtoras do Recife, podemos notar
dois aspectos fundamentais e que merecem ser destacados: 1) o caráter distinto de formação de
grupos de mulheres, o que se evidencia pela origem e objetivos de cada Organização Social
Produtiva que compõe a Rede; 2) o artesanato como setor produtivo principal da Rede de Mulheres
Produtoras do Recife. Seguindo neste texto, nos dedicaremos melhor a estes eixos.

4.1. Composição dos Grupos de Mulheres na Economia Solidária


São diferentes os motivos que unem as mulheres em Organizações Sociais Produtivas. A
partir da diversidade que compõe a Rede de Mulheres pesquisada, observou-se que essa motivação
pode ser baseada: a) na necessidade de mulheres se unirem para fugir da depressão e do stress diário
do trabalho reprodutivo. Nesse caso, elas salientam questões como a dificuldade de terem que cuidar
de suas casas sozinhas e não terem espaços de socialização no âmbito produtivo, consequência da
divisão sexual do trabalho que acaba confinando as mulheres no espaço privado. A possibilidade de
se organizar coletivamente acaba, então, suprindo uma necessidade de aprendizado e socialização

151
das mulheres, sobretudo daquelas mais velhas que querem romper com uma trajetória de exclusão.
b) na necessidade de geração de renda. Muitas mulheres necessitam construir autonomia financeira e
já não encontram mais espaço no mercado de trabalho, ou por não terem suas qualificações
valorizadas no mesmo, ou por já estarem excluídas do mercado formal pelas suas idades. A
organização coletiva acaba sendo uma das únicas saídas para essas mulheres terem uma renda. c)
motivação política em torno das desigualdades de gênero. Nesse caso formam-se associações, onde
as mulheres, além de buscarem geração de renda e sentirem-se bem coletivamente, lutam pelos seus
direitos e pelos problemas de suas comunidades pobres.
Cabe destacar que essas motivações se cruzam e se complementam, principalmente com o
passar do tempo e conhecimento das experiências de outros grupos. Contudo, a título de
sistematização e reflexão, esses aspectos acabam traçando um panorama geral que motiva a
formação dos grupos coletivos de mulheres, que nem sempre apresentam os mesmos objetivos.
Essa sistematização faz-se necessária ainda, para a compreensão de que tais motivações e
objetivos dos grupos de mulheres influenciam na forma como esses grupos se relacionam com as
lutas políticas contra as desigualdades de gênero, raça e classe, bem como no envolvimento com as
atividades da própria Economia Solidária.
Segundo algumas pesquisas realizadas no âmbito das relações de gênero na ES (GUÉRIN,
2005, FARIA, 2011), é preciso romper com a visão de que as mulheres se juntam apenas em prol de
atividades comunitárias, recreativas e de lazer. Como mostra a descrição acima identificada, esse
pode ser um dos objetivos, o que não é menos ou mais importante, mas as mulheres também se
organizam por questões políticas e de autonomia financeira, buscando combater nuances
importantes da estrutura social da divisão social, sexual e racial do trabalho.
Porém, a que se considerar, que, conforme explicam Sardenberg e Costa (1994, p. 84), nem
todos os movimentos de mulheres, inclusive aqueles que se organizam na luta por aspectos
específicos à sua condição social de mulher, como pela autonomia econômica, necessariamente
refletem sobre o papel estrutural das mulheres na sociedade. Ou seja, embora haja um condição
estrutural de gênero que as une, o “reconhecimento e questionamento de sua situação na sociedade”
não acontece de forma automática.
As autoras falam em termos de consciência de gênero, que seria pressuposto para as lutas
feministas e para atingir essa reflexão mais profunda em termos de divisão sexual do trabalho que
estrutura a sociedade e que se encontra projetada e reelaborada nas desigualdades vivenciadas por
determinadas mulheres, num determinado momento da história e em diferentes práticas sociais.

152
Citando Thompson, as autoras descrevem que a construção de uma consciência de gênero,
mesmo não tendo as mesmas origens e formas de opressão, guarda semelhanças à construção de
uma consciência de classe. Em Thompson, citado pelas autoras, “a experiência de classe é
determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram. A
consciência de classe é a forma como as experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas
em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais” (TOMPSON apud
SARDENBERG; COSTA, 1994, p. 85).
Sardenberg e Costa (ibid.), por sua vez, parafraseiam o autor trocando a classe pelo gênero e
mostram como os conceitos de consciência de classe e gênero se desenvolvem nos mesmos termos:

O feminismo é um fenômeno que surge quando algumas mulheres, como resultado de


experiências comuns, sentem e articulam as identidades de seus interesses, e os direitos que
lhes são negados em relação aos homens. As experiências comuns são determinadas por sua
situação de sexo subordinado. A consciência de gênero é a forma como essas experiências
são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e
formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com
a consciência de gênero. A consciência de gênero surge da mesma forma em tempos e
lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma (SARDENBERG; COSTA,
1994, p. 85).

Com isso, as autoras tentam mostrar que, refletir sobre as semelhanças entre os processos de
formação da consciência de classe e de gênero, leva a possibilidades de pensar na emergência de
introduzir os recortes de gênero na classe e vice-versa. Cabe destacar que a mesma lógica de
pensamento utilizada para pensar essa construção da consciência de gênero e classe pode também
ser utilizada para pensar a consciência de raça. Dessa forma, tal conceito auxilia a pensarmos a
sociedade em termos consubstanciais, seguindo o objetivo desta tese.
Contudo, isso não significa dizer que as mulheres ou os negros e negras sobre a mesma
condição cultural, econômica e social terão as mesmas consciências em torno da
subordinação/dominação a que estão submetidas. A vida de cada negra, negro e de cada mulher é
“sempre única e tem a sua própria marca” (ibid.). Na trajetória de vida particular, ou nas
organizações coletivas, como aqui analisadas, os níveis da consciência de gênero, classe e raça são
diferentes, assim como as lutas que serão travadas em diferentes momentos e lugares. Porém, como
a pesquisa indica, coletivamente essas questões podem se ampliar e se tornarem consubstanciais,
seguindo os avanços, limitações e objetivos de cada grupo organizado.
Os grupos de mulheres de caráter político desde a sua origem, ou que vão adquirindo esse
caráter na experiência do trabalho coletivo, apresentarão maiores possibilidades para a construção
desta consciência de gênero, ou ainda de classe e de raça, na medida em que são capazes de debater
153
questões que envolvem a vida das mulheres, brancas ou negras, elucidar as contradições do trabalho
delas e ajudá-las a superar algumas limitações.
Mesmo esses grupos apresentam dificuldades de romper completamente com os casos de
violência doméstica ou da divisão sexual do trabalho das mulheres fora da Organização Social
Produtiva de que fazem parte. Porém, eles apontam maior potencial nessa direção, já que não se
limitam à questão de renda e se dedicam ao cruzamento das categorias de classe, raça e gênero ao
discutir, por exemplo, direito das mulheres negras na comunidade, questões sobre o abuso sexual de
adolescentes, o trabalho das mulheres, etc.
Já os grupos que se reúnem apenas em torno da geração de renda, se analisados a partir de
autores como Castel (2005) e Quijano (1998), descritos no primeiro capítulo desta pesquisa, eles
corresponderiam a tentativas compensatórias diante da degradação das condições de trabalho
assalariadas, tratando-se, mais de experiências voluntaristas e assistencialistas incentivadas por
agências de fomento à ES, do que de iniciativas advindas da ideologia dos trabalhadores ou de
movimentos sociais organizados.
Muitos dos grupos pesquisados de fato advêm do incentivo de políticas públicas locais
direcionadas à população de baixa renda. Observou-se que na Região Metropolitana do Recife, as
políticas públicas influenciaram o surgimento de uma série de grupos produtivos como medida de
luta contra o desemprego, por meio de cursos técnicos de capacitação, como os de artesanato,
costura, etc. Dos seis grupos entrevistados, pelo menos três são resultado direto desses projetos, mas
tais políticas, mesmo agrupadas pela denominada Economia Solidária, não enfatizam
necessariamente a consubstancialidade das relações de classe, raça e gênero, o que dificulta os
caminhos de construção de consciência de classe, raça e gênero nos grupos cujo foco é apenas a
geração de renda ou a convivência.
Como explicou uma das entrevistadas, em meados de 2004, a prefeitura oferecia vários
cursos de capacitação para a população, em diversas áreas. Os cursos eram oferecidos com recursos
do Fundo de Amparo ao Trabalhador e em parceria com o SENAE e SEBRAE, sendo que uma das
propostas era que ao fim dos cursos fossem formados grupos produtivos na tentativa de combate ao
desemprego, sem grandes pretensões de articulação com outros movimentos sociais.
Contudo, e agora remetendo a análises de autores como Gaiger (2004) e Coraggio (2003),
mesmo tendo o interesse apenas da geração de renda, esses grupos precisam ser analisados
refletindo sobre a resposta que conseguem atingir para os seus objetivos, no caso, a geração de renda
para mulheres excluídas do mercado de trabalho.

154
É interessante notar que mesmo entre os grupos definidos como de convivência entre
mulheres, tais como aqueles da terceira idade ou que se formaram com a motivação de estar entre
mulheres fazendo artesanato, a grande maioria aponta a atividade realizada como um trabalho, e
depois acrescentam a ideia de terapia, distração, ou ainda passa tempo.
Mesmo nesses grupos, na prática e pelas suas trajetórias de vida e de trabalho, as
entrevistadas acabam sentindo a diferença entre os trabalhos antes realizados e o trabalho coletivo.
Uma delas, por exemplo, relatou que era muito explorada e humilhada na empresa de costura em
que trabalhava e decidiu sair de seu emprego para trabalhar com outras mulheres:
Eu trabalhava com confecção, eu me sentia uma escrava porque não era justa a forma de
trabalho. Eu era explorada demais. Era uma quantidade enorme de produção para uma
quantidade irrisória. A minha maneira de me sentir mal lá era porque as costureiras que
faziam a produção e sustentavam a empresa eram vistas como a pior função e isso me
incomodava. Por exemplo, era uma empresa enorme, mas que as costureiras tinham limite.
Ela não passava dessa sala, naquela sala só podia ser a encarregada, só podia ser de outros
cargos. A gente era diferenciada por camisa e ai se a gente chegasse perto! Então era uma
estratégia deles para limitar o espaço da gente para tudo. “Vocês são costureiras, o que estão
fazendo aqui?” Então era uma forma de controlar a nossa vida. Uma vez esqueci de mudar a
camisa, porque tinha que sair dez da noite; na pressa me barraram na saída e eu tinha que ser
revistada por uma mulher, e tinha que tirar a roupa, porque eles falavam que tinha incidência
de roubo. Eu disse, não tiro eu não preciso ficar roubando camisa, eu não tiro... (Cleusa -
representante da Rede em grupo de costura).

Observa-se, neste caso, que a escolha pelo trabalho coletivo está atrelada às condições de
opressão no trabalho que a entrevistada experimentou em sua vida. Logo, a motivação dela pelo
trabalho coletivo é econômica e a melhora sentida se dá em comparação com trabalhos anteriores.
Isso acaba sendo consequência do fato de muitas mulheres, principalmente negras e com baixa
escolaridade, serem exploradas em trabalhos precários e mal remunerados no mercado formal, tal
como elucidado no segundo capítulo desta pesquisa, encontrando outras possibilidades na
organização coletiva.
A entrevistada explicou que a maior parte das mulheres que entram no Ateliê para trabalhar
como costureira de fato visa à renda, pois são mulheres com baixa escolaridade e que estão
desempregadas. Inicialmente, poucas estão preocupadas em trabalho coletivo como contestação da
exploração capitalista que sofrem. Contudo, ela avalia que, ao longo do tempo, a motivação e a
consciência em torno do trabalho também se ampliam:
As pessoas que entram no Ateliê, elas não entram por isso, elas entram pelo dinheiro sim.
Mas quando entram, a gente explica o processo de trabalhar: não é uma empresa, não é um
trabalho formal, é um trabalho coletivo, só ganha se tiver produção, se você vier e trabalhar
você ganha, tudo é decidido no coletivo, você pode participar de vários espaços de
formação...(Cleusa - representante da Rede em grupo de confecção).

Portanto, por participarem da Rede e estar em contato com outros grupos e com as formações

155
proporcionadas pela Casa da Mulher do Nordeste, bem como por proporcionar o encontro de
diferentes mulheres com distintas trajetórias de vida, essas OSPs podem apresentar chances de
ampliar o seu potencial de organização política e de construção de consciência de classe, gênero e
raça. Esses grupos apresentam em comum a característica de serem grupos que buscam suprir
necessidades de mulheres, sejam elas financeira, psicológica ou social e, a partir disso, novos
caminhos podem ser traçados na tentativa de romper desigualdades enfrentadas pelas mulheres
numa sociedade consubstancial.

4.2. Mulheres X Artesanato: reprodução ou re-significação?


Conforme descreve Nobre (2011), a maior parte das mulheres na ES se envolve em
profissões desqualificadas, com serviços que necessitam de baixa tecnologia e que muitas vezes
reforça o imaginário de desigualdades em torno do papel social da mulher e dos lugares que elas
devem ocupar. O artesanato seguiria nessa direção.
Tal como identificado no mapeamento de Economia Solidária, além de predominarem nos
empreendimentos menores, com menos de 10 sócios, as mulheres se encontram em atividades de
fabricação de produtos têxteis e em atividades como costura, produção de alimentos e de bebidas, as
quais se referem ao segmento tradicionalmente feminino tanto no mercado de trabalho formal como
nas experiências de trabalho coletivo/associativo.
Nesta pesquisa observou-se que essa polêmica é de fato uma preocupação da CMN enquanto
organização que trabalha com mulheres de baixa renda. Isso porque, se de um lado o artesanato
proporciona a possibilidade de organização coletiva de mulheres e de geração de renda, de outro ele
reforça os trabalhos historicamente destinados às mulheres, não valorizados socialmente e que as
manterão numa posição de desigualdade no mercado de trabalho, seguindo a lógica da divisão
sexual do trabalho já discutida nesta tese.
Em entrevista com a Coordenadora da Casa da Mulher do Nordeste, ela explicou que o
artesanato não era o foco inicial da assessoria realizada. Porém, essa era a atividade que a maior
parte das mulheres demandava, pois muitas já haviam aprendido esse ofício em suas trajetórias de
vida como mulheres, ou então, era a atividade com a qual mais se identificavam. Além disso, muitos
cursos a elas oferecidos nos projetos de políticas públicas que participam, acabam sendo vinculados
a este setor. Assim a CMN resolveu encarar essa problemática no âmbito da discussão feminista e
defender o artesanato como possibilidade de atividade produtiva, desde que os grupos de mulheres
estivessem articulados em Rede, com ênfase na participação nos Conselhos, reuniões e Fóruns

156
feministas, bem como com ênfase na qualidade e sentido da produção:
A Casa não é uma organização que trabalha com assessoria ao artesanato, tem todo um
processo em discussão, por exemplo, da identidade do grupo...se elas têm mais habilidade
para produzir linhas no bordado, como pode ter um valor agregado do artesanato daquela
região, uma identidade local? Como desenvolver um trabalho mais interessante na área de
confecção? Então a gente fez uma investida grande na Rede, porque o que a gente vem
percebendo era que vinha avançando no aspecto político, da organização, mas a produção de
artesanato estava muito ruim. E quando a gente ia para discussão mesmo em cima da
produção, por exemplo, participação na Fenearte, que é a Feira Nacional e Internacional de
Artesanato, a gente fazia um processo bem interessante, de todas trazerem seu produto e elas
próprias avaliavam. Mas é uma relação de apego tão grande, e de resistência, de que aquele
paninho de prato ali, era o que fulana gostava mesmo de fazer. Então são nuances: como
levar isso para outra dimensão? Porque assim, você quer realmente que essa produção te
traga um retorno monetário, ou aquilo ali é uma outra questão; e a gente também pode deixar
de lado isso. Ou seja, tem um componente ali que é fundamental para minha pessoa, eu me
identifico e aquilo faz eu me realizar. São questões da subjetividade que a gente precisa
começar a considerar (Coordenadora da CMN).

Nessa fala, a coordenadora da Casa enfatiza a contradição entre o reconhecimento que essas
mulheres sentem ao trabalhar com o artesanato, visto que elas gostam, acham bonito e conferem
sentido ao que desenvolvem, e o espaço deste mesmo artesanato no mercado de trabalho capaz de
gerar renda para essas mulheres. A entrevistada se questiona sobre o que deve ser de fato priorizado.
Ela reforça que o artesanato pode ser uma estratégia para unir as mulheres em lutas mais
amplas. Mas também poderia ser uma estratégia para repensar o próprio feminismo a partir da
subjetividade das mulheres. Ou seja, a partir do que elas gostam de fazer, identificam-se e que faz
sentido na vida delas, já que muitas perderam suas referências de sentido em tantas outras atividades
a elas destinadas, tal como o serviço doméstico em casa de família ou a exploração no mercado de
trabalho em fábricas de costura.
Na fala das mulheres entrevistadas aparece a relação que possuem com o artesanato em suas
vidas, inclusive como atividade que as leva a ter uma profissão: “se não fosse o artesanato a gente ia
ficar louca...é marido, é filho, é casa, isso estressa”; “a gente fica mais valorizada, a gente tem mais
uma fonte de renda, a gente se sente útil na vida. Pode dizer eu tenho uma profissão, sei fazer
artesanato. Eu acho que é algo que valoriza a auto-estima da mulher” (entrevistas coletivas).
Foi observado ainda que muitas delas não se reconhecem como artesãs, ou por
compreenderem que a atividade principal que possuem é o trabalho doméstico e o artesanato seria
uma complementação de renda; ou por não valorizarem o seu trabalho com potencial de um artesão.
Apenas depois de terem feito alguns cursos é que se reconhecem como profissionais do artesanato,
mas esse qualitativo na profissão delas ainda está sendo construído.
Cabe destacar que o artesanato segue a lógica da divisão sexual do trabalho em três

157
principais sentidos. O primeiro porque houve uma desvalorização desta atividade ao longo da
história na medida em que ela passou a ser desenvolvida pelas mulheres. O segundo é que o
artesanato, como atividade realizada no espaço privado da casa, representa uma atividade
desempenhada pelas mulheres e, portanto, não apresenta grande valor social. Por fim, o terceiro
aspecto é a separação entre artesanatos desenvolvidos por mulheres, como aqueles cuja matéria-
prima são rendas, linhas, materiais recicláveis, etc; e os desenvolvidos por homens, com madeira,
cerâmica, couro. Esses últimos, por sua vez, tendem a ser mais valorizados socialmente (SAFFIOTI,
1981, BECKER, 2012).
Conforme explica Saffioti (1981), o artesanato se destaca como um modo de produção
encontrado em distintos povos desde os mais primitivos aos mais modernos. Ele teve o seu auge
durante a idade média, sendo desenvolvido por homens e mulheres. A autora observa, no entanto,
que as mulheres não eram comumente aceitas como artesãs nas oficinas do período. Quando
encontradas, elas trabalhavam na confecção de roupas e na tecelagem.
Já com a passagem para a Revolução Industrial, o artesanato deixou de ser uma produção
valorizada e as mulheres passaram a realizar este ofício, sobretudo com tecido, bordado e agulha, no
âmbito da esfera doméstica. Ao longo da história, os ofícios de tecer e bordar continuaram sendo
reconhecidos como femininos e como atividade manual desenvolvida em casa, o que acabou
relacionando a atividade às mulheres (ibid.).
Nas entrevistas realizadas foi observado que as artesãs reconhecem a dificuldade de
valorização social desta profissão, principalmente pelo aspecto financeiro:
Se dependesse de mim, não tem coisa melhor do que trabalhar com aquilo que a gente gosta.
Eu adoro fazer artesanato, mas infelizmente, como eu te falei, o artesanato aqui em
Pernambuco é muito pouco valorizado, e como não tem valor, infelizmente a gente busca
outros meios de melhorar a renda familiar. Houve uma época que eu sobrevivia de
artesanato, participava de todos os espaços, de feira, inclusive o grupo nosso, mas agora não
consegue mais (Zilda – representante da Rede em grupo de artesanato/político).

Nota-se assim que a questão da opção pelo artesanato ainda não está concluída nem para a
CMN, nem para as mulheres produtoras, mas ela apresenta dois lados contraditórios a serem
debatidos e trabalhados no interior da Rede: um deles é a desvalorização histórica da profissão,
sobretudo por ser vinculada as mulheres, o outro é que esta atividade tem possibilitado que elas
unam-se em Rede e busquem alternativas de geração de renda.
Cabe destacar que o fato de estas mulheres estarem em Rede acaba possibilitando um
sentimento de pertencimento e de apoio mútuo em que ampliam a valorização de seus trabalhos. Ou
seja, elas não estão sozinhas em suas casas como pequenas artesãs realizando um trabalho não
158
valorizado, mas estão vinculadas a uma Rede, a outras mulheres e a uma luta. Assim, nesse apoio
mútuo, elas criam laços na tentativa de superar não só as dificuldades econômicas, como também
problemas em outras esferas de suas vidas. Muitas relatam que começaram a se sentir mais
valorizadas profissionalmente e com maior auto-estima, o que mais uma vez se apresenta como um
aspecto positivo da organização coletiva que ressignifica o trabalho das mulheres.
Nessa direção, cabe ampliar um pouco mais o debate da relação entre feminismo e Economia
Solidária, na medida em que a organização coletiva ganha novas nuances e valor social por se tratar
de grupos formados exclusivamente por mulheres, o que muitas vezes não é explorado pela ES.

4.3. Economia Solidária e Feminismo: um diálogo necessário e contraditório


Um dos motivos apresentados pela Casa da Mulher do Nordeste para iniciar um trabalho
voltado à Economia Solidária era o fato de ela apresentar um campo que parecia fértil e coerente
com o feminismo, na tentativa de construir outro conceito de trabalho que envolvesse não apenas a
ideia de geração de renda, mas que, ao repensar o próprio sentido social do trabalho, pudesse
incorporar e valorizar o trabalho invisível realizado pelas mulheres.
Dessa forma, o objetivo era debater os âmbitos dos trabalhos produtivo e reprodutivo,
refletindo como essa “outra proposta” de sociedade traria à tona essa relação. Nas palavras da
Coordenadora da Casa, se a ES anunciava uma proposta de autogestão que se “contrapunha a esse
modelo que está aí, um modelo de organização produtiva e social que alimenta o sistema
capitalista”, logo essa proposta deveria repensar o modelo de trabalho valorizado socialmente, com
ênfase na divisão sexual e racial do trabalho que hierarquiza o sexo e a cor de quem o realiza.
Contudo, ao longo do processo de participação da Casa da Mulher do Nordeste nos espaços
de Economia Solidária, elas foram percebendo que esta seria uma longa discussão e que a mudança
de perspectiva do conceito de trabalho não estava pronta, nem mesmo para a Economia Solidária.
Isso foi observado na medida em que as mulheres não eram destacadas como pertencentes à ES e
não eram sujeitos políticos protagonistas das Organizações Sociais Produtivas, embora fossem a
maior parte nas mesmas. Além disso, temas fundamentais como a divisão sexual do trabalho, a
violência contra a mulher e a participação política delas não eram nem sequer mencionados nos
espaços de construção da ES.
Como explicitado no primeiro capítulo desta tese, ao participar dos espaços de ES como
possibilidade de organização coletiva, alguns grupos feministas começam a se questionar: “onde
estão as mulheres nesse movimento?”

159
Enquanto instituição, a gente começa a ter uma participação ativa na ES, eu acho que em
2000. Aí começa o primeiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre, também as discussões
sobre o primeiro governo Lula, a própria proposta do governo Lula pela criação de uma
instância de economia solidária dentro do Estado, e a gente vai participando. Num âmbito
mais local também teve a gestão de João Paulo, do PT, que organiza uma diretoria da ES
composta por pessoas que vêm dessa discussão e querem mudar essa perspectiva, não da
geração de emprego e renda, mas nesse sentido mais político de uma outra forma de
conceber as relações produtivas, econômicas, etc. A Casa acaba entrando também nessa
história. Mas a gente começa a se deparar com essa questão do que é ES. Legal, é uma
proposta transformadora das relações de trabalho, do trabalho associativo, divisão social do
trabalho, autogestão e relações de poder. E as mulheres, onde que estão as mulheres?
(Coordenadora da CMN).

Dessa forma, a CMN começa a perceber que a ES, embora fosse um movimento que
indicava outra forma de organização social do trabalho, não incorporava a pauta sobre o trabalho das
mulheres em relação de igualdade com os homens, nem mesmo nas coordenações dos Fóruns e
muito menos como discussão a ser encarada pelas OSPs de trabalhadores e trabalhadoras:
A gente começa a pautar isso dentro da própria institucionalização e entramos na
coordenação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, que é composta por coordenações
do Estado, e a gente entrou de cabeça nisso naquele momento. Aí a gente foi percebendo as
dificuldades, não só da representação do próprio fórum, porque se você olhava você via que
a coordenação era toda composta por homens. Não havia uma organização das mulheres
dentro dessa instância no âmbito nacional. Aí a gente começou “bom, precisamos de uma
organização feminista, mas com que aliadas?”. Aí, mais ou menos no mesmo momento,
começa uma discussão também que é da rede Economia e Feminismo, que é na verdade um
braço da Rede de Mulheres Transformando a Economia, e no pano de fundo a própria
Marcha Mundial começa também a criar um corpo. Na verdade é uma rede de estudos e
debate, um espaço de reflexão sobre essa discussão, mas começa a ficar muito claro pra
gente que precisa reafirmar que existe uma economia feminista. O próprio movimento
feminista já trazia de uma maneira geral enquanto pensamento e princípios, já repensados, a
divisão sexual do trabalho, mas da importância de conceber que existem feministas,
economistas, estudiosas, que têm uma análise crítica da economia neoclássica, que coloca a
questão do trabalho reprodutivo...e a gente começa a se aproximar mais disso, através dessa
rede de pensadoras. Isso vai nos ajudando a nos direcionar e dizer que é por aí mesmo.

Tal como explicitado, foi preciso uma aliança entre diferentes movimentos feministas e a
organização de uma rede em torno da economia feminista para que a questão das mulheres e as
pautas dos movimentos feministas começassem a ganhar algum espaço no campo da Economia
Solidária. A CMN tem uma contribuição fundamental nesse processo, principalmente porque o
feminismo é a sua base principal e é a partir desta concepção que ela inicia a relação com a ES.
Cabe destacar que as participantes da Rede também se questionam sobre essa invisibilidade
das mulheres na ES. Embora não façam a mesma discussão em torno da conjuntura nacional, como
a coordenadora da Casa, elas reforçam que: “tem que buscar o espaço das mulheres na ES, créditos,
essas coisas” (fala de entrevista coletiva). Ou ainda como expressou Sara ao reafirmar o não
reconhecimento sobre a importância do trabalho das mulheres em suas comunidades:
Recentemente o ministro Gilberto Carvalho disse que nós somos invisíveis. A gente pode

160
ser invisível para o senhor, mas para a nossa comunidade e para a minha produção não. A
gente pode não ser o quantitativo em número que o governo quer, mas nós existimos. E a
gente quer fazer um trabalho de formiguinha dentro da nossa comunidade, mas a gente é
mulher que faz diferença (Sara - representante da Rede em grupo de costura).

Também é destaque a fala de Vilma ao questionar as implicações práticas que dificultam o


trabalho das mulheres na Economia Solidária justamente por não buscarem medidas que procurem
facilitar o trabalho das mulheres:
Nós somos maioria dentro dessa conferência, então tem que entrar a questão de gênero. A
gente está fazendo isso, ainda está dialogando, a gente está tentando construir um
documento, na realidade um panfleto, com todas as propostas de economia solidária mais
voltada para as mulheres. Por exemplo, a questão de ter espaços para as crianças nos locais
de comercialização, porque a gente sabe que a maioria é mãe, não tem onde deixar a
criança...então isso pode facilitar a participação das mulheres nos espaços. Ter esse olhar de
gênero é necessário (Vilma – representante da Rede em grupo de artesanato).

A coordenadora da CMN explica como foi a participação da Casa nessa relação com os
Fóruns de Economia Solidária. Ela descreve que durante a Quarta plenária, o movimento feminista
conseguiu se organizar e preparar um material para distribuir durante a plenária a fim de visibilizar a
necessidade dessa discussão. Contudo, ela aponta que no documento final organizado pelo Fórum
Brasileiro de Economia Solidária - FEBES, isso não apareceu com a devida relevância.
Já na Quinta plenária elas conseguem voltar com mais força e formalizar o GT de Mulheres
no FEBES, bem como elaborar uma carta específica reivindicando o espaço das mulheres na ES.
Nesse momento houve avanços, que, por sua vez, foram vivenciados por cerca de três anos, mas na
atualidade a Casa avalia que houve um retrocesso. Ao mesmo tempo, a entrevistada indica que a
conjuntura nacional não está favorável e a ES vem perdendo sua força, o que atinge a discussão que
vinha aos poucos sendo feita:
Acho que a gente vive um momento sem animação, com pouco estímulo para conceber esse
lugar coletivo, porque as práticas continuam de ES, nas formações, na construção de
romper com essa cultura individualista, criar cooperação, mas nosso campo político está
fragilizado...e quando se vem para a discussão das mulheres, discussão racial, é muito mais
difícil. Eu acho que a gente já bateu tanto, já se desgastou tanto, tantas tensões, que a gente
às vezes pensa “vamos dar um tempo, não sei o que vai rolar, vamos gastar energia em
outra coisa que tenha resultado, isso aqui não vai dar”. E isso não é só um sentimento
nosso, que somos uma organização, é das demais mulheres, que estão se afastando e
dizendo que não conseguem ter acolhimento, não conseguem se ver ali [...] Hoje em
Pernambuco foram criados os fóruns municipais, então minha amiga tem o Fórum de
Recife, o Fórum Metropolitano, Fórum de Camaragibe...você imagina o que é isso, um
movimento que ainda não conseguiu consolidar o que quer, e não é brincadeira, você tem
que ter uma capacidade nessa ação estadual muito grande pra juntar isso. A Casa tomou
uma decisão que é Fórum de Economia Popular do Estado, mas acha que esses fóruns
municipais vêm fragmentando, e eu acho que está sendo o mesmo com as mulheres. Por
mais que a gente esteja o tempo inteiro fomentando para que a Rede de Mulheres
Produtoras da Região Metropolitana esteja no fórum, as mulheres estão cada vez mais se
ausentando. Então há de se pensar novamente que estratégia nós vamos criar nesse sentido.

161
Na entrevista, a coordenadora explicou que a CMN está passando por um momento de
colocar essa discussão nos GTs e Fóruns a fim de buscar soluções, mas não avalia positivamente a
criação de tantos fóruns que acaba descentralizando a discussão e dificultando a participação,
sobretudo das mulheres pela carga de trabalho doméstico e produtivo. Elas consideram que não
podem sair desses espaços, pois se isto acontecer a discussão fica ainda mais frágil, mas sente a
necessidade de buscar outras estratégias de participação.
Há que salientar ainda uma frase importante desta fala: “o movimento ainda não conseguiu
consolidar o que quer”. Com isso a entrevistada resgata uma questão importante ao olharmos para a
trajetória da ES revista no primeiro capítulo, uma vez que, de fato, as definições de ES transitaram
em diferentes frentes e foram modificadas significativamente ao longo de seus traze anos. Num
primeiro momento encontram-se definições mais combativas em relação ao próprio conceito de
trabalho, buscando formas coletivas de organização diferenciadas da dominante do capitalismo. Foi
nesse momento que muitas feministas se identificaram com a proposta da ES na tentativa de
valorização do trabalho reprodutivo das mulheres e de combate à divisão sexual do trabalho.
Contudo, com o passar do tempo, essa conceitualização foi perdendo o seu rigor de transformação
social, o que prejudicou a conquista dos objetivos das feministas ao se juntarem a essa proposta.
Assim, embora ainda possamos identificar um campo fértil para que a ES contribua com a
luta feminista e vice-versa, podemos notar que parece existir um abismo entre a ES e o movimento
feminista. Essa relação precisaria ser ampliada numa direção de desnaturalizar a separação de
público e privado, produtivo e reprodutivo, na revisão do próprio conceito de trabalho, bem como
introduzindo seriamente a complexidade da divisão sexual e racial do trabalho na ES. Segundo
Guérin, Hersent, Fraisse (2011), faz-se necessário repensar a relação entre a prática solidária e o
espaço privado doméstico, recolocando o olhar para o trabalho do cuidado das pessoas como uma
esfera mantenedora e relacionada ao mundo produtivo, bem como selecionando novas pautas a
serem refletidas.
Entre os desafios identificados no diálogo entre Feminismo e Economia Solidária, encontra-
se também a dificuldade das mulheres em formalizar suas Organizações Sociais Produtivas, o que
possibilitaria elevação da renda e maior acesso aos créditos sociais, bem como ampliação dos
direitos do trabalho das mulheres, conforme esta pesquisa se dedica a seguir.

162
4.3.1. Direitos do trabalho e créditos para mulheres pobres: um luxo à parte
Segundo, Faria (2011), foram poucos (11%) os empreendimentos formados por mulheres que
conseguiram créditos até o ano de 2011, e os que conseguiram apontaram que o crédito acessado foi
pequeno. Isso acaba tendo como consequência a informalidade de muitos grupos de mulheres no
país, tornando-os cada vez mais frágeis e relegando às mesmas os direitos do trabalho.
Em pesquisa realizada para identificar o perfil da Rede68 e publicada no livro intitulado
“Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana” (SANTOS; CASTRO, 2013), foi
identificado que as trabalhadoras reclamam da falta de recursos para capital de giro nas
Organizações e que 67,7% estão na informalidade. Muitas disseram que não conseguem acessar
créditos sociais e que chegam a negar encomendas por isso.
No que tange à subsistência econômica dessas Organizações Sociais Produtivas, 53% das
mulheres declararam que recebem até 1 salário mínimo e 34% chegam até 2 salários mínimos. As
que têm maiores rendimentos recebem também pensões, aposentadorias ou auxílios governamentais
como o bolsa família (58% das entrevistadas recebem bolsa família). A maior parte delas não
sobrevive apenas da OSP. Já em relação ao faturamento mensal dos grupos, 39% disseram não saber
exatamente, 14% disseram entre 100,00 e 500,00 e 11% recebem até 100,00. Outros 14% não está
faturando quantia alguma por não ser o foco do grupo (trata-se das associações e grupos políticos).
Esses dados apresentam alguns desafios em relação à autonomia e à capacidade financeira
dos grupos de mulheres na Economia Solidária, além de indicarem a tendência da reprodução da
divisão sexual do trabalho nas iniciativas coletivas. De maneira geral, conforme apontam os dados
do SIES, os grupos de mulheres são pequenos (elas predominam nos empreendimentos com menos
de 10 sócios); sem grandes capacidades de articulação de recursos, em setores pouco rentáveis (a
maior parte delas está na fabricação de produtos têxteis, atividades de costura, produção de
alimentos e de bebidas), o que diminui o valor social dos mesmos e as suas capacidades de
conseguirem créditos solidários.
Como consequência, a autonomia financeira almejada pelas mulheres nem sempre é
conquistada, o que se coloca com dificuldade para manterem a participação nessas Organizações
Sociais Produtivas, principalmente naquelas cuja vinculação ao grupo é essencialmente pela
demanda financeira, capaz de tirá-las da situação de pobreza e dependência.

68
Trata-se de uma pesquisa encomendada pela Casa da Mulher do Nordeste para fazer um diagnóstico do perfil das
mulheres da Rede. A pesquisa foi coordenada pela CMN e executada pela Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e
Ação Social – Etapas. Após a realização da mesma foi organizada uma publicação com os principais resultados
(SANTOS; CASTRO, 2013). Participaram da pesquisa 62 mulheres das Organizações que compõe a Rede.
163
Há que salientar que desde 1995 foi reconhecido, durante a Quarta Conferência Mundial da
Mulher, realizada em Beijing, que existe um fenômeno denominado feminização da pobreza. Tal
fenômeno significa que o número de mulheres vivendo em condições de pobreza vem aumentando
desproporcionalmente ao número de homens, o que indica que carências relativas à pobreza são
mais intensas entre as mulheres, sobretudo entre as mulheres negras (ISERHARD, 2011). Segundo a
socióloga jurídica Iserhard (2011), a Conferência também indicou que o acesso a créditos para
mulheres é um dos meios necessários para erradicar a pobreza feminina.
No Brasil, o acesso ao crédito para mulheres está elencado como uma das prioridades para o
alcance da igualdade entre homens e mulheres no mundo do trabalho, tal como explícito no II Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres69 que descreve o objetivo de: “Promover a autonomia
econômica e financeira das mulheres por meio da assistência técnica, do acesso ao crédito e do
apoio ao empreendedorismo, associativismo, cooperativismo e comércio”.
Porém, muitas mulheres, principalmente vinculadas a grupos informais, não sabem como
acessar esses créditos, o que acaba sendo um dos motivos da vinculação em Rede, no sentido de ter
acesso a informações sobre editais e políticas públicas destinadas às mulheres pobres que se
vinculam a grupos coletivos de produção.
As entrevistadas relataram que antes de terem acesso à informação sobre créditos sociais
buscavam o Microcrédito; este, porém, existe mais como um instrumento de financiamento a
empresários informais e pequenas empresas, não incluindo os grupos de mulheres informais que
descrevemos. Além disso, para acessar os microcréditos há uma série de exigências burocráticas dos
credores convencionais: “elas não conseguiam crédito porque os bancos achavam que era uma
atividade insignificante, ou, por uma série de exigências, de fiador e tarará” (Coordenadora da
CMN).
Esse é, portanto, mais um dos motivos que levou a Casa da Mulher do Nordeste a se vincular
à Economia Solidária e pensar em grupos coletivos, visto que mesmo que os grupos continuem na
informalidade, as possibilidades de acesso a créditos, ainda que escassas, são maiores. Na ES existe,
por exemplo, a discussão de fundos coletivos, rotativos e finanças solidárias em que, minimamente,
as pessoas fazem parte e discutem o que vão pedir, como gastar, etc.
Então isso, construir com elas, chegar a elas, ouvi-las. E aí? A gente quer que as mulheres
gerem renda, mas a gente quer de qualquer jeito, qualquer coisa, que se rachem de
trabalhar? A gente quer que elas não tenham visibilidade pelo que elas fazem, que não sejam
reconhecidas? Aí foi quando a Economia Solidária nos ajuda a compreender: então tem toda
a discussão sobre finanças solidárias, os fundos rotativos solidários […] A gente construiu

69
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/II_PNPM.pdf
164
um fundo rotativo de mulheres, houve uma primeira proposta da Secretaria Nacional da
Economia Solidária das finanças solidárias, e a gente resolve fazer uma experiência que deu
certo (Coordenadora da CMN).

Observa-se nesta fala que a Coordenadora da CMN enfatiza a importância dos créditos
sociais para as mulheres e não apenas aqueles das políticas públicas, mas também os fundos
solidários organizados coletivamente e em Rede como alternativa possível diante da dificuldade de
acessar os primeiros. Contudo, a discussão não se limita a isso, já que ela revela a importância de as
próprias mulheres das OSPs decidirem os destinos desses créditos, bem como a importância de
associar formação política ao acesso a créditos. Tais observações indicam mais uma vez neste
trabalho de pesquisa, a necessidade de criação de créditos solidários coerentes com as iniciativas das
OSPs. Essa coerência está atrelada ao aumento de créditos sociais, ao fato de os próprios grupos
decidirem os destinos dos mesmos, bem como créditos que vinculem formação política, técnica e de
gestão coletiva coerentes com as propostas de ES. O que ainda se apresenta como um grande
desafio, sobretudo para as OSPs de mulheres.
Além dessa discussão do direito das mulheres pobres aos créditos sociais no combate da
feminização da pobreza, tem-se uma outra discussão que a complementa, a saber: o direito do
trabalho para essas mulheres.
Se na experiência anterior analisada, em Catende, os homens reclamavam e exigiam a
qualquer custo os seus direitos trabalhistas, aqui, as mulheres, habituadas a não os terem, dizem que
essa não é a principal questão para elas, apresentando nova contradição.
As mulheres entrevistadas, por exemplo, entendem que não se pode falar em direitos
trabalhistas para um determinado grupo de mulheres, seja nas iniciativas de trabalho
coletivo/associativo, seja no mercado de trabalho formal, já que muitas delas já faziam parte do
mercado informal, precário e sem acesso a tais direitos. Para elas, a luta das mulheres pobres e
negras é por acesso a uma série de outros direitos, inclusive de direito ao trabalho, e não
necessariamente direitos do trabalho. Trata-se, sobretudo, das mulheres dos segundo e terceiro
grupos classificados na pesquisa, ou seja, maior parte negra, mãe, com baixa formação para o
mercado de trabalho e com uma série de qualificações não valorizadas socialmente, e que ainda não
conquistaram os direitos legais do trabalho.
De maneira geral, essas mulheres eram trabalhadoras domésticas, terceirizadas, não
contratadas formalmente, logo, elas querem renda, trabalho digno e menos exploração. O direito
trabalhista seria um luxo à parte:
A Economia Solidária está fora de direitos trabalhistas, começa logo aí. Vocês precisam
entender como a gente trabalha. A Economia Solidária é uma economia paralela. Então a
165
gente não está preocupada em férias e décimo terceiro, não. As pessoas querem ter uma
forma de trabalhar que não seja imposta por alguém ou por um grupo, certo? Que não
precisem se matar de trabalhar, perderem a saúde por conta disso, está entendendo? Isso não
é que eu vou comprar um Alpha Romeu nem um Mustangue não (risos), mas que eu tenha
uma casa, o dinheirinho da minha feira, se eu precisar comprar um negocinho extra e que eu
viva... (Sara - representante da Rede em grupo de costura).

Ao falarmos em direitos trabalhistas, as entrevistadas ampliam a discussão para a questão da


qualidade de vida e para a necessidade de menor exploração no trabalho. Outras ampliam a
discussão para a conquista de políticas públicas para os pobres. Ou seja, elas querem ter o direito ao
trabalho, mas também querem ter direito à saúde, educação, creches para os seus filhos, etc.
...que eu tenha direito à qualidade de vida [...] quando a gente vai falar em direitos e
políticas públicas, a gente vai ver que não tem o que a gente quer. Existe para a maioria dos
ricos. Então a gente se insere no meio das discussões políticas para demandar isso aí:
moradia, saúde, educação. Creche para os nossos filhos, porque muitas vezes a gente
trabalha, mas as crianças não têm onde ficar. É uma escolha, é nossa, mas a gente quer ter o
direito da política pública, de deixar os nossos filhos numa boa escola, numa creche próxima
da comunidade mesmo... (Cleusa - representante da Rede em grupo confecção).

Olha, nossa dificuldade aqui é de tudo, de educação, porque só tem uma única escola
pública, que é até a quarta-série. Então a criança terminando a quarta série, dependendo da
idade dela, ela vai para outra comunidade. Aí, pra pegar ônibus é muito mais difícil, ir pra
cidade...uma luta nossa aqui também é a creche, que a gente teve até uma reunião mês
passado para ver se a gente faz uma ação com a Secretaria de Educação e traz uma creche
para dentro da comunidade. A gente já trouxe a Secretaria da Mulher, mas até agora nada, e
a gente continua precisando, porque a maioria das mulheres não tem onde deixar os seus
filhos (Bia – representante da Rede em grupo político).

Ao insistir na questão dos direitos trabalhistas, as entrevistadas disseram que realmente seria
importante e que algumas mulheres de seus grupos também reivindicam esses direitos. Mas
observou-se que essa nunca foi uma prioridade para a maior parte delas. Trata-se de mulheres que
estão alheias a uma série de benefícios sociais que deveria elevar a qualidade de vida, mas que vem
sendo negada a uma parte da população. Para elas, é essa a denuncia que precisa ser feita.
Cabe destacar que os direitos trabalhistas conquistados pelas mulheres foram implementados
tardiamente em comparação aos dos homens. Foi em 1912 que se iniciou a implementação das
regras do trabalho feminino. Nesse momento, as mulheres poderiam firmar contratos de trabalho
sem o consentimento marital, mas as jornadas de trabalho eram limitadas e era-lhes vetado o
trabalho noturno (LOPES, 2006).
Segundo Lopes (ibid.), em 1919, a OIT elabora uma convenção que prevê a universalização
dos direitos trabalhistas para todos os países. Nela constava, o direito à licença-maternidade, auxílio
financeiro estatal às grávidas e intervalos periódicos durante a jornada de trabalho para
amamentação. Entretanto, ainda proibia o trabalho noturno das mulheres em indústrias públicas ou
privadas. O Brasil ratificou esta convenção em 1937.
166
Atualmente no país, além de as mulheres terem conquistado legalmente os mesmos direitos
trabalhistas que os homens, a lei prevê 120 dias de afastamento do trabalho após o parto, com
pagamento de remuneração equivalente a 100% do salário. Em 2010, entrou em vigor uma
ampliação deste prazo de quatro para seis meses para funcionárias públicas federais e para a maioria
das que trabalham para órgãos estaduais. No caso das empresas particulares, essa licença de seis
meses é facultativa.
O país estendeu esse benefício para empregadas domésticas e micro-empreendedoras, desde
2010, mas as mulheres trabalhadoras do mercado informal ainda não conquistaram esses direitos,
tendo que se responsabilizar individualmente, como é o caso das OSPs pesquisadas. Trata-se de uma
condição que deveria ser direito humano para qualquer trabalhadora, mas é restrito às trabalhadoras
dos setores públicos e privados formais. Um relatório divulgado recentemente pela OIT indica que
cerca de 830 milhões de mulheres que trabalham em todo o mundo não têm seus direitos protegidos
em caso de gravidez e maternidade (http://www.oitbrasil.org.br/).
Guardadas as particularidades, pode-se afirmar que as mulheres entrevistadas enfrentam essa
realidade e apresentam trajetórias de trabalho muito parecidas. Para começar, a maior parte reside
em regiões periféricas das cidades, sendo que muitas estão em bairros de ocupação e/ou em favelas.
A maior parte das mulheres vem de situação de vulnerabilidade social, em especial marcadas pela
pobreza e todas as entrevistadas comentaram sobre como enfrentam de perto a violência doméstica,
seja com elas mesmas, ou em suas famílias e nos bairros em que vivem.
Na pesquisa realizada sobre o perfil da Rede (SANTOS; CASTRO, 2013), a maior parte das
trabalhadoras possui entre 31 e 60 anos, com maior concentração entre 41 e 50. Em relação à
escolaridade, 56,4% está concluindo ou já concluiu o ensino médio, 22,6% o fundamental e 17%
possui nível superior.
Nota-se, portanto, que se trata de mulheres que provavelmente foram excluídas do mercado
de trabalho, principalmente diante do cruzamento de suas idades e qualificações exigidas pelo
mesmo. Este dado se aproxima do perfil geral do mapeamento realizado pela SENAES, o SIES
(2007), que mesmo não apresentando um recorte de gênero, demonstra que a maior parte dos
integrantes da ES possui maiores faixas etárias e menores condições de formação para o trabalho.
Em relação às ocupações de trabalho dessas mulheres, anteriores ao trabalho nas OSPs,
podemos dividi-las em três grandes grupos: a) mulheres que tiveram experiências de trabalho
heterogerido, subordinado, seja no mercado formal ou informal, em sua maioria como empregadas
domésticas, costureiras, cozinheiras, etc. Essas chegaram mais perto de receberem alguns direitos

167
trabalhistas; b) aquelas que tiveram experiências de trabalho autônomo, “trabalhavam para elas
mesmas”, principalmente no caso das artesãs e também das empregadas domésticas, que na
realidade eram diaristas; c) e por fim, aquelas que se ocupavam do trabalho em suas próprias casas,
conhecidas como “donas de casa”.
Dessa forma, trata-se de uma parcela da população desprotegida socialmente para a qual os
direitos trabalhistas e uma série de direitos sociais nunca existiram. Diante dessa realidade, o
trabalho coletivo/associativo, embora não garanta a ampliação dos direitos do trabalho às mulheres,
acaba apresentando um campo fértil para fornecer informações às mulheres e uni-las na luta por
melhores condições de vida. Contudo, estas iniciativas estão longe de conseguir sanar as
dificuldades da estrutura social das OSPs.
Um dos grupos entrevistados, a Associação “Espaço Mulher”, no bairro Passarinho, por
exemplo, relata que a sua história começou quando um grupo de mulheres, empregadas domésticas,
que não tinham como chegar a seus locais de trabalho pela ausência de transporte público no bairro,
alugam uma kombi e começam a ir juntas ao trabalho todos os dias. Nessa convivência,
conversavam sobre os problemas que enfrentavam e, como nos explicou Bia, elas encaminhavam
uma série de ações de melhorias do bairro. Então decidiram montar uma Associação:
Eu, que já vinha de um grupo de mulheres do morro, participava e fui ficando, ficando. Fui
lá no Fórum de Mulheres de Pernambuco, chamei para vir aqui fazer uma reunião. As
meninas vinham para a comunidade falar. Fui para o sindicato, e o sindicato dos bairros veio
para cá e fez um trabalho com as domésticas. Então a gente foi envolvendo as mulheres e a
gente já está há 13 anos na comunidade. Quando a gente fundou esse projeto, esse grupo, a
gente não tinha a intenção de ganhar dinheiro. Era uma questão mais para conscientizar
mesmo, sobre os direitos, da cidadania, da violência e do racismo e para conseguir melhores
coisas pro bairro […] Também veio a Casa da Mulher do Nordeste e ficou assessorando a
gente, e melhorou um pouco mais. E no movimento de mulheres, com outras organizações,
com o Cidadania Feminina, que é uma instituição que trabalha com parteiras tradicionais e
jovens, e a gente foi montando esse grupo […] e a gente está aqui fazendo esse trabalho,
junto com a assessoria da Casa, e também agora do SOS Corpo, que é uma organização que
também trabalha com mulheres...(Bia – representante da rede em grupo político).

Nota-se, portanto, que a motivação desse grupo para se vincular à ES foi a falta de recursos
sociais de um bairro para as mulheres trabalhadoras. Atualmente, junto com a CMN e com as outras
parcerias realizadas, elas desenvolvem uma série de projetos no bairro, o que consideram um avanço
na comunidade. Nas palavras de Bia, “É o único grupo de mulheres feministas que tem na
comunidade e a gente já é, praticamente, referência”.
Este exemplo ilustra que muitas OSPs vinculadas à ES consistem em grupos de mulheres
pobres que passaram a se organizar coletivamente e encontram na mesma uma maneira de serem
reconhecidas pelo trabalho que já faziam. Degavre (2011, p. 69) chama atenção para as novas

168
relações sociais que as mulheres instauram ao se organizarem coletivamente, as quais as permitem
sair da lógica de vitimização em que muitas se encontram. Trata-se de iniciativas que evidenciam o
sujeito político mulheres como sujeitos de direitos sociais, bem como evidencia o trabalho e luta de
mulheres pobres em diferentes comunidades periféricas das cidades.
Nessa direção, observa-se que não é a ES sozinha que será capaz de fazer com que as
mulheres modifiquem essa situação de falta de direitos sociais em suas vidas; ela contribui, contudo,
nessa organização das mulheres pobres para que sigam em suas lutas por direitos. Como dizem as
entrevistadas: “a gente não tem nada fácil, se não se organiza não tem”.

4.4. Qualificação de mulheres trabalhadoras


Assim como na Organização Social Produtiva anteriormente pesquisada, na Rede de
Mulheres Produtoras do Recife também foi identificada a preocupação da qualificação das
trabalhadoras em três direções que se complementam: qualificação técnica, para a gestão coletiva e
política.
A qualificação técnica apresentou duas especificidades, sendo uma delas a formação para o
artesanato desenvolvido em cada grupo e a segunda, a necessidade de ampliar a qualificação das
trabalhadoras pela ausência da formação para o trabalho produtivo em suas trajetórias de mulheres.
São exemplos os cursos de Fala Pública e de Novas Tecnologias da Informação elaborados pela
Casa da Mulher do Nordeste a partir das demandas apresentadas pela Rede.
No que tange à qualificação para a gestão coletiva, observou-se a necessidade de formação
para o trabalho e articulação em Rede, bem como a necessidade de discussão sobre o trabalho
coletivo no interior de cada OSP. Os relatos das trabalhadoras entrevistadas demonstram algumas
dificuldades para manter os princípios de solidariedade e democracia almejados e mostram que o
coletivo não é priorizado por todas as participantes de um mesmo grupo. Desafios da organização
coletiva também observados na experiência anterior.
Já a respeito da qualificação política, foi identificado um diferencial advindo do trabalho
com assessoria pela Casa da Mulher do Nordeste: a ênfase na formação feminista e a
conscientização em torno das desigualdades raciais, sobretudo na necessidade de as mulheres
ocuparem os espaços públicos, de poder e participarem politicamente dos movimentos sociais
feministas que se aproximam de suas lutas diárias.

169
4.4.1. Qualificação Técnica: o valor dos cursos profissionalizantes e dos diplomas
Após um diálogo entre CMN e a Rede sobre a dificuldade de venda do artesanato, foi
identificada a demanda das trabalhadoras em ampliarem suas qualificações técnicas capaz de
agregar um diferencial para o trabalho desenvolvido, buscando assim ampliar o mercado
consumidor de artesanato. A solução encontrada pela CMN foi o desenvolvimento de um projeto de
qualificação financiado pela Petrobrás em que cada Organização Social Produtiva vinculada à Rede
buscou a identidade de seu artesanato.
Algumas OSPs se destacaram significativamente, como é o caso do Ateliê Costurando Arte,
grupo informal que trabalha com a técnica de patchwork. Esse grupo participou de um curso de
design e passou a elaborar seu material a partir de uma identidade cultural. Ou seja, os produtos
confeccionados, tal como bolsas, nécessaire, carteiras, almofadas, tapetes, entre outros, passaram por
diferentes coleções caracterizadas por uma estamparia própria. A primeira coleção foi o “Maracatu
Pop”. Já a segunda teve inspiração nas músicas de Luís Gonzaga.
Dessa forma, a OSP modernizou o seu produto e ampliou o seu espaço no mercado,
proporcionando aumento da renda para as trabalhadoras. Conforme explicaram as entrevistadas, os
cursos de design realizados proporcionaram aumento da criatividade das mulheres e, com isso, elas
puderam agregar valor aos seus produtos. Elas explicaram que atualmente recebem encomenda de
uma série de lojistas, o que mantém a venda constante dos produtos.
Cabe destacar que essa proposta de busca de uma identidade do artesanato, por meio de
cursos técnicos específicos (design, customização, desenho, etc.) se deu em todos os grupos da
Rede. Embora os resultados no que tange ao retorno financeiro tenham se dado de forma diferente,
de maneira geral, a proposta foi positiva na ampliação dos conhecimentos técnicos das mulheres e
para agregar valor ao artesanato que desenvolvem. A fala de Bia, do grupo Espaço Mulher, ilustra
essa capacitação adquirida:
Diminuir custo, fazer um produto mais bonito...a gente teve um curso na Casa das Mulheres
do Nordeste para trabalhar a melhoria. A gente já fazia, mas não era um trabalho bem feito,
a gente não tinha um acabamento legal. A qualidade da bolsa mesmo...e hoje a gente já faz.
Tudo isso é saber como é que a gente faz. Ter o nosso trabalho bem visto para que o nosso
cliente veja e faça o pedido. Semana passada a gente foi para um encontro e a menina pediu
50 bolsinhas dessas aqui. Então tudo isso faz a gente melhorar a nossa qualificação e o
nosso entendimento de fazer o nosso produto melhor.

Nota-se que de fato o investimento da CMN nessas capacitações trouxe resultados positivos
para a ampliação da renda das mulheres. Outros cursos em destaque foram os profissionalizantes
que fizeram em locais como Senae, Sebrae e Senac, além dos cursos oferecidos pela prefeitura do

170
Recife, os quais foram identificados como importantes em suas trajetórias profissionais:
Aí foi quando eu fiz um curso no SENAC de almoxerifado, que a gente estava muito ruim
das pernas. Apesar de algumas capacitações, não tinha aquela ideia de capital de giro. O que
acontece, se não tinha esse dinheiro para gente enfrentar a feira? Ficava sem, porque
normalmente a gente tirava 10% da caixinha, mas usava para uma festa, uma aniversariante
do mês. Aí faltava o dinheiro para comprar material. Aí começou o grupo a se desentender
“poxa, onde é que foi parar o dinheiro? Por que não guardou?”. E foi quando eu busquei,
através de capacitações. Levei as meninas também, porque não é bom ficar centralizado
numa só pessoa (Zilda – representante da Rede em grupo de artesanato e político).

Observa-se que as mulheres buscam os cursos de capacitação quando sentem que precisam
ampliar as suas aprendizagens em relação a algo específico do grupo. De certa forma, esses cursos
são importantes para conceder esse caráter profissionalizante às OSPs de mulheres, ampliando a
ideia de que elas se unem apenas em grupos com caráter comunitário e de assistência social.
Somado a isto, foi identificado que esses cursos conferem diplomas que servem para
comprovar socialmente os aprendizados adquiridos, o que também se apresenta como fundamental
para as mulheres:

Meu sonho era fazer um curso no SENAI porque tem uma potencia muito forte na
formação. A prefeitura nos proporcionou isso. Eu adorei, foi uma capacitação de 4 meses e
fez o curso, na época com 26 mulheres. Quando terminou, em dezembro, a prefeitura fez a
proposta de formar um grupo de customização. Deste grupo, 18 pessoas concordaram. E a
partir daí a prefeitura começou a arrumar espaços de trabalho e para trabalhar os grupos
tinham as oficinas de capacitação...(Cleusa - representante da Rede em grupo de costura).

Quando o tema é a qualificação das mulheres, elas relatam o desejo de participar de cursos
técnicos para se qualificarem. Cursos estes que conferem diploma e valoriza socialmente a
qualificação adquirida, o que nem sempre foi possibilitado em suas trajetórias de trabalhadoras pelas
dificuldades em se formarem profissionalmente.
De maneira geral, as trabalhadoras entrevistadas foram qualificadas nos espaços de trabalho
reprodutivos a elas destinados, ou então nos trabalhos manuais de baixa remuneração, mas se trata
de uma qualificação que, mesmo sendo explorada pelo mercado de trabalho, não é valorizada
socialmente. Como bem expressou Kergoat (1986, p. 84), “as mulheres têm a formação adaptada aos
empregos que lhes são propostos” e elas “são bem formadas pela totalidade do trabalho
reprodutivo”.
Porém, na realidade, elas realizavam o trabalho não reconhecido e mal pago de muitas
mulheres confinadas nos trabalhos manuais e pouco valorizados socialmente (LEITE; RIZEK,
1998). Trabalhos esses destinados principalmente para os grupos de mulheres dos segundo e terceiro
grupos classificados na pesquisa, já que se trata de mulheres, na maior parte negras, que não tiveram
171
acesso à formação profissional.
Em contrapartida, nas Organizações Sociais Produtivas em que trabalham, as mulheres
encontram a chance de realizar esses cursos de qualificação técnica e de aprender conteúdos que
jamais aprenderiam naqueles trabalhos que ocupavam. Por isso muitas delas passam a valorizar
significativamente os novos aprendizados adquiridos com o trabalho nessas Organizações.
Nesse processo de ampliação de suas qualificações, algumas mulheres voltaram para a escola
para terminar os ensinos fundamental e médio. Outras chegaram a buscar uma faculdade. Como
explicou Mariana, assessora da CMN, “algumas mulheres chegam aqui achando que eram incapazes
de fazer tudo isso, mexer no computador, fazer um relatório. Depois de todo o processo de educação
que a gente fez por aqui, elas vão com as próprias pernas, chegam até na faculdade. Então a gente
consegue alguns avanços”.
Ao entrevistar uma das mulheres que chegou à faculdade, é interessante notar que ela
reconhece os aprendizados adquiridos na OSP da qual faz parte e se sente valorizada por isso, mas,
ao mesmo tempo, ela sabe que o valor social do diploma que uma faculdade pode proporcionar não
é o mesmo que somente trabalhar numa OSP. Nesse caso, tem-se ainda a questão que a conquista do
diploma foi um sonho negado para uma mulher negra que não teve acesso à educação formal em sua
trajetória de vida:
Olha fazer faculdade não tem muita diferença na verdade, porque a gente já vem, através da
Casa da Mulher do Nordeste, fazendo bastante curso. Lá é uma Casa, que eu digo assim, é
muito acolhedora, e elas fazem justamente os cursos que a gente necessita. Elas sabem o
ponto onde tocar. Essa faculdade que estou fazendo, muita coisa eu já vi na Casa. Faculdade
para mim é importante, porque eu sempre sonhei. Houve uma época em que eu queria muito
fazer o curso de secretariado, mas a questão do racismo né...Eu era negra, pobre, feia,
fazendo curso de secretariado não vai arrumar emprego nunca, aí eu desisti. Hoje pra mim é
questão de honra fazer faculdade, mesmo com a idade de 52 anos (Zilda – representante da
Rede em grupo de artesanato e político).

O relato de Zilda mostra o peso social que possuem os diplomas dos cursos escolarizados e
formais no país, bem como quem tem acesso aos mesmos. Evidencia também como as escolhas
sociais e as profissões são delimitadas, por exemplo, pela cor de quem as realiza.
Ao estudar a situação das mulheres negras no mercado de trabalho, Carneiro e Santos (1985)
indicam que elas não estão alocadas nas funções em que são exigidos “atributos estéticos” e “boa
aparência”, como nas profissões de secretária, vendedora ou recepcionista, tal como vivenciado pela
nossa entrevistada.
Tal situação ilustra a discussão teórica tecida no segundo capítulo desta tese em torno da
consubstancialidade das relações sociais, na medida em que as oportunidades para as mulheres,

172
pobres e negra são bem menores quando comparadas aos homens braços, por exemplo. Para as
autoras, as mulheres negras são as que mais precocemente ingressam no mercado de trabalho e
também as que permanecem nele por mais tempo. Portanto, trata-se do segmento que mais investe
em qualificação, mas que obtém o menor retorno desse investimento.
Como descrevem Hasemberg e Lima (1999, p. 31), “existe uma alocação diferencial
histórica entre grupos de homens e mulheres brancos e negros” e nesta alocação os negros foram
ocupando a base da hierarquia social: áreas com maiores índices de analfabetismo, nas quais
predominam aqueles que ingressam tardiamente na escola e apresentam altos índices de evasão e
repetição. Foi nesse ciclo que os negros tiveram suas oportunidades educacionais reduzidas, além da
discriminação racial no próprio mercado de trabalho, “fechando-se o ciclo vicioso que confina
pretos e pardos em posições sociais subordinadas” (HASEMBERG; LIMA, 1999, p. 31).
A fala de Zilda nessa direção descreve como ela sentia preconceito ao procurar se inserir no
mercado de trabalho e também como ela era discriminada fora do espaço social a ela reservado:
A comunidade aqui foi meu reduto, eu nasci nessa casa, nem fui pra maternidade. Como eu
nasci aqui nessa casa e numa comunidade que eu conheço todo mundo, eu me sentia à
vontade, livre para atuar, fazer um trabalho. Mas quando eu saía aqui da comunidade pra
fora, para o centro da cidade, eu já não me sentia bem. Sabe, alguns me fizeram acreditar que
eu não era capaz. Aí eu não conseguia atuar em outra área, só aqui dentro. Eu participei em
Recife de um curso de moradores da comunidade, de Brasília Teimosa, que é conhecido
mundialmente pelo conselho de moradores por questões de luta. Eu fiz parte dessa história,
mas aqui dentro eu era uma coisa, lá fora eu não conseguia de jeito nenhum participar, fazer
nada do que eu conseguia fazer aqui dentro.
Observa-se assim que o preconceito era vivenciado ao sair de sua comunidade, onde a maior
parte também era negra, e buscar se inserir nos chamados “espaços de branco”, como na escola, na
faculdade ou no mercado de trabalho. Se as mulheres negras não sofrem do confinamento que as
mulheres brancas sofrem por serem restritas ao espaço privado, já que elas precisam trabalhar pela
necessidade de renda, elas acabam vivenciando esse confinamento por causa do preconceito que
precisam enfrentar ao saírem dos seus espaços de origem, dos espaços que as acolhem. Isso justifica
a insistência de Zilda por estudar, conquistar um diploma e mostrar para outras meninas negras da
comunidade que elas podem conquistar esses espaços.
Como abordado no segundo capítulo deste texto, as pesquisas indicam que o trabalho com
título universitário é quase exclusivamente um trabalho de branco, sobretudo nos cargos de chefia e
direção de empresas. Enquanto o setor primário, a construção civil e o trabalho doméstico, são
predominantemente negros (COELHO Jr., 2011).
Nessa direção, observa-se a importância do trabalho como categoria para iniciar a percepção
das discriminações sofridas pela população negra. É quando começam a refletir sobre os postos de

173
trabalho que lhes foram negados que elas percebem o preconceito: “A maioria foi por causa do
trabalho, chegavam e falavam “eu senti que era por causa da minha cor”; “fulano falou comigo no
telefone, currículo ótimo, aí quando cheguei, olhou pra mim e disse que já ocupou a vaga”. Então
você percebe que é por causa da cor. (Mariana – assessora da CMN). Ou então elas começam a notar
em que funções existem mais trabalhadores negros e começam a refletir sobre o porque.
Além de Zilda, podemos citar a experiência de Cleusa, que também é uma mulher negra que
foi buscar a especialização na faculdade, após os 40 anos. Cleusa explicou que fez faculdade de
design “pra não ter que depender de ninguém para poder lançar a minha linha de peças”. Ela é uma
das mulheres que relatou a exploração que sofria na fábrica de costura onde trabalhava e como
descobriu os lugares que ela podia ocupar a partir das formações realizadas na CMN.
Há ainda o caso de Luísa, citado por Mariana, que, embora não tenha finalizado a faculdade,
vinculou-se a um sindicato onde hoje é presidenta:
Fomos aos poucos tirando as mulheres da comunidade para conhecer outro local, outras
mulheres, porque elas achavam que era só a casa delas e pronto. Depois elas começaram a
participar do grupo, até a estudar. Como Luísa, que passou por uma dificuldade muito
grande. Ela perdeu o seio e entrou em uma depressão, se separou, e eu conversando com ela
“Luísa, vamos estudar”. Teve um projeto que agora não me lembro o nome, mas era para
doméstica que não tinha terminado o primeiro grau. Aí eu arrastei umas 10 mulheres. Depois
que terminou o projeto, ela terminou os estudos, só não fez uma faculdade porque não tinha
tempo, mas se associou ao sindicato e hoje é presidenta. Pra gente é uma conquista, porque
uma mulher que vivia para a casa e pros filhos e hoje vir a ser presidenta de uma organização
internacional...(Mariana – assessora da CMN).

Dessa forma, apesar das contradições e dificuldades existentes, observa-se um campo fértil
nas iniciativas de trabalho coletivo/associativo para as mulheres de baixa renda e sem estudo,
brancas e, sobretudo negras, ampliarem suas qualificações e buscarem re-colocação no mercado de
trabalho ou nos movimentos sociais, chegando a ocupar postos antes impensáveis em suas trajetórias
profissionais.
Notou-se ainda a possibilidade de constituição de novos sujeitos sociais, já que mulheres que
eram do segundo ou terceiro grupo, após as qualificações e novas possibilidades de renda que as
OSPs proporcionaram, subiram de grupo. Muitas das mulheres lideranças entrevistadas, por
exemplo, já pertenceram aos segundo e terceiro grupos e passaram a ocupar lugares que dificilmente
elas ocupariam anteriormente. Cabe destacar que este é mais um aspecto central desta pesquisa ao
demonstrar como a organização coletiva é capaz de permitir o aumento da capacidade de agir das
mulheres num sentido emancipatório, visto que oportunidades sociais que lhes seriam negadas,
como a ampliação de suas qualificações técnicas, participação política, aumento de escolaridade,
etc., acabam lhes sendo apresentadas.
174
Nem todas elas se tornarão lideranças nesses processos, mas o contexto para isso e para a
superação de desafios em torno das questões de gênero, raciais e de classe é permitido nessa forma
de organização, principalmente quando há uma junção de diferentes movimentos sociais, como é o
caso pesquisado. Sobre esta junção de movimentos sociais, nota-se a relação entre compreender a
realidade de vida de mulheres, com destaque para a realidade das mulheres negras; entender as
oportunidades que lhes foram negadas e as dificuldades que elas apresentam de participar de alguns
espaços públicos, construindo possibilidades de superar essas lacunas; e, ao mesmo tempo, trabalhar
com elas inseridas num movimento de geração de renda, que é uma necessidade vital.
Dessa forma, a pesquisa indica como esses olhares que os diferentes movimentos sociais
trazem acabam contribuindo para pensar em ações que possibilitam a constituição de novos sujeitos
sociais.
Nessa direção de possibilidade de ocupação de novos espaços, um dos cursos bastante
valorizado por Zilda e pela grande maioria das mulheres entrevistadas, foi o curso de “Fala Pública”
oferecido pela CMN. Nesse curso, as mulheres aprenderam técnicas para falar publicamente e
explicar os seus argumentos, o que muitas vezes lhes é negado. O curso ampliou significativamente
a participação delas nos espaços públicos, nos fóruns e movimentos sociais dos quais já faziam
parte, mas muitas vezes sem espaços de fala. Nas palavras de Zilda:
Eu era uma pessoa muito tímida, eu não conseguia falar […] Se eu visse um gravador, mas
nunca mesmo. Dois anos atrás Mariana tentou fazer gravação comigo e eu não conseguia,
parecia entalada aqui na garganta. Meu marido fala “meu Deus, quem te viu, quem te vê;
agora fala pelos cotovelos […] Mas ela ensinou algumas técnicas para uma entrevista na
televisão. Ela falou pra eu olhar pra um ponto, qualquer lugar, e mira assim e fale como se
não tivesse ninguém ali (risos). Aí pronto! Uma das coisas que me ajudou muito foi
justamente a questão da fala pública.

Nota-se uma preocupação da CMN em capacitar tecnicamente às mulheres para que elas
sejam capazes de participar em novos espaços com qualidade. A realização de cursos como este
pode ser considerada inovadora, principalmente pelos seus resultados positivos no cotidiano dos
grupos da Rede.
Outro curso também considerado inovador é o de Tecnologias de Informação e Comunicação
– TIC, que ensina as mulheres a dominar o computador, a partir de uma perspectiva que relaciona
comunicação e gênero. Elas aprendem, por exemplo, a fazer projetos no computador, a pesquisar
informações para os seus grupos, divulgar os seus trabalhos, etc. Algumas entrevistadas citaram que
aprenderam a desenhar no computador e a pesquisar novos modelos na internet para ter idéias no
desenvolvimento de seus produtos. Também citaram a importância de divulgar os seus produtos na

175
internet, o que tem aumentado o espaço de comercialização dos mesmos.
Contudo, cabe um parêntese para destacar um aspecto importante na direção dos resultados
do trabalho das mulheres nesses espaços. Se de um lado elas se sentem valorizadas a partir desses
cursos e das novas qualificações técnicas conquistadas, permitindo inclusive a participação em
novos espaços, de outro lado, muitas vezes a qualificação conquistada não se reverte em retorno
salarial compatível, revelando outra dificuldade histórica em torno do trabalho das mulheres.
As pesquisas sobre o trabalho das mulheres, descritas no segundo capítulo desta pesquisa,
revelam que nem sempre suas qualificações são compatíveis com os salários que recebem. Muitas
vezes elas precisam ser super-diplomadas para conquistarem salários maiores, compatíveis com os
de homens com menor qualificação profissional (MARUANI; HIRATA, 2003).
Segundo pesquisa realizada por Dussuet e Flahault, (2010) sobre o trabalho das mulheres em
Associações francesas, o aumento da qualificação formal das mulheres nem sempre se reverte em
reconhecimento profissional e salarial dentro do grupo, o que é uma contradição.
As autoras observaram que de fato há um reconhecimento e valorização pessoal importante,
por parte das mulheres, e no interior das próprias Associações. Notou-se que essa profissionalização
as leva a retomar a condição de sujeitos na sociedade, o que é um aspecto social de extrema
relevância, que acontece independentemente do mercado (DUSSUET; FLAHAULT, 2010). Porém,
este reconhecimento nem sempre se dá em termos salariais, de modo que as novas qualificações
adquiridas pelas mulheres ficam internas às organizações e invisível pela sociedade ao redor.
Tal constatação se apresenta como mais um desafio a ser encarado pela Economia Solidária
no diálogo com os movimentos feministas que vêm refletindo sobre as contradições e possibilidades
do trabalho das mulheres, na tentativa de vincular os benefícios sociais, pessoais e econômicos que a
ES pode proporcionar aos diferentes grupos de mulheres que dela fazem parte.
A fim de ampliar essa discussão, segue-se neste texto analisando as qualificações em termos
de gestão coletiva e participação política, as quais podem contribuir para avanços nessas conquistas
das mulheres.

4.4.2 Qualificação para a Gestão coletiva: outro desafio constante

Para além da questão da qualificação técnica, foi possível identificar os aspectos presentes na
qualificação para a gestão coletiva, que, como acima explicitado, refere-se à formação para o
trabalho em Rede e articulação entre diferentes grupos coletivos, bem como a necessidade de
discussão sobre o trabalho coletivo no interior de cada grupo.
176
No que tange à formação para a participação em Rede, observou-se uma avaliação positiva
por parte das trabalhadoras, na medida em que ao participarem da Rede elas conseguem se vincular
a projetos que garantem créditos para as OSPs, ao mesmo tempo, que socializam suas angústias e
conquistas com outros grupos de mulheres. Como explicou Cleusa, a Rede também proporciona
uma articulação internacional importante para o trabalho das mulheres:
Agora a Casa da Mulher pegou um projeto da Petrobrás: “Mulheres tecendo um Nordeste
Solidário”, que visa o empoderamento das mulheres. Foram solicitadas 5 monitoras da
Rede. Eu me candidatei e ganhei uma vaga. O trabalho da gente é ser o intercâmbio entre a
Rede e a Casa da Mulher. E a gente faz esse trabalho através de formação e qualificação. A
gente se forma para poder orientar melhor as meninas da Rede. Aí o processo de formação é
muito rico porque a gente está sempre se reciclando, se revendo, fazendo intercambio...
Veja, o projeto é formação e empoderamento de mulheres populares para a construção de
novas cidadanias em Colômbia, Venezuela, Equador e Brasil. É um consorcio de 4 países.
Então a escola feminista está à frente deste processo. Aí junto com o Centro das Mulheres
do Cabo, Casa da Mulher do Nordeste e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais e a
Universidade Federal de Caruaru, que é o Campus agreste. A outra parceria é a rede de
mulheres e democracia, então é algo muito bom.

Nota-se que a Rede proporciona o contato com mulheres de outros países da América Latina,
bem como a articulação com uma série de organizações feministas que vem atuando junto às
mulheres, o que indica ampliação social de suas iniciativas e aprendizados.
Já no que tange à formação para a gestão coletiva no interior de cada uma das Organizações
Sociais Produtivas vinculadas à Rede, a avaliação da coordenadora da Casa da Mulher do Nordeste é
que ainda falta avançar. Primeiramente, a coordenadora indica a questão do planejamento coletivo
que muitas vezes não é feito:
Nesse aí a gente vai percebendo as contradições mesmo no dia a dia. Tem grupos que a
gente pergunta “e aí vocês planejam”, “ah a gente faz planejamento”. E o planejamento era
assim, fazia data, no dia tal era reunião. “Mas como é que vocês pensam junto, discutem
junto, vocês decidem?” (Coordenadora da CMN).

Observa-se nesta fala que a coordenadora revela uma angústia em relação a como os grupos
decidem coletivamente as suas ações, visto que se não planejam as atividades e dividem funções,
algumas acabam ficando sobrecarregadas, deixando dúvidas se os grupos são realmente coletivos na
prática ou se eles apenas se associam para comercializar. A descrição abaixo ajuda a compreender
melhor essa questão:
Porque seja no campo ou na cidade, por exemplo a Terezinha disse pra mim “olha, minha
horta está horrível”, e o horrível era porque as frutas estavam caídas. Do pé de acerola lindo
e maravilhoso, as frutas estavam tudo no chão, ela não teve tempo. Porque imagina, ela
cuida da terra, depois ela junta, porque na quinta-feira ela tem que juntar, fazer os saquinhos
da acerola para vender. Tem os temperinhos que ela faz, do colorau, da pimenta, não sei o
quê, põe tudo no saquinho, prepara e ainda tem que levar para a feira pra vender. E ela está
inserida na rede de produtoras e participa em grupo, ela é integrante de um grupo, passa seu
conhecimento para o grupo e tarará, mas essa ação coletiva não incide no trabalho. “Mas
177
Terezinha, você precisa dividir esse trabalho, e o grupo”? E as outras mulheres, suas
companheiras?”.“Ah, ninguém quer trabalhar não, e a propriedade é minha”. Olha a
contradição, então a propriedade é dela...esse é um exemplo. E essa é uma coisa que a gente
vem refletindo com os grupos, porque muitas vezes na prática não estão fazendo economia
solidária (Coordenadora da CMN).

Dessa forma, boa parte dos grupos acaba se juntando para comercializar, trocar informações
e realizar formações, mas não se ajudam coletivamente para uma série de trabalhos, como para
produzir ou para cuidar de produções coletivas e não somente individuais. Ou seja, muitas vezes
existe uma dimensão individualista do trabalho que ainda prevalece e que prejudica as mulheres
individualmente.
Tal constatação vem sendo observada em algumas pesquisas que apresentam um olhar crítico
em torno da Economia Solidária. Conforme analisado por Castel (2005) e citado no primeiro
capítulo desta pesquisa, há uma dificuldade em manter o discurso de democracia e de autogestão no
âmbito da sociedade capitalista, visto que, na contradição posta, os valores de competição e
dominação acabam invadindo essas experiências.
Nessa mesma direção, Gaiger (2004) analisa que há uma série de desafios a serem
enfrentados pelos empreendimentos solidários quando se têm uma proposta contrária as formas
hegemônicas de organização social. Contudo, o autor é otimista ao descrever experiências que aos
poucos vêm construindo novas possibilidades coletivas.
Em concordância com este autor, nesta pesquisa foi observado que há avanços em termos de
organização coletiva e que se trata de um processo que vem sendo aos poucos construído na prática
das OSPs. Mas de fato trata-se de uma contradição que está posta e que também foi identificada na
experiência anterior analisada.
Tal constatação pode ser observada em diferentes falas das trabalhadoras entrevistadas:
Porque como é um grupo de comercialização, a gente só se junta para comercializar. Assim,
a gente se junta para passar informação, socializar. A gente se junta pra eventos, festas,
aniversariantes do mês...passar o que aprendeu em algum curso, socializar tudo que a gente
viu lá fora. Não só eu como as demais (Vilma – representante da Rede em grupo de
artesanato).

Mas a gente está começando, porque já tem a parte teórica, mas agora precisa começar
colocar em prática tudo isso de solidariedade, às vezes é difícil (Márcia – participante de
OSP de costura).

Bom, eu já me tornei chata, porque eu vivo cobrando das pessoas que o discurso é um e a
prática é outra. Eu inclusive já me afastei da economia solidária...aí depois eu digo: se eu me
afastar não tem mais quem pegue no pé (risos). Eu pego no pé de empreendimento, de quem
estiver ali eu pego no pé. E eu digo, tem muita gente, se você for fazer uma triagem da
economia solidária vai sobrar muito pouco que faz economia solidária (Sara - representante
da Rede em grupo de costura).

178
As mulheres também sentem na prática as dificuldades de vivenciarem de fato a gestão
coletiva e os princípios de solidariedade. Elas disseram que entendem os princípios quando fazem os
cursos e tentam levar a prática para as OSPs de que fazem parte, mas afirmam que nem sempre
todas as pessoas entendem ou conseguem de fato praticar tais princípios. De acordo com as
entrevistadas, algumas vezes as mulheres ainda não estão preparadas para as ações coletivas, ou
então não conseguem praticá-las pela educação que tiveram para a competição e ritmo do mercado
capitalista.
Segundo a coordenadora da CMN, “isso não é uma realidade só das mulheres produtoras da
região metropolitana, é uma realidade dos empreendimentos da economia solidária, e eu acho que o
movimento não vai fundo nessa história”.
Os conflitos para uma forma coletiva de trabalho aparecem de todos os lados, inclusive da
parte da Assessoria, que muitas vezes também não é formada para essa lógica de trabalho:
Então essa assessoria que a gente faz também tem as nossas contradições. Nós não viemos
de Marte, nós viemos das universidades, haja visto as pessoas que tem lá na equipe que são
agrônomas, que vem da universidade e sabe que as ciências agrárias é assim, e que é pro
agronegócio. Então uma série de questões. Eu acho que a gente precisa avançar mais nas
nossas práticas e nas nossas reflexões, de como essa economia solidária de fato ela vira uma
prática na vida das mulheres. Porque ela não é uma prática do trabalho individual, mas é um
trabalho que se defende pra ser associado. Isso a gente precisa avançar mais. Esse tecer da
rede a gente está...tem um pouquinho aqui, mas falta um bocado lá do outro lado, sabe? E a
gente percebe o quanto isso ainda é difícil (Coordenadora da CMN).

Nota-se, portanto, que a proposta de uma gestão coletiva não é uma tarefa fácil. No caso da
experiência anterior analisada esse conflito aparece diante dos desafios que era a mudança cultural
exigida por uma fábrica recuperada, principalmente porque os trabalhadores já possuíam uma
história de trabalho dentro da lógica do trabalho assalariado, individualizado, e em uma relação
vertical patrão-empregado. Embora com outra forma e com particularidades específicas, nesse caso
analisado da Rede de Mulheres, essa dificuldade volta a aparecer. O que também se identifica no
interior da própria CMN.
Um dos caminhos que a CMN vem investindo para que debates como esses possam ser
encarados com maior dedicação, é a qualificação política, que pode contribuir com novos elementos
para ampliar a visão de mundo e a capacidade de agir dos sujeitos envolvidos, não somente nas
OSPs, como também nas agências de fomento e nos espaços de poder e decisão da ES.

4.4.3. Qualificação política: uma questão de gênero, raça e classe


Conforme pode ser observado ao longo deste capítulo, a perspectiva feminista é a ênfase do

179
trabalho da Casa da Mulher do Nordeste na assessoria à Rede de Mulheres Produtoras do Recife. O
que se dá, sobretudo, por meio de cursos de formação em temas como gênero e divisão sexual do
trabalho, participação política de mulheres, questões raciais e Economia Solidária, numa perspectiva
de ampliar a formação política das trabalhadoras. Os cursos acontecem em médio e longo prazo
seguindo as especificidades de cada Organização Social Produtiva que compõe a Rede. Nas palavras
da Coordenadora da CMN:
A gente divide em duas etapas esse processo da auto-organização: as oficinas estruturantes
são todas as temáticas que a gente considera que sejam estruturantes para a compreensão e
intervenção política, por exemplo, a discussão das relações de gênero, raciais, da identidade,
da cidadania e dos direitos das mulheres. A discussão de qual é o conceito do trabalho a
partir da análise da divisão sexual do trabalho. A gente quando fala em trabalho está falando
da relação do produtivo e do reprodutivo, e problematiza, enfim, dentro da nossa
metodologia, a depender de cada caso. Depois a gente tem uma discussão da organização da
produção, toda etapa, o que define para você chegar à sua viabilidade econômica, o que eu
produzo, pra quem, como, qual é a minha organização...da gente estimular e fomentar essa
ideia de um trabalho associativo, da autogestão [...] O feminismo é a base, é a partir dessa
concepção que a gente faz uma leitura das práticas da ES. E a gente sabe que isso não está
dado, não está dado na academia, não está dado nas práticas institucionais das organizações,
nos movimentos sociais.

Ao começar a fazer parte da Rede, as OSPs primeiramente passam por essa formação política
a curto prazo. Depois iniciam um processo onde se cruza formação política e técnica, a fim de
pensar nas questões específicas do trabalho produtivo de cada grupo. Contudo, o diferencial dessa
formação é a ênfase em gênero, que, como explicitada na fala acima “não está dada”. Este é o
diferencial do trabalho da Casa da Mulher do Nordeste na Economia Solidária, principalmente por
compreender que a condição para a auto-organização social produtiva de mulheres depende de que
elas compreendam as questões de desigualdade de gênero que estruturam a sociedade e,
consequentemente, o trabalho cotidiano delas, construindo e ampliando coletivamente a consciência
de gênero almejada.
Mariana, assessora da Casa, explica que a questão não é formar necessariamente mulheres
feministas, mas conseguir dialogar sobre as relações de opressão que elas sofrem cotidianamente
pelo fato de serem mulheres e como isso aparece no trabalho delas, tanto no trabalho em casa, como
na OSP de que fazem parte e na Rede:
Participação política, que é um dos temas muito forte que a gente trabalha, representações e
tal, participação das mulheres no poder, essa é uma parte que a gente trabalha muito,
eleições; violência contra a mulher...ES, gênero, feminismo e raça […] Mas a gente não
coloca que elas têm que ser feministas, mas tem que entender que existe uma desigualdade
de gênero, isso é a premissa primeira. Às vezes, elas têm um pensamento de feminismo
contraditório, que é coisa só de sapatão, de mulheres que não gostam de homens, enfim,
então você já trava uma barreira no diálogo. Mas no final tem que dizer: feminismo, ele
trabalha isso, é isso que ele coloca pro mundo, que há essa desigualdade e que a gente quer
igualdade disso. E que a gente trabalhe para que as pessoas possam saber que há essas
180
desigualdades, que ela é cultural, que a gente precisa trabalhar isso pra poder entender
porque que essas mulheres estão nesse local e por que elas não acessam os espaços de
poder: é por causa do tempo que trabalham na casa, é o trabalho, e isso a gente vai jogando
e elas vão dizendo. Elas que vão mostrando pra gente o porquê disso tudo.

Observa-se que a Casa desenvolveu uma metodologia de trabalho coerente com o público
que atende, pois existe uma série de dificuldades no diálogo com as mulheres, já que elas também
são parte da mesma estrutura machista de sociedade e também vivenciam as suas contradições. A
maior parte das trabalhadoras chega à CMN para participar da Rede na tentativa de ampliar o acesso
a créditos e os locais de venda de seus grupos. Contudo, para participar da Rede uma condição é
fazer parte dessas qualificações e, deste modo, começam a ampliar as perspectivas de suas OSPs e
de vida.
Além desses cursos e formação cotidiana, a CMN também oferece uma formação em longo
prazo, denominada Escola Feminista. Este curso é realizado em parceria com outras organizações e
sua metodologia se dá em diferentes módulos de estudo. Ao longo de suas práticas nas OSPs, as
mulheres representantes da Rede se reúnem para participar desses encontros:
Essa semana inclusive nós duas voltamos da Escola Feminista, que é uma parceria da Casa
da Mulher do Nordeste, Centro das mulheres do Cabo e o movimento das mulheres
trabalhadoras rurais e também a Universidade Federal de Pernambuco em Caruaru. A gente
conseguiu essa parceria e está trabalhando essa formação política. São 4 módulos. A gente
estuda desde história dentro da perspectiva de gênero, até sociologia, economia e ciência
política. Porque uma das propostas é que a gente, enquanto mulheres, esteja inserida dentro
do espaço público, ou seja, dentro dos parceiros públicos ou das lideranças comunitárias
(Vilma - representante da Rede em grupo de artesanato).

Nessas formações, as mulheres frequentam novos espaços públicos, discutem temas que
perpassam suas trajetórias de mulheres trabalhadoras e conhecem outros grupos e pessoas, o que
facilita para que elas ampliem a sua visão de mundo em torno do ser mulher na sociedade. Muitas
das trabalhadoras entrevistadas relatam que passam a se conscientizar de uma série de questões antes
impensadas. Essas novas informações acabam sendo socializadas com o restante do grupo e, aos
poucos, as mulheres vão construindo novas aprendizagens em torno do ser mulher na sociedade.
No que tange à realidade das mulheres, muitas pensam que práticas como discriminação no
mercado de trabalho ou casos de violência, por exemplo, são restritas à sua vida, seu cotidiano e
comunidade e, ao se depararem com outras realidades, percebem que é uma condição estrutural que
perpassa a todas as mulheres, independente da raça e da classe social, bem como do país em que
vivem. A fala de Bia ilustra esse enfrentamento das mulheres com outras realidades:

Eu fui pra Colômbia, pro Encontro de Mulheres Negras e fui pro Equador, fazer uma parte
da Escola Feminista no Equador. Assim, é muito bom você conhecer outras culturas. Mesmo
você não estando no Brasil, a mulher sofre violência do mesmo jeito, a questão da opressão
181
das mulheres, a sexualidade. Então é uma outra cultura, mas muitas vezes tem a ver com as
mulheres que está aqui no Brasil. Para a gente é muito fortalecedor saber que tem mulheres
que sofrem como a gente e que também estão na mesma luta de fazer bolsa, de fazer o seu
trabalho, de fazer um grupo de mulheres, de não ter um espaço para se reunir. O que tem
aqui a gente viu lá, a mesma luta das mulheres, pela cidadania, por seus direitos e a gente
pensava que só acontecia aqui. A gente não via os homens, era só mulheres cuidando dos
filhos, as mulheres vão pra feira, pro roçado. Os homens fazem um trabalho enquanto as
mulheres fazem dez, a mesma coisa da gente aqui.

Essa possibilidade de compreensão da realidade das mulheres e conhecimento de outras


mulheres para troca de experiências é também um diferencial nessa formação política com
perspectiva feminista atrelada à Economia Solidária. Mesmo as mulheres que não são lideranças e
que não participaram de viagens como esta mencionada, citaram, quando instigadas na entrevista,
algum aspecto em torno dos direitos das mulheres, ou algo como a necessidade de ter autonomia
financeira, aprender a se comunicar melhor e frequentar novos espaços.
A investigação também notou que a trajetória semelhante das mulheres de baixa renda,
brancas e negras, pode criar uma identificação de mulheres como sujeitos sociais e não apenas como
pessoas isoladas, o que facilita o engajamento nas OSPs. As entrevistas revelaram que a maioria
enfrenta problemas muito próximos: são mulheres que tiveram diferentes experiências de trabalho,
via de regra precarizado; praticamente todas têm filhos e filhas e são responsáveis pelo cuidado da
casa, mesmo sendo casadas ou chefes de família; muitas deixaram de trabalhar para cuidar dos
filhos, experimentaram o desemprego por diferentes vezes; muitas possuem idade um pouco mais
avançada, com menores possibilidades de conseguir emprego formal; a maior parte enfrentou
situações de discriminação racial ao procurar trabalho, etc. Além disso, muitas sofreram de violência
e as que não sofreram conhecem amigas ou tiveram histórico de violência na família. Assim, no
encontro das histórias de mulheres, novas representações em torno do ser mulher pode ser
construída, tal como nos revelam as falas abaixo:
E é assim, só quando a gente se insere num movimento desse de mulheres é que a gente vê a
realidade. Trocando experiências com outros grupos é que você vê mais ainda. Você se
compadece e não quer sair mais, você quer ajudar (Cleusa - representante da Rede em grupo
de confecção).

Sou produtora, trabalhava com produtos de limpeza e com questões de saúde e legislação,
agora estou trabalhando com produto artesanal. A gente produz sabonetes, hidratantes,
sabonete líquido, sais de banho e já trabalho com isso desde 1995. Antes eu era comerciária,
depois fui professora. Eu fazia letras e fiz numa universidade particular [...] Eu perdi o
emprego porque disse que queria ter filho. E ela disse: mulher é complicada, daqui a pouco
vai ter filho...Aí pronto, fiquei desempregada. Foi quando tomei a decisão de trabalhar por
conta própria. Na verdade você já está no trabalho informal...(Vilma - representante da Rede
em grupo de artesanato).

Meu pai que era alcoólatra, além de machista, achava que podia tudo...Você sabe que pra
uma criança de seis anos, na época pra entrar na escola era a partir de sete anos de idade, aí
182
o que aconteceu, eu não pude entrar na escola e meu pai, bêbado, fez o registro na mesma
idade do meu irmão, fiquei gêmea dele. Aí eu tinha cinco anos e meio na verdade e entrei na
escola, na época era sete anos. Eu não acompanhava jamais uma criança de sete anos, e com
dificuldades em casa, briga, necessidade mesmo, não tinha coisa pra comer, alimentação. Aí
o que acontecia na escola eu não conseguia acompanhar, a professora passava e tome
palmatória, e ainda tinha que cheirar a parede, em cima dos livros, me botava no cantinho.
Então, claro que eu tinha dificuldade de falar. Eu me retraía, aguentava calada. Aí o que que
eu fiz: a partir daí eu comecei a crescer, e aquilo que eu sofria na infância eu não quero
jamais que outras crianças passem. Vou transformar aquilo no contrário...ajudar outras
crianças a não passar pelo que eu passei, por isso que eu topei esse grupo (Zilda –
representante da Rede em grupo de artesanato e político).

Porque até então a gente não fazia ideia do que era grupo, do que era economia solidária. A
partir daí, a gente passou a frequentar diversas capacitações, participando de cursos de
gênero. Como o grupo era formado por mulheres carentes, a maioria delas...acho que 99%
das mulheres tinha autoestima baixa, a dificuldade foi maior, porque não tinha
representação, ninguém queria sair pra representar o grupo lá fora. Todas elas eram
acanhadas. Até porque todas elas não tinha formação superior, eu também. Todas achavam
que não tinha capacidade para representar ninguém, principalmente saindo da comunidade.
(Márcia – representante da Rede em grupo de costura).

Dessa forma, nota-se que ao se juntarem, conhecer as experiências umas das outras e saírem
da invisibilidade que atinge as mulheres com essas trajetórias, cria-se uma identificação em torno
das discriminações de classe, raça e gênero que vivenciaram, o que favorece a vontade de se auto-
organizar e de se reconhecer como sujeitos políticos. Como acima observado, o fato de estarem
juntas não garantem de imediato a construção da consciência de gênero, mas essa identificação, que
não se dá apenas pela condição de classe, mas também pelo sexo e origem racial das participantes de
cada OSP da Rede, abre os caminhos para essa construção.
Tal como aponta Guérin (2005), as iniciativas coletivas permitem a construção de certa
“autonomia pessoal” conquistada nas relações de amizade e identificação entre mulheres. Para a
autora, as mulheres “ganham consciência de seus direitos e conseguem fazê-los valer graças a uma
participação na sociedade civil até então inacessível” (GUÉRIN, 2005, p.148 ). Uma das questões
principais para Guérin (2005), é a participação política das mulheres e a formação de lideranças
nesse processo, o que é também um aspecto central a ser destacado pelas teóricas da Economia
Feminista. Para elas, a forte presença das mulheres como lideranças no movimento de ES não é
encontrado facilmente em outras formas de trabalho das mulheres.
Segundo Culti (2008), a liderança de mulheres na ES colabora para a mudança da ideia de
que as mulheres estão nessas atividades apenas por ser um trabalho comunitário, ou que só
participam de atividades assistencialistas. A autora enfatiza o papel político das práticas de trabalho
associativo, na medida em que as mulheres começam a se inserir em espaços de luta do movimento
social, começam a ocupar lugares e cargos como os de presidência, secretaria, administração, entre

183
outros espaços de poder a que elas dificilmente têm acesso em outras formas de serviços ocupados.
Cabe ressaltar que, na maioria dos casos, trata-se de mulheres com baixa escolaridade e pouca
experiência para além dos trabalhos domésticos e desenvolvidos no espaço público, o que
dificultaria a ocupação dos mesmos cargos em outras formas de trabalho.
Na história das mulheres lideranças da Rede que entrevistei, pude identificar que todas elas
são de origem popular, em geral, moradoras de bairros pobres e alvos de uma série de projetos
sociais. É nesses espaços que acabam conhecendo outras possibilidades e vão se engajando,
aumentando suas qualificações pela participação prática em atividades comunitárias, até chegar às
lideranças. Nesse caso, não se trata, portanto, de lideranças de profissionais altamente escolarizadas,
ou que possuem um engajamento em partidos políticos e espaços intelectualizados. Trata-se de uma
militância que vai sendo construída na prática diante das necessidades que a vida em bairros pobres
as coloca. Como descreveu Bia, em mesma fala utilizada na epígrafe deste capítulo:
Eu comecei a participar no anos 80, foi lá no Morro que eu comecei a participar, foi um
convite de uma amiga, na fila...na época tinha uns tickets de leite que distribuíam para as
famílias e eu recebia esses tickets. Aí minha amiga disse “hoje vai ter uma reunião de
mulheres, queres participar?”. Eu disse que queria. Eu fui, gostei, fui gostando e pronto, não
parei mais […] Minha formação foi praticamente...foi o movimento feminista que me
formou. Eu terminei os estudos acho que três anos atrás. Quero fazer uma faculdade mas
não tive tempo, e não estou arrependida por não ter feito. Está certo, formação acadêmica é
bom, eu trabalhei até mês passado, estou de aviso prévio na Secretaria da Mulher no centro
de referência, como educadora. E isso pra mim que não terminei os estudos e tal, quer dizer,
terminei o ensino médio, mas não tenho estudo acadêmico...mas olha, faço muito mais coisa
que as meninas que estão lá no acadêmico!

A partir desta fala faz-se importante ressaltar essa qualificação de algumas lideranças que
advém da participação nas comunidades e periferias, bem como na participação em projetos sociais
a elas destinados. Elas mesmas fazem a ressalva de que não é uma qualificação que advém dos
livros e da academia, mesmo que muitas busquem se escolarizar nesse processo. Mas se trata de
uma qualificação que advém da necessidade de classe vivenciada cotidianamente pela falta de uma
série de condições mínimas de sobrevivência, que por sua vez se cruza com a discriminação racial
diária que enfrentam - uma vez que, por serem negras, seus espaços sociais e o acesso a
determinados trabalhos é limitado - que por sua vez se cruza ainda pelo fato de serem mulheres e por
isso ter obrigações que novamente limitam as suas capacidades de agir. Em outras palavras, elas se
tornam lideranças pelas qualificações adquiridas na coextensividade das questões de classe, raça e
gênero em suas vidas e pelas oportunidades sociais que aparecem em seus caminhos. É nesse
processo de vida e de organização coletiva que constroem suas possibilidades de consciência de
classe, raça e gênero.

184
Entre os temas que as mulheres discutem no interior das OSPs investigadas, e que fazem
parte dos cursos de formação política de que participam pela Rede, dois deles, fundamentais para os
debates feministas, apareceram com frequência, a saber, a violência contra as mulheres e o racismo.
No caso da violência, as entrevistadas citam que essa é uma realidade enfrentada por muitas
mulheres nas OSPs, seja direta ou indiretamente. Mesmo discutindo sobre o tema e buscando mais
informações, elas sabem que os casos continuam. Em contrapartida, em algumas OSPs elas estão
rompendo com o silêncio em torno da violência, o que consideram um avanço:
A gente tem que botar essa luta do direito de nós mulheres, sobre a questão das mulheres em
si, sobre a questão das mulheres negras, a questão da violência contra as mulheres. Então é
uma luta que a gente não tem que ficar calado. Se vê um parente da gente, um vizinho, a
gente liga, mesmo sem se identificar, a gente tem que falar. O silêncio é cúmplice da
violência e a gente não é cúmplice desse violência e desse racismo, então a gente tem que
levantar a bandeira (Cleusa – representante da Rede em grupo de confecção).

Contudo, o fato de romperem com o silêncio não significa ainda que os casos de violência
tenham sido sanados na Rede de Mulheres Produtoras do Recife. Em minhas observações no Espaço
Mulher e na comunidade de Passarinho, as mulheres relataram casos de violência na família, no
bairro e trocam informações sobre isso. Nas entrevistas também coletei falas em que as assessoras
do projeto com adolescentes nesta comunidade ainda lamentavam quando uma adolescente chega
grávida no grupo, apesar de todo o trabalho de discussão do tema que vem sendo feito no bairro,
como explicou Mariana:
Dentro do Espaço Mulher lá de Passarinho, a Casa já está está lá há um bom tempo, acho
que já tem 6 anos que estamos na comunidade...lá é muito forte essa questão do abuso de
criança e adolescente e aí a gente começou a trabalhar esse tema com as jovens. É um
projeto contra a exploração sexual de jovens e adolescentes. A gente já conseguiu envolver a
escola. Inclusive as reuniões com as jovens acontecem na escola, que tem sala grande e
acontece nos sábados, porque o Espaço Mulher é pequeno para as 40. Esse já foi um
trabalho para multiplicar essas jovens, para crescerem e serem multiplicadoras no sentido de
sensibilizar outras jovens para que não caiam na questão da exploração. Também a gente
teve conversas com os familiares, tem reuniões com eles sobre o assunto. A gente fez uma
conversa com o conselho de moradores, que são as instituições que tem dentro da
comunidade. Não é uma conversa fácil, a gente tem muita dificuldade de enfrentar.

A CMN e as lideranças da Rede têm consciência que não podem fazer o trabalho do Estado
ou resolver os problemas de gênero e de violência de uma comunidade inteira. Elas vão levantando
as demandas dos bairros e das OSPs em que trabalham e desenvolvem projetos para tentar ampliar
as informações das pessoas em torno do assunto. Dessa forma, trata-se de um trabalho lento e difícil,
que apresenta uma série de limitações, mas que também vem apresentando avanços.
No que tange às questões raciais, identificamos duas experiências que se iniciaram depois de
as mulheres começarem a ter consciência sobre a discriminação, pois, segundo elas, mesmo sendo

185
negras, elas não identificavam que parte do preconceito e das dificuldades que sentiam em suas
vidas advinha de sua cor. De maneira geral, o tema fica no silenciamento e se elas não discutem, não
conseguem compreender as experiências que vivenciam.
A primeira iniciativa identificada para ampliar o debate em torno das questões raciais nas
comunidades em que trabalham é a do Espaço Mulher, onde elas organizaram um bloco de carnaval
e um evento no mês de novembro na comunidade de Passarinho:
A gente tem uma parceria, tem o carnaval, que a gente fez....porque a gente não via Carnaval
com gordo, falando sobre racismo, sobre a questão das mulheres gordas. Aí minha amiga
“ah minha filha, eu sou gorda mas eu pulo”. Pronto...Aí ficou. A gente já está há 6 anos.
Primeiro domingo depois do Carnaval a gente sai. E a gente tem também uma ação que é em
Novembro. A gente sempre faz o Mês da Consciência Negra e trabalha as questões do
racismo, da discriminação, da exclusão das mulheres negras; e no final do último sábado a
gente faz o dia da beleza com um grupo cultural, ou maracatu, ou afoxé...(Bia –
representante da Rede em grupo político).

Por ser um grupo político, as mulheres conseguem se dedicar à participação dos movimentos
de mulheres negras e articulam suas ações seguindo a agenda do mesmo. Assim, estão tentando
fazer este debate na comunidade de Passarinho, seja no interior da Associação ou nas escolas e
eventos do bairro. Elas sentem que, após esses debates, vem crescendo o número de pessoas que se
autodeclaram negras e que vem assumindo sua identidade. Para elas, o desafio é fazer com que as
mulheres negras superem a baixa auto-estima que possuem e comecem a ocupar novos espaços
compreendidos como “espaços de brancos”, tal como discutimos anteriormente. Também é uma
preocupação que mais mulheres reflitam sobre o tema para debatê-lo nos diferentes espaços em que
fazem parte, inclusive no interior de suas casas.
A segunda iniciativa tomada como exemplo é o Grupo de Reciclagem de Brasília Teimosa,
onde as mulheres organizaram um projeto nas escolas para discutir o racismo com as crianças:
Ainda hoje impera preconceito, pelo fato de ser mulher negra, de ser pobre, ter cabelo
crespo, essas coisas, o preconceito ainda reina. A gente sabe que essa história está muito
longe de acabar, mas a gente está lutando muito, trazendo pras crianças que o mundo
mudou, que a gente tem que participar de uma forma positiva. Mas tem criança que fala “ah
fulano tem cabelo crespo”, pixaim é o que dizem, né? Ou então 'sarará', mas digo que “aqui
ninguém é sarará” (Zilda – representante da Rede em grupo de artesanato e politico).

Como explica Carneiro (2003), os efeitos do racismo no imaginário social e nas relações
sociais concretas afetam diretamente a subjetividade das mulheres negras, fazendo com que elas se
sintam menos capazes ou feias, por não serem representadas em diferentes meios de comunicação,
por exemplo. A autora explica que as mulheres negras possuem baixo grau de expectativa em
relação às suas capacidades e por isso reforça a importância de ações e debates em torno da questão.
Carneiro (ibid.) descreve que muitas já pedem qualificações mais baixas por sentirem na prática os
186
efeitos da divisão racial que lhes reserva lugares subalternos no mercado de trabalho. Nas palavras
da autora, trata-se de uma “violência invisível que contrai saldos negativos para a subjetividade das
mulheres negras, resvalando na afetividade e sexualidade destas” (CARNEIRO, 2003, p. 44). A fala
de Zilda ilustra essa realidade:
Justamente, foi a partir daí que eu comecei a me valorizar, a ver que eu tinha valor, que
essas coisas que colocaram na minha cabeça que eu não era capaz, que jamais ia conseguir
meus objetivos, que eu era feia, e por ser feia porque era negra a gente não vai conseguir o
que quer. A gente tinha que se contentar com cursos de, sei lá, de vendedora, que qualquer
pessoa é capaz. Mas eu aprendi e vou mostrar que eu não vou ser vendedora nunca mais.

Exemplos como estes contribuem para ilustrar a importância das políticas sociais
desenvolvidas em torno da afirmação da identidade negra no país. Tais políticas ganharam
relevância nos anos 2000, e a partir de então, as pesquisas vêm indicando avanços significativos
para que a população negra comece a ocupar novos espaços sociais (JACCOUD, 2008).
A maior parte das mulheres explicou que no interior das OSPs não sentem preconceitos,
principalmente porque grande parte delas são negras. Elas também não sentem que nas OSPs exista
divisão racial do trabalho pautada na cor, visto que não há divisão das tarefas entre brancas e negras,
muitas mulheres negras são lideranças e não existe divisão salarial pautada no racismo. Na pesquisa
70
realizada sobre o perfil da Rede, 43,5% declararam-se negras , 34% pardas e apenas 23% brancas,
o que confirma que a maior parte das mulheres se autodeclararam negras, demonstrando outro
avanço em torno do tema (SANTOS; CASTRO, 2013).
Como explica Munanga (2004), muitos negros se autodeclaram brancos como forma de
ascender socialmente e para não ter que se deparar com a dificuldade de ser negro no Brasil. Assim,
muitas estatísticas que partem da autodeclaração acabam não revelando a cor real das pessoas.
Diante disso, conclui-se que o trabalho de autoa-firmação da negritude feito pela CMN e pelas
políticas públicas de maneira geral, vêm mostrando resultados positivos, pelo menos em relação à
construção da identidade negra. Nessa direção, podemos considerar ainda o trabalho associativo
como um espaço onde há avanços para a divisão racial do trabalho.
Contudo, num outro extremo, muitas mulheres revelaram o preconceito que sentem fora de
suas OSPs, grupos ou comunidade, evidenciando como essa superação ainda permanece nos limites
das OSPs e da Rede e não atingiu o mercado de trabalho e espaços sociais como um todo.
Exatamente por isso que as mulheres negras indicam a necessidade de desenvolver projetos em suas
70
Cabe destacar que para a definição de raça, utiliza-se nessa pesquisa a denominação negra, que é a junção de pardas e
pretas, tal como utilizado pelo IBGE. Já na pesquisa coordenada pela CMN, foram utilizados os termos pardas e negras
separadamente. Contudo, se considerarmos os critérios do IBGE e somarmos as duas categorias (pardas + negras =
negras), temos que 77,5% das mulheres seriam negras, o que corresponde a uma grande maioria de mulheres.
187
comunidades, como é o caso dos exemplos citados acima.
Outro aspecto observado é que questões como estas aparecem, sobretudo, na fala das
entrevistadas negras. Quando perguntado para as mulheres brancas, elas dizem que têm consciência
de que existe preconceito, mas não aprofundam as questões. Num dos grupos onde a maior parte é
branca, elas não vêm a mesma necessidade em torno da discussão do tema. Já entre as mulheres
negras, mesmo não sendo lideranças, pude observar a construção de uma tomada de consciência em
torno do tema, o que reflete especialmente em suas vidas como mulheres negras sujeito de direitos.
Sueli Carneiro (2003) apresenta uma discussão em torno da necessidade de “enegrecer o
feminismo” como tentativa de evidenciar questões específicas, como a da subjetividade das
mulheres negras, que muitas vezes não são contempladas pelo movimento feminista. Segundo a
autora, a opressão que a ideologia machista causa tem significado especial para as mulheres negras e
muitas vezes isso não é encarado pelos movimentos feministas. Para Carneiro (ibid.), trata-se de
evidenciar que o combate ao racismo precisa ser uma prioridade política de maneira geral, e não
somente para as mulheres negras.
Atualmente a CMN vem fazendo um trabalho de conscientização para a participação na
Marcha de Mulheres Negras, além do incentivo à participação de outros movimentos sociais para
que as mulheres se tornem protagonistas nesses espaços. Conforme explicou Mariana:
A Rede aqui ela tem que participar do Fórum de Economia Solidária. Então é uma luta que
elas têm de lutar porque é o trabalho delas, onde elas desenvolvem o trabalho, é direito.
Então a gente acredita que elas precisam participar do Fórum de Economia Solidária,
participarem das conferências como está acontecendo agora...Teve a de Recife, tinha 10
mulheres da Rede fazendo parte da conferência, colocando proposta e tal. Então a ideia é
que a gente também faz esse reforço de que é importante a participação delas, ficar
alimentando elas com o debate, com o que é esse mundo e porque que a gente deve estar
nesses espaços. Elas que têm que ser as protagonistas. Elas que têm que estar nesses
espaços, então a gente foca muito nisso.

Mariana também destaca que percebe o diferencial dos grupos que participam de outros
espaços políticos, pois elas começam a se mobilizar seguindo a agenda desses movimentos, como é
o caso do 8 de março, do dia da consciência negra, entre outros. A fala de Bia ilustra esta questão:
A gente se esforça para trabalhar a questão de gênero mesmo porque a gente que é mulher
sofre muito com isso. Aí vem a questão do fato de você ser mulher, se é casada e se não é...
hoje ainda tem a polêmica da opção sexual, a opção por ter filhos ou não, essa coisa toda. E
também a questão da inserção no mercado, porque para a gente tanto no mercado formal
como no informal é complicado enquanto mulher. Então a nossa proposta é a gente deixar
de ser aquele sujeito indeterminado ou invisível para ser sujeito mesmo da ação, onde a
gente quer ter visibilidade no empreendimento e também nas ações políticas […] A gente
participa do Fórum de Mulheres de Pernambuco, tem também o Cidadania Feminina. Tem o
Curumim que sempre nos convida; tem o coletivo Mulher Vida lá em Olinda [...] Em um
encontro nacional que fui no mês passado, eu falei com o PAPAE, uma instituição, falei pra
fazer um trabalho aqui com os meninos, porque a gente faz com as mulheres, mas os

188
meninos...e os meninos estão aí, sendo 'aviãozinho', já se envolvendo nas drogas...

Destaca-se que Bia se utiliza de termos como a construção do sujeito político mulheres, fala
da invisibilidade delas, bem como de muitos temas como gravidez na adolescência,
homossexualidade, aborto, mercado de trabalho para mulheres, entre outros, que se discutem no
movimento feminista, o que certamente se relaciona com a sua participação nos movimentos
citados. Ela também demonstra que nesses espaços consegue se articular com outras organizações
que se dedicam a temas que precisam ser trabalhados em sua comunidade, como o caso do
envolvimento de adolescentes com o mundo das drogas.
A partir disso, é possível reforçar aqui a importância da união da ES com outros movimentos
sociais, capazes não só de ampliar a qualificação política de seus participantes, como também de
relacionar as demandas sociais das localidades em que essas Organizações de ES se encontram.
Como essa pesquisa vem demonstrando, as OSPs não conseguem sanar sozinhas todos os
problemas sociais da população pobre de seu entorno. Mas o trabalho nas mesmas acaba
evidenciando essas necessidades, na medida em que aproxima mulheres que discutem as demandas
de suas famílias, delas mesmas, do bairro, etc.

4.4.4. Participação Política X Trabalho Reprodutivo


Nas entrevistas pude observar também que a participação nos espaços de atuação política que
a Economia Solidária e o movimento feminista vêm proporcionando pode contribuir para que mais
mulheres comecem a se conscientizar em torno dos temas aqui debatidos:
É um outro questionamento, porque quando você participa do movimento, você tem uma
consciência, do menino lavar a sua cuequinha, do menino lavar um prato, não só as meninas.
Então tem toda uma questão, da menina ficar em casa e o menino ir pra rua, os direito são
iguais, então as meninas também vai pra rua […] Porque eu acho que o movimento, ele abre
as portas, não é a porta, mas a porta da sua mente, e é isso que eu acho que a gente precisa
pra gente. É um direito da gente, a gente levar outras mulheres, porque eu não quero me
libertar só, quero libertar outras mulheres. E assim, depois que ela conhece um outro espaço,
elas sempre quer estar participando, “olha, vai ter quando outra reunião pra gente ir? Vai ter
outro passeio quando pra gente ir”, e a gente sempre está chamando as mulheres para
participar mesmo (Vilma – representante da Rede em grupo de artesanato).

Na pesquisa realizada na Rede, Santos e Castro (2013) identificaram que, além dos espaços
de Economia Solidária, em que a maior parte das mulheres participa, 16% delas disseram fazer parte
do Fórum das Mulheres de Pernambuco; 10% do Fórum Estadual de Reforma Urbana, 7% do
Orçamento Participativo da cidade e 6% do Conselho Municipal da Mulher.
Porém, nas entrevistas realizadas, identifiquei que são basicamente as lideranças que
participam desses espaços. Elas procuram incentivar as outras mulheres do grupo e conseguem levar
189
alguma mulher como acompanhante. Contudo, a expressiva participação é das mulheres que foram
se tornando lideranças e são mais engajadas nos grupos. Cabe destacar que um diferencial nestas
OSPs é que os grupos costumam ter mais de uma liderança. O que acontece é que vai formando um
sub-grupo daquelas que estão sempre à frente das atividades.
Ao explorar essa questão nas entrevistas, as trabalhadoras relatam dificuldades ainda
existentes para a participação de algumas companheiras, mesmo com todo o trabalho de formação
política desenvolvido pela CMN e pelas próprias mulheres no interior de cada OSP. Algumas de fato
não participam por estarem mais preocupadas com a questão da renda e não querem se envolver em
atividades políticas. Porém, muitas deixam de participar, ou pela difícil conciliação entre trabalho
produtivo e reprodutivo, que acaba causando uma sobrecarga para as mulheres, ou pelo fato de os
companheiros ainda impedirem a participação delas em determinados espaços.
Ao serem indagadas sobre a divisão de tarefas em suas casas, observou-se que a maior parte
é responsável pelas tarefas domésticas, tendo ou não companheiro. Uma parte delas são viúvas ou
chefes de família, logo são as únicas responsáveis pelo trabalho reprodutivo. Outras têm o marido
doente, ou que trabalham no espaço público e passam a maior parte do tempo fora de casa.
Conforme identificado na pesquisa da Rede (CASTRO; SILVA, 2013), 61% das mulheres
entrevistadas são casadas e 24% solteiras, sendo que 88,7% têm filhos e desses 67,3% são adultos.
Aparentemente essas mulheres possuem maior disponibilidade para o trabalho, já que não teriam
mais que dedicar o seu tempo ao cuidado dos filhos, podendo se voltar a vida profissional no espaço
produtivo. Contudo, reforçando o papel delegado socialmente às mulheres, muitas são responsáveis
pelo cuidado dos netos, o que também influencia na disponibilidade para o trabalho e,
principalmente, para a participação em reuniões e fóruns sociais, além de outras atividades
formativas que se dão fora do local de trabalho (SANTOS; CASTRO, 2013).
Nessa direção, a maior parte das mulheres entrevistadas disse ser responsável pelo trabalho
reprodutivo, ou seja, pelo trabalho doméstico e pelas atividades de cuidado da família (filhos/as,
netos/as e pessoas idosas). Algumas disseram ter ajuda dos companheiros, principalmente quando
eles são cobrados disso, mas poucas responderam que o trabalho doméstico é compartilhado. No
caso das mulheres com filhos pequenos, quando precisam delegar a função de cuidado para
participarem de alguma atividade de trabalho, elas deixam os filhos e filhas na vizinha ou com um
membro da família. Poucas mulheres citam que deixam os filhos na escola ou creche, o que
evidencia como as mulheres não contam com o aparato do Estado em relação ao cuidado das
crianças, sendo elas as principais responsáveis pelas mesmas. Nesse caso, o artesanato realizado em

190
casa acaba facilitando a vida das mulheres na articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo.
Muitas das participantes da pesquisa trabalham em suas próprias casas (47%) e os filhos
pequenos ou netos ficam junto com elas. Elas também levam as crianças para as feiras, formações,
reuniões e outras atividades, quando não têm com quem deixá-las. O mesmo vale para os netos.
Cabe notar ainda que o trabalho produtivo realizado em casa acaba contribuindo para que o
trabalho doméstico seja vinculado às mulheres. Como o trabalho do artesanato se dá no espaço da
casa, elas acabam entendendo que são as principais responsáveis por conciliar trabalho produtivo e
reprodutivo, já que os dois se dão no mesmo espaço.
No caso das lideranças do grupo e de algumas mulheres isoladamente, elas conseguem
negociar a divisão de tarefas e elaborar alguns arranjos com os seus companheiros e familiares para
participar de outros espaços políticos. Em alguns casos, elas também conseguem se organizar
coletivamente para essa participação. Ou seja, enquanto algumas trabalham na produção, outras
participam dos espaços políticos, representando o grupo, e assim vão buscando formas de não
sobrecarregar todas as mulheres.
Contudo, de maneira geral, de fato existe uma sobrecarga por terem que realizar as tarefas
domésticas e, somado a isso, aumentar a produção para terem maior renda, participar de feiras e
espaços de produção, das atividades formativas técnicas e políticas da Rede, organizadas pela CMN,
e ainda seguir a agenda de todos os movimentos sociais aos quais se vinculam.
Já sobre a privação de algumas mulheres, identificou-se nas entrevistas que alguns
companheiros permitem a participação das mulheres no interior das OSPs, mesmo porque elas
acabam “levando dinheiro para a casa” e os maridos sabem onde elas estão. Quando as mulheres
começam a contribuir significativamente com a renda da família, pode iniciar a permissão para que
elas participem pelo menos dos espaços em que haverá comercialização. Contudo, para participar de
reuniões ou para viajar já é um pouco mais complexo:
A gente tem um porém dentro das comunidades, que é a participação ativa de todas, porque
nós vivemos em comunidades carentes que os maridos não aceitam que as mulheres saiam
do seu contexto. A maior aceitação das mulheres é dentro do grupo, eles impõe limites: se
for para estar perto de casa sim, se for para estar saindo não vai. A ideia deles é que se saiu
vai botar “gaia”, então assim, é bem restrito. Agora mesmo a gente conseguiu que uma
menina, que já faz 5 anos que atua no grupo produzindo, que ela fosse para a viagem de
Brasília para um protesto sobre o lugar da política de ES do Ministério da micro e pequena
empresa. As mulheres têm 5, 6 ou 7 anos no grupo, mas os maridos são uma cabeça muito
difícil de trabalhar (Cleusa - representante da Rede em grupo de confecção).

Observa-se que com o passar do tempo, algumas mulheres começam a participar, mas os
desafios ainda são grandes. Outras falas indicam a mesma situação de limitação de suas liberdades

191
enfrentada pelas mulheres, bem como revelam a negação por parte dos maridos em dividirem o
trabalho de cuidado dos filhos e filhas com elas:
Não é fácil trazer as mulheres de dia pra uma reunião. A gente levava muito o nome de
vadia. Infelizmente, o machismo ainda existe e muito. Algumas diz “eu não vou porque
meu marido fica reclamando, porque não quer ficar com as crianças: “não sei porque tu
perde tanto tempo com esse negócio de formação, de curso, porque isso aí não vai levar a
lugar nenhum”. Aí outras dizem assim “ah eu não vou não, toda vez que eu chego em casa é
uma briga”. A dificuldade é essa, porque a maioria das mulheres tem família e os homens
ainda hoje acham que os filhos é obrigação da mulher, que ele não pode olhar os filhos
enquanto ela vai participar de uma capacitação. “Vai, mas pode levar sua 'renquinha' de
filho” (Bia – representante da Rede em grupo político).

Em minhas observações, também identifiquei que existem grupos, sobretudo os menos


engajados nas questões políticas aqui debatidas, que acabam reproduzindo entre elas uma série de
representações sociais que definem os papeis de homens e mulheres na sociedade, pautados em
preconceitos e na diferenciação biológica. Elas falam, por exemplo, sobre a sua “tarefa” de ter que
cuidar do marido. Dizem que se saem um dia eles até fazem uma comida, mas não podem se
ausentar por muito tempo para não “matar o marido de fome”. Frases como, “ela não pode ir porque
tem marido pra cuidar”, ou o filho para cuidar, são frases que se repetem em algumas OSPs.
Outro aspecto identificado foi a proibição não apenas do marido, mas uma certa dificuldade
em discutir a divisão sexual do trabalho com mulheres que se vinculam a algumas religiões:
O que mais tem aqui é igreja. É uma comunidade pequenininha e tem quase 20 igrejas, só
tem duas católicas, o resto é tudo evangélica. Não tem nenhum candomblé e nenhum centro
espírita. E o mais difícil é discutir a questão das mulheres e a questão da religião, porque a
igreja, eu falo isso por causa da minha filha, que agora ela cismou de ser crente, mas tudo
bem, é um direito dela. Mas é aquela coisa, a igreja deixa a mulher muito submissa, porque
o pastor “fique com seu marido, ruim com ele, pior sem ele”. Aquela coisa que a gente
escuta, “casou tem que viver, o homem precisa da mulher”. Quem foi que disse isso? Em
um encontro que a gente fez agora, veio uma evangélica e ela ficou encantada, porque ela
tinha uma outra visão, achava que a mulher era vadia, não discutia nada e viu depoimentos
que a gente ficou na questão da violência; e ver pessoas da família dela que sofreram e ela
viu outras pessoas contando a mesma coisa que ela vê na família...(Zilda – representante da
Rede em grupo de artesanato e político).

Não farei uma análise sobre o papel da igreja em relação à divisão sexual do trabalho e da
violência contra a mulher. A questão importante aqui é juntar elementos que dificultam a
participação da mulher em alguns espaços e o seu engajamento político. Esta é uma realidade que os
grupos enfrentam e que aos poucos as mulheres conseguem trabalhar coletivamente.
Essas questões revelam uma série de complexidades que envolve o trabalho que estimula a
auto-organização das mulheres, bem como demonstra a importância do trabalho de formação no
tocante às questões de gênero e raça, na maior parte das vezes não aprofundada pela Economia
Solidária. Conforme descreveu a coordenadora da CMN, o fato de uma mulher não participar de um

192
fórum, ou não viajar para outra cidade representando o grupo porque tem que ficar em casa
cuidando do filho, muitas vezes não é interpretado como uma questão de gênero na ES. Para a
coordenadora, “é isso que incomoda e o movimento não quer assumir essa história, não quer tratar.
E a nossa estratégia é que as próprias mulheres pautem”. Contudo, inseridas na mesma lógica
estruturante das desigualdades de gênero, as mulheres participam dos fóruns e conferências, mas
nem sempre pautam esses desafios.
Muitas vezes as mulheres demonstram sua capacidade de agir e de ocupar espaços no interior
dos grupos, na reunião da Rede, nas formações com a Casa da Mulher. Porém, ao chegar aos
espaços dominados pelos homens e que apresentam outras dinâmicas, a ocupação desse espaço de
poder torna-se mais uma vez delicada, fazendo com que muitas se calem por se sentirem oprimidas.
Portanto, além de ser difícil que elas participem, quando participam ainda enfrentam outras questões
de machismo dos próprios companheiros dos movimentos sociais que não estão sensibilizados para
essas questões, o que torna a participação das mulheres cada vez mais complexa.
Quando tem intercâmbio...teve um dia que eu fui, e era pra uma comunidade que tinha uma
porrada de tecnologia agroecológica e tal, muito bacana, trabalho muito bem feito por sinal.
Tinham simplesmente 4 mulheres dentro da van e mais de 15 homens, aí eu perguntei “por
que só vieram 4 mulheres?” Aí disseram que era o presidente do candidato que saiu
chamando só os homens, e a desculpa era que os homens não queriam que as mulheres
fossem. Quando foi o intercâmbio da Casa, a primeira coisa era que tinha que ser 50%
mulher e 50 % homem, a gente não quer intercâmbio nosso, se não tiver mulheres. Isso a
gente tem que estar brigando […] Aí eu cheguei nessa comunidade e a mãe estava lá
quietinha só olhando e o filho apresentando tudo, falando que ele quem fez tudo, mentira!
Quando fui entrevistar a mulher ela disse que tudo quem começou foi ela! E elas estavam
com o pé lascado de tanto trabalhar, é a primeira a acordar e a última a dormir, faz todas as
refeições e cuida da galinha, do quintal, toda a plantação, vai pra roça, volta. Essa é uma
realidade de várias que eu entrevistei. Aí quando você começa pegar isso e dizer “gente,
vamos mudar o discurso”, porque não são os homens que estão fazendo, são as mulheres, e
esse discurso tem que começar a mudar aqui dentro. A gente esta provocando isso.

Nota-se, portanto, que nos espaços mistos de trabalho, outros desafios são apresentados com
relação à invisibilidade e valorização do trabalho das mulheres, o que acontece em diferentes
movimentos sociais, inclusive na Economia Solidária, como já descrito no capítulo anterior.
Outro aspecto a ser destacado neste tema, e indicado pelas trabalhadoras entrevistadas, é a
relevância e valorização que se dá para a participação política em determinados espaços, em
detrimento da participação política que pode ocorrer no interior das próprias OSPs ou em suas
comunidades. Nesses espaços, as mulheres conseguem participar com maior facilidade, e muitas
vezes se identificam mais, por se sentirem úteis e acolhidas. Foi identificado, por exemplo, que há
grande participação das mulheres nas Associações de bairro, nas escolas da comunidade, além da
dedicação de passar nas casas das mulheres para fazer uma campanha ou para convidá-las para
193
participar da OSP, entre outros espaços e ações locais, que não deixam de ser também políticos.
Contudo, não se trata de locais com a mesma relevância política no sentido de articulação e tomada
de decisão que definem, por exemplo, políticas públicas e estratégias sociais.
É necessário reconhecer que existe uma diferença de participação nos movimentos sociais,
fóruns e conferências, por exemplo, devido ao peso de decisão política e capacidade de articulação e
transformação que esses espaços proporcionam. Porém, não podemos deixar de considerar que
também existe uma política local, criada pelas mulheres, que traz resultados consideravelmente
positivos para as comunidades nas quais elas estão inseridas, mas que muitas vezes são vinculadas à
expressão do doméstico e não como trabalho com contribuição social, econômica e política.
Trata-se, portanto, de desafios que a ES precisa enfrentar no diálogo com o movimento
feminista, o que é uma tarefa difícil, que está em construção e que depende da capacidade de
articulação desta ES com outros movimentos sociais e com o Estado.

Considerações do capítulo
Iniciei este capítulo a partir da identificação da diversidade dos grupos de mulheres que
compõem a Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana. Esta sistematização
fez-se necessária como forma metodológica de análise dos grupos de mulheres que se dedicam ao
trabalho coletivo/associativo, visto que eles são mais complexos do que parecem ser e não podem
ser analisados da mesma forma. Ou seja, os grupos que se unem para geração de renda terão um
foco e acabam se especializando mais tecnicamente, já aqueles que se unem apenas pela convivência
e com caráter terapêutico entre mulheres, apresentam outros objetivos e desenvolvem algumas
atividades, enquanto aqueles que se unem com um caráter político, alcançam objetivos sociais mais
amplos. Em algumas iniciativas, essas características se cruzam e se complementam, mas existem
especificidades importantes nos objetivos das mulheres quando se vinculam a uma Organização
Social Produtiva.
Cada uma dessas motivações que auto-organiza as mulheres, no entanto, são válidas e
importantes. A diferença está em onde esses grupos chegarão no sentido de romper com aspectos
estruturais como a divisão social, sexual e racial do trabalho, bem como com questões de violência
doméstica, falta de recursos sociais em suas comunidades, etc.
No caso estudado, tendo o apoio da CMN, a tentativa é que esses grupos se unam numa
perspectiva política, feminista e atni-racista mais ampla, buscando romper com desafios sociais
estruturantes para as mulheres, o que nem sempre é objetivo da Economia Solidária como um todo.

194
Muitos grupos investigados acabaram ampliando as suas motivações iniciais e praticamente
todas as mulheres das OSPs pesquisadas adquiriram novos conhecimentos e ampliaram as suas
qualificações. Destaca-se a formação de lideranças advindas da oportunidade social que obtiveram a
partir da organização coletiva.
Contudo, de fato notou-se uma diferença entre os resultados conquistados pelos grupos que
se dedicam aos problemas de seus bairros, que participam dos movimentos sociais e que se
envolvem com questões políticas, numa perspectiva de união de diferentes movimentos sociais;
quando comparados àqueles que se restringem à convivência e renda e que foram formados como
consequência de políticas públicas de geração de renda. Ou seja, estes últimos não apresentam a
mesma construção em torno da consciência de classe, gênero e raça, como um processo coletivo de
construção que se materializa nas práticas sociais e lutas cotidianas travadas, quando comparados a
outros grupos que lutam mais explicitamente com a motivação da consubstancialidade das relações
sociais.
Como demonstrado ao longo desta pesquisa, nem sempre a noção de trabalho
coletivo/associativo presente na Economia Solidária está vinculada às noções de superação das
condições estruturais de classe, raça e gênero. Assim como nem sempre as propostas de Economia
Solidária unem-se a lutas de outros movimentos sociais em busca de modificar estruturas complexas
e consubstanciais da sociedade. Portanto, embora haja um espaço propício possibilitado pela
organização coletiva e pelas oportunidades que se abrem a grupos que antes não tinham acesso a
algumas aprendizagens, nem todos os grupos terão as mesmas condições, possibilidades e desejos de
caminharem nessa direção.
Com isso, não é apresentado aqui um julgamento em torno dos grupos de mulheres quanto
aos seus objetivos de formação, mas faz-se necessário ressaltar a necessidade de as políticas
públicas que incentivam o trabalho coletivo/associativo possibilitarem reflexões e ações que
ofereçam oportunidades mais propositivas em torno da consubstancialidade das relações sociais que
estruturam a sociedade. Faz-se necessário pensar em termos de união de diferentes movimentos
sociais a fim de avançar nas possibilidades de autogestão parcial nos termos discutindos nesta
pesquisa.
Cabe ressaltar que, ao falar em autogestão parcial, retomo o conceito como discutido no
primeiro capítulo desta tese, no qual pelos quatro fatores se relacionam: (i) “a superação da distinção
entre quem toma as decisões e quem as executa”; (ii) “a autonomia decisória de cada unidade de
atividade”; (iii) valorização da participação das pessoas em todas as esferas da organização”(FARIA,

195
2009, p.324) e; iv) perspectiva de rompimento da divisão sexual e racial do trabalho nas atividades
quotidianas das Organizações Sociais Produtivas. Cabe ressaltar que os três primeiros aspectos
foram indicados por Faria (2009), mas, a partir desta pesquisa, o último aspecto também pode ser
incluído, já que ela vem concluindo que não há possibilidades de autogestão sem a inclusão do
rompimento da divisão sexual e racial do trabalho, pelo menos no interior das organizações sociais
produtivas.
No que tange à classificação dos grupos de mulheres, utilizados metodologicamente na
pesquisa, notou-se que a maior parte delas pertencia aos grupos dois e três, porém, houve
significativa mobilidade entre os grupos. Muitas mulheres tornaram-se lideranças, buscaram se
escolarizar chegando à faculdade, realizaram cursos e ampliaram suas qualificações, fazendo com
que mudassem de grupo ao longo de suas práticas nas OSPs. Essa possibilidade de mobilidade é
também uma das principais conclusões desta pesquisa, já que ela afirma a necessidade de
oportunidades sociais destinadas a determinados grupos em que as relações consubstanciais se dão
de maneira mais expressiva. Em outras palavras, quanto mais consubstanciais forem o cruzamento
das relações de classe, raça e gênero, mais difíceis são as possibilidades de ascensão social desses
grupos. Logo, oportunidades advindas do trabalho coletivo numa perspectiva de união de distintos
movimentos sociais, podem oferecer novos caminhos de constituição de sujeitos sociais.
Paralelamente a esses resultados positivos, foi identificado o cuidado para não criar uma
sobrecarga na vida das mulheres nessas OSPs. Em alguns grupos foi observado, por exemplo,
aumento da renda e dos conhecimentos das mulheres em torno da técnica de artesanato que
trabalham, o que era um dos seus objetivos principais, mas, de outro lado, observou-se queda na
participação nos fóruns e movimentos sociais. Desse mesmo modo, nos grupos onde há grande
participação política, há também certa dificuldade de especialização técnica. Ou seja, existe uma
dificuldade humana de conciliar tantas atividades técnicas, políticas e coletivas, com as tarefas
domésticas, fazendo com que as mulheres tenham que escolher entre elas.
A questão principal se dá em torno do conceito social de trabalho das mulheres, já que a
função delas na sociedade continua se dando em torno do seu papel exclusivo de dedicação às
tarefas domésticas e de cuidado com a família, responsabilizando elas próprias pela conciliação
entre produção e reprodução, público e privado, trabalho valorizado e não reconhecido.
Numa avaliação da coordenadora da CMN, essa questão é apresentada como uma
preocupação para ser trabalhada na Rede:
Quantas e quantas mulheres chegam e dizem assim “a gente não vai mais pra feira, a gente
não tem mais tempo pra fazer nada”. O tempo que elas têm de se organizar, de produzir, ir

196
pra feira, isso tudo é uma carga de trabalho muito grande para as mulheres. O custo desse
acesso ao mercado para as mulheres tem sido muito caro, porque na verdade elas continuam
se unindo à outra jornada.

Ao discutir a questão da sobrecarga do trabalho das mulheres, Cruz (2005) aponta que esse é
um debate necessário e caro para elas. Para a autora, sem enfrentarmos a discussão do
compartilhamento das tarefas domésticas, não conseguiremos estar no mundo do trabalho produtivo
e assalariado em pé de igualdade com os homens. Seja no trabalho coletivo/ssociativo, ou em
qualquer outra forma de trabalho, este será um debate necessário. Nas palavras da autora:
Não quero com isso trazer o discurso dos segmentos de direita conservadores no país que
estão utilizando argumentos do excesso de atividades das mulheres que decidiram sair para a
esfera pública do trabalho e que agora estão cansadas e desejam retornar para seus lares.
Ora, se algumas mulheres fazem de volta este percurso, é porque não contam com nenhuma
co-responsabilidade de seus companheiros e do estado brasileiro no cuidado com a família e
a casa. O que temos denunciado é a crescente discussão trazida pelas mulheres da
necessidade da sociedade, estado (por meio de oferta de creches, restaurantes e lavanderias
comunitárias, por exemplo), companheiros e filhos entenderem seus papéis como
responsáveis também pelas atividades de reprodução da vida humana. Só assim, as mulheres
terão uma inserção no mundo do trabalho produtivo mais igualitária (ibid., p. 3).

Para encarar essa relação entre trabalho produtivo e reprodutivo de mulheres, há uma
demanda pela necessidade de debater as questões de gênero e raça para que elas sejam
definitivamente incorporadas pela Economia Solidária como um debate político e não pessoal.
Nessa direção, a Casa da Mulher do Nordeste enxergou na Economia Solidária um campo
fértil para repensar o conceito de trabalho, numa dimensão coerente com a proposta de autogestão
parcial. Contudo, precisou fazer parte da coordenação do FBES e se articular com a Economia
Feminista para que as mulheres fossem visualizadas na ES. Dessa forma, as contradições e os
debates que a Rede apresenta são fundamentais para a ampliação das potencialidades
autogestionárias da ES, o que demonstra a importância dos movimentos feministas para a mesma.
Como bem avaliado pela coordenadora da CMN, há uma necessidade de a ES compreender o
debate em torno do trabalho das mulheres, por exemplo, o que significa auto-organização e
autonomia das mulheres das OSPs, para além da geração de renda, no sentido de que elas precisam
ser sujeitos, que elas é que vão discutir o seu projeto econômico, elas que vão brigar pelo espaço, e
sobretudo, que elas vão também fazer a discussão dentro de suas próprias relações familiares.
Conforme a coordenadora da Casa relatou:
Ao longo desses anos a Casa foi amadurecendo e percebendo que as mulheres precisam ter
renda, mas só isso não bastava. A gente foi percebendo que muitas vezes elas não botavam a
mão no dinheiro que levavam pra casa, ou então que ela começou a receber um resultado,
materialmente falando, interessante, melhoria das condições de vida da família e dela, mas
que vivia uma situação de opressão. Ela não incidia na sua vida comunitária nem na sua
cidade. Então a gente foi vendo que essas duas dimensão são indivisíveis, a política e a

197
econômica, e na social que se articula. E isso deve estar na base da Economia Solidária.

Uma contribuição da ES aos movimentos feministas populares é que ela conseguiu revelar
uma série de iniciativas de mulheres que estavam isoladas em suas comunidades, mas já existiam, e
mostravam a capacidade delas de se organizar coletivamente na luta por direitos. A ES também
contribuiu na luta por conquista de créditos sociais capazes de potencializar a auto-organização das
mulheres. Mas, de outro lado, ela ainda não corresponde à amplitude das necessidades apresentadas
por esses grupos de mulheres, o que precisa ser construído.
Degavre (2011) destaca que muitos dos projetos sociais destinados às mulheres, inclusive os
denominados de ES, as consideram vitimas da falta de interesse e não vitimas das relações de
dominação de classe, raça e gênero no seio de suas sociedades de origem. Assim, tais projetos não
são capazes de incorporar essas necessidades apresentadas de maneira mais ampla, relegando às
próprias mulheres a luta pelos seus direitos.
Cabe destacar ainda, que se a participação do movimento feminista trouxe benefícios para o
trabalho das mulheres na ES, mesmo que com lacunas, resultados parecidos não ocorreram em
relação às questões raciais. Embora as OSPs venham mostrando avanços no que tange à divisão
racial do trabalho e identificação de raça por parte das mulheres negras, os movimentos de luta
contra as desigualdades raciais não participaram da mesma forma na construção da ES, e o
movimento feminista, por sua vez, não incorporou a questão do racismo de maneira mais ampla. No
caso do trabalho da CMN observaram-se avanços, pois ela considera as questões raciais em suas
formações. Contudo, na ES, ainda existem muitas lacunas.
O capítulo mostrou também a dificuldade de praticar o trabalho coletivo de fato. Muitas
mulheres se juntam para comercializar, participar das feiras, conviver e socializar informações, mas
ainda existem dificuldades para dividir o trabalho coletivamente. Notou-se que a mudança do
comportamento individualista no modo de trabalho para uma postura solidária é um processo e que
só poderá ser construído na prática de cada grupo. É só na prática e encarando esse debate que essa
proposta de gestão coletiva poderá de fato se ampliar, na medida do possível, no interior desta
sociedade em que vivemos e seguindo a realidade de cada uma das OSPs que se lança a esse desafio.
Não há, portanto, uma fórmula mágica que a Economia Solidária pode oferecer para isso.
Dessa forma, a experiência da Rede mostrou a complexidade das iniciativas de mulheres que
se lançam ao desafio de participar de uma Organização Social Produtiva. Existe uma série de
questões que dificultam a participação das mulheres e que fazem parte da estrutura de classe, raça e
gênero da sociedade, como por exemplo, questões relacionadas à violência, baixa-autoestima de
198
mulheres negras, dificuldade de falar em público, abuso sexual de adolescentes, miséria, fome, falta
de transporte público, dificuldade de moradia digna, entre outras. Tal realidade vai tornando a
situação dos grupos de mulheres muito mais difíceis. Logo, conseguir manter um grupo diante
dessas questões já é uma grande luta. Conseguir ampliar as suas aprendizagens e qualificações já
torna essa luta ainda mais ampla. Novas conquistas dependerão, contudo, de cada realidade e dos
avanços que cada OSP e em Rede conseguirão atingir coletivamente.
Às pesquisadoras da temática e organizações sociais que trabalham com esses grupos, cabe
compreender essa complexidade e analisar esses grupos seguindo os seus objetivos, sem querer que
eles sejam mais do que realmente são. Ou seja, sem querer que eles apresentem uma grande proposta
ultra-transformadora sem que tenham potencial e desejo para isso, mesmo porque a experiência da
Rede demonstrou que essas propostas mais combativas dependem da articulação de uma série de
atores, como as próprias mulheres, os movimentos sociais, o Estado, as organizações sociais que
trabalham com os grupos, universidades, etc.

199
Capítulo 5. Relações entre a precariedade do trabalho e a participação de mulheres (negras)

- Quais são as dificuldade aqui no trabalho?


- Ah...dificuldade?...não tem nenhuma não!
- E as condições de trabalho, o calor, o barracão, os conflitos? Essas
coisas que você comentou.
- Ah esse tipo de dificuldade. Isso tem mesmo, mas é pequeno. É que
eu criei todos os meus filhos no lixão, aí lá que era dificuldade. Aqui é
ótimo! Entende?(Mercedes).

A Cooperativa de triagem de resíduos sólidos “Bom Sucesso”, localizada na região de


Campinas/SP, estruturou-se a partir do ano de 2002, sendo parte do Programa de Coleta Seletiva da
cidade. Tal programa foi iniciado em decorrência do fechamento dos lixões como política estatal,
incentivando a abertura de uma série de cooperativas dedicadas à triagem dos resíduos sólidos.
Até este processo, a forma predominante de manejo dos resíduos sólidos urbanos no país era
a céu aberto. A partir da década de 1970 é que se inicia o processo de refletir sobre o esgotamento
deste modelo, numa convergência entre classe política e movimentos ambientalistas
(DEMAJOROVIC, 1996).
Segundo Demajorovic (1996), como decorrência deste período inicia-se a elaboração de uma
série de leis para repensar o modelo de gestão dos resíduos urbanos e a reciclagem de materiais
como plástico, vidro, metal e papel. Dessa forma, o setor passou a chamar atenção das empresas e
iniciativas privadas como uma nova possibilidade de investimento.
Paralelamente, é também um setor que chamou atenção das políticas de inclusão social, já
que havia uma parcela da população que trabalhava nesses lixões recolhendo materiais para vender e
até mesmo deles retirando sua subsistência. Tal parcela dificilmente seria incorporada por outros
setores de trabalho devido à baixa escolaridade e ausência de formação profissional.
Conforme explicou a presidenta da Bom Sucesso, com o fechamento dos lixões as pessoas
tiveram que montar cooperativas, pois sem estudo e com pouca experiência no mercado, não
conseguiriam encontrar trabalho:
A cooperativa formou por a gente ser pessoas de comunidade pobre e estar trabalhando no
lixão. Foi eu que comecei, porque a gente não conseguiu outro lugar de trabalho. O estudo é
pouco, então não conseguimos outro lugar de trabalho. Então aí acabou fechando o lixão e a
gente teve que procurar alguma coisa. Eu procurei junto ao Paulinho, que era o prefeito, e
ele me sugeriu cooperativa. Aí eu pedi para que se ele tivesse alguém que pudesse me
explicar o que era a cooperativa, porque até aí eu não sabia o que era (Carmem).

Carmem relatou que ficou sem fonte de renda e de subsistência pelo fechamento do lixão
onde trabalhava, então teve que buscar outros trabalhos. Ela não queria trabalhar como empregada
doméstica e foi buscar atividades como ajudante de cozinha, vendedora, auxiliar de escritório, entre
201
outras tarefas comumente delegadas às mulheres negras com baixa escolaridade, tal como discutido
no capítulo anterior. Carmem chegou a se inscrever numa empresa para varrer o chão. Na entrevista,
porém, disseram que ela era gorda e que não poderia trabalhar.
Meu filho nasceu com bronquite e com o pulmão fraco. O médico dizia que ele não podia
nem chorar. Então fiquei cuidando dele e parei de trabalhar. Nessa época era o marido que
trabalhava. Um dia ele não tinha dinheiro nem para comprar o material dos filhos e o filho
melhorou. Aí voltei para o trabalho. Casa de família, doméstica...não gostava, nunca gostei!
Então me inscrevi numa empresa para varrer o chão. Na entrevista disseram que eu era
gorda e que não poderia trabalhar. Ah, mas eu fiquei tão revoltada. Aí eu fui pro lixão. Lá
era trabalho pra preta, gorda e podia trabalhar poucas horas por dia e voltar para a casa e
cuidar do menino meu. Mas eu fiquei tão revoltada que fui falar com prefeito (Carmem).

Tal situação mais uma vez ilustra a tese de algumas autoras que estudaram o conceito de
qualificação a partir da sociologia do trabalho (LIEDKE, 2005; NEVES, LEITE, 1998; LEITE,
RIZEK, 1998). Para essas autoras, o conceito de qualificação não está apenas atrelado a um saber
cognitivo (desempenho técnico, aprendizagens teórico-práticas, treinamentos formais) e a
determinadas habilidades sociais, mas também relaciona-se ao grupo de origem sócio-econômica,
de sexo e de raça de quem desenvolve tais habilidades.
Neves e Leite (1998, p.11), compreendem que, de uma maneira ampla, “a qualificação do
trabalhador compõe um conjunto de saberes escolares, técnicos e sociais, que o tornam capacitado
profissionalmente”, no entanto, essa capacitação não acontece isolada nas relações econômicas, mas
também se compõe de aspectos culturais e das representações simbólicas que envolvem o gênero e a
raça, por exemplo. Nas palavras de Carmem: “hoje eu não tenho vergonha de dizer isso, mas mulher,
preta, gorda, ia arrumar emprego onde? E casa de família eu não queria de jeito nenhum”.
Dessa forma, o que Carmem vivenciou ao procurar emprego foi a materialização desta
representação simbólica que define a qualificação de uma pessoa a partir de sua aparência, somado
ao fato de ter enfrentado a descontinuidade de sua trajetória no mercado de trabalho por ser mulher
e, consequentemente, ter a função de cuidado do filho doente.
Como discutido anteriormente, a divisão sexual e racial do trabalho, somada ao ciclo vicioso
que aloca os negros em posições subalternas no mercado, dificultam a inserção da mulher negra em
alguns postos de trabalho e facilitam sua inserção como empregada doméstica (CARNEIRO, 2014,
HASEMBERG; LIMA, 1999). Esta foi a sua principal motivação para fundar a Cooperativa de
triagem de resíduos sólidos Bom Sucesso, ou seja, foi a coextensividade das questões de classe, raça
e gênero que a presidenta da cooperativa sentiu em sua trajetória de trabalhadora que a motivou à
formação da cooperativa, somada ao momento social propício para tal.
Ainda sobre esta trajetória de Carmem, outros dois aspectos podem ser destacados. O

202
primeiro deles é a repulsa por ser “doméstica em casa de família”, como dizem as entrevistadas.
Essa é uma fala recorrente na entrevista de outras mulheres da cooperativa, principalmente das
mulheres negras. Elas narram situações de humilhação e de não reconhecimento do trabalho
realizado e, por isso, não querem voltar a essa condição. A fala abaixo ilustra essa relação:
Eu gosto mais daqui do que de casa de família, porque em casa de família você tem que
estar cumprindo hora, dia, é muita exigência, é muita limpeza, dá muito trabalho. Aqui é
mais livre. Em casa de família em 8 horas tem que fazer serviço de 16 horas. Você chega
tem a louça da janta. Aí desarrumaram a cama, você tem que arrumar; aí tem a louça do café
da manhã... Hoje as patroas não tem muita gente, aí você lava na máquina, mas tem que
passar e guardar. Aí você deixa tudo arrumadinho e no outro dia tem toda aquela bagunça de
novo, as pessoas não fazem nada. Quando trabalha pra casal ainda dá, mas se você entra
numa casa que tem criança, você fica doida. Você vai arrumando e a criança vem
desarrumando. Aí tem que cuidar da criança, você não pode falar alto que ela liga para o pai.
Ai, eu não tenho paciência! Então a cooperativa é melhor (Miranda).

O outro aspecto é o fato de a motivação para montar uma cooperativa ser o desemprego e o
trabalho anterior no lixão e não a proposta do trabalho associativo e coletivo, tal como já
observamos em outras iniciativas estudadas. Em sua trajetória, ao identificar a situação de exclusão
pela qual passou na empresa para varrer o chão, Carmem se indignou e foi falar com o prefeito da
cidade de Campinas, a fim de buscar uma solução para ela e outros trabalhadores e trabalhadoras
que passariam pela mesma situação:
Durante duas semanas seguidas eu entrava na prefeitura e ficava esperando na porta da sala
dele (do prefeito) para falar o que tinha acontecido. Então um dia consegui conversar com o
Toninho e ele falou de cooperativa. Me perguntou se eu sabia que existia outra forma de
trabalhar diferente das empresas que eu estava procurando. Eu gostei da ideia e junto com a
Dona M. comecei organizar mais gente. Teve o apoio da prefeitura que tava começando
nessa ideia de montar cooperativa para os pobres sem estudo. Foram 6 meses atrás das
pessoas até conseguir gente para montar e apoio da prefeitura (Carmem).

Dessa forma, a cooperativa Bom Sucesso foi fruto de uma proposta de inclusão social para a
geração de renda para uma parcela da população excluída do mercado de trabalho, somada a
políticas locais e estaduais que colocavam em prática novos modelos de gestão dos resíduos sólidos
urbanos. É também um momento do auge da reestruturação produtiva e das políticas neoliberais no
país, com aumento do desemprego, propostas de privatização de empresas estatais e ressurgimento
de iniciativas como o trabalho cooperativo para corresponder às políticas de flexibilização dos
direitos trabalhistas. Essa soma de fatores, portanto, influenciará o setor de reciclagem como um
todo e a organização das cooperativas que se encontram na base da cadeia produtiva deste setor.
Como explícito em sua fala, foram seis meses até que Carmem conseguisse apoio formal da
prefeitura e de outras organizações sociais para o trabalho, além de gente suficiente para iniciar uma
cooperativa. Cabe ressaltar que na época, início dos anos 2000, precisava de vinte pessoas para a

203
legalização de uma cooperativa e a ideia ainda era recente, logo muitas trabalhadoras e trabalhadores
não queriam aderir à proposta por medo ou por não compreender direito o que seria uma
cooperativa. Muitos preferiam seguir trabalhando nas ruas sem ter que se organizar em grupo.
A Bom Sucesso esteve inicialmente sediada, no ano de 2002, em um barracão alugado pela
Prefeitura no bairro Nova Aparecida. Atualmente sua sede e barracão se encontram no bairro Vila
Reggio, na periferia de Campinas. Essa mudança, no entanto, foi um processo de luta política
relativamente oneroso para os/as trabalhadores/as, que levou à desistência de algumas pessoas.
No início da formação da Cooperativa Bom Sucesso, além do esvaziamento pela mudança de
local e incerteza se a cooperativa conseguiria ou não um barracão adequado, houve também
desistência pelo tipo de trabalho “pesado, sujo e cansativo” a ser realizado, como dizem as catadoras
entrevistadas, sobretudo aquelas que não trabalhavam no lixão anteriormente:
Aí veio a reunião pra cá, reunião pra lá e quando eu cheguei, já tinha um monte de coisa que
eu não entendia o que era [..] E eu achei que não dava pra mim não, porque eu tenho
problema de coluna, então falei que queria ficar na mesa. Aí o que entrou mesmo naquele
tempo era só papel e tinha que por a mão naquele monte de papel e vinha um monte de
coisa, vinha bichinho e eu fui ficando apavorada. Aí eu falei “Ai meu Deus, acho que eu vou
cair fora dessa coisa, não é pra mim não” (Aurora).

Algumas pessoas também desistiram por não terem se identificado com a forma coletiva de
organização, em que elas mesmas tinham que cobrar trabalho umas das outras. A impressão que
tinham era que havia certa falta de organização e ficavam se cobrando. Essa situação foi resolvida
somente quando se formou um grupo mais consolidado e quando as pessoas foram se acostumando
com a nova forma de organizar o trabalho:
E também tinha muita atribulação quando a gente começou, tinha muito assim de que um
fazia, um não fazia, e tinha muita cobrança também e aí eu achei que não era coisa pra mim,
porque eu sempre gostei de trabalhar no meu canto e que ninguém me cobrasse nada. Mas,
naquela agitação que tava lá dentro, todas eram novas, então uma cobrava da outra, outra
cobrava da outra, e ficava meio assim no ar. Mas aí que ficamos todo mundo e juntamos e
conversamos e analisamos as coisas como é que é, o que tinha que melhorar... aí eu fiquei
muito orgulhosa de tudo isso, porque todo mundo começou a trabalhar igual, começou a
lutar mais (Dilma).

Nota-se que a mudança cultural na forma de trabalhar é um aspecto que chama atenção nos
estudos sobre as cooperativas. Em muitas experiências pesquisadas esse fator aparece como uma
dificuldade inicial. Nas outras experiências, como na fábrica recuperada, os trabalhadores estavam
acostumados com a relação patrão/empregado e assalariamento, o que dificultava a compreensão da
forma coletiva de trabalho. Já na cooperativa de resíduos sólidos, as pessoas anteriormente
trabalhavam isoladas e sem regras, não tendo o hábito do trabalho coletivo.
Outro motivo destacado para a desistência de algumas pessoas foi a retirada inicial. As
204
cooperadas trabalharam muito por cerca de três meses e esperavam receber um salário justo pelo
trabalho. Elas relataram que não reclamavam do trabalho, mas como nunca haviam trabalhado tanto
na vida esperavam receber por isso, porém não foi o que aconteceu:
Aí nós trabalhamos, trabalhamos, trabalhamos, quando chegou no final de três meses
botando a mão naquele monte de papel eu pensei que a gente ia receber um dinheirão, além
de contribuir com o meio ambiente. Chegou no fim do mês, vendeu tudo e nós recebemos o
pagamento. Eu fiquei tão feliz que não quis nem abrir meu pagamento. Quando eu cheguei
lá em baixo que eu abri e vi 70 reais lá eu falei “Como é a história? Eu vou lá, vou entregar
esse 70 reais pra ela e não vou trabalhar nunca mais lá.” E foi três meses por causa de 70
reais?! Eu estava acostumada com o de diarista, eu tirava dois mil, mil e pouco (Aurora).

Após este processo de adaptação das pessoas com a forma de trabalho coletivo e com as
retiradas iniciais 71, a Bom Sucesso conseguiu uma verba destinada à construção do novo barracão e
acabou se reestruturando novamente. Tal iniciativa foi amparada pela ITCP-Unicamp 72, que
desenvolve atividade de incubação na Cooperativa até os dias atuais. Assim, em 2006 a Cooperativa
obteve seu novo e atual barracão, conseguindo se configurar efetivamente como uma Cooperativa de
Triagem de Material Reciclável. Ela iniciou suas atividades com 34 participantes, num equilíbrio
entre homens e mulheres. Ao longo do tempo passou a ser composta por 18 cooperadas e 4
cooperados. Atualmente possui cerca de 14 cooperadas e 2 cooperados, sendo um deles o guarda
noturno. Recebe mensalmente entre 25 a 30 toneladas de resíduos, que são triados e separados nos
diversos tipos de materiais.
Esta pesquisa e o meu contato com a cooperativa Bom Sucesso se iniciou no ano de 2011.
Seguindo uma demanda por aumento da escolarização das cooperadas apresentada à ITCP Unicamp,
participei de um projeto de Educação de Jovens e Adultos – EJA, que foi iniciado na Cooperativa
Bom Sucesso.
Dessa forma, ao frequentar a Cooperativa duas vezes por semana, na condição de educadora

71
Cabe destacar que o termo retirada é utilizado por algumas cooperativas para designar o rendimento mensal do
trabalho. Isso porque, não contam com os direitos trabalhistas e, ao se definirem como uma proposta diferente de uma
empresa em que o patrão detém os lucros e os empregados recebem o salário, as pessoas não consideram que recebem
um salário. Outro aspecto é que elas jamais tiveram acesso aos direitos trabalhistas em suas trajetórias de trabalho. Para
elas, seguindo as diretrizes do Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável – MNCR, o importante seria
regularizar a situação da cooperativa sendo contratada pela prefeitura pelo serviço que realizam para a cidade e
sociedade como um todo ao triarem o lixo reciclável. A partir disso é que pensam em melhorias de suas condições de
trabalho e de conquista de novos direitos.
72
A ITCP-Unicamp é um programa de Extensão da Unicamp que tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento
da Economia Solidária a partir da formação de grupos autogestionários e/ou cooperativas populares. Segundo o seu site,
a ITCP compreende a Economia Solidária como uma “proposta de geração de trabalho e renda para milhões de
excluídos do mercado formal de trabalho, bem como o fortalecimento de grupos associativistas em prol da autonomia
dos trabalhadores e trabalhadoras”. A ITCP anuncia que os seus objetivos são: “atuação junto a empreendimentos
populares; Processos de Formação; Articular o conhecimento acadêmico e o conhecimento popular na busca por um
saber válido para empreendimentos populares e a serviço da transformação social” (http://www.itcp.unicamp.br/).

205
de EJA, fui elaborando um diário de campo com as informações sobre a Bom Sucesso a partir das
atividades em que eu participava. Também realizei algumas observações no cotidiano do trabalho.
Nesse mesmo ano, realizei cinco entrevistas na cooperativa, sendo uma com a presidenta, outras três
com mulheres cooperadas com faixas etárias entre 53 e 56 anos e uma com um homem cooperado
de 67 anos.
O projeto de EJA durou até meados de 2012, quando também encerrei minhas atividades de
extensão para a realização do doutorado sanduíche na França. Após retorno do doutorado, voltei a
fazer algumas observações na cooperativa e realizei outras seis entrevistas entre o fim do ano de
2013 e início de 2014. Essas entrevistas foram realizadas tanto com as cooperadas mais antigas, que
permaneceram na cooperativa, como com as cooperadas que haviam iniciado o trabalho
recentemente. Elas possuíam entre 27 (duas jovens apenas) e 55 anos, sendo a maior parte entre 45 e
55 anos.
Cabe destacar que quando iniciei a pesquisa na Bom Sucesso podia-se dizer que se tratava de
uma cooperativa mista, contudo, com o passar do tempo, os homens foram deixando a cooperativa e
atualmente existe apenas um cooperado fixo no cotidiano do trabalho. O segundo é o marido da
presidenta e guarda noturno que não trabalha nas atividades de triagem. Ao longo deste texto tal
questão será aprofundada ao refletirmos sobre as relações de gênero no trabalho da Bom Sucesso e
sobre uma possível feminização do setor reciclagem como um todo. Também serão abordadas
questões como o cotidiano do trabalho coletivo da cooperativa e a precariedade do setor, além das
questões raciais e da qualificação das trabalhadoras, as quais nos ajudarão a compreender a
coextensividade das questões de classe, raça e gênero em mais esta Organização Social Produtiva
pesquisada.

5.1. O material recebido e a precariedade do setor


Em relação ao funcionamento da Cooperativa e da venda do material recebido e triado, a
Bom Sucesso depende das relações com a prefeitura que contrata uma empresa para o recolhimento
do material reciclável na cidade de Campinas, bem como das empresas e atravessadores que
compram o material triado da Cooperativa. Também depende do preço do material no mercado e
suas oscilações: “agora o preço do material caiu tudo, o papelão estava trinta e agora acho que está
vinte centavos, o quilo do papelão. O papel branco de escritório estava quarenta e eu ouvi falar que
está vinte e pouco, caiu tudo. Aí então quem perde é a gente” (Mercedes).
Tal situação não é um problema apenas da Cooperativa Bom Sucesso, mas é uma das

206
questões complexas que envolve o setor de reciclagem e as cooperativas, que, por sua vez,
correspondem à base mais prejudicada de todo o setor. As cooperativas se vêm pressionadas e ficam
à mercê, de um lado, das empresas de coleta e compra do material, e de outro, da cotação do preço
do material que é feita em nível mundial. Porém, como bem salienta Wirth (2010), sem esse trabalho
de base das cooperativas de triagem, o lixo não se converteria novamente em matéria-prima para a
grande indústria, o que permite concluir que existe um trabalho pesado e precário realizado pelas
cooperativas e que vem sendo explorado pelas grandes indústrias que dominam o setor da
reciclagem.
Para maior compreensão, abaixo será descrita a cadeia produtiva do setor, bem como o
movimento de resistência dos catadores e catadoras para sobreviver a esta luta de classes em que, de
um lado, estão os trabalhadores explorados que tiram seu sustento do lixo, e, de outro, grandes
empresários que dominam e enriquecem do setor.

5.1.1. A cadeia da Reciclagem: outro exemplo da luta de classes no país


Conforme explica Wirth (2010), no Brasil, até a década de 90, a responsabilidade pelo
manejo dos resíduos sólidos, incluindo a sua coleta, era dos municípios. Já a partir de 90, com o
avanço das políticas neoliberais e das privatizações no país, essa responsabilidade passou a ser
destinada às empresas privadas.
Para a autora, esse modelo transformou a coleta do lixo num negócio lucrativo, mas não
favoreceu o manejo sustentável do lixo, na medida em que não permitiu a existência de programas
estruturados de coleta seletiva em que se priorizam as questões ambientais e a inclusão social de
trabalhadores/as.
De acordo com o estudo apresentado pelo CEMPRE – Compromisso Empresarial para a
Reciclagem (2012), apenas 14% dos municípios brasileiros apresentam programas de coleta seletiva,
73
sendo que há uma concentração nas regiões Sudeste e Sul do País . Nesse contexto, nota-se a
existência de uma lógica mercantil que acaba se sobrepondo ao interesse público na gestão dos
resíduos sólidos urbanos na maior parte das cidades brasileiras de médio e grande porte.
A cadeia de reciclagem passa por vários estágios. Como descrito por Leite, Wirth e Cherfem
(2014), o primeiro deles começa com a coleta de lixo e de limpeza urbana feita, predominante, por
empresas privadas, contratadas pelas prefeituras. Esse trabalho também pode ser realizado pelas
próprias cooperativas organizadas e contratadas pela prefeitura, mas, embora hajam iniciativas

73
http://www.cempre.org.br/Ciclosoft2012.pdf
207
interessantes, este não é o formato predominante.
É no estágio seguinte que se encontra o trabalho dos catadores e das catadoras, seja nas
cooperativas e associações, seja como catador/a independente nas ruas. Eles separam o material por
tipo: plásticos, papelão, papel, vidro, alumínio, etc. Já o próximo passo consiste na venda dos
materiais separados, normalmente para atravessadores e sucateiros, que são intermediários entre as
cooperativas populares (ou catadores individuais) e as indústrias de reciclagem, ponta final desta
cadeia produtiva. Essas indústrias de reciclagem, por sua vez, correspondem à parte mais lucrativa
da cadeia, pois elas é que acabam determinando os preços dos materiais recicláveis e ditando as
normas e regras do setor.
Segundo o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, os preços
praticados no setor obedecem a padrões internacionais e são “ditados pela Bolsa de Valores de
Londres” (MNCR, 2009, p.55). Ou seja, faz parte de um processo internacional sobre o qual os
catadores não têm controle e poder de decisão. Conforme o MNCR explica,
As commodities de materiais recicláveis (aparas de papel, sucata de ferro e plásticos) são
classificadas como mercadorias primárias, ou matérias-primas, que têm seu preço cotado e
negociado de forma global. Isto significa que os materiais coletados pelos catadores têm
preços, são negociados em vários países e estão sujeitos às variações que as indústrias
praticam ao redor do mundo, cotadas em dólar (MNCR, 2009, p.55).

Trata-se, portanto, de uma situação que articula cadeias produtivas mais amplas, como a do
papel, do alumínio e do plástico, que, por sua vez, estão atreladas à lógica das commodities numa
sociedade globalizada. Nesse processo, são os grandes mercados, representados pelo banco
mundial, que seguem uma lógica de concorrência internacional e definem um preço universal para o
material reciclável. As flutuações nesses preços são pautadas na oferta e na procura global, baseadas
numa cotação também global, tendo impacto nos fluxos financeiros mundiais.
Jacobi e Besen (2006) incluem ainda nesse processo a grande quantidade de resíduos
gerados pela sociedade, a qual é influenciada pelas grandes empresas que dominam esta cadeia. Tais
empresas não apresentam o interesse em incentivar o consumo consciente voltado às satisfações
humanas e não ao desperdício.
Como salientam Leite, Wirth e Cherfem (2014), a compra de recicláveis por parte das
indústrias recicladoras é realizada em grandes quantidades, fato que exclui pequenos depósitos e
sucatas das negociações diretas com as mesmas. Os sucateiros e os atravessadores conseguem
estocar grande quantidade de material para revender às indústrias e conseguir melhores preços, o
que as cooperativas apresentam dificuldade para fazer.
Dessa forma, as cooperativas de reciclagem e os catadores de rua são os que menos lucram,
208
embora façam o trabalho essencial e mais pesado da cadeia, que é o de triagem do material.
Conforme apontam os dados do Ipea (2012), 75% dos ganhos totais do setor de reciclagem são
destinados às indústrias, porém 90% do lixo reciclado passa pela mão de catadores e catadoras, seja
organizados em cooperativas de reciclagem ou trabalhando isoladamente nas ruas das cidades e nos
lixões.
Não há uma estimativa precisa em relação à quantidade de catadores e catadoras existentes
no país, já que a alta informalidade deste trabalho dificulta a precisão dos dados. O Ipea (2012)
trabalha com um intervalo considerado razoavelmente seguro em que indica entre 400 e 600 mil
profissionais da catação do lixo, sendo que desses, apenas 10% estariam organizados em
cooperativas e associações. Já o MNCR (2009) indica a presença de 800 mil catadores e catadoras
no país, mas concordam com o baixo número de catadores organizados, indicando a presença de
cerca de 600 cooperativas e associações espalhadas pelo país.
Dessa forma, como salienta Bosi (2008) evidenciando os embates de classe no setor, a
exploração do catador é central nesse processo da cadeia de reciclagem, visto que é o trabalho de
separação a baixo custo e de modo precário que permite as margens de lucro dos atravessadores e,
mais ainda, das grandes empresas do lixo.
Submetidas a esta cadeia produtiva, a maior parte das cooperativas de triagem na cidade de
Campinas não possui um caminhão próprio e não participa da coleta nas ruas da cidade. Por fazer
parte do Programa de Coleta Seletiva da prefeitura, elas recebem o material que é coletado por uma
empresa e dividido entre diferentes cooperativas da cidade. Recebe ainda o material de algumas
outras instituições parceiras.
A ITCP (2013), descreve como se dá esse processo:
A coleta urbana de resíduos do município de Campinas é feita em quase sua totalidade pela
empresa contratada, o consórcio TECAM. Esse, além de suas outras atribuições, é também
responsável pela coleta seletiva. Os caminhões e trabalhadores da empresa coletam o
material nos bairros em dias determinados, em seguida pesam o volume dos caminhões em
uma das duas balanças do município para, finalmente, levarem o conteúdo à cooperativa
responsável pela região. Como forma de controle, um comprovante com peso de carga, hora
da coleta e bairro de origem do material é entregue à cooperativa (ITCP, 2013, p . 131).

Como explicou a presidenta entrevistada, a empresa contratada é remunerada


proporcionalmente ao peso do material por ela coletado. Dessa forma, quanto mais a empresa
recolher é melhor para ela, independentemente da qualidade do material que recolhe, o que
influencia diretamente na condição do material recebido pela Cooperativa Bom Sucesso. Conforme
explica Wirth (ibid., p. 94), a mesma lógica utilizada para o recolhimento do lixo comum é aplicada

209
ao material reciclável:

Enquanto, para o lixo comum, mais quilos coletados com o mesmo caminhão representam
maior eficiência do serviço, para o material reciclável essa relação é inversa. Em geral,
quanto mais leve o lixo reciclável doméstico, mais puro ele é, menos compactado está e
mais adequado se encontra para o trabalho de triagem. No entanto, no caso de Campinas, o
mesmo critério aplicado ao lixo comum é utilizado para o material reciclável. Além disso, a
coleta de ambos é realizada com o mesmo caminhão, que compacta o material. As únicas
diferenças são o custo e o limite de carga. O transporte da tonelada do material reciclável é
mais caro do que o do lixo comum, e a sua carga limite é 2,5 toneladas/caminhão. Como
consequência, a qualidade do material que chega às cooperativas é ruim, pois ele
comumente vem misturado à matéria orgânica e muito compactado. Além disso, os
cooperados frequentemente alegam que a empresa de coleta ganha em dobro, pois o rejeito
resultante do processo de separação é transportado da cooperativa para o aterro sanitário
pela empresa coletora, serviço pelo qual ela é novamente remunerada.

Nas palavras de Carmem,


esse esquema do caminhão ser pesado duas vezes é muito ruim, pois eles levam entulho. Eu
ligo na TECAM para reclamar e mostrar que não somos tonta. Eu falei “eu faço formação
dos lixeiros, não tem problema. Qualquer um sabe o peso de entulho e de reciclável, mas
isso é o que vale para vocês. Ele ficou sem graça no telefone, mas não resolveu.

Dessa forma, esse é um dos principais problemas identificados pelas cooperadas, visto que,
pela forma como esse processo acontece, o material chega sujo e com muitos problemas à
cooperativa, dificultando significativamente o trabalho delas. Ao perguntar nas entrevistas sobre
quais são as principais dificuldades e problemas da cooperativa, todas as entrevistadas falaram sobre
a situação do material:
De ruim é só esse material aqui que é ruim. É, a única coisa ruim é como chega pra nós esse
material. Porque é só vidro, coisa velha, carniça velha. Tudo o que num presta vem nisso
aqui! Às vezes se atrapalha e não faz a meta, porque o material não vale nada [..] Quando o
material é um material melhor você consegue fazer alguma coisa e quando o material não
presta você não consegue fazer nada. Cadê tudo o que fez? Tanto que a gente trabalhou e
cadê o dinheiro que a gente fez? Não fez nada. Não consegue fazer nada e daí fica nessa,
tanto que a gente trabalhou e cadê o dinheiro? Mas não é porque não trabalhou, trabalhou
sim, só que o material não ajuda (Mercedes).

Segundo as cooperadas, no início da cooperativa o material que chegava era ainda pior. Nas
atividades de observação, por exemplo, acusamos reclamações de material com seringas e agulhas já
utilizadas, além de material com cacos de vidros, entre outros. Algumas das cooperadas chegaram a
fazer palestras nas ruas e no bairro com o intuito de receber um material melhor: “Fomos à luta para
ter um material mais limpo. Eu fui nos postinhos, conversava no ponto de ônibus. A gente estava
contribuindo com eles na limpeza do meio ambiente, que dá essas coisas de bueiro cheio demais,
traz rato, traz barata, traz doença. Então eu fiz essa palestra pra muita gente” (Aurora).
Nota-se que se trata de ações individuais e não de uma campanha organizada cujos impactos
210
poderiam obter melhores resultados. A maior parte das entrevistadas associa a condição do material
à ausência de conscientização das pessoas, o que é de fato uma parte da questão, mas poucas
refletem sobre esse processo todo da cadeia produtiva da reciclagem da qual fazem parte.
Organizadas com outras cooperativas e com apoio da ITCP Unicamp, algumas conquistas
foram obtidas junto à prefeitura, como por exemplo, o peso do caminhão não pode passar de três
toneladas e foram feitas algumas conversas para impedir que o lixo hospitalar chegue às
cooperativas.
A orientação da ITCP também segue a direção de mudar o processo da coleta seletiva,
deixando de receber material do caminhão da empresa e passando para a catação de porta em porta,
em que as próprias catadoras recolhem o material nas residências e podem, inclusive, fazer esse
trabalho de conscientização em torno da separação do material.
Essa é uma diretriz do Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável - MNCR
para que as cooperativas não dependam das empresas. Porém, até hoje este modelo de catação foi
barrado na burocracia do município. Segundo Carmem, “o papel vai e volta e a cooperativa nunca
pode seguir”. O papel que Carmem se refere é a burocracia da prefeitura, o que, segundo ela, é uma
ferramenta para dificultar o processo de autonomia dos catadores e ceder o caminhão para que as
cooperativas se organizem sem as empresas coletoras.
Paralelamente, existe certa resistência por parte das cooperadas para o processo da catação
de porta em porta. Muitas delas compreendem que esse processo seria um retorno a uma condição
antiga de humilhação de pedir lixo na casa das pessoas. A ITCP vem realizando algumas atividades
educativas para conversar sobre essa questão e para que as cooperadas tomem uma decisão sobre
esse processo. Porém, enquanto isso, a identidade das trabalhadoras da Bom Sucesso é a de
cooperadas e não de catadoras.
Na análise de Wirth (2010, p. 95), essa condição representa uma especificidade em relação
ao contexto nacional dos catadores do MNCR. Isso porque, para o MNCR, “a identidade e o
reconhecimento histórico do trabalho do catador de rua é o elemento fundante para a articulação da
categoria e para construir suas reivindicações”. Já em Campinas, o segmento das cooperativas de
triagem de resíduos sólidos “foi articulado pelo governo e por entidades de fomento com um caráter
de inclusão social e de geração de trabalho e renda”. A questão é que essa relação dificulta a
aproximação das cooperativas de Campinas ao MNCR e a construção de sua identidade como
catadoras, o que diminui as suas chances de articulações e conquistas políticas.
Outra solução, que agrada mais as cooperadas entrevistadas, seria que as cooperativas

211
tivessem os seus próprios caminhões para fazer a coleta, ou então fossem contratadas pela prefeitura
para realizar essa parte do trabalho de limpeza urbana, que na prática, já realizam no cotidiano do
trabalho de triagem. Estas também são diretrizes indicadas pelo Movimento dos Catadores na
tentativa de buscar algumas soluções para fortalecer a categoria nessa cadeia produtiva, tal como
será descrito no tópico abaixo.

5.1.2. A Resistência do Movimento Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais


Recicláveis

Na direção coletiva de reflexão e resistência a esse processo de luta de classes da cadeia


produtiva da reciclagem, encontra-se o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Recicláveis, o MNCR. Ele surgiu em meados de 1999 a partir do 1º Encontro Nacional de Catadores
de Papel, contudo, foi fundado com o caráter de movimento social em junho de 2001, durante o 1º
Congresso Nacional dos Catadores(as) de Materiais Recicláveis em Brasília 74.
Este evento reuniu mais de 1.700 catadores e catadoras que lançaram a Carta de Brasília,
documento que expressa às necessidades do povo que sobrevive da coleta de materiais recicláveis,
bem como seus princípios de atuação política. Após esse evento, no ano de 2003, aconteceu o 1º
Congresso Latino-americano de Catadores em Caxias do Sul – RS, que reuniu os e as
trabalhadores/as da catação de diversos países, unificando a luta entre eles/as.
Nesse mesmo ano, no primeiro mandato do governo Lula, criou-se o Comitê Interministerial
de Inclusão Social dos Catadores (CIISC). O CIISC é coordenado por representantes do Ministério
de Desenvolvimento Social (MDS), do Trabalho e Emprego (MTE), do Ministério das Cidades e do
Meio Ambiente (MMA) e do próprio MNCR75.
A partir dessas primeiras iniciativas, o MNCR foi definindo e divulgando que a sua principal

74
Cabe destacar que, além deste marco, uma série de eventos possibilitou a formação do MNCR. Durante o governo de
Luisa Erundina, em 1989, surgiu a primeira cooperativa de catadores do Brasil, a COOPAMARE. No ano seguinte, foi
formalizada em Belo Horizonte a primeira Associação dos catadores de papel e papelão, a ASMARE. Ambas foram
criando a identidade do catador que nascia no contexto das populações em situação de rua. Em outras regiões essa
identidade foi se formando entre os trabalhadores do lixão. Já em 1992, a ECO-92 evidenciou as condições de trabalho
sub-humanas em que viviam os trabalhadores do lixo. Em 1994, a UNICEF começou a discutir a situação das crianças
presentes nos lixões. Em 1998 ela organizou o Fórum Nacional de Lixo e Cidadania, que passou a articular uma série de
entidades de apoio e ONGs. Nos inícios dos anos 2000 as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares também
começaram a incentivar a organização de trabalhadores a partir do fechamento dos lixões (LEITE, WIRTH, CHERFEM,
2014).
75
O BNDES, a Fundação Banco do Brasil, a Petrobrás e a Caixa Econômica Federal, além de outros seis ministérios,
também compõem este Comitê.

212
luta é o reconhecimento do catador como protagonista da cadeia produtiva da reciclagem,
principalmente diante do trabalho de limpeza urbana que realiza para as cidades. Também se
posicionou quanto ao questionamento da coleta seletiva feita por empresas privadas, exigindo maior
espaço de poder dos catadores nesta cadeia.
No ano de 2005, ocorreu o 2º Congresso Latino-Americano de Catadores(as), uma
continuidade da articulação latina que abriu novas frentes de luta na busca de direitos para os
catadores. Já no ano de 2006, o MNCR realizou uma grande marcha até Brasília, levando suas
demandas para o Governo Federal e exigindo a criação de postos de trabalho em cooperativas e
associações como bases orgânicas do movimento. Esse evento se tornou um marco histórico da luta
dos catadores no Brasil, com a presença de cerca de 1.200 deles.
A partir deste ano, os catadores conquistaram o decreto 5.940/2006, que obriga as
instituições públicas federais a destinarem o resíduo reciclável gerado para alguma cooperativa ou
associação de catadores. Esta medida marcou simbolicamente o reconhecimento da profissão do
catador por parte do governo federal.
Em 2007, a categoria conquistou a Lei Federal 11.445 – 01/2007, que permite a contratação
de cooperativas ou associações de catadores (que sejam formadas por pessoas físicas de baixa renda)
para a realização da coleta seletiva. No entanto, para que essa conquista se converta em realidade, é
preciso que os municípios, que são os responsáveis pelas licitações do lixo, adotem essa prerrogativa
legal, o que vem se dando com certa dificuldade, como acima descrito.
No ano de 2010 o MNCR conquistou a Lei nº 12.305/10, que institui a Política Nacional de
Resíduos Sólidos (PNRS). Esta política prevê um conjunto de instrumentos para propiciar o
aumento da reciclagem e da reutilização dos resíduos sólidos, bem como a destinação
ambientalmente adequada dos rejeitos (aquilo que não pode ser reciclado ou reutilizado). A PNRS
criou metas para a eliminação dos lixões e proibição da incineração, impondo que os municípios
elaborem seus Planos de Gerenciamento de Resíduos Sólidos. Dessa forma, as prefeituras podem
contratar diretamente as cooperativas para a realização da reciclagem nas cidades, o que garante a
qualidade no trabalho e o pagamento aos catadores e catadoras pelo trabalho que realizam.
Segundo Leite, Wirth e Cherfem (2014), essa politica é a mais importante regulamentação
conquistada pelo MNCR por representar o desenho de uma política pública que poderá se
materializar em todo território nacional. A legitimidade dessa lei está calcada nas experiências bem
sucedidas em diferentes municípios. Elas se encontram em cidades como Belo Horizonte,
Araraquara, São José do Rio Preto, Diadema, Biritba Mirim, Arujá, Ourinhos e Londrina.

213
Contudo, como salientam as autoras, apesar dos diversos avanços, a PNRS também apresenta
contradições. Por exemplo, ela incentiva a reciclagem realizada pelos catadores organizados em
cooperativas e associações, mas não veta explicitamente a incineração, que vem ganhando destaque
em muitos municípios do país. Como explicam as autoras (ibid., p. 369):
Os incineradores são equipamentos caros e funcionam a partir da queima dos materiais que
possuem maior potencial calorífico, ou seja, a partir da queima do material reciclável. Por
isso, reciclagem e incineração são processos antagônicos. Se do ponto de vista econômico e
social a incineração é uma escolha equivocada, pois queimaria literalmente a possibilidade
de geração de trabalho e renda a partir do lixo, do ponto de vista ambiental, ela é ainda mais
problemática, pois os incineradores são os principais emissores de Poluentes Orgânicos
Persistentes (POPs).

Dessa forma, apesar de haver perspectivas positivas, é preciso lembrar que a PNRS,
isoladamente, não é capaz de alterar a realidade de um modelo de gestão que tem como perspectiva
o tratamento dos resíduos como mercadoria. As conquistas dos catadores e catadoras prejudicam as
empresas do poder privado habituadas a lucrar com esse setor, o que apresenta grandes dificuldades
na luta do MNCR.
No âmbito das políticas federais, a atividade de catação vem sendo destacada no atual Plano
de Governo “Brasil Sem Miséria”. Conforme o manual do programa, a ideia é incentivar a
“organização produtiva dos catadores de materiais recicláveis, por meio da melhoria das condições
de trabalho e a ampliação das oportunidades de inclusão socioeconômica. A prioridade é atender
capitais e regiões metropolitanas”. O Programa também descreve que “apoiará as prefeituras em
programas de coleta seletiva com a participação dos catadores de materiais recicláveis”.
Mais recentemente, os catadores lançaram ainda o Programa Nacional de Investimento na
Reciclagem Popular - PRONAREP, em que pedem uma política de financiamento estruturante às
organizações de catadores, superando a lógica de busca de créditos sociais feita por editais que
acabam incentivando a concorrência entre as próprias cooperativas. Contudo, essas ainda são
perspectivas que não foram conquistadas na disputa de poder entre catadores/as, governos e
empresas privadas.
A partir deste resumo em torno das principais conquistas do MNCR no país, nota-se o
embate de classes encontrado no setor de reciclagem. De um lado estão às empresas e grupos
políticos que dominam o setor e o transformam em altamente lucrativo pela exploração do trabalho
dos catadores e catadoras. De outro lado, encontra-se a resistência destes mesmos trabalhadores com
conquistas importantes para a ampliação da melhoria de suas condições de trabalho, bem como com
a identificação de novos sujeitos sociais, que mostram sua capacidade de organização e mobilização.
Os resultados desta luta, no entanto, ainda estão em processo de disputa e construção.
214
No caso da iniciativa estudada, esta contradição vem se evidenciando na relação entre a
Cooperativa Bom Sucesso, a Prefeitura e as empresas e atravessadores que dominam o setor na
cidade de Campinas. Foi identificada nas entrevistas, a tentativa de união das cooperativas da cidade
para montar uma Central que organize o material para vender diretamente às empresas, a fim de
diminuir os atravessadores que fazem a ponte entre as cooperativas e as empresas maiores que
compram os materiais. Com isso, o rendimento das cooperativas seria maior.
Contudo, nesse processo, as cooperadas sentem pouco incentivo da prefeitura e a
compreende como a verdadeira “dona da Cooperativa”, tal como será abordado na sequência deste
texto. De acordo com Jacobi e Besen (2006), o orçamento do serviço de coleta e gestão dos resíduos
sólidos urbanos figura entre as maiores licitações públicas das municipalidades, logo, permitir que
as cooperativas tenham maior participação e controle nesse processo é um jogo político e de
correlação de forças bastante complexo.

5.1.3. Quem manda é a prefeitura!


Nas palavras de uma das entrevistadas: “A cooperativa é boa...na verdade, eu falo que a
cooperativa é boa, mas pro pessoal da prefeitura que não está pagando lixão! Eu só falo que eles
podiam dar mais valor pra gente” (Aurora).
Nota-se que a cooperada sente uma relação de exploração em que a prefeitura não arca com
os custos e problemas do lixão. As entrevistadas fazem uma crítica à ausência de reconhecimento do
trabalho delas, uma vez que fazem um trabalho de limpeza das ruas, o que é um problema urbano de
toda a cidade, mas não é reconhecido pelo município com a sua devida importância. Nas palavras
das cooperadas e cooperado:
Eu só falo que eles podiam dar mais valor pra gente. Muito valor, porque esse dinheiro que
eles iam jogar todo o material, eles iam pagar lixão pra jogar e poderia vir pra gente. Então,
a prefeitura deveria dar mais valor pra gente que não tem valor. E eu digo que não tem valor
porque eu trabalhei na Dom Bosco oito anos, pra dizer que vim pra cá faz um ano e eles não
tiveram nem capacidade pra arrumar um terreno pra deixar nós lá. Muito cooperado saiu
porque a prefeitura não arrumou um terreno pra gente lá, é pouca vergonha falar que não
tem terreno. E isso eu não canso de falar, porque trouxe nós pra cá e o terreno que a gente
lutou pra ter lá, que o terreno era nosso, ele tirou e fez um clube...(Carina).

Acho que tem que discutir, mas a prefeitura nunca veio aqui pra isso. Mas discutir, sentar,
conversar e mostrar como é que é, como é que não é. Parece que eles disseram que tinha um
salário mínimo pra nós e nunca apareceu isso aí. Nós tiramos pouco né, 600, 700 reais, tem
mês que é até quinhentos. Mas com a renda de prefeitura ia ajudar, mas nunca veio
(Francisco).

Dessa forma, as entrevistadas revelam a revolta em torno do não reconhecimento por parte
da prefeitura pelo trabalho pesado e de compromisso social que realizam. Além disso, ainda
215
precisam aceitar o fato de que quem realmente manda na cooperativa é a prefeitura e não elas
mesmas:
A cooperativa fica na mão das empresas e da prefeitura na verdade; eles é que decidem no
fundo […] Os conflitos que têm aqui dentro a gente consegue resolver, mas com a prefeitura
é outra história (Miranda).

Eu não sou dona daqui...tem momentos em que eu sinto que sou escrava da prefeitura. Por
cima do pano, debaixo do tapete vermelho da prefeitura está escondida a sujeira […] Eu falo
que é escravidão porque toda a produção, o material que chega, a Carmem tem que marcar
tudinho lá...a produção de cada um, quanto que saiu de dinheiro, quanto que entrou de
dinheiro da venda. Isso daí tá certo fazer, mas era para ser feito pra nós, e não para eles. Se
nós somos donas é nosso. Mas porque eles têm que saber disso? Ela paga pra TECAM, não
pra gente...e a maior parte é rejeito. Ela não paga nada pra nós e nós tem que dar detalhes
pra eles (Miranda).

Para as trabalhadoras, a prefeitura poderia contribuir para que a Cooperativa tivesse


principalmente, um segurança profissional à noite a aos finais de semana, maior investimento em
tecnologia e educação das cooperadas, bem como deveria melhorar as condições do barracão para o
trabalho cotidiano. Elas descrevem que na atual circunstância não conseguiriam pagar sozinhas por
todos esses serviços e necessidades e avaliam que este apoio poderia vir da prefeitura como troca
pelo trabalho que realizam para a cidade como um todo.
As cooperadas também salientam as dificuldades do trabalho cotidiano da cooperativa pela
ausência de melhores condições de trabalho e tecnologia. Como explicou Vilma, “o trabalho é legal,
mas a maior dificuldade é levantar os bags e arrastar as coisas mais pesadas. Na hora de separar é
mais tranquilo, mas aqui tem serviço pesado”. Nessa mesma direção, Francisco também reclama do
trabalho pesado, sobretudo diante de sua idade: “o trabalho aqui dói. Doem os braços de pegar o
peso...mas a gente acostuma, chega em casa, toma um comprimidinho e levanta de manhã. Mas
agora, no monte dói, dóis os braços, dóis as pernas. Nós entramos às oito horas e saímos cinco”. Nas
palavras de Dilma, “a vantagem é pouca. Eu gosto do serviço, o único problema é que eu não
aguento ficar abaixada no monte. Ele não é pesado, mas tem que ficar muito tempo curvada. É
difícil quem aguenta” (Dilma).
Outra questão que envolve essa temática das dificuldades do trabalho precário são os assaltos
ocorridos na cooperativa. O primeiro assalto ocorreu no final do ano de 2011 e o segundo em 2013.
No dia de fazer o pagamento a cooperativa foi assaltada e a maior parte dos cooperados e
cooperadas ficaram sem receber. Também foram roubados alguns equipamentos de trabalho. Não
houve apoio da prefeitura para enfrentar essa situação e a ITCP Unicamp acabou fazendo alguns
empréstimos, pois o grupo não tem condições de trabalhar com um fundo capaz de cobrir despesas
como estas.
216
Segundo as cooperadas entrevistadas, as pessoas ficaram desanimadas para continuar na
cooperativa:
Com esses negócio de roubo que houve eu fiquei muito abalada, falei que não ia voltar mais,
porque pra mim não tava dando. Roubaram os cavos da máquina, entraram aqui e roubaram
a coisa da empilhadora, agora a gente está sem empilhadora. Aí depois eu fiquei pensando
em nem voltar mais, arrumar outro emprego [...] Então quando aconteceu tudo isso a gente
ficou com medo de dormir aqui 76...(Carina).

No ano de 2013 o assalto foi considerado mais violento e “humilhante”. Este teve como
consequência maior desmobilização, pois algumas cooperadas saíram do grupo: “Aqui é bom, mas
agora a gente não tá conseguindo tirar nada, só roubo, só roubo. Desanimou todo mundo, todo
mundo saiu, nós estamos em 13 pessoas. Você tem família e não tem outro lado pra você tirar, só
daqui, então vai desanimando (Mercedes).
Diante disso observa-se que a ausência de controle por parte das trabalhadoras, ficando nas
mãos da prefeitura que não reconhece e proporciona melhorias ao trabalho, somada à precariedade
das condições de trabalho, são os principais motivos da grande rotatividade dos trabalhadores na
cooperativa em questão. Essa rotatividade se dá por diferentes motivos: algumas pessoas voltam
para suas cidades de origem (geralmente no nordeste do Brasil), outras encontram trabalhos com
carteira assinada, em locais como empresas de serviço de limpeza, no comércio ou como
cozinheiras. No caso dos homens foi identificado que a maior parte foi trabalhar no setor da
construção civil. Outras pessoas deixam a cooperativa por motivos de saúde, diante do trabalho
pesado acima citado.
Diante deste cenário, quais seriam os motivos que fazem com que parte desses trabalhadores
continue na Cooperativa? O que leva os catadores e catadoras aceitarem essa realidade e seguirem
no trabalho das cooperativas?

5.2. Motivações para o trabalho: trajetória de trabalhadoras com baixa escolaridade.

É possível identificar diferentes motivações em relação ao trabalho na Cooperativa Bom


Sucesso. De maneira geral, as cooperadas encontram vantagens no ambiente amigável de trabalho,
que proporciona a possibilidade de ter mais liberdade para conversar sobre os problemas pessoais e
76
Cabe destacar que aos finais de semana as cooperadas se revezavam para dormir na cooperativa, devido à preocupação
com a segurança. Porém, depois dos assaltos elas começaram a ficar com medo. A solução encontrada foi a mudança da
presidenta para o barracão da Bom Sucesso, assim ela dorme todos os dias na cooperativa. O seu marido passou a ser o
guarda da Bom Sucesso recebendo como cooperado por isso. De um lado, resolveu o problema de segurança, porém, de
outro, Carmem reclama da restrição de sua liberdade, já que não pode sair da Bom Sucesso e deixá-la sozinha,
restringindo a sua vida pessoal, sobretudo aos finais de semana.
217
fazer amigas: “Na cooperativa eu acho que é melhor, que a pessoa é livre. Você vem, você trabalha,
você pode conversar, pode rir...”(Carmem). Além disso, elas descreveram a possibilidade de fazer
acordos, seja no cotidiano do trabalho, seja em relação às necessidades de faltas para resolver
questões familiares, seja em relação à divisão do dinheiro no final do mês, ou ainda para realizar o
trabalho seguindo as suas condições de saúde. Um terceiro aspecto é o fato de ninguém ter que
“puxar o saco de ninguém”, como, para elas, acontece na maior parte das empresas ou no trabalho
em casa de família.
A cooperativa também foi identificada como uma distração para as mulheres, além de ser
uma possibilidade de autonomia financeira:
E é bom estar aqui, a gente diverte. Melhor que ficar em casa à toa, pensando. Eu gosto de
ficar aqui (Dolores).

Mas eu gosto, sinceramente, a turma fala a cooperativa não sei o que, mas eu gosto, eu não
vejo a hora que o dia amanheça pra eu vir trabalhar (Francisco) .

Mas eu tô me sentindo bem, é bom a gente ficar assim né, trabalhando, ganhando o
dinheirinho da gente. É tão bom quando chega no final do mês, pra você pagar suas contas,
comprar o que você quer comprar (Filó).

O grupo também identifica que entre elas existe solidariedade, sendo este mais um aspecto
positivo da cooperativa. Pensam que por não estarem competindo umas com as outras todas as
pessoas têm condições de se ajudar. A solidariedade foi destacada principalmente no cotidiano de
trabalho, para carregar peso, separar o material ou para uma ensinar o serviço a outra. “É legal
porque, se precisa, uma ensina a outra; se é pra colocar o bag na mesa as outras ajudam, duas, três
pegando ao mesmo tempo” (Dilma).
E é nessa mesma direção que elas entendem a Economia Solidária, como uma possibilidade
de poderem se ajudar no cotidiano do trabalho, principalmente em casos de doenças, problemas com
filhos e filhas e outras questões que as impedem de ir trabalhar e que acaba sendo responsabilidade
das mulheres. Elas também entendem a ES na relação com outras cooperativas:
Economia solidária é quando você ajuda, por exemplo, se uma fica doente, a gente tem que
sentar e conversar, se ela ficou doente, aqui dentro da cooperativa a gente vai ter que reunir
tudo junto, pra suprir aquela que ficou doente. Aqui na cooperativa sempre houve isso, se
ficou doente, senta e conversa. A gente vai pagar os dias, nem que for dois dias, três dias, a
gente vai pagar, vai ajudar [...] E assim também, outra cooperativa está com algum problema
e precisa da gente, eu acho que a gente tem que ir lá dar um apoio, porque acho também que
é solidariedade, é cooperativa, é cooperativista, tem que ajudar... (Aurora).

Observa-se o estabelecimento do trabalho coletivo na forma como conseguem juntas resolver


os conflitos, como conseguem debater e encaminhar os problemas participando das reuniões e
dialogando. Alguns dos problemas da precariedade do trabalho, como necessidade de faltas diante
218
dos problemas de saúde acarretados no trabalho, são superados no âmbito da organização coletiva. É
nesse âmbito que elas também decidem os espaços externos em que vão participar, os quais servem
para se qualificarem politicamente, como feiras e reuniões de mulheres, formações com a ITCP,
encontros e trocas com outras cooperativas, atividades do MNCR, etc.
A amizade aqui é tão gostoso! Você tem amizade, a gente já considera uma família aqui
dentro...Das reuniões, eu vou, faço curso, quando tem umas coisas aí pra gente fazer a gente
vai. É bom, porque você tá aprendendo muitas coisas, coisas que eu não sabia, agora já sei.
Nas reuniões, já fui em São Paulo, a gente foi conhecer umas cooperativas pra lá, fomos todo
mundo (Mercedes).

Coletivamente as cooperadas da Bom Sucesso também optaram por pagar o INSS - Instituto
Nacional do Seguro Social, a fim de garantir uma cobertura social para os acidentes de trabalho e
para terem um auxílio ao se aposentarem. Dessa forma, tal modo coletivo de organização indica
avanços para a tentativa de autogestão parcial do grupo, apesar dos desafios estruturais enfrentados
no setor.
Segundo a presidenta, é um esforço conseguir manter a ideia de organização coletiva, mas
elas tentam pensar na solidariedade entre o grupo para conseguir seguir no trabalho, o que, para
algumas, acaba sendo uma motivação para se manter na cooperativa.
O espaço existente para as conversas, para as trocas de informações, para resolver os
conflitos existentes e para os encaminhamentos decisórios no processo administrativo da
cooperativa são as reuniões semanais. Nas observações realizadas foi identificado que a reunião
deveria ser o principal espaço para colocar e expor as opiniões. Contudo, muitas vezes elas não
dizem o que pensam para evitar os conflitos e acabam aceitando o que a maioria quer, ou o que a
presidenta decide. Sempre existe um informe das decisões, mas, em geral, nem todas as pessoas
dizem o que pensam.
Porém, observou-se também que muitas daquelas que não falam tudo abertamente em
reuniões acabam procurando a presidenta em outros espaços para conversar. Ou então vão
conversando entre os grupos que se formam e alguma representante do grupo coloca o debate na
reunião. De maneira geral, as cooperadas não querem se expor e ter que assumir o papel de ser a
causadora das intrigas e dos conflitos. Assim, preferem deixar esse papel para a figura da presidenta
e vão se colocando como podem.
De outro lado, algumas cooperadas pensam que não têm elementos suficientes para debater
algumas decisões, revelando que não conseguem entender alguns processos burocráticos e políticos
que envolvem a cooperativa.
Eu entendo um pouco, outras partes eu não entendo não. Falar a verdade, uma parte eu
219
entendo, outra parte não sei mais de nada. Não sei te explicar. Não sei se é por que sai do
trabalho e fica cansada e fica estressada, e aí eu esqueço, mas depois eu lembro [...] também
é bom ter sim essas reuniões, porque assim, tem coisa que eu não entendo, mas as outras
pessoas entendem...(Eulália).

Dessa forma, por não compreenderem algumas questões preferem confiar na presidenta e na
experiência dela para a administração da cooperativa. Porém, elas afirmam que é importante o
diálogo e esclarecimento das decisões, pois alguma coisa elas entendem e assim alimentam a
confiança no grupo.
As entrevistadas não sentem muita diferença entre trabalhar na cooperativa e numa empresa.
Isso porque elas entendem que a cooperativa é tão organizada quanto uma empresa e que precisam
trabalhar “duro” da mesma forma. A diferença sentida não está na gestão coletiva e sim nas
possibilidades de amizade, aprendizados e na ausência de direitos trabalhistas: “Acho que não é
diferente não. O único é que a gente não é registrada, só. Mas tão pagando o INSS para nós, que já é
grande coisa” (Dilma).
Outra diferença observada pelas cooperadas é que a empresa tem um dono que enriquece
enquanto na cooperativa não. Também por isso elas não conseguem se identificar como donas da
cooperativa, pois ali ninguém fica muito rico: “dono é aquele que fica mais rico que os outros e que
trabalha menos” (Carina). Logo, não se encaixam no perfil de um dono e não conseguem se
identificar com essa ideia. Elas dizem que são trabalhadoras, catadoras e cooperadas, mas para se
sentirem donas teriam que seguir um imaginário do que isso representa. Além disso, como já
explicitado, elas sentem que a dona de verdade é a prefeitura e não a presidenta ou elas mesmas.
Para além do fato de ser ou não “dona”, elas identificam que a cooperativa parece ser melhor
que uma empresa pela possibilidade de ter uma segunda chance:
Lá (na empresa) não tem essa, se você errou, você vai ser chamado com uma cara feia e vai
ter que ouvir ou até pode ser mandado embora, é diferente. Aqui nós vamos ter outra
chance. Aqui se eu errar, eu vou ser chamada e aí ela vai me dar uma advertência, aí eu vou
ter três meses para cair fora. Se eu não mudar em três meses, é porque eu não vou mudar
nunca (Carina).

Nota-se, portanto, que no cotidiano do trabalho existem algumas motivações proporcionadas


pelo trabalho coletivo. Contudo, a principal motivação encontrada é a situação de desemprego e a
dificuldade de inserção no mercado de trabalho sem ser pela via do trabalho doméstico. Na maior
parte das falas, as entrevistadas diziam dos outros aspectos da cooperativa, mas sempre
relacionavam ao fato de não conseguir empregos em outros espaços. Na fala da presidenta, ela
relaciona a Cooperativa à inclusão social de trabalhadoras com trajetória parecida com a dela:
Se eu não continuasse, essas pessoas que trabalham com a gente, a maior parte veio do
norte, eles não têm estudo, eles vão trabalhar aonde? Aí eu ficava pensando, eu tenho pouco
220
estudo e eles não têm estudo nenhum, eles vão trabalhar aonde? [...] e pelo menos eles ficam
com mais dignidade. Numa cidade grande, mas sem dignidade não dá, né gente? A pessoa
com a autoestima lá em baixo não dá...(Carmem).

Assim como indicam distintas pesquisas em torno de diferentes Organizações Sociais


Produtivas (LEITE; ARAÚJO; LIMA, 2011), o principal motivo para a existência da cooperativa é
de fato a oferta de geração de renda a um grupo de pessoas excluídas do mercado de trabalho: em
idade avançada, com pouco ou nenhum estudo, a maior parte mulheres, grande parte negras e negros
e pessoas que trabalhavam no lixão. Por mais difícil que seja o trabalho, muitas cooperadas têm
medo de sair e não conseguir nada melhor, então continuam na cooperativa.
As entrevistadas observaram que existe um público ao qual a cooperativa de reciclagem é
destinada e elas se reconhecem neste público. Ao analisarmos as trajetórias de trabalho das
cooperadas e cooperado observa-se a necessidade do trabalho na cooperativa.
Todas as cooperadas e o cooperado possuem baixa escolaridade, pois tiveram que trabalhar
desde muito cedo, não priorizando o estudo. A maior parte estudou até quarta série e algumas
pessoas nunca estudaram, fazendo parte do segundo e, sobretudo, do terceiro grupo da classificação
desta pesquisa. Mesmo a presidenta da cooperativa faz parte do segundo grupo, não sendo
encontradas mulheres do primeiro grupo no setor. A fala abaixo ilustra o perfil de boa parte das
entrevistadas:
A minha dificuldade é só porque eu não conheço tudo, eu não sei ler. Assim, tem muita
coisa que eu não dou conta. Lá em casa minha filha que faz conta pra mim, é que paga as
vezes alguma coisa, que vai comigo no banco, então é isso aí que eu acho difícil pra mim
(Mercedes).

As entrevistadas revelam que a baixa escolaridade e a dificuldade de se formar para melhor


inserção no mercado de trabalho foi o principal motivo que as levou a trabalhar com reciclagem. Em
suas trajetórias de trabalho, encontramos trabalhos pouco reconhecidos socialmente e que se
relacionam com atividades reprodutivas, tais como serviço de limpeza, cozinha, costura, ou ainda no
chão de fábrica das empresas. Embora a maior parte das mulheres tenha trabalhado sem registro
formal, em algumas das trajetórias observamos que houve o trabalho com carteira assinada nessas
atividades citadas, mas por pouco tempo.
Outro aspecto desta trajetória é que o trabalho na reciclagem como complementação de renda
aparece em diferentes entrevistas, tanto para os homens como para as mulheres:
Eu nasci na fazenda. Meu pai pai era alcoólatra e não gostava muito de trabalhar. Minha
mãe apanhava café. Eu estudei até o terceiro ano primário e ajudava ela. Quando ela ia
apanhar o café eu tomava conta dos meus dois irmãos menor. E quando não era época de
catar café eu e meus dois irmão catava reciclagem. O que a gente fazia na reciclagem a
gente comprava leite, comprava pão, mistura...não tinha cooperativa, era ferro velho e vidro.
221
Naquela época não tinha papelão e não tinha plástico. Era vidro e lata. Depois com doze
anos fui trabalhar em casa de família e fiquei em casa de família até os 19. Depois casei...fiz
cagada...ele era cabeça dura e eu comecei a catar na rua. Aí eu me separei, terminei de pagar
a casa. Eu paguei a minha casa com reciclagem. Eu tenho 4 filhas. Eu trabalhava meio
período em firma, limpadora e o outro período eu trabalhava com reciclagem (Miranda).

Eu catava essas coisas na rua. Eu trabalhava fora e nos dias que eu não ia trabalhar eu
catava. Ia lá pra cidade. Trabalhei em casa de família, oito anos. Cuidava de idoso (Filó).

Dessa forma, existe uma repetição nas trajetórias de trabalho das pessoas entrevistadas em
que se cruza a realidade de uma vida de necessidade pela questão da renda e o trabalho precário e
explorado, o trabalho com reciclagem como complementação de renda. Também encontramos
histórias de trabalhadoras que a vida inteira trabalharam no lixão e que valorizam muito o trabalho
na cooperativa. Para essas trabalhadoras, mesmo em condições de precariedade do trabalho, como
falta de ventilação no barracão e ausência de maquinários que diminuam a força física necessária ao
trabalho, a cooperativa é bem melhor que o lixão, tal como expresso pela frase destacada na epígrafe
desde capítulo:
- Quais são as dificuldade aqui no trabalho?
- Ah...dificuldade?...não tem nenhuma não!
- E as condições de trabalho, o calor, o barracão, os conflitos? Essas coisas que você
comentou.
- Ah esse tipo de dificuldade. Isso tem mesmo, mas é pequeno. É que eu criei todos os meus
filhos no lixão, aí lá que era dificuldade. Aqui é ótimo! Entende? (Mercedes).

No caso das mulheres, outro aspecto a ser observado é a conciliação do trabalho no espaço
público com o trabalho reprodutivo e de cuidado de familiares. Muitas cooperadas trabalhavam no
cuidado de crianças e em “casas de família”, a maior parte sem registro. Cabe ressaltar que todas as
entrevistadas já trabalharam em “casas de família”, como elas dizem, e a maior parte prefere
trabalhar na cooperativa do que no trabalho doméstico em casas de outras pessoas.

5.2.1. Trajetória de homens X trajetória de mulheres


Atrelado às atividades no âmbito produtivo desenvolvida pelas mulheres, sempre se encontra
o trabalho doméstico, responsabilidade de todas as entrevistadas. A maior parte precisa conciliar as
atividades domésticas e de cuidado com as crianças ou idosos, ou ainda cuidado de netos e netas,
com o trabalho na cooperativa. Algumas conseguem dividir esse trabalho com os companheiros, mas
trata-se da minoria das mulheres. Muitas delas também não possuem companheiros e dependem
exclusivamente da Cooperativa como fonte de renda, além de receberem auxílios como o bolsa
família. Também encontramos a situação de mulheres que tiveram que parar de trabalhar para cuidar

222
dos filhos e quando tentam retornar ao mercado de trabalho já não conseguem mais pela
descontinuidade de suas carreiras. Algumas também tiveram filhos muito jovens e tiveram que arcar
sozinhas com esta responsabilidade. É recorrente nas entrevistas a necessidade de trabalhos com
horários flexíveis para compatibilizar trabalho produtivo e reprodutivo.
Algumas situações de necessidade de cuidado dos familiares, como filhos/as doentes, marido
alcoólatra ou pessoas com doenças, exigem um desdobramento maior das mulheres, o que as
obrigam a buscar um trabalho com possibilidades maiores de falta: “Ele é doente e, segundo os
médicos, abandonar um doente é pecado” (Carmem).
Sobre a divisão das tarefas do trabalho reprodutivo em casa, o mais comum é a
responsabilidade toda para as mulheres: “Eu tenho meus meninos, mas coitado, ele tem que se virar,
tem que ajeitar a vida dele também. Então ele trabalha. Enquanto eu tiver aguentando, eu
faço...”(Carina). Nota-se neste caso a compreensão de que elas são as responsáveis por essas tarefas,
enquanto os filhos homens que poderiam dividir as tarefas teriam a responsabilidade de trabalhar
fora de casa. Outra fala ilustra a mesma situação: “Não, aqui ele não trabalha. Às vezes passa uma
vassoura na casa. Quando eu chego, eu tomo um banho, aí vou pra cozinha, já faço a janta e aí
quando é umas oito horas chega o menino” (o sobrinho que mora com ela) (Eulália).
Contudo, para muitas das entrevistadas o trabalho de cuidado e reprodutivo não é
reconhecido e valorizado como trabalho: “Antes de trabalhar aqui, antes da Dom Bosco, eu não
trabalhava. Eu ficava mais em casa, eu cuidava dos meninos. Também ajudava minha vizinha a
olhar os meninos dela. Mas ficava mais em casa, não trabalhava mesmo” (Vilma). Outra fala ilustra
a mesma situação: “Eu não fazia nada, tava com a minha mãe. Aí namorei um ano e seis meses,
casei e vim pra cá. Eu só cuidava do meu irmão que tem problema de saúde, mas não trabalhava”
(Dilma).
Nota-se, portanto, a desvalorização do trabalho de cuidado advinda das próprias mulheres,
visto que trabalho não remunerado e no espaço privado não possui o mesmo valor que o remunerado
e no espaço público, o que é reproduzido pelas próprias mulheres que desenvolvem o trabalho. Mais
uma vez identifica-se nesta pesquisa a necessidade de repensar o conceito de trabalho numa relação
entre trabalho produtivo e reprodutivo, capaz de valorizar ambos os trabalhos como importantes para
a sociedade.
Se na fala da maior parte das mulheres o trabalho reprodutivo faz parte de suas rotinas e
acaba sendo uma motivação para o trabalho na cooperativa, o mesmo não aparece na trajetória de
vida do único cooperado homem que se manteve na cooperativa, visto que ele não se responsabiliza

223
pelas tarefas domésticas.
Ele também apresenta baixa escolaridade e uma trajetória de trabalho bastante diversa.
Porém, observa-se que em sua trajetória ele sempre conseguiu ser registrado, o que lhe permitiu ter
uma aposentadoria. As diferentes atividades que o entrevistado realizou estão vinculadas ao trabalho
compreendido como masculino: pedreiro, pintor, varredor, serviço mecânico, sendo, a maior parte,
registrado. Dessa forma, o trabalho na reciclagem é uma complementação de renda para ele,
realidade diferenciada da maior parte das mulheres que tem o trabalho na cooperativa como única
fonte de renda.
O negócio é o seguinte, eu já catava papelão na rua, era papelão na rua debaixo de sol
mesmo, entendeu? Aí eu soube de uma cooperativa procurando pessoas pra trabalhar e aí eu
falei pra minha esposa, vou lá, quem sabe é melhor do que no sol. Mas eu tenho seis
carteiras cheias. Já trabalhei de armador, pedreiro, carpinteiro, ajudante de cozinha...aí eu
me aposentei. Ganho uma aposentadoria e tenho aqui como complementar (Francisco).

Observa-se nesta trajetória de trabalho das mulheres e do homem entrevistado que as


oportunidades de trabalho ao longo de suas vidas foram diferenciadas. Primeiro porque para a maior
parte das mulheres com pouca escolaridade, sobretudo para as mulheres negras, o trabalho em que
encontram maior espaço é como empregada doméstica. Os outros trabalhos são aqueles
compreendidos como trabalhos femininos, seguindo a divisão social, sexual e racial do trabalho.
Já para o cooperado, outras foram as possibilidades e com acesso a direitos trabalhistas, o
que mostra como os trabalhos a eles destinados apresentam melhores condições quanto à segurança
social, embora também representem a divisão social do trabalho por serem atividades destinadas a
homens de baixa renda e escolaridade, sobretudo porque representam o trabalho manual e braçal
altamente explorado no mercado de trabalho, muitas vezes sem o devido valor.
Ainda em relação à divisão sexual do trabalho na vida das entrevistadas, em alguns casos
identificaram-se falas em que os maridos e filhos ajudam quando necessário:
Na minha casa sou só eu...e meu filho, mas ele trabalha e eu acho que ele trabalha e precisa
dormir. Ele chega onze, onze e meia da noite. Então ele não fazia nada, mas agora, esses
dias, como meu marido está com o braço quebrado e como é ele que fica aqui na
cooperativa de noite, não dá com um braço só. Aí eu tenho vindo ficar aqui. Aí meu menino
tem que levantar cedo porque ele tem que fazer comida e tratar das criações que eu tenho,
cachorro, gato e ele tem que dar comida (Carmem).

De outro lado, encontram-se histórias de mulheres que estão aos poucos mudando a forma de
se relacionar com os homens e compreender o trabalho reprodutivo. Ou seja, se esta não é uma
construção no nível estrutural da sociedade, vem sendo desenvolvida pelas lutas cotidianas e
individuais de algumas mulheres. Aurora, por exemplo, divide as tarefas com o marido em casa e
recebe apoio para trabalhar e participar das atividades da cooperativa. As outras mulheres a citam
224
como exemplo. Dilma, por sua vez, gosta de fazer os trabalhos de manutenção da casa enquanto o
marido gosta de cozinhar e lavar roupa. Já Mercedes prefere ser amigada do que casar para ter maior
liberdade e Vilma não quer ter filhos:
Eu tenho ajuda lá, tenho a ajuda do meu esposo, do meu filho, pra isso eu tenho ajuda. Disso
aí eu não posso dizer assim que eu fui explorada não. Eu entrei na cooperativa e isso foi
coisa minha. Conversei com meu filho, conversei com o meu marido e vim com a ajuda de
todos. O próprio meu marido, ele vinha dormir aqui comigo quando eu estava sozinha, ele
ajuda aqui dentro também. Quando ele vem faz a cortação do mato, ele roça o mato, ele
ajuda em todo lugar. Até aqui na organização do barracão ele fez muitas vezes...(Aurora).

Contar pra você, eu falo até pras meninas aqui, meu dia-a-dia é muito bom. Eu não faço
mais nada em casa, meu véio que faz! Ele gosta de cozinhar, gosta de lavar roupa. Ele
trabalha das duas as 10. Agora ele tá lá, uma hora ele sai, antes da uma ele pega o ônibus e
vai, as dez ele volta. Aí ele cuida lá. Eu gosto de fazer outras coisas. Eu gosto de mexer com
pedreiro. É, mexer com escada, colocar piso, pintar...eu já reboquei minha casa pra passar o
natal com a casa pintada. Pintei de verde limão. É coisa que eu gosto! (Dilma).

Sou amigada, não sou casada não. Casar é uma coisa, amigar é outra. A diferença é que
casada você é reconhecida no cartório e sendo junto não tem nada reconhecido em cartório,
então pra mim eu não sou casada, eu sou junta. Porque se eu fosse casada tem...“ah isso é e
isso não meu bem”...quem vai fazer minha vida sou eu. Eu chego a hora que eu quero, faço
o que eu quero...(Mercedes).

Observa-se então que na prática existe uma diversidade de possibilidades, mas que muitas
vezes não corresponde ao imaginário e às imposições sociais das regras de gênero. No nível das
relações familiares é possível construir novos arranjos para que as mulheres tenham mais liberdade e
oportunidades de escolha, modificando algumas regras impostas pela divisão sexual do trabalho.
Porém, essas ainda são conquistas lentas e cotidianas das mulheres que dependem dos acordos que
conseguem estabelecer e não de uma estrutura social disposta a facilitar tal transformação.
Cabe destacar que as mulheres que têm conseguido avanços nessa direção acabam servindo
de exemplo para outras, visto que elas conversam sobre esses temas no cotidiano do trabalho. A
forma de gestão coletiva também interfere neste aspecto, já que no interior da cooperativa elas
percebem que pode haver rotatividade de tarefas e que as mulheres fazem um trabalho pesado,
muitas vezes compreendido como masculino, logo elas se questionam porque em casa isso também
não pode acontecer: se aqui a gente arrasta tudo isso porque lá em casa eles não podem arrastar um
sofá? (Mercedes).
Somado a isto, as formações em torno das relações de gênero realizadas pela ITCP também
contribuem para esses questionamentos. A ITCP incentiva a participação das catadoras em diferentes
eventos organizados pela Rede de Economia Feminista e Solidária, bem como nos encontros de
catadoras do MNCR, o que contribui diretamente para a ampliação da visão das catadoras em torno
do ser mulher. Nesses espaços elas também observam a grande quantidade de mulheres em

225
diferentes Organizações Sociais Produtivas, o que merece ser analisado com atenção.

5.3. Cooperativas de Resíduos Sólidos: feminização do setor?


Embora haja uma imprecisão em torno da quantidade exata de mulheres presentes no setor,
diferentes pesquisas indicam a predominância delas nas cooperativas e associações de reciclagem.
Segundo os dados do MNCR, as mulheres constituem 70% de seus integrantes e, de acordo com a
base de dados SIES (2007), elas representam 59% do setor. Contudo, a pesquisa do Ipea (2013)
sobre o setor, indicou uma quantidade de pouco mais de 31% de mulheres.
Ao se deparar com este dado, a catadora de materiais recicláveis Marilza Aparecida de Lima,
questionou publicamente este resultado: “Somos 70% da categoria, somos mulheres negras e chefes
de família”, declarou a catadora (www.mncr.org.br).
Em resposta ao MNCR, o Ipea explicou que alguns fatores podem ter influenciado na
discrepância existente: um deles é o fato de algumas mulheres exercerem outras atividades, como o
cuidado do lar e da família e entenderem que a coleta de resíduos seja uma atividade complementar.
Ou seja, muitas mulheres catadoras não se identificaram com a atividade por manterem a identidade
de domésticas ou trabalhadoras do lar como trabalho principal e terem a catação como atividade
complementar de renda.
Somado a isto, o Ipea admite que o número total de catadores pode ser bem maior, uma vez
que o Censo do IBGE utilizado em sua pesquisa considera apenas o que declara o entrevistado, mas
por ser uma profissão ainda pouco valorizada e ser uma complementação de renda em muitos casos,
uma parte dos trabalhadores não se assumem como profissionais da catação do lixo 77.
Além disso, como explica o MNCR, “os catadores e catadoras que vivem em situação de rua
são invisíveis aos olhos técnicos do IBGE”. Dessa forma, como a pesquisa Censo conta as pessoas
por domicílio, as pessoas sem teto ou moradores em áreas irregulares não são contabilizadas.
Cabe destacar que há alguns anos vem existindo uma organização das mulheres catadoras no
78
interior do MNCR e, por isso, contrariam com propriedade esses dados . Em dezembro de 2013 as
catadoras organizaram o Quarto Encontro Nacional de Mulheres Catadoras de Material Reciclável.
No ano de 2014 organizaram o I Congresso Estadual de Mulheres Catadoras de Material Reciclável
para preparação do Encontro Nacional, com organização da Secretaria Estadual de Mulheres

77
Segundo o MNCR apenas 10% dos catadores estão organizados em cooperativas. A proposta é que as cooperativas
consolidadas consigam acolher cada vez mais os catadores de rua para mudar este cenário e melhorar as condições de
trabalho e vida desses catadores.
78
Diante deste cenário esta pesquisa está pautada na estatística do MNCR, considerando em torno de 70% de mulheres
no setor.
226
Catadoras, que será sediada na cidade de Ourinhos (SP). Este último congresso também elegeu uma
comissão de Catadoras integrantes da Secretaria Estadual de Mulheres Catadoras, composta por 13
mulheres representantes dos Comitês Regionais do MNCR.
Dessa forma, observa-se que as catadoras vêm se organizando no interior do MNCR, o que
indica a possibilidade de fortalecimento de novas lideranças femininas e a criação de espaços de
participação das mulheres para refletir sobre as questões de gênero nas cooperativas 79.
Ao analisar essa situação, uma questão se faz pertinente: porque a cooperativa Bom Sucesso
e o setor como um todo vêm apresentando grande quantidade de mulheres? O que leva os homens a
deixarem as cooperativas ao longo dos anos? Enfim, faz-se necessário refletir sobre a tendência de
feminização existente nas cooperativas de triagem de resíduos sólidos.
Segundo Yannoulas (2011), a categoria de feminização vem sendo aplicada à compreensão
da participação das mulheres no mundo do trabalho e indica processos de transformação da
composição sexual das profissões. Para a autora, há no conceito um significado quantitativo, que
expressa “o peso relativo do sexo feminino na composição de uma profissão ou ocupação”, e um
qualitativo, que “alude às transformações de significado e valor social de uma profissão ou
ocupação” (YANNOULAS, 2011, p. 3).
Dessa forma, não é apenas a quantidade de mulheres no setor, indicada pelo MNCR e
observada neste estudo de caso, que justificaria a ideia de feminização, mas também as
transformações ocorridas no cotidiano do trabalho das cooperativas por serem elas
predominantemente femininas, bem como os fatores que fazem essa feminização ocorrer.
Nas palavras de Yannoulas (ibid.), semanticamente, a palavra feminização “é um substantivo
que vem sendo utilizado para designar ato ou efeito de feminizar, dar feição feminina a algum
aspecto da vida social”. Ele refere-se à incorporação e concentração das mulheres no universo do
trabalho.
O termo feminização como categoria teórica de análise começou a ser utilizado pelas
sociólogas do trabalho na década de 1990 a partir das mudanças ocorridas no mundo do trabalho
com as tendências da flexibilização, terceirização e reestruturação produtiva que passaram a
contratar a mão de obra feminina para algumas atividades (KERGOAT, 2012 HIRATA, 2003, 2007).
Nas entrevistas realizadas na Cooperativa Bom Sucesso, observamos que as próprias

79
A título de exemplo, O Congresso Estadual de mulheres catadoras contou com oficinas temáticas que discutiram sobre
“políticas públicas para mulheres e mulheres catadoras”, “trabalho de homem e trabalho de mulher”, “mulheres
catadoras negras”, “sexualidade da mulher”, “juventude e as drogas” e “violência contra a mulher”. Segundo o site do
MNCR, entre os resultados das oficinas estão a necessidade de discutir a desigualdade entre homens e mulheres nas
cooperativas e associações de catadores.
227
mulheres definem o trabalho da reciclagem como um trabalho mais apropriado às mulheres. Ao
analisar as entrevistas, foi possível identificar três principais hipóteses como justificativa dessa
possível feminização do setor, como se descreve abaixo:
a) A primeira hipótese é a de que os homens não gostam de ser comandados por mulheres e a
liderança da Bom Sucesso é feminina:
Eles vêm aqui e conversam, vêm aqui às vezes pedir serviço, mas chega aqui e vê que a
gente é mulher. Eles conversam bastante, mas acho que eles não querem ser mandados por
mulher. Porque, se fosse um homem eles aceitariam (Carmem).

Mesma coisa que catando reciclável na rua, trabalhei seis meses e depois de seis meses a
mulher lá era muito chata e eu saí […] É mulher. Mas tem cada uma chata! Acho que todas
as cooperativas, a presidenta é mulher. Tem mulher que é ruim, mas tem umas que é boa de
a gente combinar, melhor do que homem. Porque se o homem vem falar alguma coisa eu já
parto pra porrada e a mulher você não pode fazer nada (Francisco).

Tal como já citado nos capítulos anteriores, a liderança feminina tem chamado atenção nas
práticas de trabalho coletivo/associativo. Trata-se da possibilidade de participação delas em espaços
de luta do movimento social, ou seja, em espaços de tomada de decisão e de poder, que não são
comumente ocupados pelas mulheres. Porém, no outro extremo, isso pode causar uma repulsa dos
homens que não estão habituados a serem comandados por mulheres, sobretudo no espaço de
trabalho.
Na fala de Francisco nota-se a diferenciação, pautada nas relações de gênero, em torno de
como tratar uma mulher e como tratar um homem, sendo que, com o homem, há a possibilidade de
discussão de “igual para igual”, o que levaria até mesmo à violência. Seguindo os atributos do
gênero, os homens são associados à racionalidade, agressividade e objetividade, o que seriam
características compreendidas para um chefe, um presidente. Já a mulher é considerada “chata”,
além de ser associada à imagem de sensível e delicada, o que não corresponde a conduta de quem
comanda tarefas e delega funções.
No ambiente corporativo, aos poucos essa imagem vem mudando, e as empresas estão
aceitando mais mulheres nos cargos de chefia, com ressalvas para os cargos de direção e
presidência. Segundo Bruschini e Puppin (2004), as mulheres são encontradas em cargos de chefia,
sobretudo nas empresas pequenas, com até 50 funcionários.
Tal situação é possível devido à alta escolaridade que as mulheres conquistaram. Contudo,
embora haja um aumento na participação das mulheres nos espaços de poder, os imaginários de
gênero ainda prevalecem para definir a qualificação da mulher no mercado de trabalho, tal como
esta pesquisa demonstra. De maneira geral, as pesquisas sobre o assunto ainda indicam permanência
do pensamento de que o poder está vinculado a características masculinas e que as mulheres
228
apresentam limitações para ocupar tais cargos devido à dificuldades em compatibilizar vida pessoal,
familiar e profissional (BRUSCHINI; PUPPIN, 2004; PINHO, 2005).
As entrevistadas revelaram que em casa, na escola das crianças, no bairro, a liderança de
mulheres lhes é “naturalmente atribuída”, mas na cooperativa é muito difícil ocupar este espaço,
visto que as pessoas com quem precisam negociar para vender os materiais são homens que tentam
desqualificá-las e desvalorizar seu trabalho.
b) A segunda hipótese é a de que os homens podem arrumar melhores trabalhos (com salários
mais altos e com registro). Elas, em contrapartida, consideram-se pouco qualificadas:
Os homens vêm aqui e falam que não é serviço pra eles. Um diz que o serviço é pesado
demais, outros dizem que o serviço não dá e eles vão procurar serviço em outro lugar […]
Ah, porque o homem não quer ganhar 600 reais, 300 reais, 400, reais, 70 reais. Ele quer
ganhar salário, ele quer registrar e aqui não registra. E para eles é melhor registrar, porque
quando sai da firma tem tudo. Aqui não, às vezes fica o mês atrasado, no mês do roubo eu
tirei 70 reais (Mercedes).

A cooperativa é uma coisa que dá serviço para várias pessoas, pessoas que não sabem ler,
mulher que não vai trabalhar em outro lugar e chega aqui e começa a trabalhar e ganhar um
dinheirinho dela...(Vilma).

Como observado na trajetória profissional de Francisco em comparação à trajetória das


cooperadas, de fato as chances de trabalho para os homens de baixa escolaridade e com pouca
formação profissional são melhores do ponto de vista dos direitos do trabalho, já que elas são mais
vinculadas ao trabalho doméstico, na maior parte das vezes sem contratos trabalhistas, e eles a
trabalhos na construção civil e outros setores que, mesmo em situações precárias, empregam com
melhores condições trabalhistas.
Dados do Ipea (2011), indicam, por exemplo, que enquanto existe cerca de 50% de mulheres
empregadas, esse percentual sobe para 73% no caso dos homens empregados. Já entre os
desempregados, enquanto quase 8% dos homens encontrava-se nessa condição, esses valores
saltavam para 12,4% no caso das mulheres. Os dados também revelam que as mulheres encontram-
se mais concentradas, proporcionalmente, em trabalhos informais e precários do que os homens. Das
mulheres ocupadas, 17% são empregadas domésticas, e, dentre estas, a grande maioria são mulheres
negras.
Além disso, observa-se na fala das entrevistadas que existe um imaginário de que elas são
menos qualificadas e, por isso, acabam aceitando trabalhos mais precários. Diante deste cenário em
torno do trabalho das mulheres, tanto na cooperativa, como na realidade brasileira, as mulheres
seriam mais propícias a aceitar o trabalho precário das cooperativas de triagem de resíduos sólidos
quando comparadas aos homens, o que acaba explicando a feminização do setor.

229
Ao discutir a situação da mulher no mercado de trabalho após o período da reestruturação
produtiva, no capítulo dois desta pesquisa, observou-se que grande parte das mulheres, sobretudo
negras e com baixa escolaridade, foram absorvidas nos trabalhos precários, em tempo parcial e
temporário, mal pago e sem grandes perspectivas de carreira (HIRATA, 2001-2002; MARIANI,
HIRATA, 2003). Tais ocupações são marcadas por alta informalidade e menor renda, sobretudo nos
trabalhos domésticos e de prestação de serviços.
Segundo as autoras, as mulheres estão menos protegidas, tanto pela legislação do trabalho
quanto pelas organizações sindicais, e acabam por serem absorvidas numa multiplicação de espaços
de trabalho, tal como é o caso das cooperativas de reciclagem. Nota-se que as mulheres
entrevistadas sentem essa relação em suas vidas práticas e por isso compreendem que o trabalho na
Bom Sucesso é mais destinado a elas que aos homens.
c) Nessa direção, a terceira hipótese justifica a feminização do setor pelo fato de que na
cooperativa existem vantagens para as mulheres, pois elas precisam levar os filhos na escola,
socorrer a família e assumir atividades que os homens não assumem, assim, elas precisam de
horários flexíveis. Muitas também são chefes de família e dependem do trabalho:
Sempre a gente tem um problema aqui, outro ali. Uma hora o ônibus quebra, outra hora é o
filho, sempre tem um probleminha, então tem que entender um ao outro (Carmem).

Trabalhei entregando jornal na rua, no centro da cidade. Era registrada. Mas faltava muito
porque eu tinha que ficar faltando para levar o meu filho no médico, ele tem diabetes. Eu
não podia faltar e era no período da manhã. E é no período da manhã que ele passa no
médico. Daí eu tive que sair. Eu que tenho que cuidar dos meus filhos, mas minha mãe ajuda
um pouco. Sou separada e minha mãe é aposentada (Dolores).

Olha, o trabalho não é bom, mas como a gente precisa, eu mesma preciso porque eu sou
uma pessoa que em casa, se eu trabalhar eu como, se eu não trabalhar eu não como, porque
eu não tenho marido, tenho meus filho e tenho que pagar as contas (Eulália).

Tal como analisado por Wirth (2010, p. 198) em sua pesquisa sobre a divisão sexual do
trabalho em cooperativas de reciclagem, para as mulheres, o trabalho, além de representar uma
ocupação “de grande duração e com remuneração significativa em suas trajetórias ocupacionais”,
representa a possibilidade de “conciliar melhor as atividades produtivas e reprodutivas”. A autora
destaca que esta foi uma característica marcante encontrada em todos os depoimentos das mulheres.
Em contrapartida, tal questão não aparece nos depoimentos dos homens (WIRTH, 2010, p.198). A
autora observou que em nenhum caso os homens citam o trabalho na cooperativa como um
facilitador para realizar as tarefas domésticas.
Em relação à flexibilidade no trabalho, apesar das vantagens vivenciadas pelas mulheres, a
problemática que Wirth (2010) apresenta refere-se ao fato de que esta ausência das mulheres é
230
compreendida, mas não é amparada financeiramente pelas cooperativas. Elas podem faltar, mas
receberão menos ou terão que repor a produção. Na realidade, esta flexibilidade atrai as mulheres,
mas elas arcam individualmente com o ônus destas faltas.
Em síntese, para além das três hipóteses levantadas, as cooperadas entrevistadas
compreendem que as mulheres aceitam mais as condições de trabalho precário e compreendem que,
como os homens conseguem melhores trabalhos, eles não precisam se submeter à penosidade do
trabalho em questão. Embora exista um imaginário de que os homens são vinculados ao trabalho
pesado, no caso da cooperativa essa premissa se inverte. Isso porque, mesmo afirmando ser um
trabalho pesado, elas o consideram mais adequado para as mulheres.
Nessa direção, algumas pesquisas indicam que, quando o trabalho passa a ser realizado por
mulheres, ele passa a ser considerado leve, independente das atividades desenvolvidas. A pesquisa
de Silva (1998, p. 42) no setor agrícola, por exemplo, analisou que há participação das mulheres em
todas as etapas do trabalho (preparo da terra, plantação, carpa e colheita). Porém, alguns homens e
as próprias mulheres caracterizam o trabalho das últimas como “ajuda”, embora reconheçam que “o
peso da enxada é o mesmo”. Ainda no trabalho rural, ao pesquisar o trabalho no corte da cana-de-
açucar no Nordeste, a autora identificou que a tarefa de capinar, no Sertão do Nordeste era uma
tarefa dos homens e era considerado um trabalho pesado.
Enquanto Capinar, no Brejo Paraibano, era tarefa das mulheres e era considerado trabalho
leve. Como se vê, no cultivo da cana, o que caracterizava um trabalho como leve ou pesado não era
a força física necessária para executá-lo, mas o valor social de quem o fazia.
Na prática cotidiana homens acabam ocupando cargos femininos e vice-versa. Contudo,
quando isso acontece, os estudos apontam que os homens logo buscam outras imagens para a
composição de seu ofício. Eles acabam ocupando outros espaços, desenvolvendo novas atividades e
conquistando autonomia para a tomada de decisões. Segundo Daune-Richard (2003) trata-se de
“estratégias de diferenciação” (ibid., p. 75). A autora descreve que, nas empresas, os próprios
empregadores agem desta forma, dando mais autonomia aos homens.
Tomando estes exemplos para refletir sobre as atividades das cooperativas de triagem, nota-
se o cuidado para uma tendência de que o trabalho seja considerado menos pesado por ser realizado
por mulheres. A premissa nessa lógica seria a de que, como as mulheres são capazes de desenvolver
tais atividades sozinhas, elas seriam leves. No interior da cooperativa isso de fato acontece, visto
que o trabalho da prensa, considerado o mais pesado e mais valorizado, é realizado pelo único
homem participante da cooperativa, enquanto as outras atividades são desenvolvidas pelas mulheres

231
e, embora também pesadas, acabam sendo consideradas leves.
Foi observado na cooperativa Bom Sucesso forte presença de representações sociais que
fundamentam a divisão sexual do trabalho: homens nos trabalhos mais valorizados e qualificados,
ou seja, na etapa de prensagem do material; e mulheres nos trabalhos que não exigem qualificação
técnica e que sejam flexíveis.
Embora na prática as mulheres realizem todos os tipos de trabalho no cotidiano da
Cooperativa, inclusive na prensa devido aos altos índices de falta dos homens, elas afirmam que os
homens devem ser os responsáveis pelo trabalho pesado:
Por isso também como eu acabei de falar porque se tivesse um meio assim, a gente já pegou
umas pessoas assim, uns homem para trabalhar, para carregar, para ser caixeiro, então estava
bom. Ajudava a carregar, então a gente pouco fazia assim, não forçava tanto...(Filó).

Fazer um puco de falta aqui eles fazem, mas a gente não liga porque também quando está
aqui leva o negócio na brincadeira e não faz...e eu, como já tenho problema de ex-marido
não quero depender de homem não. Se tivesse aqui seria para puxar os bags pesados,
carregar caminhão, descarregar caminhão. Porque quando a prefeitura chega e tem que
descarregar quem faz são as mulher. A gente faz...mas se aparecesse homem com um
pouquinho mais de força seria melhor (Miranda).

De outro lado, na prática, Francisco descreveu que as mulheres trabalham da mesma forma
que ele:
É, as muiezada trabalham igual, na hora que eu chamar elas vêm. Elas também levantam
fardo na mesa. Aqueles bag ali também é pesado e é tudo elas. E quando elas tão apertadas
aí elas gritam e eu vou lá (Francisco).

O trabalho na prensa, compreendido como atividade masculina e realizado por Francisco, é


um dos mais valorizados na cooperativa, pois se trata de uma atividade que precisa de capricho e é
fundamental para a venda dos materiais. Francisco explicou que desde que começou a trabalhar na
cooperativa já trabalhava na prensa. Atualmente as mulheres estão tentando inserir um jovem na
cooperativa e ele também já iniciou trabalhando na prensa: “Eu cheguei e não sabia ainda qual ia ser
o que a gente ia trabalhar. Cheguei lá e não tinha prensista e me perguntaram se eu já tinha trabalho
na prensa. Aí me deram uma ideia, porque eu nunca tinha trabalhado, mas logo comecei”.
De qualquer forma, apesar do maior prestígio, o trabalho da prensa corresponde a uma
atividade que é pesada tanto para homens quanto para mulheres e, no caso em questão, os homens
que desenvolvem esta atividade apresentam idades entre 50 e 60 anos. Neste cenário, as mulheres
entrevistadas reconhecem que o ideal seria realizar a prensagem com a tecnologia de maquinários
específicos para isso, o que pouparia homens e mulheres deste esforço. Contudo, continuam
pensando que, mesmo com as máquinas, o trabalho de manejá-las deveria ser reservado a um

232
homem.
E eles ficam na prensa porque eles, quer dizer, aqui a gente já foi formado que homem tem
mais força, então se já foi criado que tem mais força, pega o serviço mais duro [...] É, tem
que ter mais força para amarrar o fardo e, depois de o fardo amarrado e pronto, ele é pesado.
Tem que virar os fardos, para essas coisas tem que ter dois homens, mesmo um sozinho não
dá. [...] Se eles faltam, aí o bicho pega. Aí a gente tem algumas meninas que conseguem
ficar na prensa numa boa, mas não dá para tirar de um lugar e por no outro. Se você tira de
um lugar, falta [...] Então, a gente tem a empilhadeira que é pra empilhar e a gente põe no
carrinho, mas mesmo assim, é pesado mesmo erguer um carrinho com fardo. A gente faz, só
que é pesado. Melhor seria com aqueles motorizados e ter um pouco mais de espaço, aí sim,
com aquele um homem só conseguia levar (Carmem).

Nessa direção, Daune-Richard (2003) constatou em suas pesquisas que quando a tecnicidade
de um ofício aumenta, ele passa a ser identificado como masculino, diferenciando ainda mais o
trabalho qualificado de homens e mulheres. Segundo Hirata e Rogerad (2002) esta relação
diferenciada no que tange à qualificação técnica está no centro da divisão sexual do trabalho, mas
poucos estudos perguntam como a tecnologia afeta a organização do trabalho se a mão-de-obra for
masculina ou feminina.
Ao refletir sobre o trabalho técnico, Gardey (2003) elucida que não existe uma relação direta
entre qualificação, tecnologia e valorização do trabalho feminino. A autora descreve, por exemplo, o
trabalho de fiação, que ao se mecanizar acabou por se tornar um ofício masculino. Já na tecelagem,
onde as mulheres substituíram os homens, não houve grandes avanços no que tange à mecanização.
Fica evidente, como afirma Martins (2003, p. 72), que “a divisão sexual do trabalho dentro
dos galpões manifesta-se e mantém-se, em parte, através da alegação da existência de habilidades
específicas determinadas pelo sexo do trabalhador”. Nessa divisão é explícita a ideia de que o
trabalho pesado e a tecnicidade, que simbolizam a qualificação profissional, o poder e o controle
sobre a natureza, é associada ao masculino, enquanto os serviços relacionais, simples e com baixas
exigências de qualificação são interpretados como pertencentes a um universo inerente à natureza
feminina.
Essa dicotomia abre um acesso distinto para homens e mulheres em relação à qualificação
para o trabalho, principalmente se considerarmos que a dominação da técnica tornou-se uma disputa
nas sociedades modernas. Na medida em que o trabalho se instrumentaliza, também se redefinem os
ofícios, ao mesmo tempo em que se redefine quem os realiza (KERGOAT, 2012).
Por outro lado, a pesquisa revelou um avanço significativo na direção da qualificação das
mulheres, a saber: a participação política, a ocupação de cargos de liderança e participação de
reuniões e em diversos espaços da esfera pública. Não é incomum encontrarmos nas entrevistas que
as mulheres aprenderam a falar, que aprenderam a expressar sua opinião, aumentaram as suas redes
233
de contatos e solidariedade, bem como aprenderam novos conteúdos antes impensáveis em suas
vidas como domésticas ou nos outros trabalhos presentes em suas trajetórias profissionais.
Além disso, na cooperativa pesquisada, notou-se certa diferença na comparação dos
aprendizados entre os homens e as mulheres. Isso porque, para elas, esses aprendizados adquiridos
foram compreendidos como qualificação profissional, o que não se revelou para ele. Ou seja, os
aspectos como as aprendizagens cotidianas e significativa participação política não foi encontrado
na fala de Francisco, visto que ele não participa dos espaços coletivos e acessa menos as
informações a respeito do grupo. Dessa forma, ele e os outros homens que passaram pela
cooperativa, não aproveitam os espaços para se formarem profissionalmente, o que acontece de
forma contrária para as mulheres.
Identificou-se que os homens dificilmente iam a reuniões fora do empreendimento e não
entendem que esses espaços podem servir para qualificá-los para o trabalho. No caso estudado, a
cooperativa é uma fonte de complementação de renda e esse era o limite do trabalho.
Em contrapartida, as mulheres passam a participar de cursos, reuniões, movimentos,
atividades de intercâmbio com outras cooperativas, entre outras atividades que fazem parte do
mundo do trabalho produtivo e qualificado socialmente, antes desconhecido por muitas mulheres.
Assim, o que aparece como “novo” e como qualificação para as mulheres, não aparece da mesma
forma para os homens, pois estes últimos já tiveram em geral as chances de se formarem
profissionalmente nesta direção em outros trabalhos ao longo de suas vidas. As falas abaixo ilustram
a questão:
É bom né, que a gente fica sabendo das coisas direitinho, a gente vai pra querer entender,
então é muito bom! […] Ah, eu aprendi muita coisa sim, porque é uma coisa que eu nunca
tinha trabalhado, então agora eu já sei, não tenho mais dúvidas do material, de nada. Então,
pra mim...eu gosto de me interessar sempre no serviço que eu faço, qualquer serviço que eu
estiver fazendo eu gosto de me interessar (Filó).

A gente aprende...porque lá eles falam muita coisa boa que a gente não sabe, a gente fica
sabendo lá fora (Vilma).

Eu gosto de participar quando é para falar, não para ficar lá só ouvindo e dormindo. Para ir
nas reunião tem que tirar 3 ou 4 representantes, preparar para ir falar. Falar e defender. Tem
que falar que estão tirando o dinheiro e o trabalho dos pobres...que se queimar o lixo o nosso
material vai tudo pra lá. Prejudica o meio ambiente e tira o trabalho das pessoas que
precisam. O povo tá velho e sem estudo. Vai trabalhar aonde? Fala pra mim? Aonde? Aí vira
ladrão, gera violência...(Aurora).

Eu vou, porque é pro bem nosso, então é bom a gente participar também. Porque se a gente
não for, é lógico que a gente nunca vai conseguir melhorias. Porque não adianta uma
andorinha só ir que não faz verão. É pro bem nosso, tem que participar! (Vanuza).

Eu aprendi muita coisa saindo...acabei entendendo que tinha muita coisa nos eventos que
vai. Que nem, tem o Cataforte agora em São Paulo, eu vou pra lá. O que eu aprendo nas
234
reuniões eu não consigo passar pra você, mas eu acabo entendendo muita coisa que acontece
no governo...a população. Eu acabei entendendo bastante coisas (Miranda).

Dessa forma, foi identificado que as mulheres sentem que houve ampliação em suas
qualificações a partir dos espaços políticos e de reunião proporcionados pela cooperativa. Porém, tal
como encontrado também nas outras pesquisas desta tese, embora se sintam qualificadas para o
trabalho na reciclagem, as cooperadas não vivenciam o reconhecimento pelo trabalho realizado,
sobretudo da parte dos órgãos públicos, mas também da sociedade que ainda tem preconceitos e
dificultam a própria identificação delas como catadoras.
Eu me sinto qualificada, mas reconhecido...olha, pela população não. Pela população e pela
prefeitura nós não somos reconhecidas. Eu me sinto qualificada porque eu to ajudando a
natureza e a população não vê isso...(Miranda).

Ah, eu acho que não. Porque se fosse reconhecido, as vezes você chega nos lugares ai. Se eu
fosse no INSS eles ficam procurando um monte de coisas para você. Quando eu quebrei o
braço, eu fui no INSS e eles ficam “O que é uma cooperativa, o que é isso, o que é aquilo?”
Aí eu falei pra ele: Vai lá ver que você sabe o que é! […] É! Você vai lá que você vai ver
como a gente trabalha, o que a gente faz lá dentro (Mercedes).

Não, só os meus vizinhos que já sabe né, assim, que eu trabalho, mas eu não gosto de falar
assim porque, porque as pessoas ainda hoje em dia ainda têm esse preconceito […] E assim,
porque é lixo né, então trabalha com lixo. Eu acho, na minha rua mesmo tem gente assim
que tem preconceito, Então eu nem trato (Filó).

Nota-se, portanto, assim como já avaliado nas iniciativas analisadas no capítulo anterior, que
nem sempre a ampliação da qualificação das mulheres é revertida em reconhecimento profissional,
tanto financeiro, como também de maior prestígio social.
Diante dessas contatações parece-me razoável pensar em termos de feminização ao analisar
as cooperativas de triagem de resíduos sólidos. Essas cooperativas surgiram já como atividade
precária, tal como acima revelado. Essa forma de trabalho precária, no entanto, tem sido
particularmente destinada às mulheres, já que elas estão mais submetidas ao desmantelo das normas
do emprego. Somado a isto, tem-se o fato de o setor atrair as mulheres, sobretudo as mulheres
negras, por exigir baixa qualificação e possibilitar a relação entre trabalho produtivo e reprodutivo,
bem como por representar uma opção de trabalho possível diante da realidade encontrada pelas
mulheres pesquisadas no mercado de trabalho como um todo.
O desafio que a partir desta reflexão, portanto, é o de compreender as questões que
perpassam o enfoque quantitativo e analisar em que medida essa feminização estaria redefinindo o
trabalho no setor. Quais são as mudanças na esfera do trabalho proporcionadas por essa possível
feminização?
Revela-se, dessa forma, a necessidade de outras pesquisas para aprofundar esta problemática
235
no setor como um todo. São duas as principais questões que podem ser indicadas aqui: i) a
precariedade do setor está intimamente relacionada a esta possibilidade de feminização; ii) a
predominância feminina confere especificidades ao trabalho cotidiano e à construção de políticas
públicas para o setor. Como bem descreveu Yannoulas, “a polêmica sobre a feminização dos
processos sociais não é apenas epistemológica, mas fundamentalmente política” 80.
O mesmo exercício pode ser feito em torno das questões raciais, já que não são apenas
mulheres que predominam no setor, mas mulheres pardas e pretas, o que também confere
especificidades a esta feminização identificada. A tentativa de adentrar neste tema, no entanto, revela
a carência de pesquisas e investigações sobre a questão, o que se apresenta como um desafio a mais
para este campo teórico.

5.4. Qual é a cor das cooperadas?


Segundo os dados do IPEA (2013), a maior parte das pessoas entrevistadas que se declararam
catadores, identificaram-se também como negros (pretos e pardos). Os dados mostram que a
participação de negras e negros representa 66,1% do total. Ou seja, duas em cada três pessoas que
exercem a atividade de catação se identificam como negras e negros. De acordo com o Censo
Demográfico 2010, o percentual dessa parcela da população na atividade de catação é superior ao de
negras e negros na população brasileira total, que é de 52%. O maior percentual de negros entre
esses profissionais está no Norte, com 82,0%, e o menor no Sul, com 41,6%.
Sobre este dado não encontramos informações do MNCR para confirmar ou contrapor os
dados do IPEA, mas alguns textos do movimento fazem citações de que grande parte dos catadores e
catadoras é negra. Novamente pode-se identificar aqui uma ausência nas pesquisas e debates sobre o
tema das questões raciais, já que o MNCR não apresenta dados sobre a questão.
No caso da cooperativa pesquisada, se em relação às questões de gênero as mulheres
conversavam e trocavam algumas informações, mesmo existindo a presença das representações da
divisão sexual do trabalho, sobre as questões raciais pouco se fala.
Ao perguntar para as trabalhadoras da cooperativa se elas eram negras ou brancas, a maior
parte não sabia dizer. Em geral, elas dizem que “branca, branca não tem muito...aqui todo mundo é

80
Cabe destacar que durante o Encontro Nacional Conhecimento e Tecnologia: Inclusão Socioeconômica de
Catadores(as) de Materiais Recicláveis, que ocorreu na cidade de Brasília dos dias 20 a 22 de agosto de 2014, foi
observado que existe uma tendência de encontrarmos mais homens, ou um equilíbrio entre homens e mulheres, nas
cooperativas mais estruturadas e menos precárias. Porém, tal constatação merece ser melhor investigada. Além disso,
observei que as mulheres catadoras de fato estão cada vez mais participando das mesas de debate e se colocando
publicamente. Contudo, elas não estão nas principais mesas de articulação política e a participação delas é compreendida
como algo “exótico”, a ser destacado de maneira diferenciada e não como natural.
236
moreninha”, mas notou-se que elas não discutem sobre o tema.
Do mesmo modo como analisado na pesquisa com a fábrica recuperada Catende-Harmonia,
pelo fato de a maior parte ser considerada não branca, parecia não haver motivo para debater, ou
seja, o tema era tratado como superado pela suposta igualdade natural existente. Se todas são “mais
ou menos negras” parece não haver necessidade de discussão.
Ao aprofundarmos individualmente a questão nas entrevistas realizadas, apenas duas das
cooperadas se declararam brancas, as outras diziam que eram morenas, pretas e algumas me
perguntaram como poderiam se autodeclarar, pois nunca haviam pensado nisso. Outras também
disseram que escutam falar sobre a cor parda e também perguntaram o que isso significava: “pardo é
assim o morenos mais escuro? Como a gente sabe?” (Miranda). Foi observado também que para a
definição da cor, de maneira geral, as cooperadas se referiam não apenas à cor da pele, mas também
ao tipo do cabelo, ao nariz e a outros traços fenotípicos para refletirem sobre a sua cor/raça.
Este é de fato um tema polêmico que dificulta inclusive as pesquisas estatísticas sobre a cor,
visto que as pessoas podem se identificar com diferentes cores. Uma mesma pessoa vista como
negra pode se perceber parda. Uma vista como parda pode se perceber branca, ou negra, etc. Desa
forma, não saber como se autodeclarar não é um privilégio das cooperadas entrevistadas. Ao longo
da pesquisa ficou evidente que quando não há uma identificação com a raça negra e uma discussão
mais profunda em torno do tema, dificilmente as pessoas se declaram negras, mesmo que se
identifiquem como não brancas. Como afirma Munanga (2004), declarar-se negro no Brasil significa
afirmar o peso histórico da desigualdade social no país, o que não é uma tarefa fácil.
O autor explica que se criou no Brasil um imaginário do branqueamento, em que o branco foi
valorizado socialmente em detrimento do negro que teve os seus traços fenotípicos ridicularizados, a
sua cultura rechaçada e o seu trabalho desqualificado. Logo, reconhecer-se como negro é assumir e
brigar contra uma série de preconceitos raciais que se formou no país em torno do ser negro. Ao
mesmo tempo, o movimento negro luta por este reconhecer-se negro, visto que essa é uma das
únicas formas encontradas para a mobilização política capaz de revelar a quantidade de negros no
país e provar que existem desigualdades raciais, e consequentemente, existe a necessidade de
criação de políticas públicas específicas para a parcela negra da população brasileira.
Em comparação com as iniciativas anteriores pesquisadas, a cooperativa Bom Sucesso foi
onde melhor consegui explorar a questão de raça pela definição da cor da pele das participantes.
Ficou evidente na análise dos dados que elas se definem como negras (pardas ou pretas) não
somente pela cor da pela, mas pela soma da cor, classe social, escolaridade, local que ocupam na

237
esfera do trabalho, além dos traços fenotípicos (cabelo, nariz e a própria cor).
Ao longo da pesquisa, foi observado que, devido à condição social de baixa renda, algumas
cooperadas de pele mais clara não conseguem se identificar como brancas, já que a cor branca,
conectada com a raça branca, é observada a partir de uma representação social em que elas não se
enquadram. Por exemplo, em um dos diálogos sobre essa questão na Cooperativa, uma das
cooperadas me disse que “branca como você, que vem da Universidade, não tem” (Filó). Logo, a
questão da cor da pele está também atrelada à ocupação de lugares sociais e à condição financeira, o
que faz com que haja um enegrecimento das pessoas dependendo do lugar de classe que ocupam.
Como explica Guimarães (2001, p. 104), “cor não é uma categoria objetiva, cor é uma
categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos, é a ideia de
raça que orienta essa forma de classificação”. Deste modo, cor seria o discurso que as pessoas
utilizam para falar de raça e a identificação das pessoas pela cor preta ou parda significando a raça
negra passa por essa questão, o que reforça a necessidade do debate em torno do tema.
Contudo, falar ou não de raça é um pouco mais complexo. Segundo Munanga (2004) assumir
que existe raça em termos sociológicos significa assumir que existe racismo, visto que, embora o
termo não exista para os estudos científicos biológicos destinados aos humanos, ele ainda está
presente nas representações coletivas construídas em diversas sociedades contemporâneas. Dessa
forma, o autor considera que o termo deve ser entendido como uma realidade sócio-cultural e
política, ou seja, como um instrumento de dominação e exclusão. Trata-se, portanto, de um conceito
sociológico e não biológico que expressa uma construção social e que se aplica numa relação social
de dominação, em que a cor da pele escura e os traços fenotípicos implicam segregação racial
(GUIMARÃES, 2001). Isso é sentido e observado pelas cooperadas entrevistadas, uma vez que elas
definem a cor também pelo lugar social que ocupam.
Assim como aconteceu na Cooperativa pesquisada, ao se autodeclararem, os brasileiros e
brasileiras se apoiam numa infinidade de possibilidades. Segundo Munanga (2004), no Censo de
1976, por exemplo, o IBGE, que havia suprimido o quesito cor do seu levantamento da população
brasileira, resolveu reintroduzir a questão no seu formulário. Ao fazer esta questão de forma aberta,
na qual a pessoa responde livremente o que vem a sua cabeça, o IBGE recolheu 136 respostas
distintas (preto, negro, moreno claro, moreno escuro, escurinho, queimadinho, entre outros).
Contudo, grande parte se concentrou em algumas categorias, como branca, clara, morena
clara, morena escura, parda e preta. Consequentemente, como era estatisticamente recomendável
agregar os dados para permitir análises menos confusas, o IBGE juntou os pretos aos pardos sob a

238
denominação de negros em seus estudos sobre as desigualdades raciais no Brasil.
Do ponto de vista de Guimarães (2001), tal agrupamento, também sugerido pelos
movimentos sociais negros, fortaleceu a luta da população negra, uma vez que assim eles passaram a
representar pouco mais de 50% da população, conferindo maior peso à suas reivindicações.
Ao debater questões como essas com as cooperadas, a maior parte acabou se autodeclarando
pardas e/ou pretas, mas ainda assim não existe uma identificação entre o ser parda e uma identidade
racial que permite mobilizações importantes.
Após chegar a uma definição e analisar as atividades desenvolvidas pelas pretas, pardas e
brancas na cooperativa, não foi identificada a divisão racial no cotidiano do trabalho. Ou seja, não
foi observado pessoas brancas realizando diferentes atividades das pessoas não-brancas, ou divisão
entre trabalho das pretas e pardas. Não foi identificado, por exemplo, distinção de salários ou das
tarefas mais ou menos valorizadas. Dessa forma, podemos afirmar que na cooperativa pesquisada
existe um avanço nessa direção. A própria presidenta da Cooperativa é uma mulher negra, que
mostra como nesse trabalho coletivo é possível uma mulher negra ocupar alguns espaços que não
são ocupados pelas negras na sociedade e no mercado de trabalho como um todo.
Ao entrevistar essa presidenta, ela explicou que fora da cooperativa sente preconceito, mas
no interior da mesma não observa desigualdade racial. Ela nota, por exemplo, certa dificuldade de
negociar com alguns homens, geralmente brancos, donos de empresas, que não valorizam o seu
trabalho e que não olham uma mulher negra como uma mulher capaz de negociar preços e gerenciar
uma cooperativa.
Acho que pelo fato de ser mulher já é mais difícil. Porque esse jeito de liderança elas já tem,
porque para você casar e ter filho e comandar numa casa, você tem que ser a líder dali. A
sua casa não vai se você não for líder. Mas infelizmente eles não pensam assim, os homens
são mais. Mesmo pra gente da cooperativa, se é com homem, a conversa é diferente, até os
preços e tudo, a gente tem que brigar mais, a gente tá discutindo com ele aqui e ele está
teimando com você. É muito mais difícil você chegar num acordo com eles. [...] Os
compradores são homens, é difícil. A gente leva na brincadeira para chegar num acordo, mas
é difícil [...] Aqui quem faz mais essa parte da venda é a B., ela tem que ser muito forte. Às
vezes ela discute feio e eles falam menos, menos, menos. A gente leva na brincadeira, mas
não abre mão do nosso, eu quero isso!

A presidenta da Cooperativa revela, portanto, que no trabalho coletivo é possível uma mulher
negra ocupar alguns espaços que não são habitualmente ocupados pelas negras, como a presidência
de uma Organização, contudo, o preconceito em torno do cruzamento das questões de gênero e raça
é vivenciado fora do espaço da cooperativa. Nessa direção, Carmem questiona: “qual é a imagem
que os homens têm da mulher negra?”. Essa questão é fundamental para compreendermos a
complexidade do tema.

239
De maneira geral a mulher negra, diante da história da escravidão, foi erotizada e
compreendida como um corpo a ser explorado, além de ter sido associada ao trabalho de servir um
senhor. Com o passar do tempo, ela foi identificada a uma crença de que ela é “mais erótica ou mais
ardente sexualmente do que as demais” (CARNEIRO, 2003, p. 6). Logo, a imagem da mulher negra
não se relaciona à imagem de presidenta de qualquer coisa, mas de alguém que deve servir, inclusive
sexualmente.
Dessa forma, ser mulher, negra e presidenta da cooperativa é mais um avanço a ser
considerado entre as possibilidades de conquista do trabalho associativo/cooperativo. De outro lado,
uma problemática em torno disso é que as dificuldades raciais enfrentadas pela presidenta não é
discutida na cooperativa, logo ela tem que arcar sozinha com o peso do racismo que enfrenta,
mesmo ocupando um espaço de poder em nome da cooperativa.
Observou-se também que entre as cooperadas é difícil dizer da cor da outra. Quando eu
perguntava para elas se a maior parte das cooperadas eram brancas ou negras elas me diziam: “ah
isso é melhor você perguntar pra cada uma”; “tem aquela moreninha ali, aquela outra...”; “eu sei que
eu sou, mas vai que alguma fica brava de eu chamar de preta”. Logo, nota-se a dificuldade ainda
existente para tratar o tema. Nesse caso a entrevistada elucida ainda que chamar uma pessoa de preta
ou negra pode parecer uma ofensa, o que demonstra mais um desafio a ser encarado.
Para as trabalhadoras que se declararam negras (pretas e pardas, após nossas conversas sobre
o tema), observou-se que em suas trajetórias de vida pessoais existiam histórias de racismo e
discriminação, tal como piadas ou exclusão de algum posto de trabalho devido à cor.
Ao longo das entrevistas, pude registrar histórias que mostram como a sociedade ainda está
bastante distante da conquista da igualdade racial. Uma das entrevistadas, por exemplo, chegou a
descrever que sentiu tristeza quando teve uma filha de pele mais escura e cabelo crespo. Ela narra
que sentiu o medo do preconceito que ela e a filha sofreriam. Na época do acontecido, a cooperada
não percebeu o porquê de seus sentimentos, mas como vem discutindo esse tema em outros espaços
de mobilização, hoje ela consegue identificar o preconceito existente nela mesma.
Outra cooperada narrou sua dificuldade de se manter em um trabalho numa empresa estando
grávida. Ela teve uma gravidez muito difícil, mas por ser negra tinha aparência de forte e o seu
patrão não a dispensava do trabalho. Chegando ao médico, ela tampouco era atendida, pois
novamente era vista como forte e saudável, não sendo prioridade no atendimento médico, até que
perdeu o bebê que esperava. Histórias como essas fazem as mulheres negras deixar o trabalho para
cuidarem da gravidez e dos filhos, tendo dificuldades depois de se reinserirem no mercado de

240
trabalho.
Muitas cooperadas também narraram casos de violência policial que os seus filhos, sobretudo
os meninos, enfrentam no cotidiano da cidade de Campinas. Também descreveram preconceito na
escola pelas piadas que os filhos e filhas chegam em casa contando. Porém, notou-se nas entrevistas,
que muitas mulheres negras não discutem a questão racial nem mesmo em suas famílias: “no
máximo para dizer do preconceito...vida de negro é difícil, coisas assim...” (Eulália). Além disso, foi
identificado que muitas situações de preconceito contra os negros são confundidas com ser pobre,
vestir-se mal e não com o preconceito de cor.
Essas questões ainda são recentes na Cooperativa Bom Sucesso, que tem como prioridade
manter a cooperativa funcionando seguindo uma gestão coletiva e pensar na questão da renda das
trabalhadoras, com ênfase no eixo classe social. Os eixos gênero e raça, sobretudo, não apresentam a
mesma magnitude como um problema a ser enfrentado pela cooperativa.
A ITCP Unicamp vem aos poucos trabalhando essas questões por meio da organização de
oficinas temáticas na cooperativa. Contudo, ainda não representa um debate prioritário, ou que tenha
sido motivo de maior articulação e mobilização por parte das cooperadas.
Dessa forma, nota-se que no interior da cooperativa existem avanços para a questão da
divisão racial do trabalho, contudo, ainda há a dificuldade de identificação das cooperadas em torno
da identidade negra, somada ao fato de ainda sentirem uma série de preconceitos em suas vidas,
sobretudo aquelas de pele mais escura e traços fenotípicos reconhecidos entre a população negra.
Por fim, cabe destacar que, embora as cooperadas entrevistadas não tenham uma formação
militante para o enfrentamento das questões raciais, na prática vão lidando com essas questões e
aprendendo a superá-las. Elas sabem que são pretas ou pardas e sabem o peso social que isso tem.
Porém, no outro extremo, notou-se a dificuldade de elas se reconhecerem como mulher negra
enquanto sujeito político, o que coloca algumas dificuldades para a superação do racismo que
sofrem cotidianamente.

Considerações do Capítulo

A análise dos dados da Cooperativa Bom Sucesso evidenciou o que a bibliografia em torno
do setor de reciclagem tem apontado, ou seja, que as cooperativas de triagem de material de resíduos
sólidos são destinadas a um grupo específico de trabalhadores devido ao alto grau de precariedade
encontrado nesta ponta do setor.
Tendo como base a caracterização metodológica elaborada nesta pesquisa, e pautada na

241
consubstancialidade das relações sociais, foi possível detalhar e especificar quem é esta população:
trata-se de homens e mulheres dos terceiros grupos, sobretudo negras e negros, com baixa
escolaridade, com idade avançada e compreendida como não qualificada pelo mercado de trabalho,
porém, como “qualificada” para a catação de recicláveis. Como relatam as catadoras entrevistadas:
Abriu mais oportunidade para as mulheres...e esse negócio de cooperativa é mais pras
pessoas de idade, né? Porque não é todo serviço que pega as pessoas de mais de quarenta e
cinco, cinquenta anos. Então a cooperativa foi boa para as pessoas de idade, para as
mulheres, pra poder trabalhar quem não tem experiência. Tem hora que falam para procurar
outro, mas eu não tenho leitura, e eles procuram mais as pessoas mais novas e que tem
leitura. Então a cooperativa é mais pra essas pessoas (Eulália).

Porque às vezes a formação do ladrão é o próprio lugar que dá chance pra ele roubar, mas
não dá chance pra ele trabalhar. Porque tem muita gente que sai do presídio, que sai da
prisão, ele pode até sair com o pensamento de trabalhar, mas quando chega na firma e eles
puxam a ficha, ele foi presidiário, e você acha que não pesa? Pesa. Isso aqui pesa no Brasil,
pesa pra quem não sabe ler, pesa pra quem foi preso, pesa pra quem é baixinho, pra quem é
mulher, pra quem é escurinho. Se você está numa fila pra pegar um emprego, eles vão olhar
aquela que sabe ler, aquela que é mais altinha ou que tem um curso. Então tem hipocrisia no
nosso país, tem racismo, tem tudo isso. Porque assim, um rapazinho bonitinho,
arrumadinho, que tem uma boa faculdade, ele não vai querer cair numa cooperativa, você
sabe disso...(Aurora).

Ao analisar a cadeia produtiva do setor, é possível compreender que a exploração do trabalho


desses sujeitos é funcional às empresas que o dominam e ao sistema de acumulação capitalista de
modo geral. É justamente a partir do trabalho mal pago e explorado do/a catador/a que as grandes
empresas podem decidir os preços do “lixo” em nível mundial, bem como seguir dominando os
lugares mais rentáveis e lucrativos desta cadeia. Em contrapartida, faz-se necessário destacar que,
apesar das dificuldades e contradições enfrentadas neste embate de classes, a organização do
MNCR, e mesmo as cooperativas em forma de trabalho coletivo, demonstram avanços importantes
no que tange à capacidade de agir e de resistir desses/as trabalhadores/as.
Ao longo da pesquisa, foi possível identificar que as condições de trabalho na cooperativa
devem ser analisadas sempre em comparação. Quando as catadoras olham para o trabalho, elas
fazem reclamações importantes como as que foram descritas: falta de apoio da prefeitura, não
valorização do trabalho, trabalho pesado, péssimas condições do espaço de trabalho com falta de
segurança e ventilação inadequada, baixa renda, etc. Mas, ao mesmo tempo, diante das
desigualdades que vivenciam pela coextensividade das questões de classe, raça e gênero, o mesmo
trabalho precário é visto pelas trabalhadoras como positivo, já que, como elas dizem, “poderia ser
ainda pior”, pois não querem enfrentar a humilhação de serem domésticas em casa de família e
também comparam a vida atual com a vida nos lixões e nas ruas enquanto catadoras de recicláveis.
Como dito por Eulália, “parece estranho dizer isso, mas o lixão é nossa segurança, nossa profissão e
242
a gente não sabe fazer outra coisa”.
Esta observação, no entanto, não exclui a necessidade de luta por melhorias para o setor, tal
como o MNCR vem buscando conquistar. Essas cooperativas organizadas em um movimento social
vêm demonstrando uma condição de exploração na luta de poderes em torno do lixo que precisa ser
denunciada.
As cooperativas de triagem de resíduos sólidos, de maneira geral, estão contidas numa
proposta de inclusão social, vinculadas às políticas públicas do Programa Bolsa Família, mas é
preciso rever como esta inclusão vem sendo feita no país sob o nome de Economia Solidária. Em
qual parte da cadeia produtiva do setor da reciclagem a Economia Solidária pretende se vincular?
Ela pretende se manter precária e destinada a uma parcela da população sem acesso a direitos 81? Isso
justifica a sua precariedade? Como melhorar as condições de trabalho das pessoas a ela vinculadas?
São questões que a pesquisa vem apontando, e que precisam ser enfrentadas com maior cuidado.
Foi observado neste capítulo que essa condição precária de trabalho das cooperativas está
intimamente relacionada à grande quantidade de mulheres no setor, sobretudo de mulheres negras, o
que indicou a existência de uma feminização e de uma racialização do setor. Essas indicações, por
sua vez, contribuem para alterar a própria prática do trabalho nas cooperativas. Como visto, as
dinâmicas de racialização e feminização apontam uma série de especificidades qualitativas ao
trabalho, as quais puderam ser observadas na cooperativa Bom Sucesso pesquisada nesta tese, mais
precisam ser melhor investigadas no setor como um todo.
Destaca-se, principalmente, a grande participação das mulheres negras nos cargos de
administração, presidência e lideranças nas cooperativas de reciclagem, bem como a organização
das mulheres do MNCR. No caso da Bom Sucesso, as mulheres tem utilizado o espaço de trabalho e
de organização feminina para ampliar as suas qualificações técnicas, políticas e de gestão coletiva, o
que é evidente na capacidade de agir cotidianamente encontrada na cooperativa, bem como na
possibilidade de mobilização social encontrada na cooperativa.
Compreender essas dinâmicas no setor de forma não apenas quantitativa, como também
qualitativa, pode contribuir para uma melhor compreensão das maneiras e perspectivas da
participação feminina e da população negra no mundo do trabalho, bem como para elucidar a

81
Cabe destacar que no ano de 2012 foi aprovado o projeto de lei - 4.622 - que criou mecanismos para comprovar a
legitimidade das cooperativas organizadas por trabalhadores/as e garantir aos cooperados os direitos trabalhistas (férias,
décimo terceiro, licença maternidade, etc). Contudo, cabe destacar que muitas Organizações Sociais Produtivas ainda
estão na informalidade e que a efetivação da lei é um processo que vem sendo aos poucos colocado em prática. As
entrevistadas e entrevistados desta pesquisa ainda não foram beneficiados/as com esta lei.

243
polêmica em torno da racialização feminina da pobreza e a exploração dessa mão de obra no
mercado de trabalho.

Considerações Finais: a consubstancialidade no trabalho associativo/coletivo

Ao longo deste trabalho de pesquisa, busquei compreender e analisar os avanços e limites de


três Organizações Sociais Produtivas (OSPs) de Trabalho Associativo/coletivo, a partir do
cruzamento das categorias de classe, gênero e raça presentes nas iniciativas pesquisadas e nas
trajetórias de Qualificação de homens e mulheres, brancas/os e negras/os, participantes dessas
Organizações. A tese defendida foi a de que os projetos associativos e de trabalho coletivo,
agrupados pelas políticas de Economia Solidária, apresentam a prioridade de enfrentamento das
relações de classe, focados, sobretudo, no desemprego, oportunidades de geração de renda e
superação da fome e miséria de parte da população brasileira. Contudo, não priorizam as questões de
gênero, sobretudo as de raça, com a mesma relevância, não considerando, portanto, a
coextensividade dessas relações sociais como estruturantes da sociedade, tanto como a classe.
A pesquisa também revisitou conceitos fundamentais da sociologia do trabalho, relacionados
às categorias de gênero, classe e raça e ao conceito de qualificação, focando os mesmos a partir do
trabalho coletivo/associativo. Para tal, pautou-se na experiência de três casos distintos, a Fábrica
Recuperada Catende-Harmonia, a Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana e
a Cooperativa de Triagem de Resíduos Sólidos Bom Sucesso. Essas experiências representam
setores sociais organizados, apresentam relações com distintos movimentos sociais e priorizam a
qualificação de seus trabalhadores e trabalhadoras, além de representarem setores que se destacam
qualitativa e quantitativamente no âmbito da denominada Economia Solidária.
Ao finalizar a escrita, neste momento, acredito ter respondido à questão e alcançado os
objetivos desta investigação, na medida em que foi possível compreender como se dá a
consubstancialidade das relações sociais nos setores pesquisados, sobretudo a partir da classificação
metodológica apresentada no segundo capítulo da tese, e da análise de como cada experiência
pesquisada lida com as questões de classe, raça e gênero em suas práticas cotidianas. Também
acredito ter comprovado a tese defendida ao confirmar que de fato há uma prioridade dada à classe
social em detrimento das questões de gênero e raça nas diferentes experiências pesquisadas de
trabalho coletivo/associativo. Tal comprovação se deu pela identificação da divisão sexual do
trabalho no interior das OSPs e oportunidades diferenciadas para homens e mulheres em algumas
experiências, bem como pelo silenciamento das questões raciais no âmbito das iniciativas
244
pesquisadas. Ao mesmo tempo, foi observado que cada uma das experiências pesquisadas
apresentam avanços na tentativa de refletir sobre as questões de raça e gênero em suas práticas
sociais, seguindo os seus processos históricos em cada realidade pesquisada.
A ênfase dada à classe social está presente nessas iniciativas pela própria existência das
OSPs que se desenvolvem no enfrentamento com estruturas e grupos de poder que mantêm as
desigualdades sociais. Contudo, coube destacar que essa luta de classes também tem cor e sexo, o
que a torna mais complexa e o que nem sempre é encarado pelos diferentes movimentos sociais. Por
outro lado, a pesquisa indicou que, mesmo tendo como prioridade a categoria classe social, existem
lacunas entre a tentativa de geração de renda e superação do desemprego nessas OSPs e as suas
possibilidades de enfrentarem as estruturas de poder da sociedade.
No caso de Catende-Harmonia, por exemplo, o fim do projeto, bem como todo o processo de
lutas e resistência travado ao longo da experiência, revelou a dificuldade que é a luta de classes no
país, sobretudo num local em que predominavam as relações de origem escravocratas e patriarcais.
De um lado, encontrava-se a classe explorada, os trabalhadores e trabalhadoras do corte da cana,
primordialmente negros-negras, que dependem da venda de sua força de trabalho; e de outro, os
grandes usineiros apoiados por grupos políticos de poder, em sua maior parte brancos e que
detinham os meios de produção. Ao longo desta luta racial de classes, a resistência dos trabalhadores
permitiu ganhos como a própria Usina e os seus bens, a conquista das terras da Usina por meio de
um Assentamento Rural de Reforma Agrária, bem como a conquista das casas, antigas senzalas, em
que os trabalhadores moravam. Porém, diante de tais conquistas, o grupo dos usineiros voltou a se
organizar e conseguiu derrotar os trabalhadores, pondo fim ao projeto e revelando a dificuldade da
luta de classes no país.
Na experiência da Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana,
observou-se que, embora a motivação para essa organização sejam as categorias de gênero e raça, a
categoria classe social é também uma motivação central para o fomento da auto-organização de
mulheres, visto que se trata de mulheres de baixa renda, que possuem suas qualificações exploradas
pelo mercado de trabalho e que enfrentam uma série de dificuldades referentes à desigualdade social
no país, como falta de creches e escolas para os seus filhos e filhas, dificuldades de utilização do
transporte público, acesso à moradia digna, entre outras. Observou-se que, quando as OSPs não
conseguem dar respostas econômicas positivas a essas mulheres, muitas se ausentam para a busca de
geração de renda, já que o enfrentamento cotidiano da fome e da miséria é essencial e nem sempre
as inciativas de trabalho coletivo garantem essa renda.

245
Já no caso do setor de reciclagem, representado nesta pesquisa pela Cooperativa de Triagem
de Resíduos Sólidos Bom Sucesso, foi revelada a disputa entre catadores e catadoras, compostos por
uma grande quantidade de mulheres e da população negra, e os grandes empresários do lixo,
também apoiados por diferentes grupos políticos. Observou-se grande resistência por parte das
Catadoras e Catadores organizados em um movimento social, o Movimento Nacional de Catadores
de Recicláveis - MNCR. Por meio deste movimento a categoria em seu conjunto conquistou uma lei
federal que permite a contratação de cooperativas populares para a realização da coleta seletiva dos
municípios, uma lei que institui a política Nacional de resíduos sólidos, o programa Nacional de
reciclagem popular, entre muitas outras conquistas. Contudo, de outro lado, ainda não conseguiu
deixar de ser a ponta mais explorada da cadeia produtiva da reciclagem, realizando o trabalho
pesado, não valorizado socialmente e que garante o domínio dos grandes empresários do lixo em
nível mundial.
Dessa forma, a iniciativa de organização econômica dessas OSPs já revelam que elas
emergem do confronto entre classes antagônicas presente na sociedade capitalista. Porém, ao longo
de sua trajetória, a Economia Solidária, que busca organizar politicamente essas experiências, foi se
restringindo ao desemprego, geração de renda e políticas de inclusão social, sem, contudo,
possibilitar o enfrentamento com a estrutura de poder e propriedade que culmina nas profundas
desigualdades sociais e dificuldades encontradas por essas organizações em seus cotidianos de luta.
As iniciativas pesquisadas, em especial Catende-Harmonia e a Rede de Mulheres Produtoras
do Recife, revelaram que já existiam com propostas de organização de trabalhadores antes mesmo
de a ES surgir com esta denominação. Também demonstraram que elas não surgem com um projeto
de autogestão, mas de melhoria da qualidade de vida e possibilidades de geração de renda para
alguns grupos sociais num contexto de exclusão.
Ou seja, nota-se que, embora a proposta de ES tenha influenciado a forma de organização
dessas experiências, elas também foram fundamentais para construir o que se denominou Economia
Solidária, em seu sentido de enfrentamento à desigualdade social. Mas, com o passar do tempo, a ES
perdeu sua força de transformação social, restrigindo-se a projetos de geração de renda e inclusão
social sem enfrentar o cerne das dificuldades da luta de classes no país, o que acaba sendo refletido
nessas experiências.
Como observado nesta pesquisa, o termo Economia Solidária acabou sendo utilizado para
representar uma série de experiências com diferentes objetivos, o que dificulta sua definição e o seu
viés transformador. Sem esse viés, fica difícil que as iniciativas avancem nas disputas de classe que

246
limitam as suas capacidades de ampliação. Segundo uma das entrevistadas da pesquisa, “um
movimento que não sabe o que quer não é um movimento social”.
No entanto, como demonstrado, no interior dessas práticas sociais de trabalho
coletivo/associativo são produzidas iniciativas de resistência de classe que merecem atenção. Como
salienta Zibechi (2010), tais iniciativas referem-se a uma série de organizações que mostram a
capacidade que “os pobres têm de se organizar e mobilizarem” e, dessa forma, de resistir a essa
estrutura de poder em meio à necessidade de acesso a direitos e participação social.
Exatamente por isso optou-se nesta tese, em detrimento da denominação contraditória da
Economia Solidária, pela utilização dos conceitos Organização Social Produtiva e iniciativas e
experiências de trabalho coletivo/associativo, representando, nos termos de Faria (2009), as
organizações de unidade produtiva que têm como principais objetivos a produção das condições
materiais de sobrevivência, solidariedade e gestão coletivista do trabalho ao nível da unidade de
produção, e o enfrentamento com o modo de produção capitalista pela autogestão parcial, já que
emergem desse sistema, mas não representam a sua superação. Essas OSPs revelam diferentes
nuances da disputa, resistência e luta de classes no país e este enfrentamento depende mais da
organização coletiva dos próprios trabalhadores em diferentes movimentos sociais, que das políticas
de Economia Solidária propriamente ditas.
É possível concordar com Gaiger (2000) quando o autor descreve que há uma “economia dos
setores populares” que não significa um novo modo de produção, mas que representa a união de
grupos excluídos em busca de respostas financeiras, ou de participação e inclusão social e educativa
frente ao cenário de exclusão existente.
Como bem salientou um dos entrevistados da Catende-Harmonia em fala descrita ao longo
da pesquisa:
às vezes você fica fazendo discurso e depois que você experimenta a vida você vê que não é
viável. Então é burrice ficar fazendo determinadas coisas. Então você perde a possibilidade
de evoluir em algumas coisas por causa de insistências pouco produtivas que nunca foram
provadas. A gente vivenciou muitas coisas para saber que não adianta discurso bobo, tem
que provar as coisas, tem que experimentar as coisas, nem tudo o que a gente acredita é o
mais correto e nem tudo o que os outros acreditam é errado. O movimento social perdeu
muito por causa dessas questões [...] Quem nasce e cresce trabalhando pra viver, sabe que a
vida não é feita de muita ilusão, ela é real, é o que é. E que você precisa ter muita sabedoria
pra sobreviver […] Então a gente fez e faz o que dá na realidade que tem (Artur/liderança
no projeto Catende/Harmonia).

Dessa forma, a categoria classe social está presente pela própria natureza das OSPs,
representando uma série de desafios na disputa com o grande capital e não a sua superação, o que os
trabalhadores e trabalhadoras enfrentam como podem e seguindo as suas possibilidades históricas,
247
envoltos numa complexidade de relações de dominação na estrutura social. Conforme indica a fala
acima, os próprios trabalhadores unem-se para lutar por melhorias de vida e contra o desemprego, e
não para uma grande proposta embrionária de uma sociedade socialista como Singer, Arruda e
outros autores almejaram ao elaborar as teorias que definem a ES.
Contextualizar essas experiências históricamente, como também feito por Singer, se faz
necessário para demonstrar o movimento coletivo e de resistência que determinados grupos sociais
constróem e construíram ao longo da trajetória da sociedade capitalista, mas isso não significa que
estão cunhando outros modos de produção, mas sim buscando formas para resistir a este modo
vigente.
Enquanto política pública, a ES contribui com esses projetos pela criação de projetos de
créditos sociais, pela criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, pela
oportunidade que diferentes OSPs tiveram de se encontrar e trocar experiências por meio dos Fóruns
que ela organiza, bem como por revelar essas iniciativas de resistência de trabalhadores espalhadas
pelo país e potencializar o seu caráter coletivo. Contudo, há que observar que, ao longo de sua
trajetória, a ES perdeu o seu caráter combativo e apresenta dificuldades em contribuir para as lutas
necessárias dos casos estudados.
Além deste aspecto, a tese revelou que, somente pensar em termos de relações de classe
nessas OSPs não é suficiente, pois elas são atravessadas por outras relações sociais, principalmente
de gênero e raça, as quais imprimem conteúdos concretos às relações de classe, tornando-as mais
complexas.
Nesse contexto, ao longo da tese, o conceito de autogestão parcial utilizado para
compreender a auto-organização nas OSPs pesquisadas, ampliou-se para a perspectiva de gênero e
raça, sendo definida como: (i) “a superação da distinção entre quem toma as decisões e quem as
executa”; (ii) “a autonomia decisória de cada unidade de atividade”; (iii) a valorização da
participação das pessoas em todas as esferas da organização” (FARIA, 2009, p.324) e; iv) a
perspectiva de rompimento da divisão sexual e racial do trabalho nas atividades quotidianas das
Organizações Sociais Produtivas.
Cabe ressaltar que os três primeiros aspectos foram indicados por Faria (2009), mas, a partir
desta pesquisa, o último aspecto também deve ser incluído, já que ela conclui que, para além da
tentativa de descontrução da divisão social do trabalho, não há possibilidades de autogestão parcial
sem a inclusão do rompimento da divisão sexual e racial do trabalho, pelo menos no interior das
Organizações Sociais Produtivas.

248
No que tange à divisão sexual do trabalho, de modo geral, a pesquisa indicou que nas OSPs
pesquisadas existe certa reprodução de características semelhantes ao mercado de trabalho. Notou-se
divisão de tarefas entre homens e mulheres pautadas em estereótipos de gênero, como força física e
habilidades naturalizadas como femininas, bem como o imaginário de que esta divisão deve
permanecer, mesmo que na prática essa regra não se afirme em muitos casos. Foi observada ainda a
dificuldade de as mulheres ocuparem alguns espaços de poder e de decisão, como na Fábrica
Recuperada, sendo verificado um limite para a atuação das mulheres. Nessa direção, notou-se que,
mesmo ocupando alguns espaços de poder e liderança, como nos casos da Cooperativa de
Reciclagem e da Rede de Mulheres Produtoras do Recife, as mulheres enfrentam dificuldades de
negociação e participação em igualdade com os homens nas atividades exteriores às OSPs. Foi
identificado ainda possibilidades de feminização das OSPs quando elas tendem a ser mais precárias.
Por fim, notou-se que nem sempre as OSPs conseguem apoiar as mulheres para a solução das
desigualdades estruturais de gênero que enfrentam cotidianamente, como violência doméstica,
controle da renda que recebem, assim como nem sempre conseguem atenuar a difícil realidade
enfrentada pelas mulheres que continuam se deparando com a falta de acesso a creches e outros
serviços públicos que facilitariam a sua participação nas OSPs, já que muitas são responsáveis
sozinhas pelas tarefas domésticas e de cuidado.
Em contrapartida, os avanços para a divisão sexual do trabalho correspondem às
oportunidades vivenciadas por mulheres que não teriam a mesma chance de ampliação de suas
qualificações no mercado formal de trabalho. Elas passam a ocupar novos espaços e desfrutar de
novas oportunidades sociais. Somado a isto, ao discutirem esses temas no interior das OSPs, aos
poucos elas levam novas possibilidades para suas casas e comunidades. Também cabe destacar o
próprio fato de terem uma profissão reconhecida no âmbito público com chances de geração de
renda para elas. Nessa direção, apresenta-se a necessidade de enfrentamento e ampliação das
discussões de gênero nessas experiências de trabalho coletivo/associativo e nas políticas públicas
sobre elas.
No que tange à divisão racial do trabalho, também foi identificada a reprodução de
desigualdades encontradas no mercado de trabalho de modo geral. Isso se confirma pelo próprio fato
de grande parte da população das OSPs ser negra (preta ou parda). O trabalho precário de muitas
OSPs acaba sendo a única possibilidade para grande parte da população negra, sobretudo para as
mulheres negras, de baixa renda, que são mais vinculadas ao trabalho doméstico e buscam as OSPs
para se livrarem desta realidade. Observou-se também, como no caso de Catende, que a maior parte

249
dos trabalhadores do corte da cana, com realidades de trabalho pesadas e de menor rendimento, era
negra, o que reproduz a divisão racial do mercado de trabalho formal. Identificou-se ainda que o
silênciamento das questões raciais, de modo generalizado, impede maiores avanços no que tange à
divisão racial do trabalho interna ou externa às OSPs. Poucas eram as OSPs que realmente se
dedicavam ao tema, buscando que a população negra se identificasse como tal na luta por direitos
sociais. O próprio acesso às recentes políticas públicas destinadas a essa população era desconhecido
na maior parte das OSPs. Além disso, para além dos espaços das OSPs, os preconceitos sofridos pela
população negra continuam sendo vivenciados, e, por não discutirem o tema, poucas possibilidades
de mudanças foram propostas para que esses grupos enfrentem essa realidade de forma coletiva ou
menos agressiva.
Observou-se ainda uma tendência ao enegrecimento da população a partir do lugar social que
ocupam nessas OSPs, o que ficou evidente principalmente na cooperativa de reciclagem. Ou seja,
mesmo tendo a cor da pele mais clara, algumas cooperadas se identificavam como negras e
afirmavam que a maior parte das catadoras era negra por ocuparem um lugar social de trabalho
precário e de poucas oportunidades sociais, compreendido como espaço da população negra.
De outro lado, foram observados avanços significativos no que tange à divisão racial interna
de tarefas em algumas iniciativas. Nos casos da Cooperativa de Reciclagem e da Rede de Mulheres
Produtoras, por exemplo, notou-se que a divisão entre tarabalho “leve ou pesado”, ou entre tarefas
de limpeza e maior prestígio, não eram pautadas na cor/raça das e dos participantes. Ao contrário,
muitos negros e negras foram encontradas/os nas lideranças das OSPs e ocupando espaços de
prestígio também não possibilitados no mercado formal. As chances de ampliação de suas
qualificações também é um ponto a ser revelado. Mesmo em Catende, muitos negros chegaram às
lideranças das cooperativas, o que merece destaque.
Uma das questões que persegui ao longo desta investigação foi a de buscar compreender se
os sistemas de dominação de classe, raça e gênero aparecem com a mesma força explicativa de
análise nas práticas investigadas. Se não, alguns deles se sobressaem? Por quê? O que acontece
quando existe o deslocamento de uma das linhas de tensão? Ou seja, se a questão de classe é
superada pela geração de renda, as relações de gênero e raça permanecem intactas? E se o
deslocamento se dá no nível das relações de gênero? O que acontecem com as relações de raça e de
classe? Essas linhas de tensões operam juntas o tempo todo?
Notou-se que, em certa medida, as tentativas de melhorias pautadas na categoria classe social
também podem permitir melhorias nas categorias de dominação de gênero e raça, assim como o

250
trabalho na vertende das relações de gênero pode fortalecer mulheres para a conquista de geração de
renda, evidenciando ainda mais a consubstancialidade das relações sociais.
Para maior compreensão, foi observado em Catende que, quando os trabalhadores se
mobilizaram para a conquista de melhor condição de renda, contribuíram também para a melhoria
da qualidade de vida e ampliação de espaços de participação por parte da população negra, o que
também se refletiu na experiência da Cooperativa Bom Sucesso. Do mesmo modo, a tentativa de
aumento da autonomia de mulheres, com ampliação de suas qualificações e participação nos espaços
públicos, interferiu na autonomia para o trabalho em organizações produtivas, tendo como
consequência o aumento da renda, como salientado no exemplo da Rede de Mulheres Produtoras do
Recife. Ao mesmo tempo, observou-se que mulheres negras e homens negros com maior auto-
estima e com consciência de raça atuam com mais possibilidades nas OSPs e ampliam suas
conquistas nas comunidades em que vivem. Logo, notou-se que um eixo de fato pode influenciar os
outros, na medida em que operam em conjunto. Mas, em contrapartida, foi identificado que atuando
apenas em um dos eixos, há o risco de exclusão de alguns grupos sociais, sobretudo nas experiências
onde a consubstancialidade se dá de forma mais efetiva, como no grupo dos homens negros e,
principalmente, das mulheres negras.
No caso de Catende-Harmonia, por exemplo, notou-se uma preocupação primária: manter os
empregos dos trabalhadores, melhorar a qualidade de vida da população da Zona da Mata e acabar
com a fome na região, o que, implicitamente trabalhou pelo menos com duas categorias, a classe e a
raça, já que a maior parte dos trabalhadores, sobretudo do campo e que tiveram suas condições de
vida alteradas, eram negros. Já as mulheres não obtiveram a mesma atenção imediata da
cooperativa, visto que a maior parte delas perdeu seus empregos e teve muita dificuldade de ser
novamente absorvida pela Catende-Harmonia, bem como não foram inseridas nos cargos de
diretoria e de administração para refletir conjuntamente sobre os destinos do projeto. Nesse sentido,
esta iniciativa mostrou que a exclusão do eixo gênero pode gerar desigualdades, uma vez que as
oportunidades para os homens e mulheres de fato foram diferenciadas.
Cabe destacar que, com o passar dos anos, ainda que de modo diferenciado, alguns projetos
atingiram as mulheres, fazendo com que elas também pudessem se inserir em algumas atividades
significativas. Tal fato demonstra que há também um processo evolutivo para que os grupos
consigam trabalhar as diferentes relações de dominação em termos consubstanciais. Em outras
palavras, Catende mostrou que trabalhar nesses termos era um processo que vinha se construindo,
principalmente a partir da manifestação das próprias mulheres em relação a esta desigualdade, mas o

251
projeto foi interrompido antes de alguns avanços nessa direção.
Já no caso da Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana, observaram-
se grandes possibilidades em termos consubstanciais, na medida em que o gênero, a classe e a raça
foram categorias priorizadas ao mesmo tempo. Nessa iniciativa, o objetivo é justamente o de pensar
a autonomia financeira em termos de classe social para mulheres brancas e negras, principalmente
refletindo sobre as nuances que dificultam a participação das mulheres e, em especial, das negras.
Notou-se que os desafios ainda são grandes nessa direção e que muitas vezes as oportunidades se
restringem ao interior das iniciativas. Contudo, a experiência prova que pensar as ações das OSPs
em termos consubstanciais oferece maior possibilidade de construção da autogestão parcial, tal
como venho definindo nesta investigação.
Conforme analisado na experiência da Rede de mulheres em questão, não é o simples fato de
juntar mulheres para trabalhar coletivamente que garante os avanços identificados. Os grupos que se
preocupam com as questões estruturais da divisão racial, social e sexual do trabalho, principalmente
na relação com distintos movimentos sociais, ou que vão adquirindo esse caráter na experiência do
trabalho coletivo, apresentarão maiores possibilidades para a construção de uma consciência de
gênero, ou ainda de classe e de raça, na medida em que forem capazes de debater questões que
envolvem a vida das mulheres, brancas ou negras, de elucidar as contradições do trabalho delas e de
ajudá-las a superar algumas limitações. Dessa forma, a chance de ação em termos consubstanciais se
amplia consideravelmente.
Já na Cooperativa Bom Sucesso, a pesquisa revelou a discrepância da trajetória profissional
de homens e mulheres pobres, já que, mesmo pertencentes a mesma classe social, foram observadas
oportunidades diferenciadas para homens e mulheres, sendo as últimas mais prejudicadas no
contexto do mercado de trabalho, e, consequentemente, as mais presentes no setor precário de
reciclagem. Notou-se que a divisão sexual do trabalho, vivenciada por essas mulheres em suas
práticas cotidianas, é o principal critério que leva à feminização do setor, já que nessas OSPs elas
são aceitas mesmo com baixa escolariadade e formação profissional, e podem conciliar trabalho
produtivo e reprodutivo, além de terem a oportunidade de trabalhar em espaços que extrapolam o
trabalho doméstico, tradicionalmente reservado às mulheres negras que estão neste setor. O MNCR
tem olhado para o cruzamento dessas questões recentemente, e, aos poucos, novas conquistas vêm
sendo tecidas nessa direção, principalmente pela recente organização das mulheres no interior deste
movimento.
Foi observado ainda que grande parte das pessoas presentes no setor de reciclagem é negra, o

252
que provocou a reflexão em torno da relação entre o trabalho precário de alguns setores da ES e a
presença da população negra, principalmente das mulheres negras, já que, de maneira geral,
diferentes pesquisas indicam que este grupo social vem ocupando lugares subalternos no mercado de
trabalho.
Sobre essa questão, no entanto, não foi possível maiores aprofundamentos, pois, além da
pesquisa ter sido realizada apenas em uma cooperativa, há uma carência de dados que relacionem as
questões raciais ao setor e à própria Economia Solidária, bem como uma imprecisão dos dados
capazes de diagnosticar a quantidade de mulheres e da população negra nas cooperativas de
reciclagem. Dessa forma, a pesquisa indicou a necessidade de ampliação das investigações que
relacionem a raça e o gênero no setor.
Uma hipótese que pareceu se revelar, por meio desta pesquisa, da literatura existente, bem
como de minha participação nos eventos em torno do setor de reciclagem, é a de que, quanto mais
estruturadas forem as cooperativas, com rendas mais elevadas e relações de trabalho mais
organizadas, maiores serão as chances de encontrarmos homens trabalhando, ao mesmo tempo em
que as experiências menos estruturadas possuem maior participação de mulheres. Contudo, essa é
uma questão que não pode ser afirmada ainda e que merece ser investigada com maior profundidade.
A partir dos exemplos das iniciativas investigadas, observou-se que, de maneira geral, nas
práticas de trabalho associativo/coletivo como um todo, as linhas de tensão de classe, raça e gênero
operam juntas a maior parte do tempo; logo, é preciso pensa-las de forma conjunta para conseguir
maiores êxitos, tanto em termos econômicos, como de superação da divisão sexual e racial do
trabalho. Este é um aspecto fundamental para o trabalho realizado nessas OSPs, para as agências que
fomentam essas iniciativas, como também para o diálogo entre os diferentes movimentos sociais que
se dedicam às questões de raça e gênero numa perspectiva econômica, bem como para as políticas
públicas de Economia Solidária como um todo.
Ao resgatar a classificação metodológica proposta nesta tese, foi observado que, o que
realmente diferenciou os homens das mulheres, não foi a classe social de modo isolado, mas a
relação desta categoria com as questões de gênero e raça, já que as principais diferenças que
operaram na classificação se deram em termos de trabalho produtivo e reprodutivo e de trajetórias
profissionais de homens e mulheres no cruzamento com a raça. Ou seja, nos grupos classificados,
não foram encontradas pessoas altamente escolarizadas ou com rendas elevadas, mas grupos que se
diferem pelas oportunidades sociais que tiveram a partir da coextensividade das relações de
dominação, bem como a partir da presença nas próprias OSPs e em diferentes movimentos sociais.

253
Por exemplo, o que difere as mulheres do primeiro grupo e os homens do primeiro grupo
refere-se basicamente ao trabalho reprodutivo exercido por elas e que não apareceu na fala deles,
além das nuances da divisão sexual do trabalho reproduzidas no mercado de trabalho, conferindo
lugares de menor prestígio social às mulheres e impedindo-as de chegar a alguns postos de direção e
liderança. Nesses grupos, houve maior participação de brancos e de pessoas que puderam se
qualificar política e profissionalmente ao longo de suas trajetórias de vida e de luta.
Já no segundo grupo de homens e de mulheres, a divisão sexual do trabalho continua
diferenciando-os, pois, além do trabalho reprodutivo para elas, com altas chances de serem
encontradas no trabalho doméstico, foi identificado maiores chances de os homens conquistarem os
direitos do trabalho por serem registrados. Houve equilíbrio entre brancos e negros neste segundo
grupo e todos foram identificados como de baixa renda.
Já no terceiro grupo, o mais prejudicado economicamente tanto para os homens quanto para
as mulheres, a principal marca é a da raça, pois a maior parte é negro e negra, confirmando a tese de
Hasembalg e Silva (1992) de que a história do país gerou um “ciclo cumulativo de desvantagens dos
negros”. Para os autores, não apenas o ponto de partida dos negros no mercado de trabalho é
historicamente desvantajoso, mas as novas discriminações aumentam a sua desvantagem em
diversas esferas da dinâmica social, como a educação e as condições reais de vida e de acesso a
direitos humanos. Neste grupo, a ausência de trabalho formal e a marca do trabalho pesado são
características relevantes tanto para homens quanto para as mulheres em suas trajetórias de
qualificação profissional. O que diferencia os homens das mulheres, contudo, é o trabalho doméstico
a elas relacionado, seja no âmbito de suas próprias casas ou no mercado de trabalho.
A composição desses grupos também comprovou que o público que as iniciativas de trabalho
coletivo/associativo abarcam é um público específico e mais prejudicado pelo cruzamento dessas
categorias. Tal constatação precisa ser considerada pelas políticas e projetos destinados a esses
setores e público, na medida em que, entender essa complexidade nos ajuda a restituir os atores
sociais para colocá-los no centro de suas práticas, na tentativa de conquista da consciência de classe,
raça e de gênero para revertê-las.
No que tange à classificação dos grupos de mulheres, notou-se que a maior parte delas
pertencia aos grupos dois e três, porém, houve significativa mobilidade entre os grupos. Muitas
mulheres tornaram-se lideranças, buscaram se escolarizar chegando à faculdade, realizaram cursos e
ampliaram suas qualificações; esses esforços permitiram-lhes que mudassem de grupo ao longo de
suas práticas nas OSPs e que chegassem ao primeiro grupo. Essa possibilidade de mobilidade é

254
também uma das principais conclusões desta pesquisa, já que ela afirma a necessidade de
oportunidades sociais destinadas a determinados grupos em que as relações consubstanciais se dão
de maneira mais expressiva. Em outras palavras, quanto mais consubstanciais forem as relações de
classe, raça e gênero, mais difíceis são as possibilidades de ascensão social desses grupos. Logo,
oportunidades advindas do trabalho coletivo numa perspectiva de união de distintos movimentos
sociais, podem oferecer novos caminhos de constituição de sujeitos sociais. Na realidade, o primeiro
grupo, tanto de homens como de mulheres, somente foi composto a partir de suas trajetórias nessas
iniciativas.
No caso dos homens, também foi observada grande chance de mobilidade, visto que muitos
homens mudaram de grupo e muitos chegaram ao primeiro grupo de homens pela possibilidade de
ser lideranças e ocupar novos espaços sociais. Inclusive, tomando Catende como exemplo, as
chances de mobilidade entre o grupo de homens foi bem maior que entre o grupo de mulheres, o que
revelou nuances importantes da divisão sexual do trabalho que ainda precisam ser melhor tratadas
nessas práticas.
A ausência de práticas com ênfase na consubstancialidade na ES já começou a ser revelada
no primeiro capítulo da tese. Ficou claro, como indicado pela coordenadora da Casa da Mulher do
Nordeste, que o movimento feminista lutou muito, e ainda luta, para conseguir levar as questões de
gênero para a ES.
Na trajetória da Casa da Mulher do Nordeste, por exemplo, a razão de se vincular à ES era
porque ela apresentava um campo que parecia coerente com o feminismo, na tentativa de incorporar
e valorizar o trabalho invisível realizado pelas mulheres ao conceito de trabalho como um todo. A
hipótese das feministas era a de que, ao repensar o próprio sentido social do trabalho pela proposta
de autogestão, a ES poderia incorporar o conceito de trabalho cunhado por elas.
Contudo, ao longo do processo de participação da Casa nos espaços de Economia Solidária,
elas foram percebendo que esta seria uma longa discussão e que a mudança de perspectiva do
conceito de trabalho não estava pronta, nem mesmo para a Economia Solidária. Isso foi observado
na medida em que as mulheres não eram destacadas como pertencentes à ES e não eram sujeitos
políticos protagonistas das Organizações Sociais Produtivas, embora fossem a maior parte nas
mesmas. Além disso, temas fundamentais como a divisão sexual do trabalho, a violência contra a
mulher e a participação política delas não eram sequer mencionados.
Nobre (2011) descreve que a Economia Solidária poderia atuar articulando trabalho
reprodutivo à produção socializada, mostrando como o esforço das mulheres pode gerar riqueza.

255
Para a autora, isso deveria ser feito de forma a diminuir a sobrecarga de trabalho das mulheres e
melhorar as condições em que seu trabalho é realizado. Porém, a autora considera que as
cooperativas de ES, com seus limites e contradições, acabam não fazendo este intercâmbio e
sofrendo com baixos salários, com profissões desqualificadas, com serviços que necessitam de baixa
tecnologia, etc; os quais são frequentemente ocupados pelas mulheres, sobretudo pelas negras.
Dessa forma, a pesquisa revelou que, de um lado existe um abismo entre a ES e os
movimentos feministas e anti-racistas mas, ao mesmo tempo, há um campo fértil para que as
práticas de trabalho coletivo/associativo que buscam apoio na Economia Solidária contribuam com
essas lutas e vice-versa. Porém, essa relação precisa ser ampliada numa direção de desnaturalizar a
separação de público e privado, produtivo e reprodutivo, na revisão do próprio conceito de trabalho,
bem como introduzindo seriamente a complexidade da divisão social, sexual e racial do trabalho na
ES.
Nesse sentido, faz-se necessário repensar a relação entre a prática solidária e o espaço
privado doméstico, recolocando o olhar para o trabalho do cuidado das pessoas como uma esfera
relacionada ao mundo produtivo, bem como selecionando novas pautas trazidas pelas mulheres e
pela população negra para serem debatidas nas OSPs.
Se a participação do movimento feminista trouxe benefícios para o trabalho das mulheres na
ES, mesmo que com lacunas, resultados parecidos não ocorreram em relação às questões raciais.
Embora as OSPs venham mostrando avanços no que tange à divisão racial do trabalho no interior de
suas experiências, os movimentos de luta contra as desigualdades raciais não participaram da mesma
forma na construção da ES, e o movimento feminista, por sua vez, não incorporou a questão do
racismo de maneira mais ampla. Nos casos do trabalho da CMN e na cooperativa Bom Sucesso,
acompanhada pela ITCP Unicamp e pelo MNCR, observaram-se avanços, pois se tratam de agências
de fomento relacionadas a movimentos sociais que consideram as questões raciais em suas
formações. Contudo, na ES, ainda existem muitas lacunas, assim como não existem pesquisas para
aprofundar esta relação.
Acredito que, ao me aventurar nas teorias referentes às questões raciais e buscar
compreender a divisão racial do trabalho em diferentes OSPs, acabei oferecendo uma base inicial
para este estudo, mas ainda vejo a necessidade de ampliação dessas investigações, sobretudo
buscando maior diálogo com o movimento negro, o que, para uma pesquisadora branca, não é tarefa
simples.
Chamou-me atenção não apenas a ausência de pesquisas, mas o silenciamento da questão

256
racial de maneira geral nas OSPs pesquisadas. Apresento a hipótese de que, embora pareça que a
maior parte da população nessas organizações seja negra, principalmente em alguns setores
específicos, como é o caso da reciclagem, a ES não vem sendo visualizada como possibilidade de
enfrentamento da racialização da pobreza no Brasil, tanto por parte das incubadoras e agências de
fomento, como das próprias OSPs pesquisadas e do movimento negro. Trata-se, portanto, de uma
questão a ser aprofundada em outras pesquisas.
Na direção de reflexão em termos consubstanciais, como a tese demonstrou, para que as
OSPs consigam avanços em termos de participação política, capacidade de ação dos sujeitos sociais
e para a ampliação das qualificações técnicas, de gestão coletiva e política, essa relação entre
movimentos sociais é essencial. Isso ficou evidente em todas as iniciativas pesquisadas.
Na Rede de Mulheres Produtoras do Recife e Região Metropolitana, as mulheres ampliaram
suas possibilidades de participação, inclusive modificando aspectos da divisão sexual e racial do
trabalho por serem vinculadas também aos movimentos feministas e anti-racistas e por repensarem
as questões de gênero e raça em suas vidas e trajetórias profissionais.
No caso da Cooperativa de Triagem de Resíduos Sólidos, Bom Sucesso, uma mulher negra
chegou à presidência impulsionada pela sua trajetória de exclusão que permitiu resistência, mas a
relação com a ITCP Unicamp e com o MNCR em muito contribui para que as mulheres das
cooperativas reflitam sobre os espaços de participação e de poder que ocupam.
Já na Fábrica Recuperada Catende-Harmonia, a preocupação com os projetos de inclusão de
mulheres advém da própria demanda das mulheres, principalmente daquelas mais engajadas e
envolvidas com movimentos sociais feministas, bem como de alguns líderes mais sensíveis ao tema,
ao perceberem a exclusão existente na prática.
Dessa forma, apesar das contradições e dificuldades existentes, de fato observa-se um campo
fértil nessas iniciativas de trabalho coletivo/associativo para que homens e mulheres de baixa renda
e sem estudo, brancas/os e sobretudo negras/os, ampliem suas qualificações e busquem re-colocação
no mercado de trabalho ou nos movimentos sociais, chegando a ocupar postos antes impensáveis em
suas trajetórias profissionais.
Cabe destacar que, nesta tese, o conceito de qualificação, além de compreendido como
construção social, não se referiu apenas ao acesso educacional (escolar, profissionalizante, etc.) que
as pessoas tiveram ao longo de suas vidas. Referiu-se também às diferentes aprendizagens e saberes
adquiridos, bem como à capacidade de ação dos sujeitos sociais que constróem as Organizações
Sociais Produtivas pesquisadas. Embora esses sujeitos não sejam considerados qualificados pelo

257
mercado de trabalho, isto não significa que eles não tenham espaço no mesmo.
A questão é que sua qualificação, que muitas vezes não passou pelos canais formais, não é
valorizada, mas será explorada no mercado de trabalho. Concordo com Kergoat (1986) ao dizer que
as mulheres possuem as qualificações que lhes são reservadas, o que se estende à população negra e
de baixa renda.
Este foi mais um aspecto central desta pesquisa, ao demonstrar como a organização coletiva
é capaz de permitir o aumento da capacidade de agir de homens e mulheres num sentido
emancipatório, visto que oportunidades sociais que lhes seriam negadas, como ampliação de suas
qualificações técnicas, participação política, aumento de escolaridade, etc., acabam lhes sendo
apresentadas.
Como visto, nem todas as pessoas envolvidas nessas OSPs se tornarão lideranças nesses
processos ou conseguirão ocupar novos espaços sociais como discutido acima, mas algumas OSPs
são capazes de preparar um terreno para isso e para a superação de desafios em torno das questões
de gênero, raça e de classe.
De outro lado, a pesquisa também revelou que, muitas vezes, a qualificação conquistada não
se reverte em retorno salarial compatível, demonstrando outra dificuldade histórica em torno do
trabalho de alguns grupos sociais. Tal constatação reforça que os avanços conquistados nessas OSPs
ainda não são suficientes para representar uma mudança estrutural em termos de divisão social,
racial e sexual do trabalho. Elas nos dão, no entanto, algumas pistas para essa construção.
Uma série de contradições e reprodução de desigualdades segue existindo nessas
experiências. Porém, elas são extremamente significativas em termos de resistência e lutas sociais
no país. Como descreve Kergoat: tudo muda e nada muda!
Para finalizar essas considerações, gostaria de retomar o episódio descrito na introdução
deste trabalho, pois ele ajuda a revelar a importância das reflexões feitas nesta pesquisa em torno das
opressões de classe, raça e sexo de modo consubtancial. Como descrito, ao discutir sobre caminhos
a serem construídos para uma sociedade mais justa, durante um projeto de educação de adultos, uma
estudante me perguntou o que era o socialismo.
Ao longo de nossos diálogos, três reflexões foram destacadas: uma das estudantes concluiu
que o socialismo só seria alcançado quando todas as pessoas do mundo tivessem o que comer e onde
trabalhar. Outra disse que o caminho de uma sociedade mais justa não seria alcançado apenas
quando acabasse a fome, mas também quando as mulheres não sofressem mais de violência dos
maridos. Nessa direção, outra estudante salientou que, numa sociedade socialista, ela não mais veria

258
o seu filho negro sendo abordado pela polícia quase todos os dias ao voltar da escola.
Em síntese, cada pessoa compreendeu de modo diferenciado o que poderia ser uma
sociedade mais justa, a partir de suas experiências cotidianas, desejos de mudança e a partir do
cruzamento das relações sociais de dominação em suas vidas.
Diante deste exemplo e das análises realizadas ao longo da pesquisa, posso concluir essa tese
refletindo que a maneira como os sujeitos sociais sentem os diferentes tipos de dominação os levará
a diferentes tipos de mobilização e resistência. Nessas mobilizações novas questões podem emergir
(notar que uma usina recuperada para manter o direito ao trabalho exclui mulheres, que o
movimento feminista branco exclui mulheres negras, etc.); resta, então, o desafio de construir
políticas, projetos e os próprios movimentos sociais em termos consubstanciais, ou seja, que possam
dialogar as diferentes formas de dominação de classe, raça e gênero na tentativa de ampliar as
oportunidades sociais oferecidas a diferentes grupos.
Mas, como ilustra o exemplo, apenas a intenção da consubstancialidade não resolve, faz-se
necessário dialogar coletivamente qual desses aspectos devem ser priorizados e porque, a fim de
tratar os diferentes tipos de relações sociais que cada grupo de dominados pode sentir e transformar
em capacidade de ação, seguindo as possibilidades históricas e de melhoria de vida que cada grupo,
em sua diversidade, consiga exprimir.

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