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A Saga do escravo que virou deus

(Malunguinho, o Rei do Catundá)

O nordeste brasileiro despontava o século XIX em convulsão. O declínio econômico, as guerras entre os
absolutistas, federalistas e as batalhas pela independência fizeram as elites perderem o controle da população.

Mas não são com as elites que nos importamos. O que pretendo contar para vocês ocorre longe da casa grande
e da disputa fratricida entre os reis da cana de açúcar e do algodão. Mas sim nas Senzalas e nas matas, onde o
povo sofria e sangrava sob o chicote dos feitores e era do seu suor que provinha toda a riqueza que sustentava
o xadrez provinciano de Pernambuco.

Por conta dos conflitos intestinos das elites do nordeste, em especial do Estado de Pernambuco, o cenário ideal
para as revoluções sociais do Brasil, o Estado se veria incapaz de controlar as inúmeras frentes de resistência
que surgiam ao longo das vilas e aldeamentos nos interiores sertanejos. Evidente, que uma das frentes de
resistência não seria outra se não a mais marcante das mãos de obra do Brasil, a escrava. Nesse contexto
surgiria lá pelo ano de 1817 o quilombo do Catundá, e iniciaria um dos mais impressionantes episódios da luta
pela liberdade no Brasil e junto dele a saga de um escravo que se tornaria um deus, até hoje cultuado nos ritos
de Jurema

-A união dos Malungos

Malungo é uma palavra de origem bantu que significa “companheiro de viagem”, uma referência ao navio
negreiro e a vida sob o cativeiro. E seria por essa palavra que os negros do Catundá se refeririam a si mesmo.
Com o tempo construiriam uma hierarquia mais sólida e hereditária no interior das florestas aos arredores de
Recife, o senhor supremo desse Quilombo e assim nasceu o primeiro Malunguinho, nome dos reis do quilombo.

O ambiente do começo do XIX era muito diferente do século XVI quando houve a grande Palmares. O avanço do
latifúndio botava as áreas mais propícias à um povoamento em risco, o poder estabelecido unificava as
diferentes regiões da província de Pernambuco pelas estradas que cortavam a floresta de Catundá e havia uma
ampla população livre, inclusive de negros. O poder dos senhores de terra, apesar do confronto entre
holandeses e os lusitanos, ainda sim era uma franca potência em ascensão no XVII enquanto já nesse momento
as elites nordestinas perdiam o prestígio para o Ouro e diamantes de Minas Gerais e o Café paulista. Esse novo
cenário transformou o quilombo oculto na floresta em uma pequena potência regional, obrigando os senhores
de engenho a se submeterem aos interesses dos quilombolas e alvos de seus saques durante os longos
períodos de conflito social entre as elites pernambucanas.

O Quilombo entraria em decadência inúmeras vezes ao longo dos seus mais de dezessete anos de existência,
todas as vezes coincidentes com os breves suspiros de ordem política na Província e quase renascendo das
cinzas ao menor sinal de convulsão social quando os malungos saíam do interior das matas, saqueavam as
fazendas e libertavam os escravos.

Assim como outros quilombos ao longo da História do Brasil, Catundá tinha como objetivo reestruturar no
continente americano as sociedades e instituições da África. Contudo, no processo acabavam modificando as
formas e incorporando elementos que conheciam no novo continente e das sociedades que acabavam
incorporando ao quilombo. Não será atoa que serão descritos brancos e mestiços como quilombolas e
membros das campanhas militares que assaltavam os transeuntes da floresta nos arredores de Recife.

-O encantamento de Malunguinho

Ninguém sabe exatamente quem é o Malunguinho divinizado. Sabe-se que foi um dos reis do quilombo de
Catundá. Mas ao longo dos dezessete anos de confrontos contra as guardas pessoais dos senhores de Engenho
ou as forças organizadas e infinitamente maiores do governo provinciano.

Na última batalha em 1835 ocorre a morte do que se atribuí geralmente como Malunguinho, o negro João
Batista, então líder do Quilombo. E é aqui que as coisas ficam complicadas. Na cosmo-visão da Jurema Sagrada
a transformação em Encantado se faz pelo arrebatamento do corpo aos mundos espectrais, é um desencarne
sem morte e sem desencarne. Tanto João Batista, a mais alta liderança morta no derradeiro confronto de
Catundá, quanto seus companheiros tombados, não tinham por alcunha Malunguinho; teria então o real
senhor do quilombo sido envultado e transformado em espírito?

A resposta é dúbia. Sim! Pelo menos para as religiões populares do nordeste brasileiro. O coroado para a
liderança dos escravos foi transformado em espírito em honra a sua luta pela liberdade e a sua coragem em
campo de batalha. Ascenderia às sete cidades sagradas da Jurema onde tornar-se-ia elemento central no
panteão de uma religião brasileira. Ou ainda, não há a crença na morte de João Batista, que provavelmente, na
mentalidade popular teria desaparecido sem deixar rastros.

De qualquer forma, não há um registro de morte de um escravo com tal alcunha, os capturados, mesmo sob o
peso da tortura se negavam a entregá-lo ou aos seus demais companheiros. Sua fama já havia se espalhado por
todo o nordeste onde, mesmo antes do seu arrebatamento já era divinizado pelos cativos dos engenhos.

-Maluguinho ascende às sete cidades.

Malunguinho não se torna uma simples entidade ou uma figura qualquer. Ascendido aos reinos sagradas da
Jurema o ex-escravo assumi um posto chave no culto. Seria a partir daquele momento o responsável por vigiar
e guardar o ritual da Jurema, permitindo que os espíritos das sete cidades desçam a terra para os terreiros.

Estando entre a linha que separa as divindades mitológicas e os seres místicos, Malunguinho apresenta quatro
faces diferentes: Ele é um Caboclo (espírito ancestral dos índios e guardião das florestas), Mestre (Espírito
Ancestral dos primeiros Juremeiros, homens de grande sabedoria e poder), Trunqueiro/exu (No caso da
Jurema, entidade protetora da casa capaz de espantar e carregar a magia negra) e finalmente Reis (figura
humana divinizada pela bravura). Como toda a figura do imaginário místico popular, Malunguinho é dual,
podendo ser maléfico mandando “enterrar cururus na porta de quem a gente quer infelicitar” ou bom
removendo doenças e quebrando feitiços.

Malunguinho será também uma figura sincrética na Jurema sendo associado à três Orixás: Exu, Ogum e Xangô.

-Maluguinho como figura sincrética

Sua saudação será Sobô nirê. Uma corruptela da união de duas palavras de línguas diferentes, o Fon do Bênin e
o Yorubá Nigeriano. Sobô virá de Sogbô o nome do Vodum equivalente a Xango dos Yorubás e Nirê virá de
Onirê um dos muitos nomes de Ogum. Uma referência à sua ação justa como governante e sua vitalidade em
combate.

Como dito sua função será de guardião e protetor dos caminhos, uma função normalmente atribuída ao orixá
Exu. Uma das suas imagens usadas nos terreiros de Jurema, não é por menos, a figura de uma das imagens
atribuídas a Exu Lonã no Candomblé que é a de um menino ou homem sentado segurando os próprios joelhos.

-O rei do Catundá desce a terra

A coragem de Malunguinho, seja ele quem for, foi fundamental em seu tempo. A coragem o coroou como rei e
sua luta pela liberdade dos iguais inspirou os homens de todas as raças e credos. Não é atoa que seu trono
permanece no panteão celeste de uma religião de origem indígena e que brancos e negros guerrearam lado a
lado contra os senhores de escravos.

Não existiu um Malunguinho, mas vários! Se algum deles foi escolhido pelas cidades celestes como seu
protetor, essa é uma questão que escapa das mãos da ciência da História, mas quem sabe, não seja certa para a
ciência dos deuses?

Para saber mais:

MALUNGUINHO: Um pressuposto juremológico de história oral.


Autor: Alexandre Alberto dos Santos de Oliveira. Mestrando em ciências da religião pela UNICAP

Aqui vocês acham a construção da figura mitológica do Malunguinho e sua associação entre os orixás e voduns
africanos e a sua importância dentro da cosmologia da Jurema.

O quilombo de Catundá em Pernambuco. Do Historiador Marcus Joaquim M. de Carvalho

Fala quase nada de mitologia, mas dá o panorama geral da criação desenvolvimento e desaparecimento do
Quilombo. Um texto delicioso

Entre Lírios e Liras: Mitopoética utópica da Jurema Sagrada. Analice da Conceição Leandra da Silva

Uma cosmovisão geral da Jurema e sua história focando na construção narrativa e literária do corpo religioso,
afinal, é uma dissertação de uma faculdade de letras. Uma dissertação que tenho que ler com calma para
entender mais dessa religião e que aconselho vocês a lerem.

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