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A agonia de um laboratório

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A agonia de um laboratório
por Michel Callon
(traduzido por
Ivan da Costa Marques)
Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de Michel Callon para fins de estudo, sem
vantagens pecuniárias envolvidas.
Todos os direitos preservados.
Free reproduction, in Brazilian Portuguese, of Michel Callon’s original for study purposes.

No pecuniary advantages involved. Copyrights preserved.

Que papel particular os laboratórios desempenham no desenvolvimento do


conhecimento e mais particularmente na construção dos fatos científicos? Esta
questão é inevitável quando se reconhece a importância da pesquisa organi-
zada, seja tomando a forma de pequenas equipes no seio das quais indivíduos
dispõem de importantes margens de manobra, ou seja na forma inspirada em
modelos industriais, com equipamentos importantes e uma divisão de trabalho
estrita. Contudo, a despeito de seu papel estratégico, os laboratórios têm sido
pouco estudados. Muito se escreveu sobre a ciência e a sua organização, ou
mesmo sobre os cientistas trabalhando nos laboratórios, mas relativamente
pouco sobre a contribuição própria dos laboratórios para a construção dos
fatos científicos.

Deste modo a filosofia da ciência e a epistemologia por muito tempo decidiram


ignorar o trabalho material dos cientistas para privilegiar sua atividade inte-
lectual e se concentrar somente sobre a construção das teorias.1 Introduzindo

1
Como exemplo, veja BACHELARD (1934), CANGUILHEM (1960), HESSE (1974), QUINE(1960),
POPPER (1959,1963), mas também BARNES (1977), BLOOR (1976), FEYERABEND (1979). Para
uma argumentação filosófica em favor dos estudos de laboratórios, ver HACKING (1987).
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A ciência e suas redes

a oposição hoje clássica entre o contexto da descoberta e o contexto da justi-


ficação, os epistemólogos transformaram seu desinteresse pelos laboratórios
num imperativo metodológico2. Eles estão prontos a reconhecer que os pes-
quisadores são movidos pela necessidade de glória e pela sede de prestígio,
que eles são algumas vezes autoritários e arrebatados pelo poder e que seu
maquiavelismo, na verdade sua duplicidade, os leva freqüentemente a esta-
belecer alianças ou compromissos com os poderes estabelecidos e em par-
ticular com os militares 3 . Mas, para a filosofia da ciência, a atividade dos
pesquisadores transcende todas estas dimensões às quais ela não é reduzí-
vel. Para dar conta do essencial - esta mistura rara de razão e de submissão à
experiência -, é preciso saber ver além das contingências do laboratório. Não
somente este não diz nada sobre a ciência, como, mais ainda, nos dá uma
imagem falsa. É pelo “contexto da justificação”, onde são discutidos e avalia-
dos os resultados e proposições, e não pelos laboratórios, que todos aqueles
que se esforçam em dar conta da realidade da ciência considerada como uma
atividade humana particular devem se interessar.

Durante muito tempo os sociólogos colaboraram com esta empreitada de


mistificação, se contentando em descrever a instituição científica, suas nor-
mas, seus valores e suas formas gerais de organização (colégios invisíveis,
especialidades). Livres de todas as ligações organizacionais, os pesquisado-
res, reagrupados em comunidades de especialistas, são analisados no mo-
mento onde eles discutem seus resultados e não no processo de produção ou
fabricação do conhecimento 4 . Os laboratórios estão ainda estranhamente
ausentes. Os raros estudos que lhes são consagrados permanecem muito
formais, se prendem a identificar e a repertoriar as estruturas organizacionais e

2
A expressão mais elaborada deste desinteresse voluntário se encontra evidentemente em POPPER
(1959).
3
As análises de P. Thuillier colocam constantemente em cena cientistas cheios de duplicidade ob-
servados ao sairem de seus laboratórios no momento onde eles estabelecem alianças “imorais” para
consolidar seu poder ou acalmar sua sede de glória. THUILLIER (1981).
4
Este é o ponto de vista da análise mertoniana da instituição científica. Para os textos fundadores, veja
MERTON (1973).
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A agonia de um laboratório

seus determinantes assim como seu impacto sobre o desempenho ou a efi-


cácia do trabalho dos pesquisadores.5

Rejeitando este acordo implícito da filosofia e da sociologia, uma nova disci-


plina, a antropologia das ciências, se constituiu progressivamente, colocando o
laboratório no coração de sua perspectiva de pesquisa. Em lugar de colocar
entre parênteses a produção de conhecimentos, este famoso contexto da
descoberta tão desprezado pelos filósofos, a antropologia das ciências con-
siderou como prioritário o estudo da ciência em se fazendo. Com aplicação, ela
estudou os pesquisadores no trabalho, montando experiências, interpretando
e discutindo entre eles os primeiros resultados, preparando artigos6. A fecun-
didade de tal virada não se fez por esperar: em um piscar de olhos se evaporou
a pretensa separação entre contexto da descoberta e contexto da justificação.
É no laboratório, no decorrer do processo de construção dos argumentos, de
fabricação dos resultados, de conformação das teorias que se testa e se
constitui sua força e que se escolhem, se imaginam e se testam as audiências
que eles são destinados a convencer. A antropologia das ciências tem mos-
trado que é falso distinguir etapas e traçar fronteiras: o processo é contínuo. A
elaboração de idéias, sua explicação, sua submissão à comprovação se en-
trelaçam incessantemente segundo os caprichos das múltiplas interações que
enlaçam os pesquisadores, seus financiadores e seus públicos potenciais.
Nesta perspectiva, o laboratório ocupa uma posição crucial. Não somente é no
seu seio que se observa a construção de interpretações ou de enunciados,
mas é igualmente lá que se prepara e se gere a transformação de conheci-
mentos inicialmente locais em conhecimentos negociados e trocados em
mercados mais largos que ele contribui para criar, para transformar ou para
desfazer. O laboratório assegura a ligação entre o contexto da descoberta e o
contexto da justificação, entre a fabricação de enunciados ou de teorias e a
sua difusão em meios sociais particulares. O laboratório é o agente desta

5
Veja notadamente: PELZ e ANDREWS (1960), KORNHAUSER (1960), SHINN (1988),
WHITLEY(1978).
6
LATOUR (1988), KNORR-CETINA (1981), LYNCH(1985).
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A ciência e suas redes

universalização de conhecimentos em que se consiste precisamente a cons-


trução dos fatos científicos.

Para bem compreender este papel particular do laboratório, uma boa estraté-
gia é seguir, acompanhando-o até a sua desintegração, a evolução de um
deles. Da mesma maneira que a pré-história de um laboratório nos permitiu
compreender a importância das redes,7 a lenta agonia de um laboratório nos
mostrará o papel que ele desempenha na permanente transformação e
adaptação dos produtos e de seus mercados. É ele que gere a heterogenei-
dade e a complexidade dos elementos que concorrem para a fabricação e para
a universalização dos conhecimentos. Quando mudam simultaneamente a
definição de problemas, as relações de dependências internas, as demandas
industriais, as comunidades científicas de referência, os modos de experi-
mentação, os conceitos utilizados, o laboratório é o lugar e o motor destas
adaptações. Jamais se vê o laboratório tão claramente quanto quando os
movimentos se tornam tão bruscos e os rearranjos tão profundos que o labo-
ratório não pode senão se desmembrar para se recompor depois sob formas
diferentes. Para dar conta do papel desempenhado pelo laboratório nesta
gestão complexa dos conteúdos, dos recursos necessários para sua fabrica-
ção e dos contextos de sua utilização-difusão, nós introduzimos a noção de
atores-redes cuja construção coincide com a construção dos fatos científicos
eles-mesmos.

O laboratório de Beauregard e as pesquisas sobre as células de com-


bustível

No inicio dos anos sessenta uma ação concertada (AC) visando coordenar os
esforços de diferentes laboratórios de pesquisas, universitários e industriais,

7
Veja capítulo 2.
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A agonia de um laboratório

foi lançada pelo DGRST sobre o tema geral de conversão de energia8. O de-
senvolvimento de células combustíveis - dispositivos técnicos permitindo a
transformação de energia química fornecida por um eletrólito renovável em
energia elétrica - constitui uma das prioridades estabelecidas pelo Comitê
encarregado da ação concertada9. As razões desta escolha são múltiplas.
Antes de tudo, os programas espaciais acabavam de colocar evidência o de-
sempenho das células de combustível e deixavam entrever possíveis aplica-
ções industriais. Aliás é esta a argumentação que desenvolve Baccala,
membro do comitê e diretor do laboratório de Beauregard, importante centro de
pesquisa do CNRS especializado no estudo da eletrocatálise. Além do mais
este tema, fora sua importância econômica potencial, coincide com as priori-
dades políticas do momento, pois ele tem por virtude essencial promover uma
cooperação entre industriais e universitários e, de um modo mais geral, entre
pesquisa tecnológica e pesquisa de base. Por fim, uma das principais vanta-
gens da escolha é a de delimitar um terreno fácil para o DGRST investir, pois
não havia nenhuma concorrência a temer: o CNRS ou a Universidade são
pouco dispostos a embarcar em colaborações incertas com as empresas e
hesitam em apostar em disciplinas que, como a eletroquímica, ainda só des-
frutam de um prestígio medíocre. Aproveitando estas circunstâncias favorá-
veis, Baccala impõe sem dificuldades o tema das células de combustível, de
uma só vez em seus aspectos tecnológicos e fundamentais; e no mesmo ato
coloca seu laboratório no primeiro plano da cena. Beauregard se torna um
ponto de passagem obrigatório. Dominando tanto as técnicas como os co-
nhecimentos teóricos necessários à elucidação do funcionamento das células
de combustível, este laboratório se encontra colocado, desde o início da ação

8
No curso deste estudo financiado pelo CORDES, nós pudemos consultar todos os arquivos do
DGRST (atas de reuniões dos comitês, projetos de pesquisas, ...), organismo criado em 1958 e en-
carregado de botar em operação os programas de incentivo à pesquisa. Nós consultamos igualmente
os diferentes relatórios e documentos de trabalho feitos pelos pesquisadores de Beauregard, com os
quais umas trinta entrevistas foram realizadas. O diretor do Beauregard nos deu acesso a todos os
documentos administrativos e financeiros. Para um estudo mais detalhado da política do DGRST, ver
especialmente CALLON [1980a, 1980b].
9
As outras direções de pesquisa apoiadas pelo comitê de ação concertada eram as seguintes: ter-
moelementos, termofotovoltaíco, termoiônico, fotocélulas, plasmas, lasers, ótica, energia solar,
magnetohidrodinâmica e supercondutividade.
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A ciência e suas redes

concertada, em uma posição de articulação. Ligando pesquisas fundamentais


e aplicadas a um programa nacional, ele será levado a gerir esta tensão
permanente que se instala entre a dinâmica da pesquisa e aquela da ação
política. Seguindo Beauregard no seu difícil trabalho de intermediário, anali-
sando a evolução dos problemas e dos objetos de pesquisa, nós mostraremos
que a construção de fatos científicos dentro dos laboratórios é indissociável da
estratégia do laboratório no seio das redes que ele gere.

Primeiras traduções: o eletrodo monotubular como objeto de pesquisa

Ao escolher dar apoio financeiro a esta ação concertada particular, o DGRST


estabeleceu uma primeira equivalência entre um campo de pesquisa e um
objetivo político. Ele postula que para dar vigor à indústria nacional, para re-
forçar a independência energética da França, a conversão de energia é um
dos temas prioritários: ele permite organizar transferências tecnológicas da
pesquisa de base em direção à pesquisa aplicada e coloca as empresas em
caminhos julgados promissores. Nós chamamos de tradução esta equivalên-
cia postulada por um ator particular (aqui, o DGRST) entre objetivos hetero-
gêneos, equivalência não imposta a priori por ninguém e que é por conse-
qüência conjectural.10

Baccala, seguido sem discussão pelo comitê, acrescenta duas novas tradu-
ções que prolongam a precedente: a) para promover novas formas de energia,
uma das escolhas prioritárias é o desenvolvimento de células de combustível;
b) para alcançar este objetivo, a prioridade das prioridades é otimizar cada um
dos elementos constitutivos da célula, e em particular aperfeiçoar o desem-
penho dos eletrodos. Estas três operações de tradução alinhadas criam um
curto-circuito impressionante entre, de um lado, o futuro industrial e a inde-
pendência política da França e, de outro lado, as pesquisas conduzidas por um

10
Sobre a noção de tradução, ver CALLON (1980b, 1986a, 1986b) e LATOUR (1984, 1987).
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A agonia de um laboratório

punhado de pesquisadores e de técnicos sobre o funcionamento dos eletro-


dos. A noção de tradução dá conta perfeitamente deste estabelecimento de
um tipo particular de relação que consiste em formular uma equivalência entre
séries de preocupações, tipos de atividades, categorias de enunciados e dis-
cursos radicalmente diferentes.

Uma tradução, qualquer que ela seja, raramente se dá sem problemas. Ela
está freqüentemente sujeita à controvérsias. Aquelas propostas por Baccala
não escapam a esta regra e suscitam rapidamente vivas oposições. Muitos
cientistas, não representados no seio do comitê, estimam que seja prematuro
estudar a estrutura dos eletrodos e que, antes de se lançar ao desenvolvi-
mento das células, a prioridade deva ser dada a um problema mais funda-
mental: a elucidação dos mecanismos de eletrocatálise propriamente ditos e,
mais particularmente, a utilização da mecânica quântica para descrever e
compreender o papel exato dos catalizadores. Muito rapidamente sua argu-
mentação é descartada. Baccala consegue agregar suficientes interesses em
torno de sua tradução para impô-la sem a menor dificuldade.11 Durante um
longo período, esta equivalência não será contestada nos meios da política
científica que vão mobilizar importantes financiamentos para apoiá-la e con-
solidá-la. A linha de pesquisa indiscutível é o estudo do transporte dos rea-
gentes, a colocação em contato do eletrodo e do eletrólito assim como a ciné-
tica das reações e não a eletrocatálise enquanto tal, que, supõe-se, se produz
de modo não problemático na interface.12

Quando, uma vez tomadas estas decisões, Baccala volta para Beauregard,
não é só um homem que reencontra seu laboratório. Ele se tornou um pode-
roso macro-ator que fala em nome do comitê da ação concertada do ministério
da Pesquisa como também da política francesa de independência nacional.
Graças às traduções impostas, ele se encontra investido de uma missão na-

11
Para a análise desta agregação de interesses, ver CALLON (1980).
12
Este é o resultado de um colóquio organizado por Baccala e que se traduziu por uma derrota com-
pleta dos cientistas que pleiteavam um desvio pela física do estado sólido.
179
A ciência e suas redes

cional e dispõe de recursos financeiros importantes para estudar e melhorar o


funcionamento dos eletrodos porosos que são aqueles mais correntemente
usados nas células de combustível.

Afim de evitar qualquer discussão, na verdade qualquer contestação, no seio


de seu laboratório, e para colocar em funcionamento a linha que foi fixada,
Baccala recruta rapidamente pesquisadores e técnicos de sua confiança e que
ele pensa que não colocariam em questão as traduções já estabelecidas. Ele
contrata primeiramente Blondelet, que foi seu aluno no CNAM, onde ele en-
sina, e que ele conhecia havia muito tempo. Após completar seus estudos,
Blondelet trabalhou muitos anos no ministério da Aeronáutica num laboratório
de controle especializado em análises metalográficas ( exame de peças me-
tálicas de aviões acidentados). Blondelet, no momento em que Baccala o
chama, domina e utiliza os conhecimentos e as técnicas da metalografia. Para
ele um metal se caracteriza pela sua “estrutura”, que pode ser observada
graças à micrografia ou à radiocristalografia. As variáveis explicativas às quais
ele recorre mais freqüentemente são : “l’écrouissage” (ação de martelar o
metal à frio), o estado de grão, a ação de dar têmpera ao ferro e ao aço, as
interfases. Acompanha-o um técnico, Pelletier, especializado no trabalho e na
análise dos metais. Ambos vão constituir por muitos anos o núcleo central da
equipe célula de combustível do laboratório de Beauregard.

A solicitação endereçada a Blondelet por Baccala é clara: trata-se de estudar o


funcionamento do eletrodo poroso na célula hidrogênio/oxigênio.13 Blondelet
se põe a trabalhar. Ajudado por Pelletier ele constrói nos meses que se se-
guem uma célula experimental. Rapidamente os resultados foram julgados
deploráveis pelos próprios pesquisadores, como prova esta frase tirada de um
relatório de 1961: “Apesar dos eletrodos porosos de 150 mm de diâmetro, os
rendimentos obtidos são fracos.”

13
A célula hidrogênio/oxigênio é aquela cujo funcionamento está neste caso mais dominado. O obje-
tivo é otimizar o rendimento dos eletrodos porosos que asseguram o contato entre o combustível (o
oxigênio), o catalisador (que favorece a reação) e o eletrólito (o potássio).
180
A agonia de um laboratório

Como Blondelet e Pelletier, acuados no seu laboratório, vão explicar o seu


fracasso e relançar as suas pesquisas? Pelas orientações que eles escolhe-
ram, tudo se passa como se eles não estivessem nem prontos para abandonar
nem decididos a se opor ao macro-ator que Baccala se tornou. Confrontados
com uma tarefa que eles nem contestaram nem negociaram, encontrando-se
na incapacidade de produzir os resultados esperados, eles suspeitam daquilo
que eles têm força para suspeitar: definindo sua especialidade técnica como o
único recurso mobilizável - especialidade que limitava as possíveis investi-
gações aos aspectos estruturais do eletrodo - é bastante naturalmente que
eles decompõem o eletrodo poroso em seus poros, levando-o ao que eles
chamam de sua estrutura, que, segundo eles, torna problemático o seu fun-
cionamento.14 Acostumados a associar texturas e desempenhos, eles se
perguntam o seguinte: em que a repartição dos poros no seio da massa me-
tálica constituída pelo eletrodo condiciona os desempenhos deste último?
Questão que sublinha a importância do poro no funcionamento do eletrodo e
que, colocada em relação com uma interpretação elementar da cinética das
reações, desemboca para nossos pesquisadores nestas interrogações: como
organizar a disponibilidade de combustíveis e a retirada dos produtos da re-
ação? onde se estabelecem no poro as zonas de reação? Estas questões
continuam a relegar para segundo plano o estudo dos fenômenos catalíticos
enquanto tais. Trata-se simplesmente de assegurar-se em cada poro um triplo
contato satisfatório entre o oxigênio (o combustível ), o potássio (o eletrólito) e
o suporte catalítico, sem o qual a reação eletroquímica não se fará. O que está
em questão é a estrutura do eletrodo e a sua aptidão para favorecer o triplo
contato, e não o que alguns chamam na mesma época de mecanismos íntimos
da catálise.

14
Sobre os conhecimentos tácitos e seu papel na formulação dos problemas, ver COLLINS (1975) e
CAMBRÓSIO (1988). Sobre a desconfiança como relação de forças, consulte AUGÉ (1975),
FAVRET-SAADA (1977), e sobre o paralelo entre programa de pesquisa e o processo de acusação,
ver LATOUR (1987).
181
A ciência e suas redes

Para Blondelet e Pelletier, o “poro” torna-se assim, a unidade pertinente, o


módulo elementar da estrutura-eletrodo.

Para estudar os eletrodos porosos, é necessário estudar-se primeiramente


um só poro. Isto pode ser feito graças a um tubo de vidro (diâmetro de 50 a
100 microns) metalizado no interior; este dispositivo permite o estudo do
menisco 02 / potássio e suas variações15.

Ver Figura 1 (Pág. 183 no original)

Para estudar essa interface, a técnica escolhida é aquela que os metalúrgicos


conhecem bem e utilizam para detectar defeitos estruturais: os raios X.

Tinha-se o hábito de utilizar os raios X e de se virar com poucas coisas;


graças a esta técnica observou-se de modo sistemático a interface eletróli-
to-gás num poro.16

O estudo do eletrodo real da célula de combustível é substituído pelo estudo


de um “eletrodo modelo monotubular”, para retomar-se a expressão utilizada
pelos próprios pesquisadores. Esta operação de redução inscreve igualmente
sua lógica na escolha dos constituintes do eletrodo monotubular. Não somente
os reagentes (02, KOH) são os mesmos que os freqüentemente utilizados nas
células de combustível, mas o catalisador escolhido é idêntico: a prata.

Nós escolhemos a prata como constituinte das paredes, por um lado porque
muitos catodos para células de gás são construídos com este metal e, por
outro, porque o método de metalização é aparentemente bastante simples.17

A realidade desta operação de redução é afirmada explicitamente por Blon-


delet num texto de 1962:

15
BLONDELET e PELLETIER (1961).
16
Entrevista com Blondelet e Pelletier.
17
BLONDELET e PELLETIER (1962).
182
A agonia de um laboratório

Os resultados obtidos permitem mostrar que se pode facilmente passar das


características do eletrodo monotubular às do eletrodo poroso, sob a condi-
ção de se conhecer a densidade dos poros e o espectro da sua repartição.18

O sistema de equivalentes ou das traduções é então o seguinte: o estudo do


eletrodo monotubular é idêntico ao do eletrodo poroso, sendo este ele próprio
idêntico ao estudo da célula de combustível. Dar à luz aos mecanismos que
governam as reações eletroquímicas do eletrodo monotubular é elucidar as
leis que regem o rendimento das células de combustível: os conhecimentos
obtidos para uma valem para a outra.

Definindo assim o novo problema de pesquisa, Blondelet e Pelletier prolon-


gam, sem as colocar em questão, as traduções anteriormente operadas por
Baccala; graças ao trabalho deles, a cadeia das equivalência se prolonga: o
destino energético da França está agora em parte nas mãos de dois pesqui-
sadores que estudam, em algum lugar nos subúrbios de Paris, um contato
triplo dentro de um eletrodo monotubular.

A consolidação do objeto de pesquisa:


alianças de todos os gêneros

Foi assim que o eletrodo monotubular se constituiu num objeto de pesquisa.


Na sua materialidade, pelas questões que ele levanta, pelas observações às
quais ele conduz, ele dá forma ao estado de forças sociais e naturais nas quais
Blondelet está aprisionado.

Blondelet, dando continuidade à programação inicial, solidifica a autoridade de


Baccala, os objetivos da ação concertada (AC) e a política do ministério. A

18
Ibid
183
A ciência e suas redes

natureza sobre a qual Blondelet se apoia e que ele mobiliza, os conhecimentos


que ele tem dela, as técnicas que ele está em condições de utilizar, as relações
sociais de que ele (não) dispõe, sua situação contratual estatutariamente
precária, não lhe permitem em momento algum transformar a solicitação [co-
locada por Baccala], desatar as equivalências, os laços e as redes para, por
exemplo, reorientar o curso das pesquisas, ou, pura e simplesmente largar ... o
laboratório.19 Blondelet, e isto é a prova da habilidade da política conduzida por
Baccala, não pode contestar o ministério ou o diretor do laboratório mais do
que ele está em condições de recorrer à mecânica quântica para dissociar os
íons e fazer os elétrons girarem sobre si mesmos. Na prova, o que se revela é
que os aliados humanos ou não humanos com os quais ele pode contar não
lhe permitem considerar outra coisa a não ser a perseguição pura e simples da
tradução iniciada por Baccala.

Esta tradução e o objeto que ela constitui recebem ao longo dos meses que se
seguem, o apoio de novos reforços.

É assim que são recrutados dois novos pesquisadores (um deles é um esta-
giário americano) de formação em eletrônica. Tomando como não problemá-
tico o objeto de pesquisa (o eletrodo monotubular) construído por Blondelet,
eles propõem um estudo puramente elétrico dos mecanismos eletroquímicos
sediados no eletrodo. As disposições de Villa e Pommier, são estes os nomes
destes dois pesquisadores, fazem-nos por vocação ocupar as posições que
lhes são propostas. Jovens, e um deles estrangeiro além de estagiário, eles se
encontram na impossibilidade de reunir os recursos que lhes permitiriam
transformar redes e objetos de pesquisa. Escolhendo estudar o triplo contato
independentemente de qualquer consideração sobre a catálise, reduzindo-o a
algumas variáveis elétricas que o caracterizam, eles reforçam o eletrodo mo-
notubular e todas as suas ramificações sociais, econômicas, políticas e tec-

19
Para dar conta desta vontade de ficar em Beauregard, seria necessário descrever todas as redes
familiares, afetivas e outras que impelem Blondelet a permanecer onde está. Sem esta investigação
mais ampla só podemos registrar a escolha do pesquisador sem explicá-la totalmente.
184
A agonia de um laboratório

no-científicas20 . Esta política de recrutamento vai se ampliar ao longo dos


anos seguintes e contribuir fortemente para reforçarem as pesquisas sobre o
eletrodo monotubular e as traduções que elas concretizam.

Nos efetivos globais do laboratório, que entre 1960 e 1964 passam de 41 a 73,
a relação entre o número de pesquisadores e o número de técnicos cai bru-
talmente de 1 para 0,5. Uma análise detalhada dos recrutamentos e das atri-
buições mostra que durante todo este período, o ritmo do crescimento demo-
gráfico do laboratório e a natureza deste crescimento são inteiramente impu-
táveis à influência crescente de Blondelet e de seu eletrodo monotubular. A
interpretação desta evolução é simples se se admite que o recrutamento ma-
ciço de técnicos no lugar de universitários traduz a vontade estratégica de
consolidar objetos [de pesquisa] estratégicos já constituídos. O aumento de
seus efetivos fortalece sem dúvida o eletrodo monotubular como objeto de
pesquisa e reforça as escolhas iniciais operadas por Baccala.21

Uma parte importante dos recursos contribui igualmente para consolidar o


objeto de pesquisa de Blondelet. A análise do financiamento do laboratório
entre 1960 e 1965 mostra que Baccala, graças ao apoio embora limitado da
DGRST (auxílio de suporte exclusivamente para os equipamentos e estrita-
mente limitada às células), consegue que o CNRS crie novos cargos no seio
do laboratório: os investimentos em equipamento têm um efeito multiplicador
pois eles tornam necessário o recrutamento de pesquisadores e de técnicos
para colocá-los em funcionamento. A importância estratégica de Blondelet é
aumentada. É um pouco graças a ele que o CNRS manifesta em relação ao

20
Visto através da metáfora elétrica, um eletrodo ao qual se aplica um potencial é comparável a um
condensador (camada dupla) e a uma “self” (correspondendo à intensidade variável da reação de
oxido-redução). O eletrodo monotubular pode então ser interpretado como um caso particular de linha
de transmissão dos telegrafistas. A empreitada de redução conduzida por Blondelet instigado por
Baccala é prolongada. “Nossas experiências confirmam a validade da representação em linha da
transmissão do eletrodo monotubular de triplo contato. Portanto é possível aplicar esta teoria aos
eletrodos porosos empregados industrialmente”, Relatório DGRST (1963).
21
Sobre este ponto, ver LEMAINE et al. (1977)
185
A ciência e suas redes

laboratório uma generosidade que nunca havia demonstrado antes. Blondelet


controla financeiramente a expansão do centro. O eletrodo monotubular atrai o
dinheiro e concentra em si os financiamentos que aumentam sua solidez e sua
legitimidade.

Esta política se inscreve igualmente na organização do trabalho no interior do


laboratório. Três fatos são relevantes: a) a força crescente relativa da equipe
Blondelet; b) a designação para [as equipes] de Casto, Lavillier e Chenin (os
três pesquisadores fundamentalistas que, como veremos, irão contestar a
orientação de Blondelet) de jovens engenheiros tecnólogos explicitamente
encarregados de estabelecer um laço com as pesquisas sobre o eletrodo
monotubular; c) a ausência de qualquer estrutura formal de coordenação in-
telectual: o laboratório é “balcanizado”, composto por uma célula gigante (a de
Blondelet) e de uma miríade de pequenas células adjacentes. Esta situação é
agravada pelos remanejamentos que intervêm entre 1960 e 1965: a equipe à
qual Villa e Pommier estavam ligados se funde com a de Blondelet, enquanto
os engenheiros a serviço de Casto, Lavillier e Chenin deixam o laboratório ou
se juntam a Blondelet.

A estratégia de publicação contribui da mesma maneira para fortalecer o lugar


e a importância crescente das pesquisas sobre as células. Entre 1960 e 1964,
os artigos tratam na sua maioria de células de combustível para dar conta do
trabalho de Blondelet e de sua equipe. Eles aparecem em revistas de orien-
tação acadêmica, francesas e estrangeiras (resumos da Academia das ciên-
cias, Eletrochimica Acta, Journal of the Electrochemical Society ... ). Estas
publicações são em geral assinadas em conjunto por alguns pesquisadores
cuja identidade varia pouco. Em 1964, ano em que as publicações são mais
numerosas, quatro quintos dos artigos produzidos pelo laboratório no seu todo
se referem às células de combustível e são co-assinados por Baccala, Blon-
delet, Villa e Pommier. Isto é suficiente para dizer o quanto a atividade literária
do laboratório está publicamente centrada no eletrodo monotubular e na ati-

186
A agonia de um laboratório

vidade de seu diretor que se torna aos olhos do maior número de pessoas a
principal orientação da pesquisa de Beauregard.

Atores-redes e laboratórios

O eletrodo monotubular poderia ser descrito como um objeto de pesquisa


caracterizado por suas propriedades científicas e técnicas, e considerado
como o suporte de fatos observáveis. Uma tal descrição seria correta mas
insuficiente. O eletrodo se encontra no cruzamento de diversas redes hete-
rogêneas que ele tem por função enlaçar umas às outras. Redes que ligam o
ministério e seu comitê a instrumentos, a disciplinas, a pesquisadores, a cré-
ditos, mas igualmente a tensões e a intensidades. O eletrodo monotubular, ao
associar estas diferentes entidades, faz o futuro energético da França de-
pender do comportamento de um íon sobre a superfície da prata. O eletrodo
não é somente uma realidade científica e técnica; ele não é somente uma peça
chave num programa político; ele é os dois ao mesmo tempo. É uma realidade
composta. Ele constitui ele próprio, totalmente só, uma rede sociotécnica. Para
fazer aparecer sua natureza híbrida assim como sua extensão, foi suficiente
seguir o processo de sua construção, isto é, o recrutamento de todos os ali-
ados humanos e não-humanos que tiveram que ser mobilizados para lhe dar
ao mesmo tempo sua forma e sua robustez. As redes, das quais o eletrodo
monotubular é ao mesmo tempo o elemento e a materialização, são dupla-
mente heterogêneas: primeiro porque elas reúnem elementos de natureza
radicalmente diferentes (um órgão governamental, elétrons...), mas igualmente
porque as relações que unem tais elementos são de uma grande diversidade
(relações de autoridade, de troca, relações químicas, elétricas...).

Descrever o eletrodo como um ponto numa multiplicidade de redes hetero-


gêneas que ele mobiliza e mantém juntas e que em retorno lhe dão sua coe-
rência e sua solidez, e não como um simples objeto de fronteiras bem de-
187
A ciência e suas redes

marcadas, conduz a propor a noção de ator-rede que permite ultrapassar a


oposição comum entre conteúdos científico-técnicos e contextos sociais, ao
mesmo tempo dando conta de suas constituições e de suas interações. No
caso que nos ocupa, o ator-rede junta todos os elementos, humanos ou
não-humanos, que foram recrutados em um momento ou noutro da construção
do eletrodo monotubular e que são associados a ele. Encontramos, entre ou-
tros: o DGRST, um comitê de ação concertada (AC), um laboratório próprio do
CNRS, elétrons, contatos triplos, técnicos de situação estatutária precária, o
CNAM, ... Se recorremos a uma noção nova, a do ator-rede, para descrever
esta configuração particular, este complexo sociotécnico, é para designar o
conjunto heterogêneo dos elementos recrutados e suas interações, mas é
igualmente para sublinhar a capacidade dinâmica deste conjunto que se
transforma e evolui sob a força dos elementos que o constituem.

Esta dupla dimensão do ator-rede se deve à natureza da atividade dos ele-


mentos que ele associa. Cada um destes actantes, se tomarmos da semiótica
esta noção para designar as entidades humanas ou não humanas agindo
dentro de uma rede, se caracteriza pela maneira particular pela qual ele define
os outros actantes aos quais ele se liga e os quais ele liga entre si. Baccala,
levado por estas operações de tradução, se esforça por associar seu labora-
tório à política científica da França, para estabelecer uma relação improvável
entre o eletrodo monotubular e a conversão de energias, e, para atingir este
resultado, recruta toda uma gama de aliados heterogêneos. Blondelet inves-
tiga o triplo contato e reforça as associações propostas por Baccala. Os pró-
prios elétrons, saltando do eletrólito para o eletrodo ou, ao contrário, perden-
do-se no caminho, contribuem para o sucesso, ou para o fracasso, das liga-
ções postuladas.13 E como esquecer os catalizadores que em se envenenando
agem em sentido contrário, desatando o que Blondelet e Baccala procuram
com fervor atar? Uma tal descrição, que restabelece a totalidade dos ele-
mentos associados e reconstitui a construção de suas interações, não captura
contudo mais do que uma parte da dinâmica do ator-rede. Com efeito, a iden-

188
A agonia de um laboratório

tidade dos actantes que o compõem não está fixada de uma vez por todas: é
um compromisso que resulta do entrecruzamento das definições que cada um
dentre eles propõe para todos os outros. Baccala faz do comitê de ação con-
certada, que nada predispunha a priori a desempenhar este papel, uma pos-
sante máquina de guerra a favor das células de combustível, organiza o apoio
do CNRS à eletroquímica, transforma a célula de combustível em eletrodo
monotubular que se torna a razão de ser de uma tropa de técnicos e de pesqui-
sadores. Mas, em contrapartida, a própria estratégia dos pesquisadores assim
como o comportamento do eletrodo monotubular vão acabar por “ressoar pela
proximidade*” sobre os projetos de Blondelet, de Baccala, modificando-os, e
depois, enfim, sobre as orientações políticas da DGRST: se os catalizadores
se envenenam obstinadamente, se a camada dupla se desestabiliza, se os
cientistas transformam a catálise em realidade problemática, então é a política
da DGRST, seu papel e em particular sua determinação de apoiar o desen-
volvimento das células de combustível e, mais amplamente, de promover
novas formas de conversão de energia, que correm o risco de serem questi-
onadas.

Para dar conta desta estranha entidade coletiva, cujo futuro é ao mesmo tempo
compartilhado e decidido por uma série de actantes heterogêneos que se en-
tre-definem, as noções tradicionais de redes ou de atores são insuficientes.
Este é o porquê de introduzirmos a noção de ator-rede para descrever estas
múltiplas interações heterogêneas entre actantes eles próprios heterogêneos
que se esforçam permanentemente para consolidar ou para transformar ao
mesmo tempo sua própria identidade, a identidade de outros actantes e a
natureza das relações que os une. O ator-rede forma um conjunto compósito,
cuja constituição (repertório de actantes e de suas relações) está sujeita a
flutuação e cuja extensão evolui, que é móvel em certos lugares e que se
endurece em outros. É ele que permite seguir a evolução conjunta dos con-

13
Sobre esta simetria na análise das associações humanas e não-humanas, ver Callon [1986].
*
N. do T.: “retentir de proche en proche”.
189
A ciência e suas redes

textos e dos conteúdos, assim como sua adaptação permanente. A figura 2


sintetiza tudo o que foi associado, no caso estudado, para definir e autono-
mizar um objeto de pesquisa, para o ligar neste mesmo movimento a um in-
teresse-risco** nacional, e para lhe assegurar a estabilidade necessária ao seu
estudo sistemático.

Ver Figura 2 (Pág. 193 no original)

É à gestão e à consolidação destas múltiplas associações que são devotados


os laboratórios. Estes, como mostra o caso presente, desempenham três
papeis distintos na organização e na dinâmica dos atores-redes das quais eles
são protagonistas. Primeiro, eles permitem concentrar e colocar em relação,
num lugar preciso, os recursos heterogêneos (ou actantes) que têm que ser
mobilizados para construir e fazer funcionar o ator-rede: recrutamento de
pesquisadores e de técnicos, obtenção de contratos, compra e instalação de
equipamentos e de instrumentos de análise, vínculos com as diferentes co-
munidades científicas, assim como com a DGRST e a direção do CNRS... O
segundo papel do laboratório é favorecer a aparição de porta-vozes legítimos,
isto é, não questionados, que asseguram o vínculo entre o interior e o exterior,
entre o trabalho de pesquisa e todos os atores mobilizados. É assim que
Baccala se ergue, no mundo político, como porta-voz único e não questionado
das células de combustível e dos pesquisadores que as estudam, ao mesmo
tempo que ele se impõe, junto aos cientistas trabalhando com o eletrodo, como
porta-voz da DGRST, dos industriais e mesmo da eletroquímica no seu con-
junto. O laboratório, enquanto forma de organização que assegura a legitimi-
dade de porta-voz que domina as operações de tradução, liga deste modo as
entidades heterogêneas, mas de forma simples, inteligível e não controvertida.
Enfim, simplificando as relações complexas entre o objeto de pesquisa e suas
redes sóciopolíticas, o laboratório, para se manter, tem que se transformar, e é
seu terceiro papel, em ponto de passagem obrigatório: não somente ele é um
ponto, mas um ponto pelo qual a passagem é indispensável. Por fim, não há

**
N. do T. Em françês “enjeu”, isto é, mais literalmente, um “cacife” ou uma “aposta” nacional.
190
A agonia de um laboratório

outras questões, para todos aqueles que buscam a independência energética


da França, a não ser apoiar Beauregard sem discussão. Ao invés de ter diante
dela a diversidade infinita da comunidade científica, a DGRST sabe que um
dos aliados sobre os quais ela pode se apoiar para mobilizar a pesquisa de
base é este particular laboratório, que se torna uma entidade simples, uma
caixa-preta cuidada por seu diretor, que exprime todas as potencialidades e
todos os projetos, com a qual nós podemos contar sem ter que entrar no
conteúdo de suas atividades.

Assim novamente mergulhado nos atores-redes que ele contribui para gerir e
animar, o laboratório aparece como um dispositivo essencial para separar e
colocar em relação permanente os conteúdos e os contextos. E por isso a
transformação dos objetos de pesquisa, que passa necessariamente por uma
transformação, e até uma multiplicação, dos atores-redes dentro dos quais age
o laboratório, chega algumas vezes a colocar em questão a própria existência
deste último. É esta aventura que vai viver o laboratório de Beauregard e que
nós vamos agora brevemente apresentar sem entrar no detalhe dos problemas
de pesquisa, mas insistindo sobre sua transformação e sobre aquela simul-
taneidade das alianças que eles estabelecem.

A gestação de um ator-rede: novos problemas e novas alianças

Em 1965 o laboratório de Beauregard consagra uma grande parte de seus


recursos e de suas atividades a estabelecer e consolidar a tradução que liga a
conversão de energias ao eletrodo monotubular. Nós observamos a impor-
tância crescente desta direção de pesquisa em termos de efetivos (de pesso-
al), de publicações, de créditos, de investimentos técnicos... Contudo o labo-
ratório não saberia reduzir-se totalmente ao eletrodo monotubular. A história
que ele herda o conduz a selecionar outros temas e a construir outros objetos
de pesquisa. Estes vão progressivamente se consolidando e contestando o
191
A ciência e suas redes

monopólio do eletrodo monotubular, ainda que se ligando a ele, para chegar a


uma situação em que o próprio laboratório não será capaz de gerir ato-
res-redes tão diferentes, até mesmo antagônicos.

Antes mesmo de ser dada a partida da “ação concertada”, um jovem pesqui-


sador do laboratório, Casto, se viu encarregado por Baccala de desenvolver
um novo método de estudo da cinética das reações na interface eletrodo/ele-
trólito. Esta direção corresponde então perfeitamente às grandes orientações
estratégicas do diretor do laboratório que pretende multiplicar os meios de
investigar a cinética das reações eletroquímicas. Casto se exila na Alemanha
por alguns meses, em um laboratório de boa reputação, de onde ele retorna
trazendo em sua bagagem o método dito da impulsão galvano-estática dupla.
Com sua formação universitária de químico, sua condição de pesquisador
titular do CNRS, que lhe confere autonomia e segurança de emprego, este
método vai constituir o essencial dos seus recursos. Já então tudo o distingue
de Blondelet, metalurgista, adepto dos raios X e de condição de emprego in-
certo.

Em que consiste o método? Ele visa capturar as reações, e principalmente as


velocidades das reações, uma vez estabelecido o equilíbrio elétrico que
acontece algumas frações de segundo após a imersão do eletrodo e de seu
catalizador no eletrólito, isto é, uma vez carregada a camada dupla.

Este método permite a eliminação dos fenômenos que podem mascarar


parcialmente ou mesmo completamente a reação eletroquímica14.

Casto recita sua lição. Ele aprendeu que o eletrodo é a sede de vários fenô-
menos: a) a carga da camada dupla; b) a reação de óxido-redução propria-
mente dita; c) a difusão dos reagentes. O método da impulsão dupla, que é a
partir de então seu método, permite isolar e estudar a reação de óxi-
do-redução. Confrontado com a solicitação de Baccala (estudo da cinética),

192
A agonia de um laboratório

mobilizando os únicos recursos que ele pode mobilizar, Casto conduz expe-
riências que visam capturar em sua pureza a reação eletroquímica propria-
mente dita. A construção de Baccala, estabilizada por Blondelet sob a forma do
eletrodo monotubular, não foi ainda abalada; ela foi simplesmente prolongada.

Mas, nas mãos de Casto, o método da impulsão dupla vai se transformar em


uma temível máquina de guerra. Vê-se rapidamente que a reação eletroquí-
mica pode ser capturada de mil maneiras diferentes, mas nunca em toda a sua
“pureza”. Uma pura reação de óxido-redução, isto não existe! Como prova
[estão] estes resultados que se lê nos mostradores dos instrumentos, e que
variam de uma experiência para outra, dependendo, segundo Casto, do es-
tado de superfície da platina, da qualidade do hidrogênio, da preparação do
eletrodo. Casto controla todos os parâmetros, posiciona todas as variáveis que
perturbam os resultados e nota, desabusado, que “mesmo a natureza da at-
mosfera e a temperatura do recozimento trazem modificações importantes no
valor da corrente de troca e do processo de descarga”.15 O eletrodo monotu-
bular, definido simplesmente por seus componentes e sua estrutura, explode e
se desloca. A questão é só de estado de superfície, de pureza de reagentes,
de preparação do eletrodo. Dito de outra forma, para Casto, o eletrodo mo-
notubular não é uma unidade pertinente: o que conta é a maneira de preparar
as paredes, a maneira em que os reagentes se estabelecem. Não é mais a
distribuição do catalizador e dos poros assim como sua acessibilidade que são
importantes, mas simplesmente o estado do catalizador e o comportamento
dos átomos de hidrogênio sobre esta superfície. A estabilização tentada por
Blondelet não resiste ao método da impulsão dupla e ao uso que Casto faz
dele. Tornando incomparáveis dois eletrodos monotubulares, Casto ataca
implicitamente o ator-rede do qual Blondelet e Baccala são os obreiros prin-
cipais.

14
Relatório de atividades do CNRS [1962].
15
Relatório DGRST [1964].
193
A ciência e suas redes

Diante de um ator-rede tão poderoso, uma experiência e alguns resultados não


bastam para parar ou reorientar as direções de pesquisa a que ele conduz.
Imaginar que nós possamos reduzir a falsificação [invalidação] à sua dimensão
cognitiva somente é esquecer todos os investimentos que permitiram dar au-
tonomia a ela [à dimensão cognitiva], e que precisam ser reconsiderados para
transformar a construção dos objetos de pesquisa e a formulação dos pro-
blemas. A única saída para Casto é se lançar na edificação de um novo
ator-rede portador de problemas de pesquisa que sejam os seus e que seja
suficientemente robusto para os impor aos atores-redes existentes: ele está
condenado a se expandir.

Sua primeira iniciativa o conduz a estabelecer, no próprio seio do laboratório,


alianças visando crescer a suspeita legítima da qual o eletrodo monotubular se
torna pouco a pouco o objeto. Dois outros pesquisadores, Lavillier e Chenin, o
apoiam sem tardar. A aventura deles se parece com a de Casto ponto a ponto:
mesma formação, mesma condição (de emprego), mesma idade, mesma
identificação com um método de análise. Para Chenin, é a micro-termometria.
Para Lavillier, a quem Baccala havia solicitado estudar a camada dupla, é uma
técnica de enumeração dos íons absorvidos. Os resultados que eles obtêm
são tão erráticos quanto os de Casto. Aplicados ao eletrodo monotubular, seus
instrumentos teóricos e técnicos não produzem nenhuma ordem, nenhuma
regularidade. Na língua de Lavillier e de Chenin, assim como na de Casto, os
fenômenos falam contra Blondelet: a absorção e sua medida não conduzem a
nenhum resultado estável, as capacidades de camada dupla se modificam de
um eletrodo para outro e os coeficientes da lei de Tafel (que liga intensidade e
tensão) dependem das condições da experiência.

Além do mais, estes diferentes pesquisadores se esforçam para recrutar ali-


ados exteriores e se lançam em operações de tradução que lhes permitam
estender suas redes para fora do laboratório. O exemplo de Lavillier é parti-
cularmente demonstrativo. Ele dá as costas para todas as equivalências que
conduzem da interface eletrodo/eletrólito à política nacional de conversão de
194
A agonia de um laboratório

energias passando pelos eletrodos porosos ou monotubulares e pelas células.


Ele se volta para a disciplina prestigiosa que é a física dos sólidos, especial-
mente na França, afirmando primeiramente que o estudo da “camada dupla”
(que regula a cinética das reações e o funcionamento do eletrodo) passa pela
análise da absorção de um átomo de hidrogênio sobre uma estrutura metálica,
observando, num segundo momento, que este problema é o prolongamento
natural das questões colocadas pelos físicos dos sólidos. Com efeito estes
dispõem de uma teoria do hidrogênio no interior do metal, mas eles enfrentam
dificuldades ao passar para a situação limite, a fim de dar conta do compor-
tamento do átomo na superfície. Segundo Lavillier este problema não pode
deixar de interessar aos físicos dos sólidos por pelo menos duas razões. Por
um lado, ele representa uma extensão possível de suas teorias; por outro lado,
uma colaboração com os eletroquímicos não deveria ser coisa que os abor-
recesse, pois, aumentando o campo das técnicas de análise disponíveis, ela
permitiria resolver certas dificuldades experimentais encontradas por aqueles
que se esforçavam por criar uma física das superfícies. Realizando o ajuste de
um conceito clássico da física dos sólidos — o de nível de energia — com o
seu conceito de “potencial de eletrodo de referência”, os eletroquímicos ten-
dem a amarrar uma à outra duas profissões que tudo separava. Definindo
problemas comuns com os físicos dos sólidos, Lavillier esforça-se em arrolar
uma disciplina prestigiosa que vem acrescer sua “credibilidade16”. Ele esta-
belece numerosas ligações com o estrangeiro, recebe pesquisadores sovié-
ticos e americanos, participa da organização de escolas de verão onde ele
desenvolve e apresenta sua problemática. Sua reputação junto aos físicos dos
sólidos cresce. Enquanto Blondelet é ainda um pesquisador local cujos prin-
cipais aliados estão situados fora da comunidade científica, ele, Lavillier, teceu
as primeiras malhas de uma rede que o liga a uma comunidade nacional e
internacional organizada e prestigiosa.

16
Latour [1988].
195
A ciência e suas redes

Esta nova relação de forças dentro do laboratório se concretiza na criação de


um grupo informal, denominado G1, do qual Lavillier lança a idéia em 1966 e
que vai rapidamente se transformar em máquina de guerra contra o ator-rede
Baccala. Este grupo de trabalho, que considera como vantajosa a instabilidade
do eletrodo monotubular, reúne todos os “dissidentes”. Os três pesquisadores
mencionados acima pertencem a este grupo, no qual entra Lary que é pes-
quisador na equipe de Blondelet. Lary é politécnico*. Sua formação, suas re-
ferências o prendem à física do sólido teórica, aquela que é desenvolvida na
França por J. Friedel e seus alunos. Ele acha interessantes e importantes os
problemas que lhe são propostos, mas manifesta rapidamente sua oposição
às estratégias escolhidas por Blondelet. Ele toma assim o caminho aberto por
Lavillier, Casto e Chenin. Ele também investe todos os seus esforços em uma
técnica, a RPE, que lhe permite seguir as trocas eletrônicas na interface. O
grupo G1 se torna rapidamente um lugar de reflexão onde uma pessoa se
familiariza com a mecânica quântica, com os elétrons que giram em torno de si
mesmos e com a sensibilidade das reações químicas aos estados de spin.
Simultaneamente, vários engenheiros trabalhando ao lado destes pesquisa-
dores são substituídos na equipe de Blondelet, com a qual eles eram supostos
manter relações de coordenação (cf. supra). Os territórios e as fronteiras co-
meçam a se desenhar.

O reposicionamento estratégico de Blondelet: redefinição de problemas


e de aliados

O eletrodo monotubular, assim como o ator-rede que lhe dá forma e consis-


tência, vacila sob as investidas de Lavillier e de seus aliados. Não são os
únicos ataques que ele sofre. Como vimos, o ator-rede Baccala faz o desen-

*
N. do T.: Esta palavra, no contexto do artigo original, indica um egresso da prestigiosa École
Polytechnique que forma a elite técnica da França.
196
A agonia de um laboratório

volvimento industrial das células de combustível depender estreitamente dos


estudos do eletrodo monotubular. Esta estratégia só faz sentido na condição
de associar os industriais ao empreendimento. Ora, até 1967, a indústria ele-
troquímica francesa se mostra pouco interessada numa colaboração com a
universidade. A conclusão se impõe: para manter o ator-rede e suprir os in-
dustriais, é necessário fazer funcionar uma célula de combustível experimental
e mostrar a validade das equivalências postuladas. Blondelet mobiliza toda a
sua equipe. É 1964. As dificuldades aparecem rapidamente e, segundo o
testemunho do próprio Blondelet e de seus colegas, elas são consideráveis:
“Os catodos tem uma configuração mecânica ruim; os anodos perdem rapi-
damente toda a atividade, esta fraqueza sendo atribuída a um ‘envenena-
mento’ do catalizador.”17 Com o catalizador são igualmente “envenenadas” as
operações de tradução. Aquilo que Blondelet e Baccala haviam ligado se
desfaz sem que seja possível tapar os buracos. Casto e Lavillier não são os
únicos venenos nem os mais perniciosos; os que paralisam a catálise e os
elétrons, da maneira que eles são colocados na experiência, contribuem
igualmente para colocar em questão o objeto de pesquisa e seus desdobra-
mentos industriais. Preso por este torniquete, o ator-rede eletrodo monotubular
vai se redefinir negociando suas relações com a indústria e com Lavillier, es-
tabelecendo duas frentes entre as quais ele vai estabilizar seu campo de
pesquisa.

Quando um aliado com o qual se conta — neste caso a indústria — falha, é


preciso imaginar uma estratégia que o torne menos indispensável. Foi o que
fez Blondelet introduzindo gradativamente uma separação nítida entre as ati-
vidades de pesquisa que ele conduz e as operações de desenvolvimento que
ele deixa para os industriais. A tradução postulada não é, ele sublinha, uma
redução pura e simples. As equivalências, em nome do arbitrário que as ca-
racteriza, têm como principal propriedade a de poder ser denunciadas inclu-
sive por aqueles que as postularam.

17
Relatório DGRST [1964].
197
A ciência e suas redes

Nós trabalhamos com um eletrodo pequeno. Damos todas as características,


parâmetros importantes, condições ótimas. Nós damos os resultados aos
industriais que se viram para fazer um eletrodo tamanho natural.18

Garantido assim na frente que ele define como tecnológica (não se poderá
mais censurá-lo por suas escolhas de pesquisa sob o pretexto de que elas não
são diretamente eficazes no plano industrial), Blondelet se dedica a se pro-
teger no seu outro flanco. Ele manda para lá Pelletier, seu colaborador fiel. A
missão que ele lhe confia é clara: reduzir o mais rapidamente, e por todos os
meios possíveis aí incluída a teoria, as instabilidades e as irregularidades das
quais Lavillier e seus aliados se fizeram os porta-vozes. Pelletier se dedica à
missão tirando do estoque de teorias disponíveis aquela que ele é capaz de
dominar e que lhe permitirá abrir um interminável desvio do lado da física do
sólido. A escolha se impõe bastante rapidamente a ele: “A teoria dos orbitais,
correntemente utilizada pelos metalurgistas, é um método concreto que per-
mite previsões.” 19 Ele opõe assim a eficácia a curto prazo desta teoria às
promessas talvez mais excitantes, mas que ele estima menos diretamente
rentáveis, da teoria dita dos “efeitos de tela” desenvolvida pelos físicos do
sólido e mantida por Lavillier e seus colegas no próprio seio do laboratório de
Beauregard. A operação de estabilização assim realizada é tanto mais hábil
quanto ela organiza vias de passagem: sobre certos pontos, por exemplo, o
problema da absorção, as teorias podem, segundo a opinião do próprio Lavil-
lier, se completar: “Agora as questões estão colocadas e mais ainda, bem
colocadas. Cabe a nós elaborar as teorias que respondam a elas.”20

Para conduzir esta dupla reorientação a bom termo, Blondelet conta sempre
com o apoio de Baccala. Este utiliza seu crédito no seio do comitê da ação
concertada (AC) para obter a recondução de importantes financiamentos fa-
voráveis às pesquisas sobre as células de combustível. Entre 1964 e 1972,

18
Entrevista com Pelletier.
19
Nota de trabalho, 1969.
198
A agonia de um laboratório

80% dos artigos co-assinados pelo diretor do laboratório são artigos saídos da
equipe células de combustível. Além do que, os efetivos desta equipe são
mantidos no mesmo nível e a importância relativa do número de técnicos não é
modificada.

Blondelet não seria capaz de se contentar com esta transformação-conso-


lidação local de seu objeto de pesquisa. Ele tem diante de si um ator-rede que
se estende cada vez mais longe no exterior do laboratório, se apoiando sobre
disciplinas inteiras, seus laboratórios e suas autoridades prestigiosas. É certo,
por intermédio de Baccala, ele dispõe ainda do apoio de uma agência gover-
namental, mas este aliado poderoso não tardará a tomar consciência da
re-orientação do programa de Beauregard e a reduzir os créditos que concede.
Então o que Blondelet perde de um lado (o apoio da DGRST), ele vai poder
recuperar se abrindo para novas alianças. Esta abertura será a conseqüência
indireta do reposicionamento estratégico de Blondelet cujos problemas de
pesquisa se situam a partir deste ponto em algum lugar entre o desenvolvi-
mento industrial e a física fundamental. Nesta reconstituição de novas alian-
ças, o acontecimento decisivo é o apoio fornecido por EDF que vê numerosas
vantagens na estratégia desenvolvida por Blondelet: constituição de um saber
teórico diretamente assimilável pelos industriais para produzir baterias mais
atraentes que aumentarão o consumo de eletricidade; bom observatório para
acompanhar o progresso dos fundamentalistas e julgar o realismo dos projetos
consagrados às células de combustível; forte competência em certos campos
eletroquímicos que interessam diretamente a EDF (estocagem de energia
elétrica). Apoiado e reconhecido, se beneficiando da estratégia da EDF que faz
de tudo para devolver o vigor à indústria eletroquímica, Blondelet se torna um
interlocutor privilegiado. Ele obtém muito rapidamente que lhe confiem alguns
postos chaves: participação na comissão DGRST de especialistas em gera-
dores eletroquímicos, participação no comitê “Economia do hidrogênio”, pre-
sidente da comissão de reflexão do CNRS sobre energia, participação no

20
Entrevista com Lavillier.
199
A ciência e suas redes

comitê ATP sobre eletroquímica. Em todas estas comissões ele reencontra


representantes da EDF. É assim que o novo ator-rede-Blondelet se estende e
desenvolve pseudópodos em todas as direções, consolidando ao mesmo
tempo seus problemas de pesquisa, suas escolhas teóricas e experimentais e
as novas alianças que permitem que ele os imponha.

Os atores-redes estão em posição e atingiram sua maturidade: objetos de


pesquisa, recursos financeiros, teorias, alianças, pesquisadores formam con-
juntos coerentes indissociáveis. De um lado o ator-rede Blondelet-Baccala, de
outro, aquele que agrupa os “teóricos”; entre os dois, frágeis passarelas. O
confronto de onde resultará a morte do laboratório se torna pouco a pouco
inelutável entre estas duas forças que procuram cada uma acrescer seus re-
cursos, estender sua influência ou, em outros termos, consolidar os fatos ci-
entíficos que eles produzem e os contextos que os utilizam.

O confronto

O confronto se enceta em torno de um interesse-risco comum, que é o da


definição, do futuro e daquilo que alguns chamariam da institucionalização da
eletroquímica.

Tanto para um como para o outro ator-rede, o interesse-risco disciplinar é com


efeito considerável. Isto é claro para Blondelet que, pelo seu reposicionamento
estratégico, se afastou das aplicações industriais imediatas, mas também para
Casto e os outros que têm que marcar suas diferenças das disciplinas presti-
giosas que eles ladeiam mas com as quais eles não desejam se fundir. Todos
estão à procura de apoios institucionais que lhes assegurem um reconheci-
mento oficial assim como os recursos materiais ou humanos necessários a sua
200
A agonia de um laboratório

sobrevivência ou a sua expansão. Num movimento conjunto eles delimitaram


um novo território entre a indústria e disciplinas fundamentais solidamente
estabelecidas. Mas a reformulação dos problemas de pesquisa, tal como ela é
operacionalizada no campo fechado de Beauregard, tem como principal con-
seqüência recolocar em questão alianças institucionais anteriores. A DGRST
não está pronta para sustentar um empreendimento que se distancie muito das
missões que lhe são atribuídas. Conseguir o apoio durável de organizações
que ocupem o espaço abandonado pela DGRST e que estejam prontas para
um engajamento de longo prazo se torna então prioritário. O CNRS é um bom
candidato. Os pesquisadores de Beauregard vão se dedicar a transformar o
desinteresse inicial do CNRS (desinteresse que havia deixado o campo livre
para a DGRST) em interesse ativo. Mas se os protagonistas estão de acordo
quanto a obter este apoio, eles não são movidos pelos mesmos projetos.
Blondelet e Casto militam igualmente pela restauração e pelo reconhecimento
da eletroquímica no seio da instituição científica oficial, mas não é a mesma
eletroquímica que eles defendem. Uns lhe dão uma definição aplicada e a
apoiam sobre recursos teóricos assegurados; outros a vêem como uma dis-
ciplina fundamental onde serão obtidos conhecimentos decisivos sobre
questões tão novas e estratégicas quanto a físico-química de superfícies.
Quem vai ganhar? O desfecho do conflito dependerá, bem entendido, dos
aliados que cada um será capaz de mobilizar ao redor de suas orientações de
pesquisa, quer dizer, de sua capacidade de interessar atores poderosos.

O acontecimento decisivo se dá em 1978. A batalha ardia fazia alguns meses.


Sua intensidade culmina no momento da nomeação de um conselheiro para
eletroquímica junto a direção do CNRS. A escolha resulta de lutas. Ela é es-
sencial porque ela reforça incontestavelmente o prestígio da eletroquímica
(que dispõe a partir daí de um porta-voz junto a um membro influente do
CNRS) e sela seu reconhecimento institucional. A disciplina existe enquanto tal
no seio do CNRS que marca assim sua vontade de sustentá-la. Mas esta
nomeação coloca claramente em desvantagem uma das duas tendências

201
A ciência e suas redes

presentes. Ela traduz a vontade da direção geral do CNRS de privilegiar os


eixos de pesquisa que permitam reforçar as cooperações julgadas muito raras
entre pesquisadores do CNRS e o setor industrial. Blondelet é o grande ga-
nhador da operação. O responsável científico da EDF que é nomeado para
este cargo desde muito tempo colaborou com ele e sustenta sem reservas
suas orientações de pesquisa e seus objetos de estudo. A aliança feita com o
CNRS não é o apoio acordado por uma instituição a uma disciplina, mas por
uma direção geral a um ator-rede que definiu de uma maneira singular o que
são a disciplina e suas orientações.

Lavillier não demora a sofrer as consequências disso:

Lancei a idéia de uma escola de verão. Solicitamos ao CNRS que financi-


asse. O diretor científico, depois de consultar seu conselheiro para eletro-
química, disse: prove-nos que isto interessa aos industriais.21

Este apoio firme à rede de Blondelet se revela tanto mais eficaz porque este
conselheiro é nomeado no mesmo momento presidente do comitê da ATP do
CNRS intitulado: Energia e Eletroquímica. A isto convém acrescentar a aliança
que Blondelet faz com os eletroquímicos organicistas que, se interessando
pouco pela interface e mais pelo eletrólito, estão prontos para resistir à colo-
nização do eletroquímica pelos físicos. Este apoio é tanto mais precioso por-
que, no seio do CNRS, a eletroquímica está ligada ao departamento de quí-
mica.

De um lado, Blondelet e sua rede “francesa”, cujas ramificações penetram a


indústria, as agências governamentais, as empresas públicas, as instituições
científicas. Do outro, Lavillier e sua rede internacional implantada nas univer-
sidades, atravessando especialidades prestigiosas e se aliando a elas. Cada
um destes atores-redes definiu e posicionou seus objetos de pesquisa tor-
nando-os solidários a todas as alianças feitas para os consolidar. Entre os

202
A agonia de um laboratório

dois, pontos de encontro, relações de troca, lutas pela definição dos problemas
mas também pelo controle de recursos e de posições, pela colocação hie-
rárquica. O laboratório transborda de todos os lados. As oposições internas ao
laboratório correm ao longo das redes. Elas são apanhadas mais adiante por
outros atores que as amplificam. Os choques, sobretudo quando portadores
dos aspectos mais estritamente científicos, colocam em briga a EDF, o CNRS,
empresas e comunidades científicas inteiras.

O laboratório impossível

No começo dos anos 1980 a existência de Beauregard se torna cada vez mais
problemática. A dinâmica do confronto entre os atores-redes fêz explodir o
laboratório que não é mais capaz de desempenhar os três papeis antes as-
sinalados:

a) Baccala progressivamente perdeu a capacidade de concentrar e mobilizar


os recursos necessários às pesquisas em curso. Ele está situado dentro de
redes que se rasgam ou, pior, que se tornam inúteis, em relação aos novos
objetos de pesquisa de seu laboratório. Blondelet precisa do apoio ativo dos
industriais para obter os contratos e financiar suas pesquisas, do apoio do
CNRS para recrutamento de pessoal e para os equipamentos: construindo sua
própria rede ele soube se colocar em posição de reunir todos estes recursos.
Quanto a Casto e os seus, a situação é um pouco menos brilhante: Baccala
lhes é inútil, mas eles só receberam encorajamentos limitados do CNRS e não
podem contar com as empresas; eles já sonham ir para a Universidade ou se
juntar a outros laboratórios melhor colocados.

b) O laboratório não dispõe mais de um porta-voz (seu diretor) mas de diversos


porta-vozes que estão longe de falar em uníssono. Beauregard é uma justa-

21
Entrevista com Lavillier.
203
A ciência e suas redes

posição de subconjuntos entre os quais nenhuma mobilização comum é pos-


sível. Externamente, Blondelet fala por uma facção que ele representa, tal
como o faz Casto, e não por um conjunto cuja existência não é mais reco-
nhecida por ninguém. Internamente, o peso que lhe é conferido pela EDF e
pelos industriais, e que faz dele um porta-voz poderoso, não excede contudo
as fronteiras de sua equipe.

c) Beauregard se tornou progressivamente o campo fechado de lutas ferozes.


Isto porque sendo Baccala incapaz de tornar o seu laboratório indispensável
nas redes que são as suas, ele também não é capaz de ser indispensável a
seus pesquisadores: ele está à frente de tropas que vão em direções dife-
rentes daquelas que conduzem às alianças que ele pacientemente preparou.
Ele se torna pouco a pouco um ponto de passagem não-obrigatório: as redes
são desfeitas; mercados e produtos, ofertas e demandas são desconectadas.
Baccala se vê no entre-lugar, intermediário sem comanditários, tradutor sem
público. Quem quer passar por Beauregard para fazer avançar seus projetos
(industriais ou cientistas) arrisca se perder lá, envolvido pelos confrontos que
paralisam o laboratório. A caixa preta se abriu bruscamente. O laboratório não
é mais do que ruído, furor e discórdia: os problemas correm a todo tempo o
risco de aí serem enterrados, amortalhados nos conflitos. Não é mais um lugar
pelo qual se passe com os olhos fechados, mas um lugar a ser evitado. Por
todas estas razões o laboratório se tornou um obstáculo ao bom funciona-
mento e ao desenvolvimento dos atores-redes que ele abriga.

A crise se instala abertamente quando Baccala se aposenta. Nenhum su-


cessor se apresenta porque ninguém é capaz de reunir o que está desagre-
gado, de propor e de impor perspectivas teóricas, de redefinir disciplinas in-
teiras, de conter e de juntar estas forças cujas ramificações mergulham longe
nas instituições científicas, na administração ou nas empresas. O laboratório
se tornou um quadro organizacional vazio, uma forma sem matéria. Os ato-
res-redes que ele abriga produziram suas próprias regras, seus próprios re-
cursos, suas próprias relações, suas próprias trocas, seus próprios problemas;
204
A agonia de um laboratório

eles dominam a circulação dos conhecimentos que eles produzem. Beaure-


gard, suas paredes, seus corredores que comunicam suas salas umas às ou-
tras, suas escadas que interligam os andares dos teóricos àqueles dos pes-
quisadores aplicados, tornam-se um espartilho insuportável que paralisa o
funcionamento dos atores-redes ao invés de consolidá-los. Blondelet saí com
armas e bagagem para se instalar em outro lugar e recriar um laboratório.
Afastando-se, ele fecha um capítulo importante da história movimentada do
laboratório.

Comentários finais

Tentamos mostrar neste estudo que a construção dos objetos de pesquisa, a


produção dos conhecimentos assim como a criação dos mercados nos quais
eles circulam são indissociáveis do conjunto das estratégias pelas quais os
atores-redes se edificam, se estendem ou se retraem. Autonomizar saberes,
ligá-los uns aos outros, definir problemas, escolher técnicas experimentais,
recrutar técnicos, obter diplomas, co-assinar um artigo, financiar pesquisado-
res, fazer contratos, controlar uma comissão, tais são algumas das numerosas
operações que se entrelaçam permanentemente para assegurar o funciona-
mento dos atores-redes.

A construção dos fatos científicos é inseparável da construção dos ato-


res-redes, simplesmente porque aos pesquisadores se colocam simultanea-
mente a questão da fabricação de enunciados e de dispositivos novos e a
questão de sua difusão ou de sua aceitação. O caso apresentado mostra que
nós não seríamos capazes de explicar a construção dos fatos científicos sem
seguir os pesquisadores dentro de seus laboratórios. Além disso coloca em
evidência a necessidade de ligar os laboratórios aos atores-redes que eles
gerem e que algumas vezes os fazem explodir.

205
A ciência e suas redes

A noção de ator-rede sublinha os limites dos estudos que, explícita ou impli-


citamente, se fecham entre as paredes de um (ou de vários) laboratório(s).
Observar, por exemplo, o trabalho dos pesquisadores ao redor de sua labuta,
analisar em detalhe as micronegociações que eles fazem ao redor de seus
espectrômetros sem resituar estas observações no contexto dos atores-redes
e das relações de força que eles cristalizam ou fazem flutuar, é se expor a não
compreender como são definidos os limites do negociável, como são fixadas
as posições relativas dos protagonistas, os recursos que eles são capazes de
mobilizar, assim como o peso dos argumentos desenvolvidos, etc. Quando
Lavillier, em 1962, escapa do eletrodo monotubular onde se havia tentado
enfurná-lo, os problemas que ele formula, os objeções que ele levanta e os
procedimentos experimentais que ele conserva fazem parte da relação de
forças que se instaura entre ele mesmo e o ator-rede Baccala. Não se com-
preenderia as escolhas “cognitivas” de Lavillier se se contentasse em observar
os debates internos do laboratório ao invés de ver que o confronto opõe a
poderosa DGRST a um jovem pesquisador, físico de formação. Da mesma
maneira, o reposicionamento de Blondelet, que se concretiza na transforma-
ção de seus objetos de pesquisa, leva em conta tanto o desinteresse relativo
dos industriais como a contra-ofensiva que ele tem que empreender face aos
ataques de um novo ator-rede.

Da mesma maneira, autonomizar as estruturas organizacionais de um labo-


ratório ou a divisão de trabalho ali reinante, é desconhecer que as transfor-
mações ou reorganizações das quais elas são o objeto são governadas por
jogos estratégicos que se desdobram no seio dos atores-redes. Quando em
1965 é criado o grupo G1, o que acontece é um novo episódio da guerra dis-
farçada a que estão entregues Blondelet e Lavillier. A constituição deste grupo
se inscreve na longa seqüência de operações que conduzem ao desenvolvi-
mento da teoria dos orbitais contra a teoria das telas. O mesmo vale para a
“tecnicização” do laboratório cuja significação não pode ser encontrada fora
das estratégias de consolidação internas ao ator-rede Baccala. Em todos os
casos, é preciso seguir os atores-redes que se transformam e se consolidam
206
A agonia de um laboratório

estabilizando um objeto de pesquisa, associando novos recrutas ou criando


novas estruturas organizacionais. Então aparecerá que a elaboração de uma
teoria ou o oferecimento de um novo serviço são estratégias alternativas entre
as quais os atores escolhem em função das circunstâncias.

Seria igualmente um erro não ver nos laboratórios nada além de puros e sim-
ples centros de produção e difusão de conhecimentos científicos. Antes de
tudo porque uma tal definição apaga a diversidade de seus modos de funci-
onamento reais. Laboratórios-fábricas, laboratórios-estúdios, laboratórios de-
finindo sua própria política ou ao contrário laboratórios realizando as escolhas
efetuadas por outros, laboratórios de atividades diversificadas e laboratórios
especializados em um só campo: seria muito longa a lista que mostraria a
variedade de situações conceptíveis, isto é, a variedade de posições dos la-
boratórios no seio dos atores-redes. Mas o essencial é compreender como um
laboratório delimita, organiza, gere e transforma o ambiente no qual ele difunde
os conhecimentos que ele produz, ambiente este que, em troca, lhe concede
margens de manobra. Nesta perspectiva a noção de ator-rede adquire toda a
sua significação, pois ela permite ligar a produção dos conhecimentos com a
conformação dos sistemas sociais nos quais estes conhecimentos são avali-
ados e utilizados. Os atores-redes elaboram teorias, ajustam técnicas expe-
rimentais e, simultaneamente, adotam ofertas e demandas, definem e hie-
rarquizam posições, fixam os interesses e organizam as relações entre as
instituições. Assim Blondelet, escolhendo o tamanho e as características de
seu eletrodo monotubular, definiu os interesses relativos da Universidade e da
indústria, a divisão de tarefas entre pesquisa fundamental e pesquisa aplicada
assim como o círculo da concorrência, e este conjunto heterogêneo se reor-
ganiza ao mesmo tempo que ele reformula seus problemas de pesquisa. Vi-
sualizados nesta perspectiva, os laboratórios são as unidades flutuantes que
se deformam com os atores-redes que os atravessam e os estruturam. Para
estes, o controle e a organização do laboratório representam apostas (inte-
resse-risco) de grande porte, como bem mostra a estratégia de Blondelet que

207
A ciência e suas redes

concentrou seus esforços no seio do seu laboratório no primeiro tempo, para


em seguida estender seu império. Inversamente, e a história aqui narrada
testemunha isso, a formação e a extensão dos atores-redes e dos fatos que
eles produzem conduzem algumas vezes à destruição ou ao remodelamento
de laboratórios que entravam seu desenvolvimento.

Referências: ver o original em francês.

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