1) O documento discute a obra e a correspondência do etnólogo Curt Nimuendajú, notando como seus escritos inéditos continuam despontando e acrescentando novos aspectos à compreensão de seu trabalho.
2) Nimuendajú dedicou sua vida à pesquisa etnológica e à defesa dos direitos indígenas, convivendo com muitos povos e registrando detalhadamente suas culturas e instituições sociais.
3) Suas cartas fornecem novos insights sobre seus métodos de pesquisa participativa
1) O documento discute a obra e a correspondência do etnólogo Curt Nimuendajú, notando como seus escritos inéditos continuam despontando e acrescentando novos aspectos à compreensão de seu trabalho.
2) Nimuendajú dedicou sua vida à pesquisa etnológica e à defesa dos direitos indígenas, convivendo com muitos povos e registrando detalhadamente suas culturas e instituições sociais.
3) Suas cartas fornecem novos insights sobre seus métodos de pesquisa participativa
1) O documento discute a obra e a correspondência do etnólogo Curt Nimuendajú, notando como seus escritos inéditos continuam despontando e acrescentando novos aspectos à compreensão de seu trabalho.
2) Nimuendajú dedicou sua vida à pesquisa etnológica e à defesa dos direitos indígenas, convivendo com muitos povos e registrando detalhadamente suas culturas e instituições sociais.
3) Suas cartas fornecem novos insights sobre seus métodos de pesquisa participativa
Professora do Departamento de Antropologia USP Pesquisadora do CEBRAP Resumo: Em 2000 foi editado em Portugal o livro Cartas do Serto de Curt Nimuendaj para Carlos Estevo de Oliveira. Textos do etnlogo inditos em portugus continuam, por sua vez, despontando em revistas especializadas, atestando o interesse dessas etnografias realizadas na primeira metade do sculo XX, a partir de trabalho de campo pioneiro.Este artigo considera que as cartas padro de relato diverso daquele que caracteriza as monografias etnogrficas descritivas, gnero no qual Nimuendaj se consagrou acrescentam novo aspecto a sua obra. Palavras-chave: Histria dos ndios, americanismo tropical, Arqueologia. Curt Nimuendaj nasceu alemo em 1883 e morreu brasileiro em 1945 em uma aldeia tikuna no Alto Solimes. Naturalizara-se brasileiro em 1922 com o nome que recebera dos andeva-Guarani em 1906, nome que significa fazer moradia (Nimuendaj, 1987: 32). Com o nome guarani, ganhava uma causa. Em Nimongara deixava registradas as impresses da cerimnia de seu batismo indgena, realizada em uma fria madrugada de dezembro e firmava um compromisso: quando o sol (...) nasceu atrs da floresta, iluminava um novo companheiro da tribo dos Guaranis que, apesar da sua pele clara, compartilhou com eles lealmente no curso de dois anos a misria de um povo agonizante. (Nimuendaj, 2001a: 149). De fato dedicou sua vida militncia indigenista e pesquisa etnolgica, atividades praticadas de maneira intensa. Conviveu com um grande nmero de sociedades indgenas de - 174 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA todas as regies do Brasil, ao mesmo tempo em que manteve dilogo com o americanismo que se ensaiava timidamente nos museus de etnologia da Europa e dos Estados Unidos. Nos ltimos anos Nimuendaj voltou cena editorial, com a publicao de uma tese que destaca a vida e obra do etnlogo (Grupioni, 1998). Sua correspondncia foi publicada em parte pelo Museu Nacional de Etnologia de Lisboa, que apresenta em edio ilustrada
(Nimuendaju, 2000) a coleo de cartas que Nimuendaj endereou a seu amigo Carlos Estevo de Oliveira, na poca diretor do Museu Paraense Emlio Goeldi. O ltimo nmero da revista Mana traz dois de seus textos inditos em portugus(2001a e 2001b), a Revista de Antropologia, por sua vez, publica no presente volume Excurses pela Amaznia, texto originalmente publicado em alemo 1 . O interesse redobrado pela obra do etnlogo, parte dela ainda indita em portugus e dispersa em instituies nacionais e estrangeiras, d mostras que os artefatos de inspirao culturalista que soube esculpir como ningum no incio do sculo, a partir de experincia de campo pioneira, ganham com o tempo maior valor 2 . Sua correspondncia se acrescenta a este acervo como pea de valor inestimvel para os interessados na histria dos ndios, do indigenismo no Brasil e dos estudos americanistas. Nimuendaj produziu valiosos registros etnogrficos da maioria dos grupos indgenas que visitou, como As lendas da criao e da destruio do mundo como fundamentos da religio dos Apapocuva-Guarani, monografia considerada uma das obras-primas da etnologia brasileira (Viveiros de Castro, 1987). Seu empenho em etnografar a complexa organizao social dos grupos J 3 contribuiu, por sua vez, para que a moderna reflexo etnolgica de David Maybury-Lewis e Claude Lvi- Strauss pudessem avanar sobre bases seguras nas dcadas de 1950 e 1960. Nimuendaj registrou de forma meticulosa as instituies amerndias e o resultado obtido, como ele mesmo tinha conscincia, na maioria das vezes superou o conhecimento de sua poca: em matria de americanstica comentava em sua visita ao Museu de Etnologia - 175 - REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2001, V. 44 n 2. de Gotemburgo, na Sucia em 1934 eles que podiam aprender de mim, esta a dura verdade (2000: 213). Utilizava uma metodologia s mais tarde consagrada pela antropologia, que conjugava controle da lngua nativa, longa permanncia com os ndios e imerso no modo de vida das comunidades indgenas. Conscincia emprica e limpidez etnogrfica so atributos reconhecidos na obra de Nimuendaj at por autores que, como Florestan Fernandes (1975: 119), cobraram do etnlogo alemo maior elaborao interpretativa do material apresentado. Deslocava-se sozinho para as aldeias, evitando tanto quanto possvel a companhia de outros pesquisadores ou aparatos que considerava incompatveis com um tipo de investigao que dependia exclusivamente da aceitao pelo grupo visitado, da generosidade da hospedagem e, acima de tudo, da extrema pacincia dos ndios para ensinar. Cartas do Serto Nimuendaj inventariou instituies nativas ainda quando delas restava apenas a frgil memria de uma anci. Em visita ao Posto Paraguau, na Bahia, em 1938, conheceu Dona Jacynta Grayira uma das ltimas falantes da lngua , que ouvia com dificuldades, mal compreendendo as questes formuladas pelo etnlogo sobre o parentesco. Dona Jacynta interessou-se, entretanto, pelo teatro de bonecos que Nimuendaj improvisou com caixas de filmes e garrafas vazias, dispostos em uma mesa para representar os parentes falecidos e o grau de parentesco entre eles. Ao final de um ms de rduo trabalho o etnlogo contava com o inventrio dos termos de parentesco na lngua Camac, alm de lendas e um vocabulrio da lngua. Dona Jacynta e seus numerosos parentes lucraram com a reforma de sua casinha e com mantimentos provi- denciados pelo etnlogo durante sua estadia (Grupioni, 1998: 191-94). Neste e em outros casos so as cartas de Nimuendaj que revelam mtodos e tcnicas de etnografia, uma arte do relacionamento humano que o etnlogo soube to bem cultivar. - 176 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA Sua correspondncia acrescenta, assim, novo aspecto a uma j consagrada obra etnolgica e indigenista. Suas cartas so verdadeiras crnicas das mudanas que se processavam entre as sociedades indgenas do serto do Brasil. Nelas, Nimuendaj mostra-se s voltas com a histria, a sua prpria histria de imigrante alemo que aporta no Brasil. O tema da histria e das mudanas vertiginosas do perodo do entre- guerras aparecem, por exemplo, quando o etnlogo retorna Alemanha em 1934 e no reconhece sua terra natal sob a roupagem opressiva, montona e sombria da propaganda nazista. Ironicamente, a condio de alemo levar Nimuendaj a ser tomado mais de uma vez como espio a servio da Alemanha na Amaznia, tanto por ndios como pelos civilizados. Tais desconfianas infundadas levaram Nimuendaj a desistir de pesquisar os Sater-Mau, povo que o recebeu com hostilidade na dcada de 1920, insuflados contra espies alemes (Nimuendaj, 2000). Na dcada de 1940 a xenofobia partia do Conselho de Fiscalizao das Expedies Artsticas e Cientficas no Brasil (Grupioni, 1998: 203- 43) e repercutiu no contexto local das aldeias Tikuna, onde o etnlogo foi encontrado morto, num episdio envolto em mistrio. Indigenismo As cartas revelam principalmente as histrias dos ndios, muitas das quais Nimuendaj figurou como protagonista em graus variveis de engajamento. Nas primeiras dcadas do sculo XX o Estado brasileiro inaugurava uma nova forma de atuao junto s populaes indgenas. Criado o Servio de Proteo aos ndios(SPI) em 1910, impunha-se uma orientao leiga e de inspirao positivista no trato com essas sociedades. Foi um perodo de profundas transformaes da poltica indigenista e de criao de novos instrumentos de mediao entre o Estado e as populaes indgenas, diverso das premissas da Catequese e Civilizao adotadas pelo governo do Imprio, que havia encarregado as misses catlicas da questo indgena. Nimuendaj foi crtico mordaz - 177 - REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2001, V. 44 n 2. das premissas do programa civilizador conduzido pelo Estado e a Igreja catlica junto aos ndios. O etnlogo ingressou no Servio de Proteo aos ndios em 1910, instituio que propunha, entre outras inovaes, o respeito reli- giosidade, lngua e a toda forma de expresso das tradies nativas. Foi demitido em 1915, por denncias de espionagem, voltando a atuar no perodo de 1921-1923, quando foi novamente demitido (Grupioni, 1998: 177). Manteve, entretanto, ao longo da vida contato com alguns de seus funcionrios e com a instituio, para a qual prestava servios espordicos. Arrojado e firme nas decises, Nimuendaj compunha o grupo de indigenistas que a inspetoria contava para implementar o novo programa, juntamente com Horta Barbosa, Bento Pereira Lemos e Jos Maria da Gama Malcher. O grupo trabalhou na pacificao de populaes indgenas, na transferncia de aldeias, operacionalizou intervenes a favor dos ndios nos conflitos por questes territoriais com os cristos. Tambm participou na reformulao da poltica indigenista leiga do Estado republicano. A correspondncia com Carlos Estevo de Oliveira se d no momento em que Nimuendaj, aos 43 anos de idade, vinte dos quais passados entre os ndios, abandonava definitivamente o Servio de Proteo aos ndios e optava por se dedicar aos estudos etnolgicos. Nas Cartas do Serto, escritas do Araguaia, do Tocantins, das aldeias xerente, canela, maw, ecoam a um s tempo a denncia do extermnio fsico dos ndios que se processava cotidianamente no interior do Brasil e o sentido do exerccio da cincia antropolgica na primeira metade do sculo XX: o salvamento das preciosidades indgenas. Preciosidades indgenas A expresso foi utilizada pelo etnlogo ao se referir cermica arqueolgica de diferentes padres encontrada na superfcie das ruas de Santarm (esta mina inesgotvel de cermica), em Alter do Cho, - 178 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA no Amap, ou na Ilha Caviana na foz do Amazonas, evidncia da diversidade das culturas pr-coloniais que outrora habitaram a regio amaznica. Aplicava-se, da mesma forma, a um certo tipo de antropologia que se exercia por meio da coleta sistemtica da cultura material e do registro lingstico das sociedades indgenas consideradas na poca fadadas a desaparecer ou a se aculturar. A montagem de colees de arqueologia ou de artefatos indgenas correspondeu a uma atividade significativa da etnologia praticada no sculo XIX at as primeiras dcadas do sculo XX 4 e, ainda que no de forma exclusiva, Nimuendaj tambm se dedicou tarefa. Entre 1922 e 1927 o trabalho do etnlogo foi em grande parte orientado pelo interesse dos museus europeus em adquirir colees de arqueologia e de artefatos indgenas. Excurses pela Amaznia nos remete ao contexto especfico das investigaes conduzidas pelo Museu de Gotemburgo, na Sucia, e ao mapeamento das reas culturais que caracterizaram a ocupao pr- colonial da Amrica. Assim, a primeira excurso de Nimuendaj Ilha de Maraj, em 1922, buscava identificar os montculos (mounds) e cemitrios de urnas, evidncias arqueolgicas que na maioria dos casos esto associadas a enterramentos humanos. Em Santarm observou superfcie da terra estratos culturais extraordinariamente interessantes e ricos sobre os quais a atual cidade est edificada e assim construiu a hiptese que ali seria o ponto de difuso da cultura tapaj. Pesquisas posteriores em Alter do Cho, bidos e Amap buscaram delinear os limites geogrficos da cultura Santarm. Os diferentes tipos de cermica encontrados na regio documentavam, por sua vez, a complexidade da histria do povoamento da foz do Amazonas. As excurses ao rio Madeira e ao Oiapoque tiveram da mesma forma objetivos arqueolgicos, que no se cumpriram muitas vezes devido explorao comercial dos terrenos, outras pela total descaracterizao das evidncias, com o desbarrancamento das margens dos rios. Nimuendaj entrava em contato, entretanto, com as populaes indgenas vivas, e - 179 - REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2001, V. 44 n 2. comeava a considerar que talvez fosse esta a tarefa mais imediata a ser cumprida pela etnologia. A passagem para uma segunda fase dos trabalhos do etnlogo, marcada por novos interesses, paradigmas cientficos e parcerias, se d ao final da dcada de 1920, estando o pesquisador ainda envolvido com obrigaes assumidas com museus europeus de montagem e remessa de colees de etnologia. Neste sentido, Cartas do Serto cumpre a funo de ser um guia das colees arqueolgicas e da cultura material das sociedades indgenas do Brasil reunidas por Nimuendaj, depositadas at 1927 nos museus de etnologia da Europa e a partir da dcada de 1930 nos EUA e nos museus brasileiros. Aqui, a orientao segura garantida pelas notas bibliogrficas de Thekla Hartmann, que buscam localizar as colees dos artefatos amerndios, assim como identificar a rede de cientistas suecos, alemes, holandeses e norte-americanos que estiveram no Brasil na primeira metade do sculo XX estudando os ndios, entre os quais se destacam os nomes de Alfred Metraux, Nils Erland Nordenskild (1877-1932), Fritz Krauze (1811-1963), Theodor Koch-Grnberg (1872- 1924), Felix Speiser (1880-1949) 5 . Em uma verdadeira corrida contra o tempo no salvamento das culturas nativas, percorria-se as terras indgenas em busca de sociedades dignas de serem etnografadas. Estabelecendo um gradiente dos estgios de contato da populao indgena, Nimuendaj considerava, por exemplo, a Aldeia do Ponto dos ndios Canela uma verdadeira mina etnogrfica, onde se poderia estudar instituies sociais e religiosas dos Timbira em toda a sua extenso (Nimuendaj, 2000: 139). Dispunha na outra extremidade do gradiente do contato os Mura, os Sater-Mau, os Mundurucu, os ndios do rio Negro, os Palikur do Oiapoque, populaes indgenas em estado avanado de aculturao e, portanto, quase sem valor para a pesquisa etnogrfica da poca. Nimuendaj alertava para a necessidade da etnologia dedicar-se de forma sistemtica aos Timbira e a outros povos J do Brasil Central e - 180 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA desvendar os intrincados aspectos de sua organizao social. A corrida de toras (2001b: 151-94) uma bem-sucedida demonstrao que fornece as peculiaridades dos J e o incio de uma segunda etapa de trabalhos do etnlogo, marcada pela parceria com Robert Lowie, etnlogo radicado nos EUA, ligado ao Departamento de Antropologia da Universidade de Berkeley, Califrnia. Nimuendaj realizava por meio da etnografia desta prova de atletismo usualmente interpretada pelos regionais como uma dana ou prova de casamento uma explanao sobre a organizao sociocerimonial que orienta as regras daquelas sociedades, que envolve alm das metades, as classes de idade, os ciclos de festas, os grupos de pintura. Roberto DaMatta (1992) chama a ateno para a qualidade dos trabalhos de Nimuendaj inaugurados nesta fase J, fato que atribui parceria com Lowie, que formulava de Berkeley questes para serem respondidas em campo por Nimuendaj, dotando a investigao de um suporte terico ausente em outros dos seus trabalhos. Aculturados O interesse cientfico de Nimuendaj declinava visivelmente diante das populaes indgenas consideradas em grau avanado de aculturao. Se os Palikur, apesar de horrivelmente creolizados, portavam ainda uma interessante cultura material o que possibilitava a realizao de colees museolgicas quase nada havia a dizer dos Mura do rio Madeira: Hoje estes restos dos Mura so etnograficamente quase sem valor. Nimuendaj percorreu as 25 aldeias mura em 1926, calculou sua populao em 1.150 pessoas, mas constatava que as tradies esto esquecidas, a lngua quase extinta. Talvez se tivesse chegado trinta anos antes... (2000: 94). No rio Negro, que esteve a servio do SPI em 1927, observava tambm que a decadncia da cultura indgena espantosa; todos para isso se coligam (: 111). No caso do rio Negro, identificava os padres salesianos como os principais agentes das mudanas, denunciando - 181 - REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2001, V. 44 n 2. que os religiosos apresentavam suas medidas como vontade do Governo (2000: 94). Entre os Guajajara em 1929, surpreende-se ao ver as ndias com cabelos la garonne danar ao toque da harmnica e ainda convidaram-me para fazer parte (: 135). Nimuendaj chegou a cunhar um neologismo Schlammbugrismo (sendo schlam = lama) para se referir ao estado de aviltamento fsico e moral dos ndios Kaingang e Xokleng do sul do pas e das populaes indgenas em geral, quando em contato com a sociedade nacional. Buscando reagir contra um estado geral de desnimo que reconhecia nos colegas indigenistas e nele prprio, recomendava que se lanasse mo do estudo das organizaes sociais indgenas, atividade que considerava um verdadeiro elixir para reanimar os ndios a cultivarem suas tradies. Em sua opinio, a simples presena de algum interessado nas tradies indgenas operava na maioria das vezes uma reverso no processo gradativo de aculturao. Relata que estimulados pela presena do etnlogo, os ndios do rio Negro realizaram revelia dos missionrios catlicos o que julgava ser um ltimo ritual Jurupari. Constatava algo semelhante entre os Xerente, os Apinay e os Ticuna: seu interesse pela morfologia social, pelas cosmologias, sua presena atuante nos conflitos com fazendeiros e patres na condio de representante do Estado faziam ressurgir das cinzas rituais e instituies nativas aparentemente esquecidas. Assim, a narrativa que acompanhamos por meio da correspondncia de Nimuendaj constitui um padro de relato diverso daquele que caracteriza as monografias etnogrficas descritivas, gnero no qual Nimuendaj se consagrar. As cartas trazem uma reflexo pessoalssima sobre, afinal, de que matria se constitua a alteridade indgena e o quanto esta estava ameaada pelas vicissitudes do contato com os brancos. Por vezes esta reflexo de dentro da cena humana que estava sendo narrada supera os vaticnios que pairavam sobre o futuro dos ndios. Escrevendo de uma aldeia xerente, Nimuendaj mostra que a histria podia pregar suas peas na antropologia de vis culturalista - 182 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA praticada na poca. O etnlogo registrava em 1937 sobre os Xerente que (2000: 263) seu ideal, ser to refinado e velhaco como os cristos, eles realizam plenamente e completava: no entanto, vi sobressair, em p ainda, naquele monto de escombros e lixos, alguns esteios de antigo edifcio: por exemplo, at hoje no conseguiram se livrar da lei da exogamia das moities. Os Xerente conservavam-se ndios e cnscios do valor da tradio, ainda que cauterizados com todos os cidos da civilizao. Tal conservadorismo xerente amparava-se no carter profundamente mstico e religioso que se notava em alguns indivduos. Constatava, afinal, que os ndios podiam realizar de forma peculiar a incorporao dos valores da civilizao crist. Nimuendaj, no entanto, compartilhava com o indigenismo de sua poca a posio que os ndios deveriam ser protegidos contra as ameaas que pairavam sobre eles, vindas das esferas regionais. O recurso que o poder central lanava mo para garantir tal proteo era ainda o princpio jurdico da Tutela dos ndios, herana do governo do Imprio, mantida pelo Servio de Proteo aos ndios (e tambm pela Funai at h pouco tempo), que considerava a populao indgena incapaz de se auto- governar. Assim, a antropologia do incio do sculo XX fazia vistas grossas ao regime da tutela dos ndios, que incapacitava legalmente o ndio. Talvez por considerar tal constrangimento conveniente s bravatas quixotescas contra as mudanas culturais e em prol da manuteno intacta das preciosidades indgenas. Incorriam, sem dvida, em excesso de zelo. Em uma das cartas que escreve dos Xerente, Nimuendaj conta que recebera o nome de Seliemti, o mesmo que davam a D. Pedro II que ainda hoje (1930) vive na memria deles como a personificao da bondade e sabedoria (2000: 159). A memria do Imperador foi tambm registrada entre os Sater-Maw (Figueroa, 2000) e entre os Krah (Melatti, 1970; Carneiro da Cunha, 1986), populaes indgenas que, como os Xerente, viveram no sculo XIX a experincia dos aldeamentos indgenas implantados por D. Pedro II. A presena do etnlogo alemo, articulando um discurso favorvel aos ndios, reavivava naquelas - 183 - REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2001, V. 44 n 2. sociedades a memria de jornadas passadas. Ali, quase um sculo antes, estiveram outros europeus interessados nos ndios, os frades capuchinhos italianos que falavam em nome do Imperador D. Pedro II, figura tornada lendria naqueles sertes indgenas. Entre os Tikuna em 1941, no centro de um movimento messinico em gesto nos igaraps, Nimuendaj percebe estar sendo confundido com algum ser mstico, algum que podia trazer notcias do heri cultural Dyi. Evento estrangeiro aportando nas sociedades indgenas, ele mesmo seria traduzido de mltiplas formas, todas elas ancoradas na cosmologia e no repertrio mtico dos povos visitados. Engajado no seio das atribulaes das sociedades indgenas, Nimuendaj subestimou, talvez, a capacidade dos ndios lidarem com as mudanas. Elas, na maioria das vezes, no conduziam pela via nica que dava acesso civilizao crist. Ao contrrio, diante de seus olhos delineavam-se novas histrias das populaes indgenas que a antropologia se dedica atualmente a interpretar. Para o trabalho das novas geraes de etnlogos americanistas, sempre bem-vinda a reflexo de Curt Nimuendaj. Notas 1 Original em alemo Streifzuege in Amazonien, publicado em Etholo-Anzeiger (Stuttgart, 1929-1932, vol. II: 90-7). 2 Ver Grupioni (1998) tanto para bibliografia, inventrio dos manuscritos e da correspondncia de Curt Nimuendaj, como para a localizao das instituies que tm sob a guarda seu acervo. 3 Trs monografias marcam a fase J na obra de Nimuendaj: The Apinaye, 1939; The Sherente, 1942 e The Eastern Timbira, 1946. 4 Sobre a predominncia alem na etnologia indgena nesta fase, ver Melatti (1983). 5 Caberia uma observao aos editores da correspondncia de Nimuendaj. O leitor se ressente da ausncia de ndices temticos (onomstico, das etnias, - 184 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA geogrfico), imprescindveis em obras do gnero. As anotaes da professora Thekla Hartmann, por sua vez, dispostas no final do volume em corpo de letra pequenssimo, receberam um tratamento grfico que no condiz com a importncia da contribuio que prestam ao volume. Bibliografia CARNEIRO DA CUNHA, M. 1986 Lgica do mito e da ao. O movimento messinico canela de 1963, in Antropologia do Brasil. Mito, Histria, Etnicidade, So Paulo, Brasiliense. DAMATTA, R. 1992 Relativizando o Interpretativismo, in CORRA, Mariza & LARAIA, Roque (orgs.), Roberto Cardoso de Oliveira: homenagem, Campinas, UNICAMP. FERNANDES, F. 1975 A investigao etnolgica no Brasil e outros ensaios, Petrpolis, Vozes. FIGUEROA, A. 2000 O Imperador dos Sater-Mawe, in RICARDO, Carlos Alberto (org.), Povos indgenas no Brasil 1996-2000, So Paulo, Instituto Socioambiental (ISA). GRUPIONI, L. D. B. 1998 Colees e expedies vigiadas. Os etnlogos no Conselho de Fiscalizao das Expedies Artsticas e Cientficas no Brasil, So Paulo, Hucitec/ANPOCS. NIMUENDAJ, C. 2000 Cartas do Serto de Curt Nimuendaj para Carlos Estevo de Oliveira, Apresentao e Notas Thekla de Hartmann, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia/ Assrio & Alvim, Coleo Coisas de ndios. 2001 Nimongara, Mana, vol. 7(2): 143-49. 2001 A corrida de toras dos Timbira, Mana, vol. 7(2): 151-94. - 185 - REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SO PAULO, USP, 2001, V. 44 n 2. MELATTI, J. C. 1970 O sistema social Khah, So Paulo, tese, Departamento da Antropologia, USP. 1983 A Antropologia no Brasil: um roteiro. Trabalhos em Cincias Sociais, Srie Antropologia, n. 38, Universidade de Braslia. VIVEIROS DE CASTRO, E. 1987 Nimuendaj e os Guarani, in NIMUENDAJ, Curt. As lendas da criao e destruio do mundo como fundamentos da religio dos Apapocuva-Guarani, So Paulo, Hucitec. - 186 - MARTA ROSA AMOROSO. NIMUENDAJ S VOLTAS COM A HISTRIA ABSTRACT: In 2000, a book entitled Cartas do Serto de Curt Nimuendaj para Carlos Estevo de Oliveira (Letters from the Backlands by Curt Nimuendaj to Carlos Estevo de Oliveira) was published in Portugal. The appearance of Nimuendajs previously unpublished writings in Portuguese attests to the interest which continues to be shown in regard to this early twentieth century ethnographer and his pioneer fieldwork. By focusing on the ethnographer's letters, a literary genre which is distinct from the descriptive ethnographies for which he is better known, this article examines a new dimension of Nimuendajs work. KEY WORDS: Native American History, Tropical Americanism, archeology. Recebido em dezembro de 2001.