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Yom Kipur: o dia em que o Povo Judeu volta para

casa
Yom Kipur, o dia do perdão, é o dia mais sagrado no calendário judaico. Trata-se de um
dia de jejum, introspecção e autoanálise, durante o qual confessamos nossos pecados e
oramos por um ano bom e doce.
Edição 81 - Agosto de 2013
Tags: Festas

O poder do Yom Kipur sobre o Povo Judeu sempre foi imenso. Nesse dia, as sinagogas
ficam mais cheias do que em qualquer outro dia do ano. A atmosfera que as invade é
solene e majestosa: é como se cada judeu tivesse uma audiência particular com D’us. Por
um lado, Yom Kipur é um dia de estremecimento, de julgamento, quando nossa vida é
escrutinizada pelo Divino. Por outro, como ensina o Talmud, é o dia mais jubiloso do ano –
um dia de perdão Divino e proximidade com o Altíssimo. Yom Kipur, o último dos dez Dias
de Arrependimento, que se iniciam em Rosh Hashaná, é o mais auspicioso do ano para os
judeus serem perdoados pelos pecados cometidos contra o Todo Poderoso e contra sua
própria alma.
Yom Kipur exige muito de nós – física, emocional e espiritualmente. Além de jejuar,
passamos praticamente o dia todo orando. Nesse dia, não podemos comer nem beber,
usar calçados de couro, banhar-nos, usar loções, cremes ou perfumes nem manter
relações conjugais. No Dia do Perdão devemos transcender o mundo físico e suas
limitações. Devemos comportar-nos como anjos, mesmo passando o dia admitindo nossas
falhas e nossas fraquezas.

Yom Kipur é um dia de lágrimas e de júbilo. Lamentamos nossos erros e celebramos a


infinita misericórdia Divina. Essa é umas das ideias mais belas e importantes que o
judaísmo ensinou ao mundo: a de que D’us perdoa. Yom Kipur é o dia do perdão supremo.
O Dia do Perdão se inicia com o famoso ritual do Kol Nidrei, a “anulação dos votos”,
recitado ao pôr-do-sol, antes das preces noturnas. Essa oração introduz solenemente o dia
mais sagrado do ano, dando o tom para Yom Kipur. Sua melodia derrete o coração. À
medida que o Chazan a recita, em sua cadência antiga ouvimos a alma judaica ansiando
por transcendência. Ao mesmo tempo, sua melodia pungente ecoa dois mil anos de
martírio e heroísmo judaicos. Tolstoi a chamou de a melodia que “ecoa a história do
grande martírio de uma nação enlutada”. Beethoven chegou perto, em sua composição
mais austera: o sexto movimento do Quarteto de Cordas No 14 em Dó Sustenido Menor,
Opus 131. A música do Kol Nidrei é pura poesia: transmite pensamentos e sentimentos
que não podem ser expressos através de palavras. E, no entanto, suas palavras são muito
prosaicas; seu texto chega a ser técnico.
Kol Nidrei significa “todos os votos”. As palavras recitadas não constituem uma reza nem
uma súplica, mas uma simples fórmula legal de anulação prévia de quaisquer votos,
juramentos ou promessas que possamos vir a fazer a D’us no ano vindouro. Fazer um voto
ao Altíssimo e não o cumprir constitui uma transgressão muito séria. Muitos judeus fazem
declarações ou se envolvem em comportamentos que são considerados “votos” pela Torá.
Por não perceber que, de fato, fizeram um voto e sem atentar para a gravidade do não
cumprimento do que prometeram, podem vir a violar esse compromisso. O propósito
do Kol Nidrei é tornar nulos e sem efeito, de forma retroativa, quaisquer votos, proibições e
promessas feitas entre o homem e D’us.
A anulação dos votos é um ritual importante no que toca à Lei Judaica, mas se trata de um
mandamento técnico. Por que abre o dia mais sagrado do ano? Por que a música que
arrebata o coração? E por que nos emociona e nos instila um respeito que derrete a alma?
A resposta está no mais profundo significado de Kol Nidrei. Seu propósito não é apenas
anular votos, proibições e juramentos sobre o que faremos no ano vindouro, mas também
sobre quem somos. No decorrer do ano, um judeu pode jurar que verdadeiramente
conhece a si próprio: tem certeza de quem é, do que quer e do que não quer. Quando
chega Yom Kipur, ele vai à sinagoga e eis que um novo “Eu” emerge, ao menos por um
dia. Ao perceber que está diante do Infinito, quando sua alma é acesa pela santidade do
dia e transportada ao Alto pela melodia de Kol Nidrei, percebe que, de fato, ele não se
conhece. Repentinamente, o ser humano entende que jurou ser alguém que na verdade
não é; prometeu fazer coisas que não são dignas de um judeu; rejeitou e proibiu para si
coisas que devia ter abraçado. Em Yom Kipur, o judeu pode ter uma visão do Mundo da
Verdade. Ele percebe, ainda que por um único dia, o real significado da vida – que o que
sua essência realmente deseja é retornar à sua origem – para fundir-se na unicidade de
D’us. Quando um judeu está na sinagoga na véspera de Yom Kipur e ouve a melodia
de Kol Nidrei, ele sente emergir uma nova identidade – uma identidade que ele pode ter
ocultado, inclusive de si mesmo, durante todos os dias do ano que se finda. Assim sendo,
ele proclama: “Nidrana lo nidrei”: “Meus votos não são votos”; “V’essarana lo essarei”: “E
minhas proibições não são proibições”; “Ush’vuatana lo shevuot”: “E meus juramentos não
são juramentos”. Kol Nidrei toca o coração de todos os judeus, fazendo-os tremer, pois
essa oração liberta sua alma das ilusões de um mundo que desafia e confunde a alma
judia e oculta seu Divino Criador. Kol Nidrei é a abertura mais adequada para Yom Kipur –
o dia no qual os judeus voltam para seu verdadeiro “Eu” e se recordam, ao menos por um
dia, que sua verdadeira identidade é uma alma que arde sedenta da Luz Infinita.
Há outra razão para o Kol Nidrei anunciar o dia mais sagrado para os judeus: o fato de seu
tema ser o mesmo que o de Yom Kipur – o retorno do judeu a seu verdadeiro lar. Acredita-
se que essa oração se tenha originado no século 7, quando os judeus espanhóis, que
viviam sob domínio visigodo, estavam sendo forçados a renunciar à sua fé e a se
converterem. Muitos deles optaram por publicamente abandonar o judaísmo em vez de
enfrentar a tortura e a morte – mas permaneceram judeus em segredo. Em Yom Kipur, Dia
do Perdão, eles iam à sinagoga e oravam para ter o seu voto de conversão anulado. Isso
explica por que se faz uma declaração imediatamente antes do início da recitação do Kol
Nidrei, em que se dá permissão “pela autoridade da Corte Celestial e da Corte Terrestre”
para que os “transgressores” unam-se à congregação em oração. Isso era recitado para
anular a ordem de excomunhão dos judeus que, durante o ano, tivessem abandonado o
judaísmo. Assim sendo, Kol Nidrei é a abertura dos portões da inclusão judaica, que
permite que retornem a Casa todos aqueles que se afastaram de D’us, da Torá e do Povo
Judeu.
Retornar a Casa – a D’us, à Torá, ao Povo de Israel – é o tema principal do Dia do Perdão.
A palavra hebraica Teshuvá, geralmente traduzida como “penitência”, é o que buscamos
alcançar em Yom Kipur. Mas, literalmente, a palavra significa “retorno”. Teshuvá não é um
simples lamento por nossos erros e pecados, mas uma reconstituição de nossos passos –
a volta a Casa. Segundo o judaísmo, o pecado significa “deslocamento” e o “cruzar
fronteiras”, cuja consequência é o exílio. Adão e Eva foram exilados do Éden; o Povo
Judeu foi exilado de sua Terra. Um pecado é um ato que está fora de lugar, deslocado, e
que transgride fronteiras estabelecidas. A característica mais marcante do pecado é o
sentir-se perdido, alheio a D’us, não conhecendo seu próprio lugar na Terra e sentindo-se
espiritualmente confuso. Teshuvá significa, pois, encontrar seu caminho de volta a Casa.
Significa voltar às suas origens, ao lugar onde realmente pertencemos.
Em Yom Kipur, as sinagogas ficam repletas de judeus que raramente as frequentam.
Durante o ano, ainda que de forma menos dramática do que a de seus antepassados
medievais, eles se comportaram como judeus ocultos . É possível que tenham se
esquecido de D’us, de seu judaísmo e de sua identidade judaica; eles podem ter usado
máscaras e portado outras identidades. Mas Yom Kipur lhes dá a oportunidade de
redescobrir quem de fato são e encontrar seu caminho de volta a Casa. Essa é uma das
razões para o Kol Nidrei ser o serviço de abertura do Dia do Perdão. Isso porque nesse dia
mais santificado do ano, aqui na Terra proclamamos – e os Céus ecoam nosso clamor –
que todos os judeus, mesmo os mais sérios transgressores – mesmo aqueles que se
afastaram muito do caminho do judaísmo – são bem vindos de volta a Casa. Após ter feito
tal declaração, que nos une como se fôramos um, nossas almas são elevadas pela música
do Kol Nidrei, que proclama em nome de cada um de nós: é isto o que verdadeiramente
sou e é a este lugar que pertenço: entre meu povo, devotado ao judaísmo e na presença
de meu D’us. E se durante o próximo ano, novamente eu me deixar levar pela desatenção
e pela dúvida, desde já anulo todos os meus votos, proibições e juramentos que
mascarem minha verdadeira identidade e me desviem para o mau caminho.
Kol Nidrei nos ensina que Yom Kipur é muito mais do que um dia de jejum e oração, no
qual somos perdoados pelos pecados que cometemos contra D’us. É uma oportunidade
para o autoconhecimento. Para nós, judeus, Yom Kipur é o dia em que mais sentimos que
nosso Pai Celestial, que constantemente anseia por nós, está intimando-nos a voltar a
Casa.
Todo judeu é um Cohen Gadol
Em tempos remotos, Yom Kipur consistia de um serviço oficiado pelo Cohen Gadol, o
Sumo Sacerdote. No dia mais sagrado do ano, o Cohen Gadol, homem mais santo do
Povo de Israel, entrava na câmara mais santificada do Templo Sagrado de Jerusalém,
o Kodesh HaKodashim, e expiava os pecados do Povo Judeu. No decorrer de quase toda
a Era Bíblica, Yom Kipur consistia de elaborados serviços oficiados ao longo do dia pelo
Sumo Sacerdote.
Com a queda do Segundo Templo e o exílio subsequente do Povo Judeu, a vida judaica
mudou substancialmente e, com ela, os serviços de Yom Kipur. Já não existia um Templo
nem um Sumo Sacerdote; tampouco havia sacrifícios e o bode expiatório que serviam para
expiar os pecados de Israel. É verdade que o Primeiro Templo tinha sido destruído pelos
babilônios seis séculos antes, e que durante 70 anos não houve Templo nem Sumo
Sacerdote. Mas quando o Primeiro Templo foi destruído, havia profetas – especialmente
Jeremias – que tinham dado esperança ao povo. Jeremias profetizara destruição, mas
também o iminente retorno à Terra de Israel, e ele, que fora um verdadeiro profeta, tivera
razão nas duas profecias. Mas quando caiu o Segundo Templo, não foi feita profecia
alguma de que seria reconstruído em breve. A derrota da revolta de Bar Kochba confirmou
a profundidade da crise. O Povo Judeu novamente entrara no exílio e, dessa vez, não
havia garantia de um breve retorno. O que seria do dia mais sagrado do ano judaico? Sem
Templo Sagrado e sem Cohen Gadol, quem e o que serviriam de expiação para o Povo
Judeu?
No meio dessa crise profunda surge o maior Mestre da História Judaica, Rabi Akiva, a
quem o Talmud chama de “pai do mundo”. Rabi Akiva ensinou a seus alunos, que, por sua
vez, ensinaram ao Povo Judeu que, na ausência do Templo Sagrado e do Sumo
Sacerdote, eles poderiam voltar-se diretamente a D’us, e através de uma combinação
de Teshuvá, oração e boas ações,conseguir a expiação. Em Yom Kipur, todas as
sinagogas serviriam de substituto para o Templo Sagrado e todos os judeus serviriam
de Cohen Gadol. Com destruição e exílio, a santidade foi democratizada. Cada um dos
judeus foi convocado a personificar o Sumo Sacerdote. As orações e súplicas
proclamadas por todos os judeus serviriam para substituir os sacrifícios e os serviços
realizados em Yom Kipur quando o Templo existia. Essa responsabilidade religiosa
assumida por cada um dos judeus afetou – e, de fato, transformou – nosso povo de
maneira extraordinária.
Durante a Era Bíblica, o Povo Judeu era retratado como um povo infiel e rebelde, que
praticava a idolatria e violava os mandamentos da Torá, incorrendo por isso na ira de D’us
e de Seus porta-vozes, os profetas. Após a queda do Templo, quando os judeus foram
expulsos de sua Pátria, eles se tornaram o povo mais fiel entre todos: a única nação a
manter sua identidade religiosa durante dois milênios. Apesar das grandes adversidades,
apesar dos incentivos para abandonar o judaísmo e da perseguição e do sofrimento que
suportaram, os judeus resistiram à assimilação e se recusaram a se converter a outras
religiões. Eles que no passado cometeram idolatria e renegaram a Torá, nesse então
preferiam a tortura e a morte a trair D’us e renunciar a seu judaísmo e à identidade judaica.
A tenacidade judaica mereceu o respeito de pessoas tão diferentes como Blaise Pascal e
Friedrich Nietzsche.
Como isso aconteceu? Como o Povo Judeu transformou a tragédia espiritual em triunfo?
Aconteceu porque na ausência de um Templo e de um Sumo Sacerdote, a
responsabilidade por se comunicar intimamente com D’us e alcançar a expiação recaiu
sobre cada um dos judeus. Isso foi transformacional. Como já não havia sacrifícios, bodes
expiatórios e Sumos Sacerdotes, os judeus foram compelidos a pessoalmente buscar D’us
e expiar por si sós.
Yom Kipur em nossos dias
Na ausência do Templo Sagrado e do Cohen Gadol, em Yom Kipur todas as sinagogas
devem ser um Mikdash Me’at – um pequeno Santuário – e todos os judeus devem tomar a
si a missão do Cohen Gadol. Na época Bíblica, em Yom Kipur, as pessoas apenas
observavam, enquanto o Sumo Sacerdote desempenhava um serviço físico extremamente
pesado. Hoje em dia, na ausência do Templo e do Cohen Gadol, não podemos ficar em
casa, dormir ou ir à sinagoga e apenas apreciar os serviços religiosos. Nós, também,
precisamos realizar um trabalho que exija muito de nós – física, emocional e
espiritualmente. Apesar da fome e do cansaço, temos que dar o melhor de nós e orar
tanto, tão bem e com tanta sinceridade quanto possível, para obter a expiação e o perdão
para o Povo Judeu e para o mundo, em geral.
No Dia do Perdão, cada um de nós, mesmo que não seja Cohen, deve desempenhar a
missão do Cohen Gadol, levando em seus ombros o destino e o bem-estar do Povo de
Israel. Na realidade, a aceitação de tamanha responsabilidade espiritual é uma das razões
para que tantos judeus se vistam de branco em Yom Kipur: por ser uma reminiscência dos
trajes brancos do Cohen Gadol, usados antes de adentrar no Kodesh HaKodashim.
Durante os Dez Dias de Teshuvá, que se iniciam em Rosh Hashaná e terminam em Yom
Kipur, referimo-nos a D’us como Avinu Malkenu – nosso Pai, nosso Rei. Durante esses
dias, D’us atua como monarca – que julga seus súditos – e como pai – que perdoa e
abraça seus filhos. Em Yom Kipur, que é o auge do período mais sagrado do nosso
calendário, cada um dos judeus também assume dois papéis: o de Sumo Sacerdote – um
líder espiritual, que destemidamente se aproxima do Rei para defender e interceder por
seu povo – e no papel de filho, que volta a casa para visitar seu Pai e seus irmãos.
Os temas centrais de Yom Kipur – o retorno ao lar espiritual e a democratização da
santidade – são entrelaçados: o último depende do primeiro. Em Yom Kipur, quando um
judeu volta a Casa – a seu Pai Celestial, à sua verdadeira identidade, à sua fé e a seu
povo, ele se recorda de quem de fato é e o que deve fazer em sua vida. Quando isso
ocorre, percebe que tem responsabilidade moral e liderança espiritual por todos os demais
judeus.
O tema universal de Yom Kipur é que se o ser humano optar por transcender suas
aparentes limitações, não haverá limite para sua ascensão. Rabi Akiva, que, como
dissemos acima, foi aquele que democratizou a santidade judaica, só retornou ao
judaísmo aos 40 anos de idade. Ele se tornou o maior Mestre do Talmud e o responsável
por ter salvado a Torá do esquecimento. Rabi Akiva atingiu um nível espiritual jamais
atingido por qualquer Cohen Gadol. Interessante mencionar que o dia de seu martírio,
quando sua alma ascendeu ao Altíssimo, é Yom Kipur, o dia mais sagrado do ano.
As lições de Yom Kipur são atemporais: aplicam-se em todos os lugares, em todas as
gerações e à vida de qualquer judeu. Que seja a Vontade Divina que o tema de Kol
Nidrei reverbere dentro de nossa alma enquanto vivermos nesta Terra, para que nós,
judeus, sempre possamos, individual e coletivamente, ser verdadeiros com nós mesmos. E
que todos possamos, não apenas em Yom Kipur, mas em todos os dias de nossa vida,
esforçar-nos para crescer em todos os aspectos da santidade e da bondade. Pois, como
está escrito: “Eles se fortalecerão continuamente; e cada um deles se apresentará perante
D’us, em Tsion” (Salmos, 84:8). Amen, Ken Yehi Ratsón.
Bibliografia:
Rabino Chefe Lord Sacks, Jonathan, Democratized Holiness: Yom Kippur and Moral
Responsibility, artigo publicado no Huffintgton Post, 9 de agosto de 2013
Rabino Chefe Lord Sacks , Jonathan, Coming Home – Thoughts from the Chief Rabbi on
Yom Kippur 5773. Artigo publicado no site www.chiefrabbi.org
Rabi Jacobson , Yosef Y., A Tale of Two Souls (Audio) – The Tanya of Rabbi
ShneuZalman of Liadi
Fonte http://www.morasha.com.br/yom-kipur/yom-kipur-o-dia-em-que-o-povo-judeu-volta-
para-casa.html

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