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O Ator

Guerreiro
frente ao abismo
por
Andrea Copeliovitch
O Ator
Guerreiro
frente ao abismo
por
Andrea Copeliovitch

Natal
2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Reitor: José Ivonildo do Rêgo
Vice-Reitora: Ângela Maria Paiva Cruz
Diretor da EDUFRN: Herculano Ricardo Campos
Editor: Francisco Alves da Costa Sobrinho
[...] Abismo (Abgrund) significa originalmente o solo e o fundo ao qual tende o
Capa: xxxxxxxxxxxxxx
que está suspenso na borda do precipício. Portanto, no que se segue, o ‘a’ de abismo
Coordenação de revisão: Risoleide Rosa será pensado como a ausência total de fundamento. O fundamento é o solo para
Normalização: Glessa Santana um enraizamento e uma presença.

Preparação de texto: Fátima Maria Dantas da Costa A época na qual o feito limite está suspenso no abismo.

Editoração eletrônica: Infinita Imagem A supor que neste tempo de angústia uma reviravolta está ainda reservada, esta
reviravolta não poderá acontecer a não ser que o mundo vire de ponta a cabeça, e
Supervisão editorial: Alva Medeiros da Costa isto significa agora unicamente: se ele vira a partir do abismo. Na idade da noite
Supervisão gráfica: Francisco Guilherme de Santana do mundo, o abismo do mundo deve ser sentido e suportado. Porém, para isto, é
necessário que haja alguns que alcancem o abismo.

Divisão de Serviços Técnicos


Catalogação da publicação na Fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede Martin Heidegger1

Copeliovich, Andréia.
O ator-gueirreiro frente ao abismo / Andréa Copeliovich. - Natal, RN:
EDUFRN, 2008.
ISBN - 978 - 85 - 7273 - 462-2
1. Ator. 2. Teatro.
I. Título.
CDD 792.028
1 Heidegger, Chemins Qui ne mènent nulle part – “Pourquoi des poétes?
RN/UF/BCZM 2008/98 CDU 7.071 […] Abîme (‘Abgrund’) signifie originellement le sol et le fond à quoi tend ce qui
est suspendu au bord du précipice. Pourtant, dans ce qui suit, le ‘a’ de abîme
Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN sera pensé comme l’absence totale du fondement. Le fondement est le sol pour
Campus Universitário, s/n – Lagoa Nova – 59.078-970 – Natal/RN – Brasil un enracienement et une prestance. L’âge auquel le fait défaut est suspendu
dans l’abîme.
e-mail: edufrn@editora.ufrn.br – www.editora.ufrn.br
A supposer qu’à ce temps de détresse un revirement soit encore réservé, ce
Telefone: 84 3215-3236 – Fax: 84 3215-3206 revirement ne pourra survenir que si le monde vire de fond en comble, et cela
signifie maintenant tout uniment: s’il vire à partir de l’abîme. Dans l’âge de la
nuit du monde, l’abîme du monde doit être éprouvé et enduré. Or, pour cela, il
faut qu’il y ait certains qui atteignent à l’abîme.
Agr adecimentos
Muitas pessoas contribuíram para que eu pudesse finalizar este texto que conta
muito da minha história, do meu percurso. E eu agradeço por cada encontro ao
longo dessa trajetória, cada encontro no caminho é um encontro com o mestre.
Um grande encontro nesses últimos anos, foi com meu Orientador, Manuel
Antônio de Castro, a quem agradeço pela enorme disponibilidade e
generosidade de ensinar, pela escuta e pela presença.
Agradeço aos professores do departamento de Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialmente Antônio
Jardim, que foi quem me trouxe para cá, pelas discussões, pelas aulas
apaixonadas; Eduardo Portella, por ter acreditado em mim fazendo com que
eu também acreditasse; Angélica Soares, pelo carinho e pela visão feminina
do mundo e João Camillo, pela paciência e incentivo.
Aos mestres de kung fu, Allan Goes, Brás Goes e Ricardo por me ensinarem
a superar limites.
À amiga Heloísa Pait, pelas correções, conversas e amizade.
Ao amigo e interlocutor José Guilherme Dias de Oliveira por ter me acompanhado
em boa parte desse labirinto a que o meu pensamento me levou.
Ao Carlos Eduardo Ortolan que foi, em muitos momentos, o meu Corifeu.
Aos “amigos de fé, irmãos, camaradas”, Lisete Pecoraro e Sérgio José
de Oliveira, que também me acompanhou nesse percurso universitário,
especialmente em várias pesquisas de campo.
À Doutora Marluce Aguiar Rojas, interlocutora e ouvinte, pela companhia.
A Mauro Escobar Saad, que viabilizou todo o começo do meu Doutorado,
sempre me incentivando e arcando com despesas por acreditar naquilo que
eu estava fazendo.
Ao meu irmão Fábio Copeliovitch, que também escolheu caminhar pelas
veredas, pelos livros.
Às minhas tias Maria e Cecília por me estenderem a mão quando eu precisei.
A meu pai, Simão Copeliovitch, que me deu livros e jogos de ciência, em invés
de bonecas, que sempre disse sim, por esse amor silencioso.
À minha mãe, Ruth Schiper, que assumiu o peso e as responsabilidades dessa minha
empreitada, lendo, cedendo computador, casa, imprimindo trabalho, levando
texto na casa do orientador e sempre com muito amor e muita generosidade.
Na USP:
À Professora Ana Maria Amaral, que começou esta pesquisa comigo.
Em Campinas:
A Luiz Otavio Burnier (in memoriam) que me ensinou o que é ser ator e o que
é ser guerreiro.
A Arnoldo de Hoyos que me abriu as portas para o mundo da espiritualidade
e que me ajudou com as primeiras leituras de Carlos Castaneda.
A essas mulheres maravilhosas que me iniciaram no mundo da dança: Inaycira
Falcão, Regina Müller, Diane Ichmaru e Gracia Navarro.
Ao meu orientador no Laboratório de Etnocenologia, Jean- Marie Pradier,
pela recepção e pela oportunidade de desenvolver parte da minha pesquisa
na Maison des Sciences de L’Homme e na Universidade de Paris VIII e a
Armindo Bião, pela confiança e pelo contato.
A Bruce Meyers por ter me apresentado a esse grande mestre, Peter Brook
(apesar de eu mal conseguir balbuciar algumas bobagens). Para Ruth e para Marina
A John Somers pela oportunidade e facilidade de apresentar meu trabalho
na Inglaterra;
A Bartek Zaniewski, grande amigo, que trouxe a espiritualidade e o horizonte
de volta à minha vida.
Ao guerreiro Nikos Govas, por ter apostado no meu trabalho
A todo o pessoal do grupo Trnet , especialmente Betty Giannouli e Mary Kaldi.
Ao pessoal de Syrus, especialmente Eva Trianta Philidou (por dias
maravilhosos na ilha).
À Capes (pela bolsa PDEE) e à CNPq (pela bolsa de doutorado).
O teatro, o Leitor
Guerreiro e a Cir anda

Manuel Antônio de Castro

O leitor está diante de um livro original porque originário. Qual a


diferença destas duas palavras e deste livro? Formalmente, ele foi
apresentado como Tese de Doutoramento. De modo ger al, as pessoas
entendem por isso algo especializado, numa linguagem acadêmica
que ninguém entende, a não ser um pequeno grupo, introduzido nesse
vocabulário que só eles dominam.
Não é o caso do presente livro, embora não dispense um esforço
constante de pensamento, porque ele é uma Tese de Poética, em que
se procura compreender a essência do teatro. Este, se não atinge um
vasto público, pelo menos se dirige a um grande público. Porém, o
livro não se centraliza, não tem como tema o público, mas o próprio
teatro em seu sentido e essência poéticos. Por isso, o livro é original e
originário.
Não se iluda o leitor se pensar que vai encontrar respostas ou pretenda
ampliar os seus conhecimentos sobre o teatro, como irá supor aquele
que freqüente e tenha interesse pelo teatro. Não vai encontrar respostas.
Só questões. Toda questão, se é questão, não se encerra numa resposta
que afirma este ou aquele conhecimento, no caso o conhecimento
sobre o teatro. A questão não pode se esgotar numa resposta. Só aceita
a resposta que reinstale a questão numa nova pergunta. Nesse jogo e
dança de questão, pergunta, resposta e nova pergunta, acontece o teatro conhece. Nesse sentido, ela me enviou recentemente um ensaio, para
como um diálogo permanente e originário que acaba por se constituir ser publicado no número 171 da Revista Tempo Brasileiro, cujo tema
numa ciranda, aquela dança, canto e teatro em que os atores-cantores é: Atualidade e permanência da poética, que termina com o seguinte
se alternam num círculo poético e dialógico, mas movidos e inscritos poema de sua autoria, onde reafirma o seu compromisso de vida com
nas questões. Não se trata neste livro de quaisquer questões, mas o teatro como uma obra de arte, a vida como uma ciranda, inscrita
daquelas em que o humano do homem se dá como questão originária, como uma questão que sempre quer ser poética:
enquanto experienciação teatral. Sobretudo aquelas que lançam o ser
humano no teatro-ciranda da vida e da morte, as questões sempre
radicais sem resposta. Porém, são elas que nos lançam na ventura e Ciranda
aventura poética da travessia teatral da vida. Travessias, fatos e pontes que se impõem no horizonte
Andrea Copeliovitch é visceralmente teatral, porque é visceralmente Se recolhem nos recantos, recônditos encantos
poética. Por isso, tem o compromisso permanente com o original
e o criativo. Isto significa que, para ela, o cotidiano, o repetido e o Criam e recriam as faces fluidas do meu ser,
ordinário do viver têm de ser experienciados sempre no e pelo vigor Ser de água, ser de morte e ser de novo
da presença do extra-ordinário. É o que ela vai expor no livro, como
sendo o Ator Guerreiro. O que é isso – o Ator Guerreiro? A tentativa Abertura do mar vermelho, branco, roxo, infinitude de cores, de ondas,
de resposta exige do leitor que entre no jogo-dança da Ciranda das Inexplicável
questões e se torne um Leitor Guerreiro. Como? Não apenas lendo –
de fora – este livro, mas que aceite o desafio com que a autora o vai aos Inexplicável atravessar o mar
poucos envolvendo no entre-tecer da trama da obra e sua leitura. Para Um passo, afunda, mais um passo, mais afunda, mais passos, e mais
isso, Andrea Copeliovitch mostrou sua capacidade criativa e poética, fundo
concebendo o livro – Tese - de forma realmente inusitada e insólita.
E se o mar não abrir?
O leitor está diante de um livro que fala sobre teatro e atores na forma
de uma peça teatral, onde os personagens são a própria autora e os Não, essa pergunta não, apenas o caminhar mar adentro, assim se faz
pensadores e criadores com quem dialoga. Esta idéia – absolutamente arte. O mar vai abrir,
apropriada ao tema proposto – tem, em relação ao leitor, um sentido
E se não abrir, morreremos, sem saber da noite que foi diferente das outras
muito especial e poético. Ele não deve nem pode ser aquele leitor
tantas vezes repetida
espectador que se coloca de fora e à parte do que está acontecendo no
palco do livro, da vida. Não. A densidade, profundidade e perspicácia Já não tento entender...
das questões que os personagens levantam e propõem o pro-vocarão Questões se sobrepõem às travessias, aos fatos e às pontes
constantemente a participar do diálogo e, portanto, a se tornar
também um personagem, um Ator-Leitor Guerreiro, na Ciranda das Na incompreensão, apago o que já sei, o que já escrevi
questões em que vigorou, vigora e vigorará sempre o teatro. Na folha em branco, o espaço vazio esperando (ou não) pela resposta.
A autora nasceu com o dom de ser questionadora, de ser poética, de
abominar os conceitos das respostas prontas. Isso o leitor constatará
ao mergulhar no presente livro. Esperamos e temos certeza de que o Leitor Guerreiro também participará
desta Ciranda, onde e quando o teatro se faz vida poética.
Uma outra qualidade desta obra inovadora é a prática cada vez mais
necessária em nossos dias da interdisciplinaridade. Com uma ressalva:
o que ela – como Atriz Guerreira – faz é interdisciplinaridade poética,
onde não só se deve conhecer algo, mas ser essencialmente o que se
Sumário
Introdução ................................................................. 17
1 Nietzsche e o Caminho do Criador
ou A atriz e o caminho das questões ......... 21
Cena I: Breve Interlúdio entre a
atriz e o Filósofo ......................................................................... 21
Cena II: A atriz conversa com seus botões,
refletindo sobre suas próprias reflexões
numa simulação de infinito ....................................................... 30
Cena III: O ator e o espaço vazio ........................................ 38
Entreato: A atriz troca e-mails com seu
dileto interlocutor e tenta aproveitar
tanta filosofia de botequim e de Os
Pensadores desperdiçada on-line ......................................42

2 O poeta revisita a Pólis enquanto a atriz


lança um novo olhar sobre as questões
a partir de Heidegger, da física da
instabilidade e da Física quântica............... 54
Cena I: Lisbon Revisited ............................................................ 54
Cena II: A interpretação pelos olhos
da intérprete .................................................................................. 56
Cena III: As ciências, deus meu, as ciências .................. 64
Cena IV A metafísica: ................................................................... 72
Cena V: Platão expulsa o poeta da Pólis. ...................... 78

3 Propostas de Artaud para ultrapassar


o teatro tradicional ............................................ 82
Cena I:O teatro hoje: breve diagnóstico ..................... 82
Cena II:A arte no mundo/ O teatro e a peste ............. 93
Cena III:O teatro e a culturaou A questão
do vil metal...................................................................................... 95
Cena IV: As sombras ou o duplo .......................................... 99
Cena V: O teatro ritual e mágico ...................................107
Cena VI: Breve elegia ...............................................................111
Cena VII: A relação ator-espectador .............................113
Cena VIII: O ator alquímico ................................................115

4 O Deus Andarilho .............................................121


Cena I: Dioniso.............................................................................121
Cena II: Dioniso e o teatro ..................................................125
Cena III: Ho mythos ..................................................................133
Brevíssimo intermezzo entre a atriz e o Filósofo
Novamente, temos apenas a atriz e o
Filósofo na boca do palco ..................................................140

5 O Guerreiro de Carlos Castaneda e a


proposta de um ator guerreiro nascido
desta eclosão do poético ...............................144
5.1 Em busca dos mitos modernos ...................................144
Cena I: Castaneda e a trajetória do herói ...............144
Cena II: Os críticos ...................................................................148
Cena III: A estrutura do mito ou o
percurso do herói ....................................................................155
5.2 O ator .........................................................................................170
Cena I: Os dois frades..............................................................170
Cena II: Sobre personagem ...................................................172
Introdução
Cena III: O jogo e o sagrado ...............................................183
Cena IV: Quebrando o mundo ..........................................187
Cena V: O eu e a máscara.........................................................189 Escrevi várias introduções para este trabalho, mas sempre que as entregava
Cena VI: A dança do inusitado .........................................195 para meu orientador, Manuel Antônio de Castro, ele dizia: “A introdução
5.3 O guerreiro e o teatro ...................................................197 é a última parte”. Ontem terminei o texto e, de fato, acordei hoje com uma
Cena I: A ação do guerreiro ..............................................197 necessidade imperativa de introduzir. No fim, volto ao princípio... talvez seja
Cena II: O guerreiro ................................................................199 uma forma de tornar hermenêutico meu texto, talvez seja uma forma de não
Cena III: O guerreiro diante da morte ........................201 finalizar o meu pensamento.
Cena IV: Os inimigos ................................................................205
Cena V: O ponto neutro e a Sagrada Família ...........209 O fim.... Eu termino o texto com a última dança do guerreiro, da qual fala
Castaneda. É a dança que o guerreiro dança na hora de sua morte. Ele dança
6 Proposta prática: Grotowski – reflexão os grandes combates da sua vida, tendo a morte como espectador. Essa dança
sobre a essência do agir ....................................213 é a imagem mais perfeita para toda a busca que eu venho fazendo como
Cena I: O último discurso ....................................................213 atriz de um processo pré-expressivo para o ator que o ajude a constituir uma
Cena II: A ação .............................................................................217 linguagem própria. Não é só uma imagem, mas um acontecimento, um ponto
Cena III: O teatro .......................................................................221 para onde minha vida vez por outra parece convergir. Minha dispersão cessa
Cena IV:O ator ..............................................................................223 naquele instante, e A grande ave dourada bate asas para o céu2 e alça um vôo
Cena V: A linguagem .................................................................227
fantástico, embriagante.
Cena VI: O encontro ................................................................231
Quando eu morava em Paris, fui visitar um grande amigo na Polônia, país
7 A conclusão, a morte e as questões ......235 de onde vem o meu avô. Como quase toda a nossa família foi dizimada na
Cena I: As questões ....................................................................235
Segunda guerra, minha mãe me pediu para acender uma vela em uma igreja
Cena II: O último ato ...............................................................241
Referências ....................................................................................247 pelas suas almas. Era meu penúltimo dia na Polônia e eu levei a tal da vela,
mas não consegui achar uma igreja aberta. Mais tarde, eu e meu amigo saímos
para dançar e comemorar nossa última noite. Era um club noturno e tocava
músicas tipo techno, mas de repente começou a tocar um samba. Aquele samba
me carregou, me disse quem eu era e eu comecei a dançar, dançar, dançar tudo

2 Do poema Dispersão de Mário de Sá Carneiro. “A grande ave doirada bateu


asas para o céu, mas fechou-as saciada, ao ver que alcançava o céu”.
18 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 19

que eu fui, que eu sou, minha alegria de estar naquele país tão distante do Para adquirir essa impecabilidade é necessário armazenar energia, saber que
qual tinha saído meu avô há setenta anos. Dancei minha alegria de estar viva, só se pode carregar o estritamente necessário, que muito do que aprendemos
de ser livre, de dançar. E foi essa dança que eu dancei para os meus ancestrais não vai nos servir, que viver o presente é diferente de carpe diem.
mortos, dancei até as lágrimas, até perceber que não havia ninguém mais na
O ator como guerreiro é caçador, e não vítima do tigre das emoções.
pista, que as pessoas tinham parado para olhar. Naquele momento, eu fui esse
guerreiro, esse feiticeiro capaz de parar o mundo. Mas foi um momento, um Este caminho do guerreiro não é uma promessa de felicidade, nem mesmo
momento que foi aberto no tempo pela minha emoção. uma promessa de que quem o percorre se torne um guerreiro, é só um
caminho árduo, como os caminhos dos atores de Grotowski e de outros
Grotowski já havia dito que a emoção é como um tigre, você não pode domá-
mestres: um caminho no qual é preciso humildade para saber que não se sabe,
la, ou cavalgar sobre ela. É preciso aprender a parar o mundo, a dançar para
e é preciso fé para prosseguir, fé apesar do discernimento. Quem lê os livros
a morte, mas no momento desejado, e se é sobre o palco que o ator deseja
de Carlos Castaneda sabe que um dos seus maiores inimigos, senão o maior
fazê-lo, ele o fará, se é na sua salinha de ensaio, será na salinha de ensaio.
no caminho do conhecimento foi a sua aptidão intelectual e, no entanto,
Grotowski pregava uma disciplina férrea para tornar os atores mestres de suas
foi ela que permitiu-lhe tornar seu caminho, obra. Se ele conseguiu ser um
ações, e sua última fala 3 pode ser compreendida como: “não pare onde seu
“Homem de conhecimento”? Isso não podemos saber.
mestre parou, é seu dever ir além, caminhar por seus próprios pés”.
Na minha compreensão intelectual, eu vejo que ser um guerreiro é a
Existe a questão da técnica: Stanislawiski, Grotowski, Artaud, Barba,
única maneira de se viver e, no entanto, eu me pego jogando paciência no
Meyerhold... todos esses grandes nomes do teatro desde o século XX têm
buscado uma técnica, um método para o trabalho do ator. E esses termos computador, assistindo à novela das sete, matando o tempo, ao invés de viver
já estão cheios de significados metafísicos, como se um método ou a técnica impecavelmente. Eu me pego me lamentando e culpando o mundo pelos
fossem a resposta para a questão da arte. Mas não são, são apenas elementos infortúnios que a minha vida possa me causar, desmoronando à primeira dor
do caminho, mas sobre os quais é fundamental refletir, refletir sobre o ator e o de dente, à tentação da adequação e da vida tranqüila. O guerreiro em mim
domínio do movimento e da emissão de energia que esse movimento produz. se entristece. Eu digo: “Somos humanos.” Mas será que esse marasmo que
deixamos tomar conta de nós é realmente humano? Ecce homo... Sei que meu
Que ator é esse? Nos dias de hoje, com a televisão, os programas tipo reality percurso no teatro e a minha pesquisa intelectual me deram um vislumbre
show e as novelas, qualquer um pode ser ator, “artista”. O naturalismo sobre desse caminho do guerreiro, e é por isso que eu falo dele, na esperança que
a cena, de certa forma, dá margem a isso. Tudo o que aparentemente o ator
esse falar se transforme em agir, na esperança que o meu orgulho por escrever
precisa é reproduzir a linguagem e a movimentação quotidiana em cena. Se
esse livro de sei lá quantas páginas se transforme em humildade suficiente
pensarmos, por exemplo, na experiência de Artaud ao assistir ao teatro de Bali,
para aceitar o que o destino me der, e que o meu discernimento seja para
a questão da técnica fica bem mais clara: o que se faz em cena não tem nada
a ver com a linguagem quotidiana, existe toda uma linguagem de códigos me agarrar ao que a vida me oferecer, desfrutar dessa oferenda, sugar até o
e ações a ser aprendida por cada um que decida se tornar um ator. O teatro sumo, “con-sumar”, como sempre fala o meu orientador, Manuel. Depois de
é diferente do quotidiano. Outros, como Grotowski e Barba perceberam a consumar, espero ter desprendimento para seguir adiante.
necessidade de diferenciar a arte desse nosso quotidiano fragmentado. E eles, Muitos podem dizer que toda essa ideologia é ultrapassada, hippie, em vários
em sua prática, mostraram que fazer essa diferenciação passa invariavelmente momentos do texto eu até brinco com isso porque nem eu mesma sei... talvez
pela técnica. Mas o que é exatamente esta técnica? E como ela fica em relação seja, se pensarmos enquanto ideologia, enquanto conceito. Mas se deixarmos
à arte do ator? Como pensar em uma técnica que não seja um método, uma de lado as ideologias e os conceitos? E se formos mais ousados na nossa forma
porta que se fecha sobre a questão da arte nem uma resposta para as grandes de pensar e pensarmos no ator guerreiro como poiesis?
questões do homem? Foi no percurso das questões que nos deparamos com o
caminho do guerreiro de Carlos Castaneda. Quando eu testemunhei a Ação4 dos atores de Grotowski, quando eu vejo
algumas obras de arte, como as obras de Van Gogh, que possuem uma força
O guerreiro é um homem em busca de conhecimento. O que o distingue de
um homem comum, além de sua busca, é sua impecabilidade.
4 O trabalho que o grupo de Grotowski e Thomas Richards vinha desenvolvendo
3 Ver capítulo 6, cena I: O último discurso. no Workcenter de Pontedera.
20 O Ator Guerreiro frente ao abismo

que não se pode explicar através da crítica, da estética, eu entendo que não
estou falando de uma ideologia, mas de uma proposta, não ousaria dizer, uma
proposta de vida, mas uma proposta de questionamento, de atitude, de ação. E
o que é ação, afinal? Por que Grotowski chamou o seu trabalho final de Ação?
Aqui é importante ressaltar a questão da busca de uma linguagem para esse
questionamento, busca que eu venho fazendo em conjunto com meu orientador,
com meus professores com quem tive aula no Departamento de Ciência da
Literatura da UFRJ, Antônio Jardim, Eduardo Portella, Angélica Soares, que
me acolheram... a mim, que sou atriz, leiga nestas questões da linguagem, da
filosofia, e me ajudaram a transformar minhas questões em linguagem e minha
linguagem em questão, ou imagem/ questão5 como diz o Manuel.
Todos nós sonhamos ser alguma coisa que acabamos por não ser, a compreensão 1 Nietzsche e o Caminho
de sonho para nós está ligada ao intangível. Há o “sonho americano”, o sonho
de consumo (e aqui o consumo não é chegar ao sumo, mas, simplesmente, do Criador ou A atriz e o
adquirir), o homem dos sonhos... o sonho é o devaneio, é como o tigre indomado.
O que acontece quando se aprende a agir no sonho, como Castaneda ensina6? caminho das questões
Súbito, o sonho vira realidade, não a realidade dos sonhos, mas a realidade de
estar desperto, esperto para lidar como o inusitado
Se alguém perguntar o porquê do se fazer,
E realidade passa a ser algo que jamais imaginamos. Não sabemos nada sobre Responde-se o porquê do perguntar.
ela. Não sabemos mais nada. Resta-nos percorrer o caminho das questões. O tecer não tem um porquê enquanto ato de entrelaçar.
José Eduardo Gramani7

Cena I:
Breve Interlúdio entre a atriz e o Filósofo8

| Disse a atriz ao filósofo:


– Não entendo bem o que tu falas. Meu pensamento não atua como o
teu: as palavras remetem-me a imagens, a fatos que li ou que me foram
contados, preciso imaginar os personagens, que trazem consigo histórias,
que por sua vez me remetem a outras histórias, que remetem a outras
histórias e, em sua infinitude me fazem chegar a deus, que é uma forma
de acabar com essa agonia que é meditar sobre o infinito, de me ver tão só
e tão pequena frente ao infinito, sem amarras e sem garantias, a encarar,
como único ponto fixo a possibilidade da morte.

5 Vide: Castro, A questão e os conceitos, 2007. 7 Gramani, “Além de Olinda” in Mexericos da Rabeca.
6 Castaneda ensina em seus livros a sonhar de forma lúcida, ou seja, escolher 8 Esse texto inicial está baseado no texto de Nietzsche, “Do caminho do
as ações a serem tomadas ao invés de ser levado por elas como costuma criador”, Assim falou Zaratustra. p. 77-80. Todas as falas do Filósofo sem nota
acontecer no sonhar quotidiano. de rodapé pertencem a este texto.
22 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 23

Então, mein Herr, quando perguntas se quero me refugiar na solidão, Olho para o abismo e temo ante o mar de fantasmas que posso encontrar
neste momento único e presente em que nos encontramos assim, através dele.
brevemente, fortuitamente, em que estamos apenas os dois aqui, sei que
O enjôo me toma. Tenho medo de refletir sobre os fantasmas, sobre a
é a mim que te diriges. Apesar da tua pergunta e da tua morte serem
ilusão, tenho medo de pensar que aqueles que conheço e acredito amar
tão anteriores ao ponto do meu nascimento. Neste momento, assumo o
sejam, também, fantasmas.
papel de tua interlocutora, e minha função, como atriz, é tornar vivo este
diálogo. Para este papel despojo-me de meu orgulho e atiro-me a teus pés Tu me olhas e tenho medo de ser, eu mesma, um fantasma. Aí, como
na ânsia de compreender-nos: teu texto e o papel que nele represento. que dando forma a meus receios, tu me perguntas se tenho força e direito
para tomar essa decisão. Tenho vontade de vomitar, de virar-te as costas
A peça passa-se em um espaço vazio.
e fugir, refugiar-me no rebanho. Mas tu e o abismo me fascinam, e mais
| A atriz: ainda, a possibilidade de não ser um fantasma me fascina.
– Tu e eu estamos no proscênio diante do abismo. | O Filósofo:
| O Filósofo: – És um movimento inicial, uma roda que gira por si mesma?
– Queres procurar o caminho de ti mesmo?9 | A atriz:
| A atriz: – Perguntas com a mesma impiedade com que perguntaste primeiramente
a ti mesmo.
– Tua pergunta ameaça atirar-me no abismo, e antes de cogitar respondê-la,
pois sou covarde, busco exemplos daqueles que se atiraram antes de mim, Não, não sou, penso eu.
guerreiros, heróis, mitos que percorreram o caminho desse abismo, onde Então, ansiosamente seguro a tua mão e pergunto:
arde o fogo e o nada, onde a vida é água, no sentido que toda a segurança – Crês que eu possa ser esta força única e auto-suficiente? Posso ser este
se converte em fluidez, que a qualquer momento pode evaporar e VV guerreiro louco e maravilhoso que enfrenta a si mesmo com o mesmo
V V V V V V V UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUMMMMM vigor com que enfrenta os moinhos de vento?
MMMMMMM! Lá vou eu despencando pelo penhasco. A sensação é
Abruptamente tiras a minha mão de sobre a tua e respondes-me com
ambígua, junto com o pavor, a alegria indescritível do salto, do vôo sem outra pergunta:
asas, que leva, ao que tudo indica, fatalmente à morte. Stop! Da boca da
cena vejo corpos espatifados no chão (sei que o chão talvez seja ilusão da – Podes obrigar as estrelas a girar ao teu redor?
minha cabeça, mas a imagem dos corpos espatifados se faz presente ainda | A atriz:
assim). E tu insistes com a pergunta: – A um tempo a idéia arrebata-me, sinto-me rainha, soberana, deixo-me
– Queres? levar pelo devaneio, em meu sonho ecoa um poema:
Fui.
| A atriz:
Não me deixei prender.
– Mostras, a um tempo, o horror do medo e do sangue e que o mundo Libertei-me de todo e fui
concebido por Maya não desaparecerá com a minha decisão de saltar,
Em busca de aventuras que em parte eram reais
que no instante do salto, como num sonho, os reflexos e as lembranças
E em parte haviam sido forjadas pelo meu cérebro
aparecerão para mim, suscitando os mais diversos sentimentos.
Fui em busca da noite iluminada,
E bebi então vinhos fortes,
9 Nietzsche, “Do caminho do criador”, Assim falou Zaratustra. Neste primeiro diálogo,
todas as falas do Filósofo (as que estão em itálico) foram tiradas deste texto. Como Como bebem os destemidos do prazer10
por enquanto só há dois personagens em cena, inicialmente fica compreendido
que em letra normal são as falas da atriz e em itálico, as de Nietzsche. As falas
sem hífen são os pensamentos da atriz/ autora, ainda começando este texto e
incapaz de exprimir em voz alta todos seus pensamentos. 10 Kavafis, “Fui”, Poemas, p. 125.
24 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 25

Recito-te o poema, mas tu não me prometes nem os vinhos, nem o prazer | E tu gritas, sei lá de onde:
que jorram da obra do poeta. Ao contrário, incitas-me: – Deus está morto!12
– Mostra-me que não és dos cobiçosos nem dos ambiciosos. – Vai à merda, filósofo! – uiva a atriz, enfurecida – se nada existe além do
abismo porque não saltas tu?
| A atriz:
– Envergonho-me. Acho que foi infantil da minha parte pensar em Mas apesar da raiva, sei que nada importa, nem mesmo tu, diante da tua
obra, que é, a um tempo, o teu salto e o teu abismo; e mais do que isso, que
recompensas, talvez a grande recompensa seja essa liberdade diante
é o teu caminho, que te torna criador, e assim, insignificante, como eu
do nada.
diante dela. Nenhuma recompensa, nem muito menos o reconhecimento
A ti não importam a minha vontade nem o meu desejo de ser livre – dos homens, apenas essa gigantesca solidão! Tu me alertas ainda contra o
digo-te em tom de lamúria. ressentimento do rebanho contra as ovelhas desgarradas.

| O Filósofo: – Injustiça e lama atiram contra o solitário, mas, minha irmã, se queres ser
uma estrela nem por isso deves brilhar menos para eles!
– Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra. Mas claramente deve teu olho
informar-me: livre para quê? | A atriz:
– Para agir? – Pergunta a atriz – livre para ser, estar, descer aos infernos, – Mas é tão grande a solidão! Quero ouvir palavras de acalanto e tu me
pular no abismo e criar? falas do perigo de tentar fugir desta solidão, de estender a mão a quem
encontre. Dizes-me que muitas vezes é preciso atacar ao invés de acariciar.
Lembro-me de uma passagem do Mahabharata11 em que Krishna conversa Nesse momento vejo a tua garra, oculta no teu traje de magistrado
com Arjuna antes da batalha em que ele deverá liderar seus irmãos contra imortal. Não ataques também a mim, não sou tua inimiga. Recordo-me
seus primos, parentes e amigos próximos. A vontade de Arjuna é de não que tu me havias dito antes de tudo que precisavas de “companheiros
mais lutar, e Krishna lhe diz que o importante é agir e não refletir sobre de viagem, e vivos e não de companheiros mortos e cadáveres”13 que
o fruto deste agir. Sinto que este mito está intrinsecamente ligado ao carregavas contigo. Quero ser tua companheira, também. Mas tu não
que me dizes, à coragem necessária para dar este salto no abismo, para queres minha companhia, isso não mudará teu caminho, porque já estás
assassinar sentimentos, primos e amigos. nele, enquanto que eu procuro o meu pelas vielas tortuosas do meu
pensamento, da minha vida e da minha morte em vida.
Mas o que eu sinto também não te interessa, e desta forma tu me informas
da solidão deste caminho. E me perguntas se estou pronta para ela. Para | O Filósofo:
essa solidão na qual terão de conviver todos os assassinatos provenientes – Teus pensamentos dominantes quero ouvir e não que escapaste de um jugo
dos meus atos. Pronta para aceitar a responsabilidade por cada um deles, (Aponta, antes que ela se perca em seus queixumes).
meus atos, meus e de mais ninguém, a serem julgados por mim e por
mais ninguém, e ninguém estará lá para que eu deposite minhas queixas | A atriz:
ou proclame minhas acusações. Tu me alertas: – Meus pensamentos se distorcem em vielas, ruas abissais, labirintos,
talvez se eu me atirar nesse labirinto, abandonar o novelo de lã, tu, e
– Terrível é estar a sós com o juiz e o vingador da própria lei.
eu possamos escutá-los, loucos selvagens, e também silenciosos, como
| A atriz recua, e num ímpeto, toma impulso em é o Caminho do campo.
direção ao abismo; no último instante, seus pés Chamo aqui o grande professor, Heidegger, suas palavras, como um
se agarr am à terr a e exclama: bálsamo de sabedoria para os novatos, como eu, em luta com o abismo e
– Deus! a segurança de seu próprio pensamento:

12 Nietzsche, “Prólogo de Zaratustra”, Assim falou Zaratustra, p. 29.


11 Carrière, O Mahabharata, 1991. 13 Nietzsche, “Prólogo de Zaratustra”, Assim falou Zaratustra, p. 39.
26 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 27

| Heidegger: Se “eu sou deus” é “eu sou”, só resta o verbo ser, o homem criou, o homem
– De Passagem pela orla, saúda [o Caminho do campo] um alto carvalho, em é. É o que? É preciso ser alguma coisa, não é possível apenas ser (ou é?).
cuja sombra está um banco talhado a cru. Estou transtornada, quero fugir.
Nele repousava às vezes um ou outro texto dos GRANDES PENSADORES, Escuta – digo-te – preciso parar um pouco, tomar fôlego, tomar um café,
que o desajeito de um novato tentava decifrar. Quando os enigmas se tu és denso demais pra mim. Mostras-me essa possibilidade de pular no
acumulavam e nenhuma saída se apresentava, servia de ajuda o Caminho abismo, que para mim ressoa como uma atitude a ser tomada. Quando
do campo. Pois em silêncio conduz os passos por vias sinuosas através da me perguntas se tenho coragem, isso soa como um desafio – Eu vou! –
amplidão da terra agreste. afirmo, esperando que me digas: – “Duvido!” – para que eu possa ficar
Pensando, de quando em vez, com os mesmos textos ou, em tentativas realmente brava e pular. Quero ser livre! Não quero ser escrava, nem
próprias, o pensamento, sempre de novo, anda na via que o Caminho do fantasma! E ainda ecoa a tua pergunta:
campo traça pela campina.14 – Livre para quê?
| A atriz: | Ela:
– Neste momento, um pouco de tranqüilidade paira sobre nós, tuas unhas – Para jogar-te – a ti!- no abismo, Filósofo! Que queres de mim?
estão recolhidas, sei que não somos inimigos.
O Filósofo dá de ombros e principia um movimento de retirar-se do palco. A
| O Filósofo: atriz corre e coloca-se à sua frente, barrando-lhe a saída.
– Mas – dizes, como que para alertar-me de que nesta guerra não há trégua
| Ela:
– o pior inimigo que podes encontrar será sempre tu mesmo.
– Já não posso mais te virar as costas, porque quem quer alguma coisa
| Tu me contas: sou eu. Olho para ti e estás só, completo dentro da tua obra. Olho para
– Quando me olhei no espelho, dei um grito e o meu coração alvoroçou-se: mim e vejo me só ao teu lado. Tu me fazes as perguntas, mas não me
porque não a mim, vi nele, mas a carantonha e o riso escarninho de um mostras o caminho, apenas me advertes do perigo. Não há caminho,
diabo. apenas um desvelar, um ocultar, um penetrar nos mistérios do abismo,
um movimento a ser executado em solidão. Estou cansada, e tu me dizes
| A atriz: que eu ainda tenho toda a coragem e esperança, e que ainda hei de sentir
– Sim, é perigoso olhar neste espelho, o reflexo torna-se turvo, a imagem o cansaço da solidão, já o sinto. Aqui estamos nós, mirando o abismo,
perde a beleza e dela saltam demônios que só a mim pertencem. Será a conversando sobre a possibilidade do salto, e apenas esta mirada me
partir deles que surge a possibilidade de nascer o meu deus, um deus que cansa. E este diálogo é também solidão. Estamos em casa, a única casa
será minha obra, minha criação?????!!!!!!! possível frente ao abismo.

O contrário do que diz a bíblia, E o homem criou deus.


Tento fazer uma associação lógica, embora aos poucos vá compreender
que a lógica é tão ínfima frente ao caos, sigo com minha associação.
Em hebraico não há o verbo ser, talvez devido ao primeiro mandamento
“Eu sou deus” – e o nome de deus não se pronuncia, portanto podemos
pensar que “eu sou” e “eu deus” são a mesma coisa.

14 Heidegger, “O Caminho do campo” (ensaio), 1969. p. 3.


O Ator Guerreiro frente ao abismo 29

Cena II:
A atriz conversa com seus botões, refletindo sobre
suas próprias reflexões numa simulação de infinito

| Fala Heidegger:
– A linguagem é a casa do ser, nesta habitação do ser mora o homem. Os
pensadores e poetas são os guardas desta habitação. 15

| Sai Heidegger, a atriz fica só no palco. Ela diz:


– Essa casa em frente ao abismo, esta casa, “linguagem” é a “morada do
ser”, como disse Heidegger, onde meu pensamento se desenrola e enrola-
se de novo numa tentativa quase religiosa de compreender meu ser e meu
estar nesta vida, mas ao penetrar nos mistérios, as questões transcendem
aquelas às quais eu me propunha a responder.

Quando era criança me falaram de deus, e aquilo me intrigava. Minha


avó foi à Rússia e me trouxe uma Babushka, aquela boneca que abre e tem
uma outra dentro, que abre, e dentro dela há, ainda, uma outra, e assim
por diante, até chegar na menorzinha, que, no caso da minha Babushka,
era uma bonequinha pelada, sem braços, sem pernas, sem boca, que eu
chamava de Grapete, devido ao formato, e de fato era a única das 13 bonecas,
pois eram 13, que tinha nome. Em algum momento, aquelas bonecas me
ensinaram sobre essa idéia de deus, eu pensei que nós vivêssemos dentro
da barriga de deus, mas deus devia viver num mundo como o nosso, que
ficava na barriga do deus dele, e por sua vez esse deus vivia na barriga de
outro deus, ad infinitum... e não parava por aí, pois cada indivíduo deveria
conter todo um universo dentro da sua barriga. Essa possibilidade, essa
infinitude que não se concluía nunca, me tirava o sono de criança...

15 Heidegger, Sobre o Humanismo: carta a Jean Beaufret, 1973. p. 347.


30 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 31

| A atriz distancia-se do personagem não existia antes de eu vir a ser,


e declama um poema: e como que algum dia, eu, que sou eu,
Peter Handke: Canção da infância16
não mais serei quem eu sou?
Quando a criança, criança era
Quando a criança, criança era,
Caminhava balançando os braços,
Engasgava em espinafre, em ervilhas, em pudim de arroz, e em couve-flor
Queria que o riacho fosse um rio, cozida no vapor,
Que o rio fosse uma torrente, e agora come tudo isso, e não só porque precisa.
E que esta poça fosse o mar. Quando a criança, criança era,
Quando a criança, criança era, despertou uma vez em uma cama estranha,
não sabia que era criança, e agora acontece isso de novo e de novo.
tudo era cheio de alma Muitas pessoas, então, pareciam bonitas,

e todas as almas eram uma. e agora só umas poucas, por pura sorte.

Quando a criança, criança era, Ela tinha visualizado uma imagem clara do Paraíso,

não tinha nenhuma opinião sobre qualquer coisa, e agora consegue no máximo suspeitar.

não tinha hábitos, Ela não conseguia pensar sobre o nada,

Freqüentemente sentava de pernas cruzadas, e hoje estremece ao pensamento.

Saía correndo, Quando a criança, criança era,

Tinha topete no cabelo, brincava com entusiasmo,

e não fazia caretas quando fotografada. e, agora, tem o mesmo entusiasmo de então,

Quando a criança, criança era, mas só em relação a seu trabalho.

Era tempo para as seguintes perguntas: Quando a criança, criança era,

Por que eu sou eu, e por que não você? era suficiente comer uma maçã,… um pão,

Por que eu estou aqui, e por que não lá? E ainda é, mesmo agora.

Quando o tempo começou, e onde o espaço termina? Quando a criança, criança era,

A vida sob o sol não é só um sonho? Amoras enchiam suas mãos como só amoras podem encher as mãos

Será que o que eu vejo, o que eu ouço e o que eu cheiro não é só uma ilusão de E ainda agora,
um mundo antes do mundo? nozes frescas faziam sua língua ficar áspera
Dados os fatos do mal e das pessoas, E ainda agora,
será que o mal realmente existe? Ela tinha no topo de cada montanha,
Como pode ser que eu, que sou eu, o desejo de uma montanha mais alta ainda,
e em cada cidade,
16 Tradução de Andrea Copeliovitch, vide original no apêndice.
32 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 33

o desejo de uma cidade ainda maior, nos mostra que muito do que éramos ainda somos, e resgata o que ainda
E ainda é assim, somos através de sua poesia que palpita ali até hoje, como a vara atirada
na árvore pelo menino.
Ela pegava cerejas nos galhos mais altos das árvores
Quando o tempo começou, e onde o espaço termina? O que é tempo?
com um orgulho que tem até hoje, Como pode o universo ser infinito? Quanto é infinito? Se o tempo é
Ela era tímida na frente de estranhos, eterno e o espaço infinito, então o que é uma vida, a minha frente à
eternidade e à infinitude?
E ainda é.
Esperava a primeira neve, Assim, começo a percorrer as vielas do meu pensamento, aquelas que se
tornam perguntas e cujas respostas suscitam outras perguntas sem jamais
E ainda espera do mesmo jeito. se concluir, dando essa sensação de agonia – agonia daquilo que não se
Quando a criança, criança era, conclui, agonia de não poder explicar o infinito.
atirou uma vareta contra uma árvore como se fosse uma lança, Sobre essa sensação de agonia, deixemos o Heidegger falar. Ele aponta a
E ela palpita ali ainda hoje. i diferença radical entre angústia e temor, o temor é sempre em relação a alguma
coisa, diferente de angústia, que se fosse um verbo, seria intransitivo.

| Entr a o Heidegger e diz:


| A atriz volta ao personagem par a
– Angústia é sempre angústia diante de..., mas não angústia diante disto ou
filosofar a respeito:
daquilo. A angústia diante de... é sempre angústia por..., mas não por isso ou
– Por que perdemos o hábito de pensar sobre as grandes questões quando aquilo [...]
crescemos? O tempo, o espaço, a finitude, o ser, os limites? Se a criança
não sabia por que ela era ela e não outro, em que momento ela adquiriu a A angústia manifesta o nada.
consciência da separação? E será realmente uma consciência da separação Estamos suspensos na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque
ou uma ignorância da unidade: um esquecimento do ser, uma confusão ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios
entre o ser e a máscara? A criança não tinha hábitos nem opiniões, porque – os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos entes. É por isso que em
sua individualidade ainda não estava formada e nesse momento sua relação
última análise, não sou eu ou não és tu que te sentes estranho, mas a gente se
com o mundo era de pertencer a ele e não de estar cercada por ele, então
sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste
tudo era entusiasmo, enquanto hoje, esse adulto, só se entusiasma diante
estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. 18
do trabalho. Em que momento o silêncio tornou-se a ameaça do nada? Em
que momento perdeu-se o espanto diante do mistério da vida e passou- | Ela:
se a buscar refúgio nos conceitos, nas verdades exatas, nas explicações e
conclusões? É a capacidades dos poetas e dos grandes pensadores penetrar – Encontro aqui uma grande semelhança entre o que eu entendo por
esta morada que é labirinto, munidos de seus novelos de lã, mas não para abismo e o que Heidegger descreve como angústia, mas minha sensação
solucionar o enigma, senão para manifestar o mistério. É por isso que a é mesclada com temor – por um lado o desejo da vertigem, de entregar-
criança de Peter Handke questiona a sua percepção do mundo através se ao vôo icárico, por outro lado um desejo de parar, de explicar, de
dos sentidos A vida sob o sol não é só um sonho? Será que o que eu vejo, o finalizar.
que eu ouço e o que eu cheiro não é só uma ilusão de um mundo antes do
mundo? Intuindo que há, como disse o Bardo em Hamlet, mais coisas | Aí o Mestre ainda coloca:
entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia17. O poeta Handke nos – Na angústia se manifesta um retroceder diante de... que, sem dúvida, não é
recorda as perguntas fundamentais que fazíamos na infância e também mais uma fuga, mas uma quietude fascinada [...]19

17 Shakespeare, “There are more things in heaven and earth, Horatio, than are 18 Heidegger, Que é metafísica. p. 237, 238-239
dreamt of in your philosophy”, Hamlet, Linhas 175 e 176, p. 1077. 19 Heidegger, Que é metafísica. p. 237, 238, 239.
34 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 35

| A atriz: Após o salto no abismo deve haver o abismo dentro do abismo e assim
– O silêncio... por diante, em movimento perpétuo que não termina nunca.

Essa resposta, que não é resposta, mas um abrir-se para o próprio É engraçado que eu perdi a boneca menor das minhas babushkas, a partir
pensamento, não como tagarelar interior, como essa poluição mental, daí, sempre que eu brincava com elas, a última que se abria, abria-se
mas como silêncio e escuta, como a escuta das musas. O silêncio da para o nada, elas passaram a terminar em uma pergunta, em um aberto
criança que não pensava sobre o nada, o silêncio que se opõe ao medo surgido no espaço vazio.
que faz estremecer o que a criança se tornou.

| Heidegger prossegue (claro, ele sempre está


além, mas eu vou devagarzinho, tentando
seguir alguns r astros...):
– Somente na clara noite do nada da angústia surge a originária abertura do
ente enquanto tal: o fato de que é ente – e não nada.

| A atriz:
– É talvez dessa sensação que um crente foge quando prega seu deus como
finitude, e mesmo unicidade, e fugindo dessa agonia, eu quis crer em algo
que encerrasse a agonia do abismo do infinito, – uma resposta, um deus. Não
é deus, mas eu que surjo a partir do nada, ou também deus, e as coisas... O
abismo não se encerra em uma única possibilidade, a queda no nada traz em
si a possibilidade da morte ou da sobrevivência, pode-se morrer espatifado no
chão, ou pode-se realizar um vôo icárico20, usando a agonia como motivação,
como busca, e morrer em seguida, espatifado no chão.
Pode não haver chão, tornando-se o salto um movimento contínuo em
direção ao infinito; e aqui a agonia torna-se o próprio abismo, a força
propulsora, o vigor do próprio pensar, a tal abertura originária.
Será possível atirar-se no abismo e não morrer? Aqui não vou me adentrar
no questionamento do que é esse morrer – hmmm... – já adentrei..., na
verdade esse morrer é também possibilidade, uma possibilidade diferente
daquilo que conhecemos como vida no momento em que ela se dá,
por conseguinte quando um indivíduo se atira no abismo, mesmo que
sobreviva, morre.
Nesse caso, o abismo é como uma prova num ritual de passagem, como
matar um leão aos treze anos de idade e sobreviver (dentro do senso comum
de sobreviver), mas que também é morrer, matar o menino, para que nasça
o adulto, um adulto que vai ter de matar muitos leões, pular muitas vezes
no abismo, até que em uma dessas vezes ele se entregue ao abismo.

20 Jardim, Ícaro e a metafísica: um elogio da vertigem, 2002.


O Ator Guerreiro frente ao abismo 37

Cena III:
O ator e o espaço vazio

| A atriz atr avessa o espaço. Entr a Peter Brook,


que a observa:
– Eu posso pegar qualquer espaço vazio e denominá-lo palco. Alguém atravessa
este espaço vazio enquanto outra pessoa o observa, e isto é suficiente para que
esteja configurado o ato teatral.21

| A atriz:
– Assim, o aberto surgido no espaço vazio também se torna cena teatral. É
a partir desse aberto que surge o ator e surgem também questões.

| Ela narr a:
– O observador, intrigado, pára, entrega-se ao tempo desta cena, tentando
compreender a passagem pelo palco vazio. Ele se pergunta:
– Para onde ele estará indo? E por que este agente da ação está agindo assim?

| Ela explica:
– Faço com que o observador se refira à pessoa que cruza o espaço vazio
como o “agente da ação”, porque até então não usamos a palavra ator. Mas
o ser ator já está configurado neste exato momento em que usamos o termo
“agente da ação”. Ele atravessa o palco vazio e leva com ele o observador,
mesmo que este não saia do seu ponto no espaço, de sua imobilidade física
de observador, também ele atravessou o espaço vazio. É a superação dessa
dificuldade de transportar o outro consigo ao realizar a sua ação que torna
a cena, cena no espaço vazio. Como o ator faz isso? E por quê?
Para o ator cada atuação, cada conquista em sua arte, é um salto no
abismo, no vazio.
Para Artaud, o teatro deveria trazer uma transformação radical tanto para
o ator, quanto para a platéia – ambos saltariam juntos, o ator levando
consigo o espectador – como esse salto acontece no exato momento

21 Brook, “Je peux prendre n’importe quel espace vide et l’appeler une scène.
Quelqu’un traverse cet espace vide pendant que quelqu’un d’autre l’observe, et
c’est suffisant pour que l’acte théâtral soit amorcé”, L’ espace vide, 1977. p. 1. Em
francês, cena e palco são a mesma palavra. Tradução de Andrea Copeliovitch.
38 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 39

da criação, muitas vezes o artista vive em mundos paralelos (eu estou da vida alheia. O ator muitas vezes é obra e está vivo e muitas vezes é
partindo do meu exemplo) – em um mundo ele já penetrou no abismo e fantasma, é companheiro morto.
se adentra cada vez mais nesse abismo, porque não basta o primeiro salto, Disfarço a ansiedade da minha busca, tento reduzir as dimensões do
cada momento em que ele se detém frente ao próximo salto, a sua criação meu questionamento, falar dos elementos técnicos na arte do ator, o que
fica comprometida, principalmente se pensarmos no salto contínuo, permite que eu me distancie desta dúvida que me persegue: tudo o que
onde esse deter-se não é possível por princípio, apenas o vôo vertiginoso eu sei num nível intelectual não deveria ser aplicado no meu dia-a-dia, na
é possível, ou a queda apavorada. minha vida. E o que é isto, a vida? Ela se separa da arte? E isso realmente
importa? Quando falo da técnica do ator sou como o adulto do poema,
Mas no outro mundo, no dia-a-dia, nos relacionamentos mundanos, nas que deixa de brincar com entusiasmo e agora ainda se entusiasma, mas
atuações quotidianas, o abismo permanece inviolado. Por que a obra do com o seu trabalho. É essa seriedade diante da utilidade, esse medo de
ator está no seu corpo, a obra do ator é seu movimento transformado em não servir para nada, que me lança nos gráficos concretos da linguagem
ação, em poiesis. técnica e me faz temer mais ainda o mistério do abismo.
| Manuel Antônio de Castro fala da coxia: Deparo-me, novamente, com o mestre (imagino Heidegger como um
velho mestre, um Dalai Lama ocidental, enquanto Nietzsche é um
– Lembre-se que A poiesis não é qualquer agir, por exemplo, o do nosso corpo super-herói dos quadrinhos Marvel, um super-herói mutante, super, mas
que cresce. Mas a percepção de corpo e do crescimento já se dá porque a atordoado pelas emoções tipicamente humanas, super para fazer o que
poiesis ocorre como lógos, ou seja, Linguagem. Linguagem não é língua, mas tem de ser feito, para completar sua obra, salvar vidas inocentes, mesmo
a manifestação do real enquanto sentido e verdade.22 que para isso tenha de destruir uma cidade inteira – afinal super-heróis
não têm uma dimensão precisa da sua super força!).
| A atriz:
– O movimento do ator atravessando o espaço é poiesis. Esse movimento | Mestre Heidegger volta à cena, ele diz:
pode ser somente uma respiração, a pulsação na imobilidade do gesto, ou – Trata-se da essência da verdade. A pergunta pela essência da verdade não se
uma corrida tresloucada, uma dança feita de oposições e desequilíbrios. preocupa com o fato da verdade ser a verdade da experiência prática da vida
ou a da conjectura no campo econômico, a verdade de uma reflexão técnica
Muitas vezes o ator está cruzando espaços, mas não está em ação, atravessa ou de uma prudência política; ou mais especialmente, com o fato da verdade
espaços que não estão vazios, não há poiesis em seu movimento, não há ser a verdade da pesquisa científica ou da criação artística; ou mesmo a
vazio em seu espaço, apenas seu gesto é vazio. verdade de uma meditação filosófica ou de uma fé religiosa. A pergunta pela
essência se afasta de tudo isto e dirige seu olhar para aquilo que unicamente
Quando não está em ação, o ator é também um passivo espectador, é caracteriza toda “verdade” enquanto tal.23
também rebanho.
É difícil manter-nos em ação, ação viva, o sangue circulando no aqui e | Ela:
agora, em processo de transformação, é preciso ser guerreiro para não – É tão difícil esse focar na essência, a minha mente ocidental metafísica
sucumbir ao chamado deste mundo onde o palco se separa da platéia tende a pensar de imediato em objetivação, mas eu SEI que não tem relação
por uma quarta parede. É difícil manter a ação após os aplausos, quando nenhuma com objetivar, talvez tenha alguma relação com desapego, este
termo usado pelos budistas e que tem como significado um desprender-se
a vontade é tirar a maquiagem, comer de graça naquele restaurante que do mundo preestabelecido, preconceituado (e preconceituoso), e buscar,
tem permuta com a peça e ouvir comentários de “Como foi magnífico o VER o que quer que seja que há para ser visto, o além do abismo, a
espetáculo!”, “Como você estava bem em cena!” e alimentar o ego desse essência, o infinito, deus ou o que quer que seja.
ator, que sofreu tanto para estar magnífico em cena e que não tem tanta
energia assim para manter-se magnífico, presente, em ação fora da cena. | Entr a Demian:
A vontade é entregar-se ao torpor do quotidiano, ligar a TV, falar mal A ave sai do ovo,
A ave quebra o ovo

22 jCastro, Interpretação e ética: afirmação das diferenças culturais como vigor


da poiesis. Comunicação apresentada no 6º Congresso da Associação 23 Heidegger, “Sobre a Essência da verdade”, in Conferências e escritos
Internacional de Lusitanistas, 1999. filosóficos, 1973. p. 329.
40 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 41

O ovo é o mundo
Quem quiser nascer tem de destruir um mundo
A ave voa para deus
O deus se chama Abraxas.24
Entreato:
A atriz troca e-mails com seu dileto interlocutor
| Ela:
e tenta aproveitar tanta filosofia de botequim e
– Que mundo é esse que eu quero quebrar? Que ave é essa que vai nascer
de Os Pensadores desperdiçada on-line
daí? Para onde vai essa ave? O que é mundo? Como eu posso superar os
conceitos e vislumbrar a verdade? É preciso saber o que se quer quebrar:
que conceitos preconcebidos? Que definições que dão um ponto final ao | She wrote:
caminho do pensamento, ao caminho do criador? Como quebra esse ovo Assunto: Worms
de ilusões, essa casca que vai se fechando ao redor de nós e que nos faz
23/10/2000 18:40
com-formar (formar conjuntamnte, concordar sobre a forma) o mundo
tal qual o vemos25? E, se for possível quebrar o ovo, como alçar vôo? Será Puxa, eu realmente não sei o que te escrever, talvez na minha fantasia você fosse
o teatro um veículo possível para esse vôo26? uma espécie de príncipe sapo, que um belo dia ia sair do seu encantamento
e viria me salvar – bullshit – aí quando eu mandei meu pedido de socorro,
eu vi você na torre vizinha, curtindo estar ali, sem nem pensar em fugir dali,
e que decididamente jamais viria me salvar. Pesou a solidão, a culpa por ter
essas fantasias adolescentes, o vazio de descobrir que não são reais, o vazio de
descobrir que nada é real, ou que o nada é real, o vazio de não saber como
agir porque eu tenho que agir sozinha, eu tenho que fugir da minha torre e
cometer o menor número de assassinatos possível, aceitar essa solidão, essa
solidão assassina – a marca de Caim27, que brilha na minha testa como um
chifre de corno, e que me pede pra trilhar caminhos que certamente meus
pais não me mostraram. Acho que eu tenho um pouco de medo de mostrar
às pessoas essa marca, eu me escondo em sorrisos, olhares baixos, aceitação
da opinião alheia em nome de uma democracia na qual eu não acredito com
todo meu coração. Antigamente, você ostentava a sua, e isso o tornava tão
atraente pra mim, a idéia de ter um igual, que sabia usar aquela marca na testa
tão bem... mas agora eu estou tentando aprender a usar a minha e você está
24 Hesse, Demian, p. 114 – Este nome (Abraxas) aparece citado em várias tentando amputar a sua, ou não talvez você tenha descoberto uma maneira
fórmulas mágicas da antiga grécia, e imagina-se que tenha sido um espírito
maligno como os que ainda são temidos e conjurados pelos povos selvagens. mais suave de conviver com ela, isso só você vai descobrir. Sentimentos são
Contudo, outras hipóteses atribuem a Abraxas importância ainda maior, vendo animais estranhos, como lombrigas dentro de nós, impossível domesticá-los,
nele uma divindade dotada da função simbólica de reunir em si o divino e
demoníaco – p. 15l. só mesmo tacando vermífugo!
25 Castaneda através das palavras de Don Juan (ou vice-versa) fala sobre esse 27
ovo de ilusões que se forma sobre nós em Tales of power, como veremos
mais adiante.
26 Peter Brook chamou a arte de Grotowski, nos últimos tempos em que estava
vivo de “Arte como veículo”, como um veículo de transcendência, o próprio
Grotowski disse em uma palestra quando esteve no Brasil, em 1996, no SESC
São Paulo, que buscava com seu grupo de pesquisa uma transição da energia
horizontal, para uma busca vertical, transcendente, em um teatro cuja busca
era simplesmente esse desenvolvimento pessoal dos atores, prescindindo de
platéia. Mais adiante, nos aprofundaremos no trabalho de Grotowski. 27 Referência a Demian de Hesse.
42 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 43

| Zé28 wrote:
| She wrote:
Re: Worms
Assunto: minhoco, a boca é do outro lado
23/10/2000 19:30
24/10/2000 19:28
Minha querida minhoca,
Minhoco, cê tá beijando errado...
Eu realmente não tenho tido tempo, nem saco, para fantasias, para ficar
olhando para o teto a imaginá-las, eu resolvi andar, desci da torre, me Ok, ultimamente eu ando no Zaratustra, hoje eu dei um seminário de
deparei com inimigos extremamente fortes, dentro e fora de mim, por isso merda sobre o caminho do criador, parece que quanto mais claro um
agora estou um pouco recuado, disfarçado, mas me espanta que mesmo assunto é pra mim, mais difícil se torna falar sobre ele. O eu-comum é
você não esteja me reconhecendo por detrás do meu disfarce, talvez (deus uma bosta, mas eu sou artista, e o eu-em-arte-operante-atuante não é uma
queira que não) não esteja usando disfarce algum, talvez eu tenha virado bosta, e isso me impede de pensar em suicídio, como nossas irmãs, mas
este troço barrigudo e sem jeito mesmo, mas ainda sinto arder em mim cria em mim um instinto de preservação desta obra-de-arte-viva que há em
aquele ódio guardado, a ânsia pela presa e o gosto de sangue na boca, mim que sou atriz. Talvez tenha faltado a você ver e ser e mostrar o seu eu-
mas tenho que balancear isso com o amor que eu sinto pelos que estão em-arte-operante-atuante,
do outro lado da ponte, que nem sabem que há uma ponte e continuam entenda-se arte como criação e vida. ANY WAY, não te vejo como um
inocentemente a furar os olhos dos recém-nascidos, pelo menos eles fazem barrigudo pai de família. Aliás, essa idéia você vem carregando ultimamente,
isso inocentemente. Como vês, não sou puro Caim, sou seu meio irmão, como o cadáver que o Zaratustra carrega, e depois percebe que é inútil
um dos poucos, me agüente, portanto. Eu já te contei uma historinha do carregar.
Autômato, de Alberto Moravia? É um pai de família que se arruma todo
Eu tô escrevendo um texto para tentar me redimir do fiasco do seminário
e manda a família toda se arrumar para um passeio, pois ele, de saco
de hoje, me redimir com o próprio Nietzsche, que está me fascinando tanto
cheio, pretende lançar o carro num abismo, para morrerem, assim, todos
neste momento, assim que eu terminar eu te mando, by the way, ele disse o
os desgraçadinhos. Quando chega no ponto muda de idéia e freia o carro
seguinte: uma luz acendeu-se para mim: é de companheiros de viagem que eu
bruscamente. Sua mulher, sorrindo, agradece-lhe a linda vista.
preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáveres que carrego comigo
Tem mais coisa, mas, por enquanto, é isso. para onde quero ir29.
Zé. Beijocas.
29

28 José Guilherme Dias de Oliveira, dileto interlocutor, formado em Engenharia


Civil pela UNICAMP, atualmente trabalha para o IBAMA. 29 Nietzsche, “Prólogo de Zaratustra”, Assim falou Zaratustra. p. 39.
44 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 45

| She wrote:

| Zé wrote: Assunto: Re: minhoco, a boca é do outro lado


25/10/2000 11:49
Re: minhoco, a boca é do outro lado
Sei lá, meu velho, acho que o Nietzsche leva a radicalidade dele às vias da
25 Oct 2000 11:00:25 -0200
crueldade, mas talvez seja essa a sua grandeza. Sei lá, a intensidade das
Então é isso? Estás a ler Nietzsche, ordinária. Tenha cuidado, que as imagens paixões, o vigor do novo, a vida, sei lá, se eu tivesse nascido na época do
são belíssimas, mas o gosto dos frutos é meio duvidoso. Em todo caso, Nietzsche eu estaria feliz da vida, casada com um Jewish que meu pai
conseguir livrar-se dos fracos é um feito e tanto, no sentido de caminhar teria escolhido, teria filhos, já seria uma velha É estranho, quando. eu
para a plenitude, mas é muito difícil, Nietzsche mesmo disse isso, mas nem era criança eu imaginava que aos 32 anos eu seria quase velha, teria feito
precisava, você já sabe como isso é foda, não é? O que me grila, é que nessa muitas coisas da vida, viajado, lutado em guerras, casado – e talvez eu tenha
história de super-homem, muita gente não segurou a onda depois do pai feito tudo isso, mas eu me olho no espelho, com o uniforme da escola de
da idéia, Dostoiewski, que se afirmava cristão ainda que lhe provassem o música e vejo uma menina boboca, não vejo uma guerreira deixando seus
contrário, até o próprio Nietzsche ficou doido. cadáveres pelo caminho. Não consigo viver essa plenitude das paixões, nem
Deixa eu ir trabalhar, depois eu falo mais. tampouco dominá-las. Sei lá meu velho, preciso continuar o meu papo com
o Nietzsche, e só de pensar me dá uma priguiiiiiiiiiiiiiççççça, por isso estou
Zé. enrolando aqui escrevendo prucê.
Beijinhos.
46 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 47

| Zé wrote:
Subject: Is it a bird?
Date: Wed, 1 Nov 2000 16:28:50 –0200
E aí, Andrea?
| Zé wrote:
Ainda estás a brincar de Super-homem Zaratustra?
Assunto: kiss my ass
Inicialmente o assunto desse e-mail seria “o capeta é bonzinho”.
Date: Wed, 25 Oct 2000 15:12:15 –0200
Sinto no ar uma forte tendência à desconexão entre o pensamento e a Eu estive pensando outro dia nesta história de maniqueismo e de religião,
ação. “and I realized” que as religiões primitivas, como o candomblé e os rituais
pagãos da Europa cultuam, ou cultuavam, os aspectos mais nobres no ser
No último e-mail, o que eu ia dizendo é que Nietzsche, depois de um certo humano, sua vontade de potência, sua virilidade, sexualidade, e por aí lá
susto, traz promessas de libertação, mas o caminho que ele oferece é muito vai. Note-se que essas religiões não fazem juízos de valor, não há bem nem
duro seria necessário romper muitos conceitos. Além disso ele acabou louco, mal, nem Deus, nem Capeta, o que importa é força e fraqueza é se o cara
beijando um cavalo, a chorar e pedir perdão (isso é fato). Jack London, que consegue ou não o que quer, seja lá o que for que ele queira, enfim, o
me apresentou a Nietzsche e ao super homem, se suicidou, como eu digo que importa é poder. Aí vieram as religiões judaico-cristãs, com sua moral
dos que se aventuraram só quem agüentou o tranco e a duras penas foi maniqueista, dizendo que as vontades que vinham da natureza, as de poder,
Fiodor Dostoiewski. de foder, etc., são forças malignas do capeta. Dizendo que a criatura, pra ir
Você acha que a idéia de viver de modo sustentável e saudável é o cadáver pra o Céu tinha que sofrer como um cão sem dono e ainda achar bom.
que carrego? Quando eu li Genealogia da Moral, na qual Nietzsche dizia que o
Por que você está lendo Nietzsche? cristianismo era a religião dos fracos, das ovelhas, que um lobo não poderia
se furtar a comer ovelhas, etc., eu fiquei apavorado com aquela verdade
Me conte mais o que você está achando das suas leituras. aparentemente incontestável, mas ao mesmo tempo, minha programação
Zearthworm. rígida me impedia de acreditar naquilo, imagine a insônia. Adotei, então,
a postura de Dostoiewski, mesmo que me provem o contrário, continuo
Tempo. sendo cristão. Mas de uns tempos pra cá eu venho perdendo o medo.
Tempo. Pois é, como você pode perceber eu estou entrando num processo de
Tempo. desprogramação judaico-cristã. É meio difícil porque estes conceitos de
inferno e de capeta metem um medo danado, mas se eu conseguir me livrar
desse lixo vai ser uma boa.
Beijo.
Zé.
48 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 49

Ato Final do Entreato: Ainda perdida em dúvidas sobre: o que é caminho?


Como é? E qual caminho seguir? Pois caminho é tudo o que temos para
caminhar, A atriz pede ajuda para concluir seu capítulo

| She wrote:
Assunto: help!
| She wrote:
30/01/2001 13:48
Assunto: Não, é um avião! Ok, eu tenho que entregar amanhã – esse capítulo, é pra ser uma coisa meio
01/11/2000 18:22 conclusiva, poética, sei lá – vê se sugere alguma coisa e responde LOGO!
Oi, ZéGuizinho, for christ sake (your sake):
Para mi solo recorrer los caminos que tienem corazon, cualquier camino que
Pois é, continuo no Nietzsche X cristianismo X carência afetiva (se eu for
tenga corazon. Por ahi yo recorro, y la única prueba que vale es atravessar todo
boazinha a galera vai gostar de mim), aquelas coisas – não tenho essa neura
su largo. Y por ahi yo recorro mirando, mirando, sin aliento.
de inferno que você tem, na verdade nem acredito nele, mas acredito em
Karma, mas acredito que a vontade é mais forte que o Karma, essa vontade Don Juan32
de guerreiro, como eu não tenho essa vontade, continuo presa no Karma... Muitas vezes tenho a sensação de ser um autômato. Mas busco essa vida
pulsante de super-homem, quero ser o caminho para o super-homem, o
Ou talvez ou Karma seja simplesmente o reflexo da culpa ou do
próprio super-homem e a mulher maravilha!
autojulgamento. A diferença é sutil, mas fundamental. Difícil é ser juiz e
vingador da própria lei30. Mas nada nos leva diretamente a nada e tudo são caminhos, não há
resultados, e sim buscas e veículos de busca; é o caminho do campo e o
O que eu ainda não vi no Nietzsche é a parte que diz que há mais coisas entre caminho do campo sempre tem um coração – pelo menos eu acredito que
o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia...31 tenha, e é tortuoso, seguindo o relevo natural da campina, e esse caminho
Ainda não sei bem o que fazer, na verdade eu não sei porra nenhuma, às é o único com a possibilidade de ter um coração, e é abismo e também
vezes eu ando entre as pessoas como se andasse mesmo entre fantasmas, labirinto – é o que está por ser trilhado, o devir, mas também o que se está
é como um sonho, dentro do sonho, breves encontros, mas não é toda trilhando agora, o presente.
hora que a gente se encontra de verdade... Como eu vou dizer pra minha Fala o velho Nietzsche, pela boca de Zaratustra:
terapeuta que eu não tenho certeza se ela existe? O homem é uma corda estendida entre o animal e o além do homem
– uma corda sobre um abismo.
Andrea. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar
3031 para trás, o perigo de tremer e parar.
O que há de grande no homem, é ser ponte e não meta: o que pode se
amar, no homem, é ser uma transição e um ocaso.33
O homem é caminho e é esse caminho que é obra, obra do homem, operar
do homem, que despenca do abismo na tentativa insana (?) de voar – e voa...
ou morre. Mas permanece a dignidade da tentativa...
3233

30 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 78. 32 Castaneda, “A Yaqui way of knowledge”, The teaching of Don Juan, 1973.
31 Shakespeare, Hamlet, Ato I, Cena 5, 1980, p. 1077. 33 Nietzsche, “Prólogo de Zaratustra”, Assim faou Zaratustra, p. 31.
50 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 51

| She wrote:
| Zé wrote: Assunto: Enquanto tarda o abismo e o silêncio...
Subject: eu só estou aqui pra complicar 30/01/2001 16:40
30 Jan 2001 16:01:07 –0200 Escuta,
Um dia eu me irritei e decidi largar a porra toda e só fazer o que eu gosto. 1) eu preciso de uma viagem intelectual, poética mesmo, como é que eu
Para o espanto dos que conviviam comigo, abandonei um trabalho seguro, vou terminar o capítulo falando que é tudo Bullshit? E nem é! Claro,
onde tinha entrado por concurso público, trabalho onde se poderia ficar quando se fala em liberdade, super-homem e a porra toda se esquece o vil
pelo resto da vida; era meio sem graça o serviço, tudo bem, mas com a metal, é claro que o dinheiro não existe, mas TAMBÉM, É CLARO que
grana poder-se-ia já se pensar em comprar um apartamento, um carrinho nesse mundo Maya em que vivemos estamos decididamente agrilhoados
popular, casar, ter filhos, botar os filhos numa boa escola, pra estudarem e a ele, mas não se pode viver as duas coisas? Não sei, não ser independente
terem a mesma vida inútil do pai, eu, no caso. Como ia dizendo, abandonei financeiramente pega e muito, e parece absurdo que a minha grande
esse trabalho para, de agora em diante, vibrar pela vida como Buck, o chance de ser superhomem, trabalhar com o Grotowski34 no Valhala de
Super Cachorro um dia, nas páginas de Jack London, vibrou, na tundra super homens atores tenha sido frustrada pela falta de grana seguida da
do Alaska. morte dele, e eu não consigo acreditar nisso, senão em uma falta de mérito
individual minha, que se refletiu nesse mundo aparente em forma de grana,
Sim, mas peraê, o que que eu queria fazer mesmo? Ah, sim, eu gostava muito,
mas que nada mais mostra do que uma fraqueza do meu espírito.
mas muito mesmo, mais do que gostar, era vital para mim, o contato com a
natureza, os verdes campos me esperavam, ai, ai. Sim, mas eu havia perdido 2) Por outro lado, Nem só o trabalho é o caminho, o caminho não é uma
todas as minhas referências desta tal vida bucólica, sequer conhecia pessoa coisa, é você, sua vida, seu pensamento – Pessoa foi funcionário público a
que estivesse vivenciando tal experiência para poder me ajudar, além disso, vida inteira, e foi Pessoa! Caminho é uma busca muito mais interna do que
faltava peito, peito para arrebentar com tudo mesmo, pra virar mendigo ou trabalho, são as vielas do pensamento, o pulsar do sangue, das emoções,
que porra que fosse. Enfim num meio termo, caminho indicado por Buda, caminho é o que há entre o pensamento desordenado que tortura a nossa
decidi cursar Biologia. Mas que super homem mais escroto que eu virei existência – caminho é o silêncio e o que nasce a partir dele.
dependendo de pai e mãe, aos vinte e lá vai fumaça, pra poder descobrir as
Câmbio. Desligo...
relações filogenéticas existentes entre uma muriçoca e um siri, que é o que
de mais interessante há num curso de Biologia. De repente eu me vi perto E prossigo... em minha tentativa quixotesca de encontrar o meu lugar no
da biblioteca, com um pegador de borboleta na mão me perguntando que mundo, lugar este que não é fixo, porém que se delineia a partir do meu
porra que eu estava fazendo ali, imagine se eu tivesse virado mendigo... agir, e eu persigo as questões para a partir delas desenhar o meu agir no
enfim, estas histórias de caminho do coração, super-homem, pererê, parará, mundo, não para respondê-las e não para filosofar a respeito, mas para
são muito bonitas e enchem o peito da gente de esperança, mas vá botar traçar um plano de ação no mundo, pois eu sou atriz, aquela que faz a
isso na vida pra ver o que é bom pra tosse, pra ver o absurdo, tire a arte e o ação... que age no mundo. Sem sequer compreender direito o que é isto, o
lirismo então e vê se agüenta, é dose mesmo. Não que eu tenha desistido de mundo...
meus objetivos de vida plena, eu só não jogo mais é na Mega Sena. 34

34 Sobre um convite que a atriz teve para trabalhar com Grotowski em Pontedera
e não pôde ir por falta de dinheiro.
2 O poeta revisita a Pólis
enquanto a atriz lança um
novo olhar sobre as questões
a partir de Heidegger, da
física da instabilidade e da
Física quântica

Cena I:
Lisbon Revisited

| Fala Álvaro de Campos:


NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
54 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 55

Das ciências, das artes, da civilização moderna!


Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Cena II:
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. A interpretação pelos olhos da intérprete
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
A atriz abre o Lap-top.
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Ela escreve e sua escrita é teatral, ela conversa, em sua imaginação,
com um interlocutor invisível que é também leitor e platéia. Como se
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
trata de uma tese, este interlocutor primeiro também é ativo, em algum
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. momento vai questionar o que está escrito, fazendo o papel de orientador
Assim, como sou, tenham paciência! ou membro da banca.
Vão para o diabo sem mim, O poema de Pessoa/ Álvaro de Campos ecoa no silêncio. Diz o que precisa ser
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! dito e não diz o que não precisa.
Para que havemos de ir juntos? A atriz tem o desejo de calar-se ante o poema, mas sabe que deve prosseguir.
Vamos dar a ela a oportunidade de abrir um parêntesis sobre a questão da
Não me peguem no braço!
interpretação e assim justificar sua ousadia.
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Ao fundo do palco está o coro, formado por estudantes de Filosofia.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! | Um corifeu adianta-se no palco e coloca as
seguintes questões:
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
– A interpretação é subjetiva? O que é interpretação e o que é válido dentro
Eterna verdade vazia e perfeita!
de uma interpretação?
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
| Ela diz:
Pequena verdade onde o céu se reflete!
– Bom, eu estava lendo um livro da Shirley Maclaine sobre o Caminho
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
de Santiago que me fez pensar em Heidegger e no conceito de verdade e
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Aletheia...
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
| Neste ponto, os estudantes de Filosofia
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! juntamente com alguns amantes da
Epistemologia correm atr ás da pobre atriz
br adando as mais inescrevíveis infâmias e
Aplausos. Cerram-se as cortinas. A atriz senta-se em seu camarim solitário e blasfêmias. Cenas de violência se sucedem. Após
começa a remover a pesada maquiagem sobre seu rosto. Sob o enorme bigode as quais ela continua sua fala:
postiço e as sobrancelhas cerradas, tenta vislumbrar o que ela realmente é.
– Sorry. Vou colocar o Fernando Pessoa neste bolo: Se têm a verdade,
Olha-se no espelho.
guardem-na.
BLACK OUT
56 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 57

| O Corifeu pergunta: | O Corifeu:


– O que é a verdade? – Para afirmar a diferença entre verdade e ficção.

| Ela olha par a ele, conhece a deixa, se fumasse, | Álvaro:


acenderia um cigarro. Continua: – Se têm a verdade, guardem-na!
– Shirley MacLaine contava uma história sobre sua experiência com vidas
passadas, Lemúria e Atlântida, e eu pensei, de cara e cheia de preconceitos: | O Corifeu:
“Quanta bobagem!”, mas continuei lendo e muito do que estava ali tinha – Eu vou guardar essa verdade é no teu...
uma coerência, a coerência de explicar o inexplicável... Explico: fala-se
| Ela:
muito, por exemplo na questão de vidas passadas, não sei se creio ou
não na reencarnação, e isso é irrelevante, mas não será a reencarnação – Ei, ei! Olha o nível, galera!
uma questão relativa à inexistência do tempo linear, à relatividade | O Corifeu:
do espaço, à ilusão da matéria, ou à sua instabilidade? Podemos estar
vivendo simultaneamente em vários tempos, quem garante que esse papo – Cara chato, pô!
de reencarnação não é simplesmente o fato de vivermos em realidades | Álvaro:
temporais paralelas. Certa vez, um mendigo me parou na rua... Estou eu
– Vão para o diabo sem mim,
na padaria. O mendigo se aproxima, não me pede nada, apenas diz:
Sai Álvaro.
| O Corifeu vestido de mendigo:
– Sabia que eu sou você em outro plano? | Ela:
– Por exemplo, o mar...
| A atriz:
| Álvaro grita da coxia:
– E quem garante que não é mesmo? No meio dessa nossa ignorância,
ainda podemos estar criando uma realidade para explicar a nós mesmos – Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
uma possível suspensão no nada. Ou talvez simplesmente seja um feito | O Corifeu:
da imaginação as pessoas se “lembrarem” de vidas passadas. Mas, no caso
– Ô poeta insistente...
desta última hipótese, até que ponto o que vivemos na imaginação faz
parte do real? E, claro, sem querer irritá-lo, amigo interlocutor, | Álvaro:
– O que é o real? O que é a verdade? – Deixem-me em paz!

| Essa última fala é dita em coro com o Corifeu. | Ela:


Segue a atriz: – Vocês querem me deixar falar do mar?
– Temos aí tantas questões envolvendo o inexplicável, o mistério – o mito
| Entr a Dorival Caymi:
talvez seja uma interpretação de uma luz sobre o mistério, ou talvez
seja a realidade que nos permite vislumbrar uma luz sobre o mistério, – O mar...
ou talvez ainda seja o mistério se impondo sobre a nossa interpretação A atriz tem uma crise histérica.
quotidiana da realidade.
| O Corifeu:
| Ela: – Dá pra levar a sério um negócio desses?
– Costumamos usar o termo “vida real” para reafirmar o quotidiano
Ela respira.
como realidade.
58 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 59

– Ok... Volta tudo: vida real, quotidiano como realidade e o mar. dizer propriamente: se me encobre para mim mesmo, eu fico encoberto
encoberto para mim de tal sorte que o “eu”, o “me” e o “para mim” resultam
| O Corifeu: e nascem do próprio movimento de encobrir.35
– Ãh?
| Ela:
| Ela: – Se a verdade possui um movimento de velar e desvelar, Aletheia, ao se
– Se olharmos para o mar e para o quanto há de mar em comparação com desvelar o mistério, o mistério não é desfeito por este desvelar, ou seja,
a terra... permanece mistério, então tudo o que for dito sobre este mistério é
movimento, nada é de-finitivo, tudo é interpretação.
| O Corifeu interrompe:
– Ô papo hippie... | O Corifeu:
– Não era este o argumento dos sofistas?
| Ela:
– Pode ser, mas o que nós sabemos sobre o mar? | Ela:
– Talvez esse seja um grande perigo quando falamos em interpretação.
| O Corifeu:
Melhor chamarmos o Heidegger.
– Pô, eu sou estudante de Filosofia e você é atriz, a gente não sabe porra
nenhuma, chama aí um cientista. | O Heidegger:
– A filosofia é perseguida pelo medo de perder em prestígio e importância, caso
| Ela:
não seja ciência. O que se considera uma deficiência idêntica à inciência
– E os cientistas conseguiram prever o tal do tsunami? (Unwissenschaftlichkeit). Na interpretação técnica do pensamento, se
| O Corifeu: abandona o Ser como elemento do pensar. A partir da Sofística e de Platão,
a “ lógica” é a sanção dessa interpretação. Julga-se o pensar com uma medida
– Sei lá. Eles podem ter previsto e ninguém ficou sabendo. que lhe é inadequada. Um tal julgamento equivale ao processo que procura
| Ela: avaliar a natureza e as possibilidades do peixe pela capacidade de viver
no seco. Será que se pode chamar de “ irracionalismo” o esforço de repor o
– Tá, mas o fato é que de uma hora para outra o mar pode destruir uma
pensamento em seu elemento?36
Ilha paradisíaca, um hotel de luxo, uma cidade... e aí, podemos pensar
que a “vida real” pode ser menos sólida do que estamos habituados | A atriz:
a compreender e que as águas de Lethe fazer parte da realidade. Seu – Os caminhos da lógica, que deveriam nos trazer segurança, lei, moral,
movimento é movimento de vida. Carlos Castaneda fala de uma grande acabaram traçando o destino da sociedade caótica em que vivemos.
águia que devora nossa consciência na hora da morte, nos deixando no Criamos regras para o viver e para o pensar. Dentro dessa organização
esquecimento, e se pensarmos na vida como verdade e como lembrança matemática do mundo, nossa vida deveria repousar sobre o bom e sobre o
em meio a esse esquecimento? belo, mas o pensamento, como a vida, escapam pelas arestas das exceções,
| Entr a Carneiro Leão vestido de Her áclito: das equações sem resposta, e nossa lógica não dá conta de ordenar o caos
em que vivemos. Existe uma outra alternativa para o caos? É aqui, frente
– Estando sempre numa configuração de verdade, estamos também numa
ao abismo, em perigo constante, sem saber se vivo na linha do Tempo ou
configuração de in-verdade. Esta tensão é o que evoca a provocação da
suspensa no nada que me coloco tantas questões.
palavra grega Aletheia. Pois lanthano significa cobrir e velar, manter-se
encoberto e ficar velado. Lethe é o nome de uma torrente no Hades, cujas
águas encobrem a vida e velam as vivências dos mortos. É também o nome
do esquecimento, cujo verbo, usado na forma medial de lanthánomai, quer 35 Leão, “Diana e Heráclit”, Aprendendo a pensar I. 1977. p. 185.
36 Heidegger, Sobre o Humanismo, 1973. p. 27.
60 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 61

E as questões, aquelas que não têm resposta e que alimentam nosso é parte, é razão, é sujeito. Passear na campina é desvio, e a própria
pensamento, ficam reduzidas a um item de menor importância nesse campina não é nada mais que objeto. Tudo que não é auto-estrada é
mundo regido pelo princípio de desempenho37, no qual a grande desvio. Percorrer o caminho do campo seria aceitável se se tratasse de um
pergunta parece ser “para que serve?”, e com essa pergunta a nossa momento de lazer, uma pausa para retornar ao fluxo da história linear. E
sociedade ocidental põe também a Arte de lado, a cultura, as tradições, a há um senso comum que nos impele nesta direção que deveria nos levar
interpretação poética. a um objetivo certo. O que não fica claro é qual e o que é esse objetivo;
se os caminhos possuem uma finalidade em relação ao ser que não a de
Nós nos vemos, então, incumbidos de refletir sobre a presença de valores
serem caminhos e de serem percorridos.
nessa sociedade, com que tipo de valor estamos lidando? Qual a medida
em vigor em nosso tempo? Podemos pensar o Homem em unidades E ainda, se somos fragmentos de uma linha histórica, essa linha ainda
desempenho versus tempo cronológico e construir um gráfico? Será que eu assim não é o todo. O todo existe em outras dimensões além da horizontal
posso pensar em mim como um gráfico de tempo versus desempenho? que só os desvios nos permitem explorar.

| O Corifeu: O Corifeu, enfadado, sai de cena, seguido do coro, deixando a atriz sozinha
no palco, à beira do proscênio/ abismo.
– E você é esse gráfico? Quem é você, afinal?

| Ela:
– Sinto-me incapaz de responder, a minha tentação primeira é dizer que
sou um indivíduo único e especial no mundo, mas qual é a resposta
politicamente correta? Sou igual aos outros? Ou espiritualmente correta?
Sou igual aos outros? E de que espiritual e de que político estou falando?
Ainda posso pensar biologicamente, sou igual aos outros? Pertencente à
raça humana, com especificidades: gênero, local e data de nascimento,
classe econômica, tipo de estudos seguidos, peso, cor dos cabelos, cor
dos olhos, cor da pele, respondo sim ou não a uma série de perguntas e
já está: temos um retrato fiel de um indivíduo... igual aos outros? Serei
eu o resultado de uma equação? Serei eu o percurso entre dois pontos?
Senão será possível que eu seja, como disse Pessoa/ Álvaro de Campos, O
contrário disso, o contrário de qualquer coisa?
Poder-se-ia usar a metáfora de uma auto-estrada para falar da vida do
homem contemporâneo. O cimento cinza ou preto, percorrendo o menor
caminho entre dois pontos, a reta da alta velocidade – Não tente andar a
pé ou dirigir um calhambeque antiquado a vinte por hora! E jamais ande
na contramão!
Vamos em caminho reto e unificado de um ponto a outro. E que pontos
são esses? Nascimento e morte? A reta seria a nossa parte na grande
História 38 ocidental. A Vida vista como mero fragmento representativo
dessa reta, parte. E em latim parte é traduzida como ratio39. O Homem

37 Termo utilizado por Marcuse em Eros e civilização.


38 História historiográfica, vista como linha cronológica.
39 Também pode ser traduzido como proporção, razão, constante.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 63

Cena III:
As ciências, deus meu, as ciências

| A atriz monologa:
– Como único companheiro tenho o poema de Álvaro de Campos. Esse
poema tem me acompanhado desde 1992, como um amigo que me conta
coisas, mas que não consigo compreender totalmente, e seus mistérios por
vezes me atormentam e por vezes me encantam. Estava ensaiando a peça
O caso desta tal de Mafalda, de Alberto Sofredini. O diretor, João Albano,
pediu que cada ator preparasse uma cena com este poema. Decorei o poema,
escolhi uma música armorial, imitei meu gato brincando com uma bolinha,
entrei rodopiando e gritei “NÃO!” Olhei para a platéia desafiadoramente e
disse, revoltadíssima, em voz baixa, mexendo a cabeça de um lado para o
outro: “Não quero nada”, fui me tornando mais agressiva, num crescendo
até chegar em “as ciências”, aí eu caía no chão, derrotada e dizia: “As ciências,
deus meu, as ciências...”, então fazia voz de palhaço e dizia: “as ciências, as
artes, a civilização moderrrrrrrrrrrrrrrrrrrrna” (puxando bem o R). E assim
ia, coisa de ator, querendo ser original, impressionar o diretor, os colegas,
sem tentar muito entender o texto, apesar de que o texto já começava a
me entender, a ecoar dentro de mim. A última parte, em que ele fala do
Tejo, eu nunca entendi bem, então fazia sotaque de português, e me parecia
engraçadinho. Talvez porque nunca tenha acreditado em uma verdade que
fosse perfeita, nem mesmo o céu, mas terá acreditado Pessoa? Estava sendo
irônico? Ou o engenheiro Álvaro persona/ Pessoa/ personagem acreditava
de fato nessa verdade? E porque ele se revolta contra o rio ao dizer que ele
não lhe dá nem tira nada? Será mesmo uma revolta ou uma constatação de
que não fazemos diferença, e no entanto é preciso acreditar que fazemos
alguma diferença, que Pessoa fez uma diferença, caso contrário, desligamos
o PC e vamos dormir...

| Black out r ápido. Quando o foco luz se acende,


vemos Krishna e o guerreiro Arjuna sobre o
palco. Fala Krishna:
– “O importante é agir e não refletir sobre o fruto deste agir”.40

40 Carrière, O Mahabharata, 1991.


64 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 65

Saem. perguntas, sem nos submetermos às respostas. Aos poucos, nos cansamos.
O caminho das perguntas não tem fim.
| O Corifeu:
– Mas qual o propósito desta tese? Não é refletir sobre o fruto do agir, sobre | Entr am Peter Handke e os anjos de Win Wenders
o teatro? entoando a Canção da Infância:
Quando a criança, criança era,
| A atriz diz:
Era tempo para as seguintes perguntas:
– Não. É pensar sobre estas questões que foram surgindo no meu percurso
e tentar, intentar um plano de ação, é pensar nas questões enquanto Por que eu sou eu, e por que não você?
impulso do movimento, e a partir delas, elaborar propostas. Por que eu estou aqui, e por que não lá?
| Ela prossegue em tom de entrevista: Quando o tempo começou, e onde o espaço termina?
– Comecei a escrever sobre minhas frustrações no teatro, minhas insatisfações... A vida sob o sol não é só um sonho?
reclamei bastante e procurei propor e experimentar soluções...
Será que o que eu vejo, o que eu ouço e o que eu cheiro não é só uma ilusão de
| O Corifeu: um mundo antes do mundo?
– Ahá! Lá está você falando de respostas!

| Ela: | Também a atriz canta a infância, em seu quarto,


– Calma, não estou falando de respostas (conclusões), estou falando de em seus sonhos de menina:
propostas práticas para o ator, descrevia então estas soluções, aí, ao vê-las – Mãe, por que o céu é azul?
ali, separadas de mim, a prática escrita se tornava teoria, já não era um
| A mãe:
dia de ensaio, era uma página escrita, um outro diante de mim, com
quem eu podia dialogar, e meu próprio texto suscitava perguntas. E foi – Porque deus fez assim, vai escovar os dentes, menina!
assim que eu me tornei Pesquisadora. Pesquisadora... que criança sonha
| A atriz criança:
em ser pesquisadora?
– Mas por que ele quis assim?
| A mãe:
| A mãe:
– O que você quer ser quando crescer, minha filha?
– Porque sim.
| A atriz criança:
| Voz em off:
– Mamãe, quero ser pes-qui-sa-do-ra!
– Porque sim não é resposta.41
| A atriz: | A atriz:
– Fala sério! – Aí vamos pro colégio e aprendemos Ciência...
| O Coro: É subitamente interrompida por Álvaro:
– Fala sério! – As ciências, Deus meu, as ciências!
| Ela prossegue:
– Criança quer ser bailarina, atriz/ ator, bombeiro, lixeiro, até professor,
41 Já diria Marcelo Tas, artista multimídia e ator, no programa Castelo Rá-tim-
mas pesquisador? E no entanto é quando crianças que fazemos mais bum exibido pela tv Cultura.
66 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 67

| O Corifeu: imaginar o sopro das musas que se encontra nas melodias, nas entrelinhas
– Fala sério! dos poemas, nos traçados do retrato.

| Ela segue seu r aciocínio: A busca de Heisenberg, como a de Einstein, Bohrs e tantos outros foi
uma grande exceção. Como são exceções todas as grandes descobertas.
– E a Ciência nos responde muitas daquelas perguntas: o céu é azul por
Só se descobre o que não estava à vista, o que estava velado.
que tem tal e tal, e tal e tal (vão perdoar a ignorância dessa pesquisadora,
mas eu não me lembro e considerando que ainda tenho de me debruçar | Heisenberg:
sobre Nietzsche e Heidegger, deixo esse lance do céu para os cientistas
que estudam o céu...). – Também na ciência, é impossível abrir novos campos se não se estiver disposto
a deixar o ancoradouro seguro da doutrina aceita e enfrentar o perigo de um
Mas somos obrigados a refletir novamente sobre todas as coisas, pois arriscado salto à frente em direção ao vazio. 43
nem a própria ciência consegue se explicar apenas através dos moldes
determinísticos. O surgimento da Física quântica foi um dos grandes | A atriz fala par a a platéia:
abalos nessa forma de pensamento, quando o que havia de medida, de – Na Ciência, como na Arte, como na Filosofia, as descobertas se
parâmetro, de unidade foi dividido e as regras da física tradicional já não se
fazem de grandes perguntas, de grandes abertos, de incursões na
aplicavam a esse mundo infinitesimal do interior do átomo e a quantidade
f loresta, de risco.
de possibilidades que surgiram a partir dali foi insuportável para esse
sistema causal, ou seja, a própria ciência, como a arte tornou-se exceção. | O Corifeu:
| Fala Heisenberg: – Abertos?
– É evidente, mas muito freqüentemente esquecido que a ciência é feita por | Ela:
homens. Isso aqui é relembrado na esperança de reduzir o hiato entre duas
culturas, a arte e a ciência.42 – Sim, como os mistérios que impulsionaram o cientista em sua busca,
em seu caminho, que muitas vezes se assemelha ao caminho do poeta.
| O Coro: Nesse caminho, ambos se deparam com o Mistério, precisam aceitar
– Em seu livro A parte e o todo, o físico nuclear Heisenberg nos apresenta que existe o indecifrável, e mesmo assim prosseguir na pesquisa, decifrar
um momento conturbado da história da Física. os enigmas, trazer a luz sobre os obscuros. Heisenberg, como Einstein,
como Bohrs e outros tantos (e tão poucos) trilharam seu caminho pelos
| A atriz: abertos e pelos obscuros, pelas leis e ordens e pela desordem e pelo acaso,
– Momento em que foi preciso recorrer a desvios para chegar a um e aceitação de que talvez não exista uma ordem e que nem toda ordem é
entendimento do movimento das menores partículas até então jamais aquela cognoscível pela razão humana.
estudadas, tão pequenas, tão infimamente pequenas, talvez o mais
próximo que o homem tenha chegado de um fundamento. Essas E cientistas passaram a buscar esse movimento pulsante na ciência, a
partículas recusaram-se a obedecer a uma lei de causa e efeito, essa grande dialogar com outras áreas.
segurança do Homem, que acreditava poder explicar e representar tudo O escritor e os astrofísicos entram na cena.
dessa forma.
| Jean-Claude Carrière (o escritor):
Esses grandes físicos tiveram de sair da auto-estrada e andar pelo caminho
do campo. – A mecânica quântica não pode harmonizar-se com nenhum pressuposto
metafísico ou filosófico?
Houve então uma necessidade de abrir-se à escuta. O cientista parou, em
muitas ocasiões, como nos descreve o autor, para observar o movimento Os cientistas poéticos respondem
da arte que não possui essa característica linear. Escutar a música e

42 Heisenberg, A parte e o todo, 1998. p. 7. 43 Heisenberg, A parte e todo, 1998. p. 87.


68 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 69

| Michel Cassé: Em nossa sociedade existe uma tendência a um elogio acrítico em relação
– Não pode harmonizar-se com nenhuma ideologia, nenhum espartilho do à Ciência e a um descaso em relação à Arte. Nos esquecemos de que
espírito, nenhuma gaiola do pensamento. É somente o espelho da experiência, ambas são caminhos, buscas...
de uma experiência precisa e constantemente renovada. Ela proíbe o espírito
| O Corifeu:
de repousar num travesseiro de verdades prévias, sejam quais forem, ou
numa lógica tradicional ou, mesmo, numa imagem. Ela dá nova cor à noção – Busca de quê?
de lei, de determinismo, de objeto, de sujeito. Suplanta a metafísica oculta.
Utiliza velhos conceitos, como o movimento, a energia, mas os modifica. | Ela:
Resta apenas o espírito diante dos fatos, obrigado ao rigor e ao despertar. – De sentido? De ordem? Da verdade? Sei lá. Muitas vezes nesses caminhos
a verdade é intuída. A intuição da verdade é uma das questões que
A atriz comenta:
motivaram as grandes descobertas, como a maçã de Newton. O cientista
– A Física quântica nos joga no abismo, no desconhecido, nos arremessa encara a possibilidade de realizar uma busca técnica para estruturar
àquela pergunta infantil pelo infinito, e não consegue respondê- de alguma forma aquilo que ele “sabe” ou intui, e aí seu caminho se
la. Somos arremessados de volta a uma consciência da nossa própria assemelha ao caminho da artista. A ciência recorre também à linguagem
ignorância, podemos traçar nosso caminho através de conceitos, de fatos poética para falar do inconcebível.
conhecidos, do terreno sólido e da estrada reta. Como diz o físico Cassé,
começamos pelo conhecido, mas somos obrigados ao rigor e ao despertar, | Entr a Bohrs:
pois se grandes verdades da ciência deixaram de ser finais, somos forçados – Devemos ter claro que quando se trata de átomos, a linguagem só pode
a recomeçar e buscar novas verdades e talvez admitir que não há verdades ser usada como na poesia, pois não trata de expressar precisamente dados
finais, ou talvez sermos humildes diante do desconhecido e não admitir objetivos, mas sim de fazer com que o ouvinte conceba imagens na sua
nada senão nossa humildade, e prosseguir com essa humildade, com consciência e estabeleça ligações mentais.45
rigor e com atenção à escuta.
| A atriz:
| Jean Audouze:
- Talvez nós, que não somos cientistas brilhantes, que aprendemos uma
– Como observa Jean Louis Basdevant, os físicos quânticos aplicaram
dúzia de equações no colégio, houvéssemos começado a pensar que a
amplamente um princípio enunciado por Kierkegaard: todo campo
ciência era capaz de responder tudo. E pensávamos que ciência era esse
experimental novo necessita de conceitos e de uma língua que lhe sejam
conhecimento seguro de respostas concretas e finais.
próprios. A utilização, num território novo, de uma linguagem preexistente
só pode conduzir ao erro.44 | A atriz criança:
| Ela: - Poxa, eles sabem até porque o céu é azul! Porque o sol brilha, porque tem
– Sim, usar a linguagem pré-existente, tentar expressar através de conceitos outono e depois inverno, tantas coisas...
que fecham, que definem o que deve ser dito já não funciona nem mesmo
| A atriz:
para a ciência, que nós compreendemos usualmente como uma estrutura
de conceitos, em que o movimento, a experiência e a investigação levam – É tão bom ter respostas, existe uma segurança em saber que chove porque
à conceituação de verdades. E se estas verdades forem apenas portas que a água evaporou e condensou, e não porque os deuses estão furiosos,
se fecham e que nos impedem de ir além? A Física quântica tem ousado existe segurança em saber que a Terra é redonda e não termina num
abrir estas portas e olhar com espanto renovado para o desconhecido, abismo infinito. Essa segurança é boa, nos torna imortais, mas como
muitas vezes sem saber como falar sobre esse desconhecido. vamos reagir quando a morte chegar?

44 Andouze, Cassé & Carrière, Conversas sobre o invisível, 1991. 45 Heisenberg, A parte e o todo, 1998. p. 54.
70 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 71

| A atriz criança:
– Manhê, deixa a luz acesa!

| A mãe:
– É preciso aprender a não ter medo do escuro. Cena IV
A metafísica:
| Álvaro de Campos:
– Ó céu azul, o mesmo da minha infância, eterna verdade, vazia e perfeita.

| A atriz:
– E essa verdade perfeita é o silêncio do menino? Ou o terror diante do nada?

2004. Teatro de Dioniso. Atenas. A atriz olha para a imensa arquibancada


circular. Não pode entrar, está fechado. Está na Acrópolis, o Pantheon também
está fechado, estão reformando, limpando, sei-lá-o-quê-zando por causa dos
próximos jogos Olímpicos. Faz frio e ela tenta se emocionar, pensar nos deuses
que viviam aqui, senti-los... mas sente apenas o vento gelado penetrando num
buraco nas costas do seu casaco herdado da mãe e sobrevivente desde 1975.
Desce as escadas e chega à prisão de Sócrates. Tenta imaginá-lo ali, bebendo sua
cicuta, mas acaba por impressionar-se mais com a Igreja de São Demétrio: uma
pequena e escura construção de pedras do século IX. No interior a iluminação é
feita por velas, o recinto é muito escuro, os santos são pintados e não esculpidos
como nas igrejas católicas, um homem deitado no chão faz suas reverências.

| Ela pensa em voz alta:


– Por que essa igrejinha está tão mais próxima de mim do que o
impressionante Teatro de Dioniso? Eu não sou cristã, sou atriz... Os
gregos antigos estão tão próximos e tão distantes de nós.
Acende um foco de luz no canto do palco simbolizando um flash back ou um
lapso tempo/ espacial ou o que quer que o público queira entender.

| Em frente ao quadro negro r abiscado de


anotações em giz está Antônio Jardim46:
– Para o grego as emoções não eram abstratas como para nós; eram deuses,
Amor era um deus, Fúria, Morte, A passagem do tempo, Alegria,
Embriaguez...

46 Músico, pensador/ pesquisador e Professor do Depto. de Ciências da Literatura


da UFRJ. Comentário feito em sala de aula.
72 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 73

| Volta a cena anterior. Foco na atriz. Ela diz: | O Corifeu:


– Onde estão os deuses? Esses sentimentos, sensações, os próprios sentidos do – Somos seres fragmentados.
corpo tornaram-se emaranhados confusos. Penso em Woody Allen em seus
filmes no divã do analista, será Woody Allen um dos mitos modernos? | Entr a o carr asco, confuso, posiciona o
condenado sobre o cepo e pergunta-lhe:
Mais uma vez atriz e pesquisadora confundem-se numa metafusão (con- – É a cabeça ou o corpo que eu corto?
fusão) ator/ personagem. De novo o foco no espaço do flash back.
| A atriz:
De um lado, a atriz; do outro, quatro professores sentados em uma mesa na
qual se lê: “Banca de admissão para o mestrado”. – Homens-cabeça, sem tronco, sem membros, como personagens
aleijadas de Beckett48. Idolatramos o cérebro, mas nem sequer sabemos
| O diretor (representado por um corifeu) se como funciona, mas achamos que ali há respostas. Criamos esquemas,
coloca r apidamente, dando um efeito de contrapomos respostas às perguntas, criamos ciências para explicar nosso
distanciamento e estr anhamento à cena: pensamento tortuoso. Epistemologia. Metafísica.
– Percebam a simplicidade do cenário, somos partidários de uma estética | O Corifeu:
da simplicidade.
– O que é a Metafísica?
| Fala Ana Maria Amar al47: | Ela:
– Você fala muito em mito no seu projeto, quem são os mitos hoje? – Help! Chamem o Heidegger!!!!!!!
| A atriz em off: | O Heidegger:
– Afinal, o que é mito? – A pergunta nos dá esperanças de que se falará sobre a metafísica. Não o
faremos. Em vez disso, discutiremos uma determinada questão metafísica.49
| Volta à cena atual. A atriz e Álvaro de Campos.
Ela diz: | O Corifeu:
– Não me lembro do que respondi, mas a pergunta seguiu ecoando dentro – Que questão é essa? O que há de errado com a metafísica?
de mim. Esse trabalho trata de perguntas e não de respostas, por isso às
vezes é muito difícil escrever, pois quero sempre colocar uma chave de | A atriz:
ouro e concluir. – Nada.

| Álvaro de Campos: | O Corifeu:


– A única conclusão é morrer. – Nada? Se não há nada de errado então por que esse rebuliço todo?

| E segue, majestoso, contundente: | A atriz:


– Não me falem em moral, tirem-me daqui a metafísica, não me apregoem – Nada há de errado, a questão é que temos sempre de ver tudo como certo
sistemas completos, não me enfileirem conquistas das ciências. ou errado, como isto ou aquilo, é por isso que o Heidegger fala que nessa
existência cientificista deixamos de lado o nada.
| Ela:
| O Corifeu (vitorioso):
– Há uma tentação enorme em compreender o mundo como preto no
branco, ou isto ou aquilo, pólo positivo/ pólo negativo. – Então não deixamos nada de lado.

47 Professora do departamento de Teatro da USP, especialista e amadora do 48 Samuel Beckett, dramaturgo.


teatro de animação. 49 Heidegger, O que é a metafísica?, 1973. p. 233.
74 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 75

| A atriz: | Sobre uma tela br anca, vemos a seguinte


– Shhhhhhh. Silêncio. (pausa) – O que você escutou durante o silêncio? projeção:
Uma estrada. Uma árvore. Entardecer. Estragon sentado numa pequena
| O Corifeu: elevação, tenta tirar o sapato. Faz um esforço com as duas mãos, pára exausto,
descansa um instante e começa tudo de novo. Entra Vladimir.
– Nada.
Estragon (desistindo de novo)
| A atriz:
– Nada a fazer.51
– E o que é?
A atriz e o Corifeu observam em silêncio.
| O Heidegger:
| A atriz e o Corifeu:
– No nosso interrogar já supomos antecipadamente o nada com algo que “é” assim e – Nada a fazer.
assim – como um ente, mas, precisamente, é dele que se distingue absolutamente. O
perguntar pelo nada – pela sua essência e seu modo de ser – converte o interrogado Silêncio.
em seu contrário. A questão priva-se a si mesma de seu objeto específico.50 | A atriz:
| O Corifeu: – De novo a tal angústia. Vamos falar qualquer coisa.
– E como devemos formular esta pergunta então? | O Corifeu:
– Vamos.
| A atriz:
– Shhhhh. Creio devemos novamente fazer silêncio. | A atriz:
– Então...
Tempo
Silêncio.
Tempo
| O Heidegger:
Tempo.
– A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir
| O Corifeu: e assim, justamente nos acossa o nada, em sua presença emudece qualquer
dicção do “ é”. O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza
– Putz. Não veio resposta nenhuma. Que saco! Não entendo nada. da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o
testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado
| A atriz: imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse
– O nada não é isto nem aquilo. da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: diante de que e
por que nós nos angustiávamos era “propriamente” – nada. Efetivamente: o
| O Corifeu: nada mesmo – enquanto tal – estava aí.
– Então o que é? Com a determinação da disposição de humor fundamental da angústia
atingimos o acontecer do ser-aí no qual o nada está manifesto e a partir do
| A atriz: qual deve ser questionado.
– É disso que ele está falando. Se fazemos a pergunta desta forma, caímos O que acontece com o nada?52
no mesmo lugar, estamos presos a essa pergunta. Mas o nada permanece.
Ou seja, essa pergunta que volta a si mesma não dá conta da totalidade | Álvaro:
dessa questão sobre o nada. – E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho.

51 Beckett, Esperando Godot, 1976. p. 9. (primeira cena).


50 Heidegger, O que é a metafísica?, 1973. p. 235. 52 Heidegger, O que é a metafísica?, 1973. p. 238.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 77

Cena V:
Platão expulsa o poeta da Pólis.

| A atriz:
– O poeta realizava a escuta das Musas e mantinha viva a memória do
Homem, como música, como poesia, como vida.

| Platão diz a Álvaro:


– Fora!
Álvaro sai cabisbaixo, sabe que tornará a visitar Lisboa, mas talvez jamais possa
viver ali. Ao fundo do palco, podemos ver sua sombra de um lado para o outro.

| A atriz:
– Nós, artistas, atores (no meu caso), somos esse poeta vivendo à margem
da Pólis; vez por outra, colocamos nossos óculos escuros, nossas barbas
postiças e tentamos nos estabelecer no mundo dividido, outras vezes
tentamos adequar nossa arte às regras desse mundo – e nesse momento,
sem dúvida, acabamos com qualquer possibilidade de realizarmos
(tornar real) Arte.

| O Corifeu:
– Você repete a palavra mundo, o que você quer dizer com isso? O que
é mundo?

| A atriz:
– Hã... bem... Mundo é onde o ser se revela... não estou segura... Que
mundo é esse que nos revela? O que é mundo? É essa casca a ser quebrada,
da qual nos falam Castaneda, Hesse, Nietzsche, entre outros tantos? Ou
talvez a casca seja um mundo, como disse Hesse em Demian, então
deve haver um mundo além do mundo, como as babushkas da minha
infância? Seria mundo esse conjunto de possibilidades, de cascas a serem
quebradas? Ou possibilidades de ser e estar? Ser e estar aonde? E quando?
E onde e quando estamos em relação a ele?

| O Corifeu, a atriz e o Coro:


– Acho melhor chamarmos o Heidegger...
78 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 79

| O Heidegger: ou mal. Enquanto concebemos estas alternativas de maneira como o fazemos


– O mundo é, enquanto a respectiva totalidade do em-vista de um ser-aí, posto na vida quotidiana a coisa pára por aí. Mas, como sabemos pela teoria
por ele mesmo diante dele mesmo. Este pôr-diante-de-si-mesmo de mundo é o quântica, uma alternativa não equivale a um simples sim ou não; implica
projeto originário das possibilidades do ser-aí, na medida em que em meio ao também outras respostas complementares em que o grau de probabilidade
ente se deve poder comportar em face dele. O projeto de mundo, porém é, da do sim ou do não é explicitado, bem como sua interferência mútua. Em
mesma maneira como não capta propriamente o projetado, também sempre o conseqüência disso temos um continuum de respostas possíveis... 54
trans-(pro)-jeto do mundo projetado sobre o ente. Este prévio trans-(pro)-jeto
| O Corifeu o interrompe:
é o que apenas possibilita que o ente como tal se revele. Este acontecer do trans-
(pro)-jeto projetante, em que o ser-aí se temporaliza, é o ser-no-mundo. 53 – As possibilidades do ser-aí de que fala o Heidegger...

| O Corifeu: | Carl Friedrich continua:


– Como é? – ... ou falando matematicamente, um grupo contínuo de transformações
lineares de duas variáveis complexas. Esse grupo contém o Lorentz da teoria
A atriz põe os óculos e tenta compreender: da relatividade. Ao perguntarmos se qualquer dessas possíveis respostas é
– Mundo é onde e como o Ser se manifesta. O Ser torna-se consciente da aplicável ou não, na verdade estamos fazendo perguntas sobre um espaço
sua existência no tempo e no espaço, mas também há o trans-(pro)-jeto, o comparável ao continuum espaço-tempo do mundo real.55
que perpassa e vai além daquilo de que este Ser tem consciência: o velado.
| Fala a atriz:
O velado e o desvelado se tensionam ocasionando a manifestação do ente
na terra , que passa a existir no tempo... – Se cada pergunta suscita um universo de possibilidades de respostas,
como criar regras? Como dizer o que é certo se o certo nem sempre é o
| O Corifeu: verdadeiro? Em vez de regras, esses cientistas estabelecem alternativas,
– Daí? caminhos, e não metas. Se realmente há apenas a simetria, ou se o
princípio reside em uma trindade e, se três e dois são de fato caminhos
| Ela: excludentes, seguem como perguntas, imagens. A ciência, como a
– O Mundo surgido entra em tensão com a Terra, então, a partir daí, o ente arte, traça seus caminhos nos detalhes, na elaboração, e revela-se, para
passa a Ser. As tensões entre: velado e desvelado; Terra e Mundo, criam novamente tornar-se Mistério... se o Mistério existe apenas como uma
um movimento que é o próprio indivíduo e que é próprio dele, que só se necessidade humana de que ele exista ou se de fato ele é, e assim seguirá
dá enquanto indivíduo aí – no Mundo – Mundo é a revelação do Ser. sendo, não sabemos...

| O Corifeu: | O Corifeu:
– Não entendo esse tipo de reflexão. – Como encaixar esse acontecimento56 da arte no mundo ocidental, esse
mundo tão divido, onde todas as perguntas levam a uma teoria, a uma
| Fala o físico Carl Friedrich: resposta, a uma regra?
– Toda reflexão sobre a natureza tem de girar necessariamente em círculos ou
| A atriz:
espirais, pois só podemos compreender a natureza quando pensamos sobre
ela, e só podemos pensar sobre ela porque nosso cérebro foi formado de acordo – Arte não é regra, é exceção. Arte revela o real, manifesta mundo, e é
com as leis da natureza. Em princípio poderíamos começar por qualquer onde há um operar da verdade – e a verdade não é o que se pode explicar
lugar, mas nossa mente é feita de tal modo que parece ser melhor começarmos através de esquemas e provar através de equações matemáticas. A verdade
pelo mais simples, isto é, pelas alternativas: sim ou não, ser ou não ser, bem
54 Heisenberg, A parte e o todo, 1998, p. 282.
55 Heisenberg, A parte e o todo, 1998, p. 282.
53 Heidegger, Sobre a essência do fundamento, 1973. p. 314. (2. A transcendência 56 Aqui usamos a palavra “acontecimento” de propósito, para pensar em
como âmbito da questão da essência do fundamento). happening...
80 O Ator Guerreiro frente ao abismo

dá-se. A Arte, ou melhor, a Obra-de-arte dá-se. Ora, essa sociedade pós-


moderna ou pré-pós-moderna fragmentada está em crise, são tantas
exceções que a venerada ciência não consegue explicar. Surgem “abertos”
no terreno sólido do nosso entendimento racional, e é nesses abertos que
a Arte se dá, e como Arte não explica nada, ela acaba também velando,
desvelando, velando... criando esse mundo pulsante oposto à linearidade
do culto da razão.
Ao artista não é dada a possibilidade da tentativa, nem da adequação.
Tentativa é diferente de pesquisa. A tentativa pode ser um momento da
pesquisa, mas a tentativa em si é sempre sem compromisso. Quando
construímos um templo, não tentamos colocar uma pedra, colocamos
uma pedra; talvez possamos mudá-la de lugar, escolhendo, pesquisando
3 Propostas de Artaud
o melhor local, colocamos então outra pedra, e outra, e mais outra, par a ultr apassar o teatro
construindo assim nosso templo, nossa morada e nossa linguagem.
Essa linguagem vai além das regras, das estruturas que fundam o nosso tr adicional
templo. É preciso transcender as regras, mas é preciso encontrar um
terreno fértil, um espaço aberto no qual se origina e sempre esteve nosso
templo, à beira do abismo, que é templo e é também mandala. É nesse
terreno fértil que se dá vida à linguagem no corpo do ator, é lá que esse Cena I:
corpo se planta no chão/ teatro, que não é verdadeiramente chão e está O teatro hoje: breve diagnóstico
prestes a desequilibrar-se, pois em algum momento ele terá saltado no
abismo e não haverá mais chão nem fundamento. Então o ator estará em
| Mesa de bar. O coro agor a representa vários
risco. Ele estará exposto. Esta exposição constituirá sua beleza, que como
atores, roupas coloridas, chapéus, calças
disse Victor Hugo, é sublime e também grotesca. O ator é o herói e o
de algodão, etc.; apenas o Corifeu mantém o
bufão, e ambos são poesia em movimento.
personagem da cena anterior. Fala a atriz, neste
momento assume uma postur a mais intelectual
entre os colegas, imposta a voz:
– O teatro, durante muito tempo em nossa sociedade ocidental racionalista,
foi analisado a partir daquilo que ele possuía de mais objetivo: o texto.

| Corifeu ator 1:
– Historicamente, o Teatro Ocidental só passou a ser analisado sob o
prisma do estudo dos processos criativos do ator e do espetáculo a partir
do século XX.

| Corifeu ator 2:
– Anteriormente, até se podia comentar e analisar os resultados do texto
no palco: o espetáculo, e o único dado anterior a ele que possuímos é o
ponto de partida:
82 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 83

| A atriz e o coro: | A atriz explica pacientemente, afinal domina


– O texto teatral.57 este conhecimento e está aliviada por deixar
de lado todo aquele papo filosófico das cenas
| A atriz: anteriores:
– Hoje, então pode-se enxergar o teatro a partir dos olhos daqueles que – A Antropologia teatral é um estudo dos processos pré- expressivos do
foram parte de seus processos criativos. ator. Pré-expressivo é tudo o que vem entes da cena, ou seja, antes de ser
mostrado ao espectador: ensaio, treinamento, aprendizado.
| Corifeu ator 1:
– Este novo ponto de vista teatral, com certeza, ocasionou uma | O corifeu ator 1:
transformação nesta arte, na qual o foco passou a ser o ator, não o texto; – A partir desse estudo...
não o encenador, mas o ator, o último e às vezes o único na “cadeia
comunicativa” que leva ao espectador. | A atriz o interrompe:
– Que pode-se dizer ser um tipo de estudo ainda recente...
| Corifeu ator 2:
– O estudo dos processos criativos anteriores ao espetáculo, hoje, é | O corifeu ator 1:
designado como Antropologia teatral. – De fato, e podemos perceber que existem energias que usamos no
trabalho de ator que transcendem os sentidos e que ainda não possuem
| O coro: uma denominação específica, pois não sabemos como categorizá-las.
– Chamamos o criador da Antropologia teatral, Eugênio Barba, para
esclarecer o termo para nós: | O corifeu ator 2:
– Ou seja, os processos criativos vão além do que se pode descrever como
| Barba, esfregando as mãos uma na outr a: fisiológicos ou mesmo sensoriais.
– A Antropologia teatral é um estudo do ator e para o ator. É uma ciência
pragmática que se torna útil, quando por meio dela o estudioso chega a | A atriz:
“apalpar” o processo criativo e quando, durante o processo criativo incrementa – Uma vez eu assisti a uma montagem do Santo Inquérito, de Dias Gomes,
a liberdade do ator.58 e uma atriz bem gorda fazia o papel de Branca. Há uma cena em que ela
conta que tirou a roupa e se banhou no rio, e havia uma fragilidade tão
| O Corifeu da cena anterior pergunta: grande nela naquele momento que decididamente fazia com que eu visse
– Mas é um estudo de quê, exatamente? uma garota magrinha sobre o palco.
| Barba: | O Corifeu:
– A Antropologia teatral estuda o comportamento cênico pré-expressivo – Não faz sentido. Como se explica isso?
que constitui o nível de organização elementar do teatro (invisível ao
espectador).59 | Ela:
– Essa inexplicabilidade de que falávamos também aplica-se ao estudo da
utilização da energia pelo ator.

57 Podemos pensar em espetáculos improvisados, como no caso da Comedia | O corifeu ator 1:


dell’Arte, mas a teoria teatral também passou a ocupar-se destas manifestações
muito mais recentemente. E mesmo assim, boa parte da literatura sobre – Como no exemplo que você acaba de dar, usando como parâmetro o
Comedia dell’Arte aborda os roteiros do espetáculo, os tipos apresentados no espectador e o espetáculo.
palco, ou seja, estuda os resultados.
58 Barba, A canoa de papel, 1994, p. 27.
59 Barba, A canoa de papel, 1994, p. 23
84 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 85

| O coro: como se fosse um livro de receitas no qual tudo o que você precisa é achar a
– O que torna o espetáculo vivo, interessante? O que faz com que essa atriz página.62 E de certa forma foi o que aconteceu, pois o suposto “Método
de mais de cem quilos faça o papel de uma menina que se banha em um Stanislavski” tornou-se um paradigma no trabalho teatral deste século.
rio e o que o espectador vê seja uma mocinha esguia, frágil e assustada?
| O corifeu ator 1:
| A atriz: – Se não fosse o paradigma não haveria as grandes teorias.
– Aqui podemos frisar a importância do estudo dos processos pré-
| A atriz:
expressivos, na tentativa de compreender como se formam os fenômenos,
como se produz a energia transpessoal (capaz de falar a um espectador – Ai, gente, dá um tempo, vai. Nem tô a fim de entrar nessa discussão
em uma linguagem que será compreendida por ele de forma não agora.
intelectualmente conhecida). | O corifeu ator 2:
| O corifeu ator 1: – Ao Stanislavski!
– Barba refere-se a esse tipo de energia como energia extraquotidiana60, e | O coro:
explica que a utilização de energia quotidiana, ou seja, para fazer coisas
às quais estamos condicionados se dá de forma a economizar o máximo – Ao método!
de energia possível em cada ação. No caso da energia extraquotidiana do | A atriz:
ator, ele deve procurar expandi-la o máximo possível.
– Ô povo tacanho!
| O corifeu ator 2:
| O corifeu ator 1:
– Vocês só falam de Barba. E Stanislavski? Pra mim trabalho de ator é
– E ninguém lembra do Meyerhold?
Stanislavski.61
| O coro:
| A atriz assume sua postur a didática e discorre
sobre o assunto: – Ao Meyerhold!
– No começo do século XX, Copeau, Stanislavski e Vachtangov trouxeram o | O Corifeu, aquele da cena anterior, chama a
foco do teatro para a arte do ator. Stanislavski escreveu de forma complexa a atriz de lado e pergunta baixinho:
respeito dos processos dessa arte: o que acontece com o ator antes de entrar
– Quem?
em cena, o que acontece com o ator durante a cena. Ele tentou organizar
os elementos que compunham esses processos de modo a auxiliar o ator em | Ela:
sua criação e se tornou uma grande referência para o ator ocidental.
– Meyerhold foi aluno de Stanislavski, no começo do século XX. Introduziu
| O corifeu ator 2, exultante: uma mudança na formalização do trabalho do ator, que deixava de ser o
intérprete de um texto para ser um signo dentro de um contexto.
– É isso! O MÉTODO! Sem Stanis não somos nada. Ao método!
| O corifeu ator 1, intrometendo-se:
| Todos erguem seus copos. A atriz interrompe:
– Percebam que foi exatamente essa noção do ator visto como um símbolo
– Gente, gente! Stanislavski, como todo grande homem que enxerga além
que impressionou Antonin Artaud em seu contato com o Teatro de
de seu tempo, escreveu a seus editores em Building a Character que temia
Bali63 e que o levou a pregar a busca da sombra no teatro, um teatro
que suas propostas fossem cristalizadas como um método a ser utilizado
62 Prefácio de Stanislavski, “a cook book where all you need is to find is the
60 Barba, A canoa de papel, 1994. page”, Building a Character, 1950.
61 Pode ser gramaticalmente estranho, mas é linguagem de povo de Teatro. 63 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987.
86 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 87

esquematizado simbolicamente, que viesse se contrapor àquilo que ele próprio indivíduo praticante, transformando suas energias mais baixas
chamou de teatro de vizinhas.64 em energias mais sutis).

| O Corifeu: | O Corifeu:
– O quê? As vizinhas que fazem teatro? Elas são gostosas? – Mas esses pesquisadores que você cita possuem, antes de tudo uma
proposta prática, existe a necessidade de uma teoria do teatro?
| O corifeu ator 2, enfadado:
– Um teatro voyeur, onde o que acontece no palco se assemelha | A atriz:
demasiadamente ao que acontece na vida quotidiana. – A teoria do teatro tem sido vista muito como crítica ou como proposta
prática. Eu vejo a necessidade de um pensamento sobre o teatro a partir
| Ela: das questões que ele suscita, tanto na prática quanto nos labirintos do
– Para fugir deste teatro de vizinhas, Artaud propunha a utilização do que próprio pensar. O teatro é como um gigante moribundo, em algumas
ele chamou de forças negras da natureza, o despertar da sombra. partes da carcaça do gigante pontos de energia viva brilham, mas muitos
tentam realizar aquilo que chamam de teatro, contribuindo ainda mais
Os pesquisadores do teatro têm perseguido a idéia de sombra proposta
para a enfermidade do gigante. É preciso refletir sobre essa arte, sobre
por Artaud buscando dar-lhe forma.
como torná-la viva nessa situação limítrofe. Na iminência da morte ele
| O Corifeu: precisa de uma transformação radical que o faça reviver. E o movimento
– Que pesquisadores? da história, essa busca por “evolução tecnológica”, informação rápida,
globalização, etc., não parece estar apontando para essa transformação,
| O corifeu ator 1: cada vez mais o teatro voyeur parece ganhar forças, o teatro de
– A começar pelo Eugênio Barba de quem ela tanto fala... entretenimento, para passar o tempo. Torna-se vital a necessidade de um
questionamento neste momento.
| O corifeu ator 2:
| O Corifeu:
– Jerzi Grotowski...
– Uma busca pelos fundamentos...
| O corifeu ator 1:
| A atriz:
– Peter Brook.
– Ou talvez um abandono dos fundamentos e uma busca pela origem e
| A atriz, querendo dar uma de descolada: pela essência dessa arte. Artaud pensou o teatro do ponto de vista (e de
– O trabalho desses caras está baseado não só na observação de fenômenos ação de um ator) partindo de suas questões radicais.
ou na tentativa de dar seqüência ao paradigma predominante, mas
| O coro, interrompendo:
partindo da experiência do ator/ indivíduo eles buscam descobrir a
semente da técnica, contextualizando este ator culturalmente, passando – O que é arte? O que é cultura? O que é atuar?
para ele técnicas já existentes ou descobertas por outros atores em | O corifeu ator 1:
pesquisa, e a partir daí trabalham o “mágico”, ou seja, a capacidade
do ator de transmutar energia (transformar a energia quotidiana em – E Artaud propôs ainda uma utopia...
presença cênica, estabelecer uma comunicação mais sutil com o público, | Ela:
ou, como no caso de Grotowski, utilizar essa energia em benefício do
– Ou vislumbrou uma possibilidade? Quem já viu encenações de grandes
mestres sabe que a utopia do teatro alquímico, de fato, reside em algum
lugar... talvez seja como teatro do Lobo da Estepe de Hermann Hesse,
64 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. Teatro mágico: só para raros.
88 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 89

| O corifeu ator 1: porque ele será oculto neste mesmo instante da sua existência, ou seja,
– Mas, cara colega, Artaud sonhava em mobilizar multidões com seu teatro se a técnica existe é porque ela será imediatamente transcendida para se
contagiante como a peste. tornar Obra.

| O corifeu ator 2: | O corifeu ator 2, vir ando o último copo de


cerveja:
– O teatro alquímico tão violento, tão poderoso, capaz de transformar ator
e platéia. – Esse papo de clareira na floresta não faz sentido nenhum... esse
Heidegger viaja.
| O Corifeu:
– Isso é impossível.

| A atriz:
– Existem essas pesquisas em relação à práxis do ator que visam esse saltar
no abismo: propostas de exercícios físicos e vocais, técnicas de neutralizar
o ego, tornar o ator uma folha em branco65 onde se manifesta sua arte, ou
transformar o ator em um corpo-em-vida-atoral, como diz Barba.

| O corifeu ator 2, vitorioso:


– Métodos.

| O corifeu ator 1:
– Técnicas.

| O Corifeu:
– Fundamento.

| A atriz:
– Mas as técnicas não são o fundamento, e nem o fundamento é a arte: a
verdade do ator em cena não é um simples resultado da técnica como uma
equação matemática, mas sem dúvida advém desse ímpeto vertiginoso de
ir além, de saltar no abismo, de transcender.
Uma folha em branco é espaço vazio, é como a clareira na floresta66.
Quando mestres como Grotowski e Barba buscam a técnica, não fecham
o foco em uma técnica do ator como uma receita de bolo, mas na técnica
pessoal de cada artista, em que cada um desenvolve em sua arte, como
um ponto de partida e movimento, como a clareira na floresta, e mesmo
o mais intuitivo dos artistas possui uma técnica, um desvelado em sua
obra. Mas Obra é movimento, é velar e desvelar, se o desvelado existe é

65 Expressão de J. LeCoq.
66 Heidegger, A arigem da obra arte, 1977.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 91

Cena II:
A arte no mundo/ O teatro e a peste

| A atriz em um canto do palco


conversa com o corifeu ator 2:
– E aí? Conseguiu entender o Heidegger?

| O corifeu ator 2:
– Porra nenhuma.

| A atriz:
– E agora?

| O corifeu ator 2:
– Meu bem, eu sou ator! Eu decorei as falas que você escreveu. Fique fria.
O corifeu ator 2 pigarreia, limpa os óculos, assume uma postura professoral,
folheia um exemplar de A origem da Obra de Arte:
– Arte é sempre uma manifestação de mundo. Arte não pertence ao
mundo linear sistemático. Heidegger explica a obra de arte como
aquilo que se oculta e se desvela, como a clareira e a floresta: percebam
que a clareira só existe enquanto clareira, uma vez que a floresta a oculta
e a floresta passa a ser floresta pelo referencial da clareira que se mostra.
É nesse movimento de velar e desvelar que se dá a arte67.

| A atriz conta:
– Um dia desses eu estava no ônibus e havia um homem cantando e falando
sozinho, contando histórias fazia as vozes dos personagens, parava voltava-se
para as pessoas e falava com elas, como um apresentador de comédia, pedia
sua opinião, incitava-as, de um jeito tal que havia arte ali, o tempo já não era
o tempo da viagem, mas o tempo da ação do homem, o espaço tornava-se
mágico e de vez em quando eu me esquecia completamente que estava em um
ônibus, tão imersa eu estava nas peripécias do homem... de um lado a Baía de
Guanabara e o cheiro de maresia, de outro aquele ônibus cinza, fumacento,
e aquele homem existia ali como um elo perdido, como um bardo sagrado,
exercendo a função de juntar esses mundos através de sua arte latente.

67 Heidegger, A origem da obra de arte, 1977.


92 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 93

| O corifeu ator 2:
– A Arte nasce nos abertos que são deixados por aquilo que não se explica,
nesse pavimento aparentemente sólido da representação/ explicação, das
grandes questões nasce a grande Arte, não para respondê-las, mas para
alimentá-las e alimentar-nos delas. Cena III:
O teatro e a cultur a69ou A questão do vil metal
| A atriz:
– E a arte desse homem não tinha encontrado seu aberto para brotar, Artaud começa o texto O teatro e a cultura contrapondo cultura à fome.
então ela se infiltrava no asfalto do mundo planificado como uma erva
daninha, incômoda, incompreensível. | Entr a nosso Corifeu e faz aquela velha pergunta:
Artaud compara o teatro à peste, que se infiltra nas casas, que não segue – Para que serve a cultura se as pessoas passam fome?
uma lógica em sua contaminação indiscriminada, que se infiltra nos | A atriz:
órgãos, tomando a pessoa por inteiro... é um teatro poderoso, senhor da
vida e da morte. – Como já disse o velho mestre Heidegger, Arte não é utensílio, Arte não
“serve” para nada70. E a Artaud também não interessa para que serve, mas
| O corifeu ator 1: sim a busca por essa Arte verdadeira.
– Como relacionar esse teatro mágico de Artaud ao gigante moribundo dos | Artaud:
dias de hoje?
– Nessa civilização a cultura nunca coincidiu com a vida.71
| O corifeu ator 2:
| A atriz:
– Artaud sem dúvida foi o grande semeador de sonhos e de questões que
acompanham os pensadores dessa arte no século XX, grandes nomes – A sua busca é sempre por uma arte visceral, viva, vital, mágica.
como Grotowski e Peter Brook remetem-se a esse gênio insano para | Artaud:
tentar resgatar o enfermo.
– O importante é extrair da cultura aquilo que se assemelha à fome .72
| A atriz:
| A atriz:
– Para penetrar o asfalto do teatro contemporâneo de má qualidade com
– É como lançar-se no abismo e é também uma necessidade básica, como a
suas flores de erva daninha.
comida para quem tem fome... essa arte atinge quem dela participa de forma
Entram os personagens do Sonho de Strindberg, Inês e o Vidraceiro, física, e causa uma transformação (alquimia). Ora, na verdade, poderíamos
para colaborar com nosso texto. pensar que se arte manifesta mundo, isso já é uma transformação radical...
Artaud, você pensa no ator como veículo e sacerdote da Obra no teatro. E
| Fala Inês: essa Obra está muito próxima da magia...
– És capaz de me dizer porque é que as flores crescem no estrume?
| Artaud:
| O Vidr aceiro: – Por mais que exijamos a magia, porém no fundo temos medo de uma vida
– Crescem melhor assim por que têm horror ao estrume. A idéia delas é que se desenvolveria toda sob o signo da verdadeira magia.73
afastarem-se, o mais depressa possível, e aproximarem-se da luz, a fim de
desabrocharem... e morrerem. 68 69 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987.
70 Heidegger, A origem da obra de arte, 1977.
71 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 15.
72 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 15.
68 Strindberg, O Sonho, Ato I, 1974. p. 34. 73 Artaud, O tetro e seu duplo, 1987. p. 17.
94 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 95

| A atriz: essas forças, não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam
– Você fala em uma cultura em ação, oposta a esse sistema inerte que se algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento;
chama cultura. assim a cultura sem espaço nem tempo, e que nossa capacidade nervosa
contém, ressurgirá com redobrada energia 75.
| Ela fala com o corifeu ator 1, dirigindo-
se também à platéia, causando um efeito de | Ela:
distanciamento: – E essa verdadeira cultura, que não pode ser medida em unidades, essa
– Há quase um século atrás, Artaud, batia-se com a questão informação verdadeira cultura tem vida própria independe dessa arte de museu,
versus cultura, como nós, nos dias de hoje. estando muitas vezes escondida pelos museus, impedida de manifestar-
se em toda sua potência, pois torna-se exageradamente fácil aproximar-se
| A atriz continua: dos deuses que dormem nos museus 76, quem sabe sem estes recursos, estes
– É senso comum dizer que um homem culto é um homem bem informado, deuses despertem, estes deuses sem tempo e sem espaço?
que leu muitos livros, viu muitos filmes, lê a Folha de São Paulo, em São
Paulo e o JB, no Rio. Informação é medida em unidades absorvidas, | Artaud:
quantos livros, quantas datas. Como você vê esse aspecto? – À nossa idéia inerte e desinteressante de arte, uma cultura autêntica opõe
uma idéia mágica e violentamente egoísta, isto é, interessada: é que os
| Artaud está calmo e responde:
mexicanos captam o Manas, as forças que dormem em todas as formas e que
– Um civilizado culto é um homem bem informado sobre os sistemas em não podem surgir de uma contemplação das formas por si só, mas que surgem
formas, em signos, em representações.74 de uma identificação mágica com essas formas. E os velhos totens estão aí
| A atriz: para apressar esta comunicação.77
– E isso nada tem a ver com a verdadeira cultura. | A atriz:
| Ela comenta com o corifeu ator 1: – Os velhos totens em nossa civilização deveriam ser encarnados pelos atores,
sacerdotes modernos e profanos (pois não estão vinculados a nenhum
– Artaud abomina o que ele chama de cultura inerte, que é a cultura
dogma religioso), que seriam capazes de promover a comunicação com
“construída” sobre o terreno sólido do fundamento, da representação. Assim
como ele abomina esse teatro que encontrou segurança na palavra, no texto. essas forças mágicas, com aquilo que reside além da forma ( além da
Ele abomina essa idéia falsa de segurança, que é a própria modernidade representação), uma vez que acessassem o Manas. Esse Manas é o que há
estabelecida sobre conceitos científicos, nos quais o que não é passível de além do abismo e seu vigor, é o próprio labirinto onde se perde a razão
representação não existe ou é exceção, é marginal, está fora da Pólis. humana, o que não é linear, onde todas as possibilidades estão, bastando
que essa ator ouse ir até lá, trazer os símbolos, as forças que fazem parte
| O corifeu ator 1: desta memória universal do Homem, dando-lhes vida além da forma.
– O que, então, ele chama de verdadeira cultura?

| Ela:
– A verdadeira cultura é a que atua fora do sistema, fora do tempo e
espaço lineares.

| Artaud:
– Pode-se queimar a Biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros,
existem forças: podem nos tirar por um tempo a faculdade de reencontrar
75 Artaud, O tetro e seu duplo, 1987, p. 18.
76 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 19.
74 Artaud, O tetro e seu duplo, 1987, p. 16. 77 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 20.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 97

Cena IV:
As sombr as ou o duplo

| Nesta cena a atriz vai falar de seu percurso pelas


vielas do pensamento de Artaud. Artaud está em
cena, mas ela nunca vai falar diretamente com
ele. Fala Artaud:
– Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua a ser a de nomear
e dirigir as sombras: e o teatro, que não se fixa na linguagem e nas formas,
com isso destrói as falsas sombras preparando o caminho para o nascimento de
sombras à cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.78

| A atriz, no procênio, dirige-se à platéia. Artaud


permanece congelado sob um foco ao centro.
Ela:
– Nomear e dirigir as sombras no teatro para Artaud é como o movimento
de velar e desvelar da clareira em relação à floresta de Heidegger. O teatro
é a forma mais explícita da Obra em movimento ou do movimento da
Obra. O teatro não se fixa na forma, nem perdura no tempo/ espaço,
criando outras relações tempo/ espaço. As falsas sombras obscurecem
a visão. São diferente das verdadeiras sombras que velam o mistério da
Obra. Destrir as falsas sombras possibilita o desvelar e o dar-se da própria
obra, que é a manifestação da própria vida, manifestação de mundo. O
ator é parte dessa manifestação/ obra. Deixa de ser Fulano ou Beltrano
para ser Obra. Obra de arte viva.
Essa noção do ator integrante e integrado a essa obra foi o que impressionou
Antonin Artaud em seu contato com o Teatro de Bali79, que era um teatro
onde existia toda uma técnica artesanal compondo a obra, técnica e
disciplina dos atores, que se colocavam como parte integrante de uma obra,
como cores e traços numa pintura, mas a um tempo manifestantes dessa
própria obra, por ser cada um criador de seu próprio movimento nela.
Artaud passa a partir daí a pregar a busca de um ator movido por essa
força da manifestação da obra, oposto ao teatro corrente da época que

78 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 21.


79 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987.
98 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 99

ele chamou, como dissemos, de teatro de vizinhas80, que seria um teatro dúvida brutaliza as formas, e através da sua destruição, ele alcança aquilo
menor, proveniente da observação e tentativa de imitação da vida, onde que sobrevive às formas e produz a continuação delas.82
o espectador fica reduzido a um voyeur fofoqueiro que observa a vida
alheia, onde o mágico inexiste e as dimensões são quotidianas. O mágico | Ela:
reside nesse manifestar mundo. – O trabalho do ator deve buscar o que produz essa continuação da forma,
o que reside além do visível a partir do corpóreo, uma vez que é a partir
A sombra para Artaud é também o que ele chama de duplo:
do corpo que ele manifesta sua arte. O corpo do ator é linguagem –
| Artaud: linguagem própria do teatro – da arte viva – porque além de ser viva como
arte é viva por que respira, porque nasce predestinada à morte, como o
– Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte se instala
próprio homem. Segundo Artaud, o ator que gesticula demasiadamente,
a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma
sem precisão na sua linguagem, brutaliza a forma, ou seja, consolida um
espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso 81.
estereótipo que o impede de alcançar o que está além. O ator é um atleta
| Após a palavr a repouso, ele congela. Ela: afetivo, que através do rigor com que trabalha o seu corpo, desvela para o
espectador o invisível.
– Junto com aquilo que se revela (a escultura), surge aquilo que se oculta
(sombra), e a tensão entre uma e outra é origem desse movimento – arte. | Artaud:
A sombra é o contato com o mistério, com o velado e também aquilo que – O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a seguinte correção
evitamos como civilizados cultos que somos. surpreendente, que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo
análogo e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro, embora não
A sombra, por ser velada, é inexplicável e fundamental para que ocorra arte.
atue no mesmo plano. 83
Duplo é a própria máscara invisível do ator, independente de maquiagem
ou figurinos, é essa máscara que, quando o ator tem coragem para vestir... | Ela:
– O ator transmite energia com seu corpo. O público, ao receber essa
| O coro: energia, interpreta-a como emoções para o público. E que o ator deve
– Ou despir. desenvolver em seu corpo essa capacidade de emitir energia de forma
precisa, como um atleta desenvolve sua musculatura para uma função
| Ela: específica. Grotowski e Barba buscaram transformar seus atores em
– Ou despir. Quando o ator tem energia para suportar essa máscara, ela o atletas afetivos, em corpos em vida atorais.
torna uma figura mágica, um totem moderno.
| Fernando de Toros entr a em cena par a falar
Artaud diz que o teatro é a única arte cujas sombras romperam com suas sobre este termo:
limitações. Por que no teatro o material com o qual se modela a obra é
vivo: o ator. E se mexe: – A diferença fundamental de Barba com qualquer outro Teatro Ocidental,
exceto com o de Grotowski, reside na maneira dele se introduzir no ofício, no
| Artaud: treinamento e na forma de preparação não canalizada até a produção imediata
– O verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de instrumentos vivos, de um espetáculo, senão até a criação de um corpo em-vida-atoral. 84
continua a agitar sombras nas quais a vida nunca deixou de tremular. O | O Corifeu:
ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, sem
– E qual seria o trabalho físico para compor este corpo-em-vida-atoral?

82 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 21.


80 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. 83 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 162.
81 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 20. 84 Fernando de Toros, El Odin Teatret y Latino America,
100 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 101

| A atriz: | O Corifeu:
– Talvez um trabalho rigoroso, mas que não se cristalize, compondo – Castaneda... tsc, tsc.
um processo circular, abissal, que contenha a semente de sua própria
mudança, de sua própria destruição. | A atriz, ignor ando o comentário:
Artaud compara o teatro à peste85, e ao mesmo tempo, aponta o mesmo – Podemos também pensar no filme Matrix 87, no qual o mundo é uma ilusão
teatro como a única cura possível para o Homem. A peste para Artaud criada para roubar energia vital de seres humanos inertes, enclausurados
não é uma doença que possa ser compreendida isolando-se seus vírus em em cápsulas de vidro e alimentados por tubos, existindo a possibilidade
laboratório, mas é como uma entidade, com vontade própria, arbitrária, de libertar-se para uma árdua realidade, onde é preciso ser extremamente
que deixa o homem à mercê de sua vontade, ou do acaso, ou seja, tira hábil e forte para sobreviver.
dele a segurança e atira-o no abismo do “tudo é possível”, que é também Artaud compara a ação desinteressada às ações realizadas no sonho, no qual
o espaço da Arte. tudo o que nos rodeia é mutável, e por isso ameaçador, mas nem por isso
Mas o ator, o homem, tem esse medo do desconhecido, busca sempre a deixamos de agir, na verdade, agimos sem ponderar, sem passado e sem
segurança, um estado de alerta, ao mesmo tempo, não encara o verdadeiro expectativas, apenas a ação, que desencadeia outra ação e assim por diante.
perigo. Em nosso estado de alerta buscamos reafirmar a solidez de seu Vivemos o presente, vivemos o abismo.
fundamento, a representação. Artaud compara esse falso estado de alerta
É interessante observar como os grandes práticos do teatro do nosso
a dormir. Como não vemos o perigo, não agimos de fato, mas somos
levados por essas inércia da segurança. tempo buscam esse atleta afetivo em seus atores/ obras e Peter Brook, ao
relatar sua experiência prática chega à mesma conclusão de Artaud sobre
| Ele diz: essa ação que é tentada pelo repouso e o medo que ela infere, por atirar-
– Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é nos no desconhecido.
duro acordar e olhar as coisas como num sonho, com olhos que não sabem
| Fala Brook:
mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro.
– Quando o instrumento do ator, seu corpo, é afinado pelos exercícios,
É assim que aparece a idéia estranha de uma ação desinteressada, mas é a desaparecem as tensões e os hábitos desnecessários. Ele fica pronto para abrir-
ação de todo modo mais violenta por ladear a tentação do repouso.86 se às ilimitadas possibilidades do vazio. Mas há um preço a pagar: diante
| Ela: desse vazio desconhecido surge, naturalmente, o medo. Até mesmo um ator
de larga experiência, sempre que vai retomar seu trabalho, quando se vê na
– O teatro/ arte é visto por ele como aquilo que desperta o homem para
borda do tapete sente esse medo voltar – medo do vazio dentro de si mesmo
esse olhar que não é com os olhos, esse olhar que é característico de
um operar da verdade. Uma clareza que o mundo sistematizado causal e do vazio no espaço. Imediatamente, ele trata de preencher esse vazio para
não permite, pois nele não se vê o que há além dos esquemas. Carlos livrar-se do medo, tentando achar alguma coisa para dizer ou fazer.88
Castaneda fala em ver... | A atriz:
| O Corifeu: – Como encontrar essa ação que não é gesto, é poiesis, é ação nascida do
– Ver o quê? silêncio, tem seu tempo próprio, independente da vontade da nossa
mente barulhenta e ansiosa? Como chegar a essa ação que nos tira de
| Ela: nosso controle sobre esse mundo que afirmamos e reafirmamos através
– É ver de feiticeiros, que vêem além das formas conhecidas, que, segundo do diálogo interior89, através da nossa racionalização? Nós estamos
sua tradição, foram estipuladas por um senso comum, vou falar mais
sobre isso quando chegarmos no capítulo sobre o Castameda.
87 Filme com direção e roteiro de Andy Wachowski e Larry Wachowski.
88 Brook, A porta aberta, 2000. p. 18.
85 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 25. 89 Essa constatação de que o mundo se afirma como o conhecemos através do
86 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 20. diálogo interior e dessa forma estabelecemos o mundo tal como o conhecemos
102 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 103

acostumados a dividirmos tudo em partes e somarmos em equações do que o senhor diz, uma vez que sou atriz e entendo perfeitamente o que foi
lógicas que criam esse mundo seguro, sem mistérios, sem grandes medos. dito. Mas como uma reflexão sobre o teatro para não atores que gostariam
Mas somos generais vencidos, pois o mistério nos cerca a despeito da de compreender essa arte e talvez descobrir para que serve, o senhor não
nossa vontade de ignorá-lo e ele se mostra através das situações mais crê que ainda deveríamos refletir sobre a necessidade de uma linguagem
simples, como essa que nos aponta Peter Brook. Em seu trabalho há um própria para falar de teatro, em que o corpo do ator não fosse nem um
tapete no meio do espaço, e é esse tapete que separa o mundo quotidiano instrumento, apenas muito menos um instrumento externo a ele?
do mundo teatral, por isso Brook fala do medo à borda do tapete, ao
Espaço vazio para resposta...
pisar no tapete, o mundo é a poiesis, não a Pólis. É o mundo do Poeta,
no centro do espaço, e não à sua margem, como poderíamos acreditar.
O ator, ao pisar no tapete, compromete-se em fazer parte desse mundo, e
como é ator, ou seja, fazedor de ações, é esperado que ali ele aja.

| Brook conta sobre seus atores:


– Sentar-se imóvel ou ficar quieto requer muita coragem. A maioria das nossas
manifestações exageradas ou desnecessárias provêm do pavor de não estarmos
realmente presentes se não avisarmos o tempo todo, de qualquer jeito, que de
fato existimos.90

| A atriz:
– Esse avisarmos o tempo todo, de qualquer jeito, que de fato existimos está
relacionado com a reafirmação do mundo através do diálogo interior,
assim nós atores, que tornamos visível o invisível, exteriorizamos a ação
interna, que não nasceu no espaço vazio interno, mas no burburinho
incessante que nos torna quotidianos e tributáveis, assim reafirmamo-nos
como pertencentes à Pólis e não somos obrigados a nos depararmos com
o mistério ou a sermos portadores de uma anunciação desconhecida.
É importante notarmos que é um grande mestre do teatro quem nos
fala, e qualquer ator que trabalhe nesta linha do teatro antropológico
compreenderá o que ele quer dizer e se souber aplicar estas palavras em
seu trabalho perceberá uma melhora significativa na qualidade do seu
fazer teatral, mas se tornasse a encontrar este grande mestre (ou se algum
dia lhe cair nas mãos este texto), gostaria de lhe colocar uma questão que
é fundamental neste texto, e de que também trata Artaud.

| Andrea fala a Peter Brook:


– Quando o senhor fala o instrumento do ator, seu corpo, existe ainda uma
separação na referência ao ator corpo-em-vida-atoral do corpo do ator,
objeto, instrumento. Isso não afeta, de fato, o conteúdo nem a importância

é de Don Juan, na obra de Carlos Castaneda e voltaremos ao assunto quando


falarmos sobre ele mais adiante.
90 Brook, A porta aberta, 2000. p. 18
O Ator Guerreiro frente ao abismo 105

Cena V:
O teatro ritual e mágico

| Fala Antonin:
– O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em
uma religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos e está ligada
diretamente aos ritos do teatro que são o próprio exercício e expressão de uma
necessidade mágica espiritual91.

| A atriz narr a:
– Artaud no texto O teatro, antes de tudo, ritual e mágico apresenta a
idéia de uma totalidade inicial, seu esfacelamento e posterior busca da
unidade, ou seja, o Filho Pródigo e seu retorno ao lar92. Ele crê que o
teatro seja uma forma da decadência do ritual que, atingindo o auge desta
decadência, percorreria o árduo caminho do retorno ao lar. Ritual aqui
pode ser entendido por originário, o que está antes e além desse momento
que vivemos em que tudo foi linearizado, representado, racionalizado.
Na origem do mundo e da própria arte existe uma compreensão através
do mito, uma comunhão com as forças da natureza, o homem pertence
originariamente a esse movimento do cosmos. Movimento que é também
caos, perigo e integridade. Originário não é fundamental e nem de forma
alguma um momento no tempo cronológico, mas o princípio e fim da
existência, o que há além, e o que unicamente, unamente, é.

| O Corifeu:
– Ai, lá vai você com esse papo de representação linear versus perigo do caos.
Se tudo é caos, o que Artaud quer dizer com eficácia que se traduz em gestos.

| Ela:
– Para refletir sobre o que quer dizer eficácia no teatro, vamos assistir ao
ensaio da peça Servindo aos nossos propósitos, de autor desconhecido,

91 Artaud, Linguagem e vida, 1995. p. 75.


92 Podemos ver a parábola do filho pródigo sob uma ótica espiritualista como
uma metáfora para a história do Homem, que tendo saído do seu estado de
luz e de unidade com o divino, teria decido à terra para viver suas experiências
como indivíduo, tendo ali descoberto (ou estando prestes a descobrir) que a
grande perfeição, a experiência perfeita estaria em descobrir o caminho de
volta a unidade, isso é voltar ao lar, voltar a deus, atingir a iluminação.
106 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 107

claro que convidamos você, querido Corifeu, para que faça sua célebre | A atriz:
pergunta no momento certo. – O ator é capaz de conversar com o espectador em uma linguagem não
decifrável em signos. Uma linguagem que é própria ao teatro e à Arte.
| O diretor:
– Esta cena funciona! Muito bem! Artaud no texto O teatro e a metafísica fala que o teatro deveria ser como
o quadro “As filhas de Lot” se este soubesse falar a linguagem que lhe
| O ensaio continua, o diretor contr ai pertence 93. O que o quadro diz está dito pelo próprio quadro. Ninguém
progressivamente os músculos da face e vocifer a explica o quadro. Você pode escutar o quadro (escutar das musas).
com os atores: Você pode ver o quadro (ver dos feiticeiros). Ver e escutar não são uma
– Esta cena não funciona, o que vocês pensam que estão fazendo? Querem busca de segurança pelos sentidos do ver e escutar quotidianos, que
arruinar o meu espetáculo? podem ser bastante seletivos. Existe uma outra disposição, no caso do
ator, uma energia diferente se despende dele, possivelmente a energia
Nesse momento, os atores lançam um olhar órfão de incompreensão. extraquotidiana à qual se refere Barba. E essa energia existe quando se dá
| O coro de atores: a linguagem poética em cena.
– Como podemos fazer a cena funcionar? Chamem um técnico que entenda
de funcionamento!

| A atriz (em off):


– A cena não é um objeto mecânico que basta mover-se para sabermos
se funciona, ou não. A cena produz uma série de sensações em quem a
executa e em quem a assiste.

| O coro:
– Sensações, emissão de energia, apreciação pessoal?

| A atriz:
– Na verdade, a cena cria mundo, levando ator e espectador a essa dimensão
extraquotidiana, de um mundo não sistematizado, onde tempo e espaço
agem de forma não linear.

| O Corifeu enuncia sua célebre questão:


– O que faz com que um ator absorva o espectador de forma quase
hipnótica, o fascine e outro não?

| A atriz:
– Como dissemos, os estudos dos processos pré-expressivos compõem uma
tentativa pragmática de compreender como se formam os fenômenos,
como se produz a energia transpessoal.

| O Corifeu:
– Como assim? 93 Artaud. O teatro e seu duplo, 1987. p. 50 (aqui eu mudaria essa tradução para
que lhe é própria).
O Ator Guerreiro frente ao abismo 109

Cena VI:
Breve elegia

| A atriz recita emocionada:


– Artaud... Artaud e seu Teatro Alquímico... se o leitor me permite, eu vou
abrir um pequeno parêntesis para falar um pouco sobre esse gênio louco
de nosso louco século.

| O Corifeu:
– Pô, mas ele não viveu no século XX?

| Ela:
– Shhhhhhhhh. Dá um tempo, pô!

| Continua, emocionada:
– A morte em vida, a loucura, a dor, assim viveu Artaud, como um duplo
dramático dos nossos tempos. Viveu e morreu o teatro e a peste; o teatro
como paixão e como cura (talvez a única possível) e a peste como
renovação, a crueldade como necessidade, como fator de transmutação/
enxofre, indispensável para a realização da alquimia.
Artaud pregava a destruição das estruturas, dos esquemas. Anárquico
e holista, buscou uma transformação violenta que se daria, não através
da revolução ou da ameaça física real, mas do outro lado do espelho,
no teatro, em que essa ameaça seria física e real por ser transcendente,
onde a violência consiste em quebrar o espelho e a transformação, na
comunicação entre reflexo e refletido.

| O Corifeu:
– Que espelho é esse? Então você quer dizer que Artaud vê o teatro como
um espelho do mundo conhecido?

| A atriz:
– Artaud não apresenta o teatro como espelho do mundo conhecido,
e sim como reflexo do mundo mágico e como forma de acesso a este
mundo. Ele prega a existência de um teatro alquímico, um teatro em
que haveria uma troca energética tal entre ator e espectador, que ambos
110 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 111

terminariam o processo obrigatoriamente transformados. Teatro seria a


causa, conseqüência e celebração dessa transformação.

| O Corifeu:
– E como se dá essa transformação? Cena VII:
| Ela: A relação ator-espectador
– Artaud quer que ambos, ator e espectador94 corram um perigo ainda
maior do que o desnudamento, o perigo da peste, que mata (transforma), | A atriz continua:
mas antes de matar, contamina a todos que lhe forem susceptíveis. Para – A relação que se estabelece entre o ator e o espectador vai além de uma
ele, a metamorfose deve ser total e catártica tanto para o ator como para compreensão objetiva/ subjetiva. Existe, então, uma linguagem que é
a platéia; o desnudamento deveria ir além da pele, expondo as vísceras do própria do teatro, além das palavras, do texto.
ator: não um desnudamento, mas uma dissecação. Lembrando que, em
ambos os casos, o que se busca é a transformação, e qualquer transformação | Nosso Corifeu torna a perguntar:
é perigosa, pois tira o ser humano de seus condicionamentos, apresenta a – O que faz com que um ator se torne mais interessante que o outro,
ele o novo, o desconhecido mesmo que ambos digam o mesmo texto, com a mesma entonação, com
os mesmos gestos?

| A atriz aventur a um resposta:


– Carisma? Garcia Lorca falava que o artista possui ou não “duende”95, que
seria um algo a mais, uma magia que o torna diferente naquele momento.
Seria isso o talento simplesmente? Ou será uma capacidade do artista de
agarrar o momento e torná-lo único?
É ainda imprescindível que se fale sobre um novo tipo de artista no
palco em pleno século XXI. O velho ator é um espécime em extinção,
os aspirantes são muitos, mas quase não se encontra aquele ator que nos
comove, nos tira o sentido do tempo e espaço presentes, como deveria
fazer Constantin Stanislavski no começo do século...

| O Corifeu:
– Já passado!

| A atriz:
– Tô ligada...

| Respir a e prossegue:
– E surge o performer, aquele que faz96, ator (o que põe em ação) de uma
arte mais integral. Por vezes este performer começou como ator de teatro,
94 Uso a palavra espectador, pois não me vem à cabeça uma palavra melhor, já que bailarino, músico, poeta ou artista plástico e acaba se tornando uma
o público de um espetáculo proposto por Artaud jamais seria um espectador, e
sim um participante ativo – A Kompanhia Multimídia de São Paulo, dirigida por
Ricardo Karmann e Otávio Donasci, usa o termo expedicionário para designar 95 Lorca na conferência Teoría y juego del duende, 1933.
os participantes de seus espetáculos. 96 Do verbo to perform em inglês.
112 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 113

síntese de tudo isso, capaz de interagir com o Outro, integrando-o no


mundo de sua arte no qual não existe a dicotomia eu/ tu, que comumente
se traduz por separação palco/ platéia, ação/ palavra, canto/ dança, ator
principal/ figurante e fragmentos mil que despedaçam a obra.
O performer integra o espectador em sua obra/ mundo, estabelece uma Cena VIII:
linguagem comum a ambos que torna este mundo possível. Nesse mundo, O ator alquímico
através dessa linguagem, o espectador deixou de ser um espectador no
sentido passivo que a palavra carrega. Esse mundo se estabelece a partir Mais uma vez, a despeito de nossos obséquios e do medo de um compreensão
de ambos, e torna possível que ambos também se estabeleçam dessa nova errônea, chamamos o Heidegger, faz-se o silêncio no palco e na platéia.
forma; nesse movimento, o mundo se abre para eles e eles se abrem para – O ente, digamos a natureza no sentido mais amplo, não poderia revelar-se de
o mundo, que é talvez como o mundo anterior ao pensamento ocidental, maneira alguma se não conseguisse ocasião de entrar num mundo. Por isso,
um mundo pré-platônico, pré-sofístico; que pode ser entendido como falamos de uma possível e ocasional entrada no mundo (Welteingang) do
um mundo poético, ou um mundo ritualístico, um ritual de que no fala ente. Entrada no mundo não é algo que ocorre no ente que entra, mas algo
Artaud. É o mundo primário, onde o ritual não se separa da arte, onde a que acontece com o ente. E esse acontecimento é o existir do ser-aí, que como
palavra não se separa da ação, onde o homem não se separa do mundo. existente transcende. Somente quando na totalidade do ente, o ente se torna
Aqui há ainda um acontecimento da verdade... mais ente ao modo da temporalização do ser-aí, é dia e hora da entrada no
mundo pelo ente. E somente quando acontece esta história primordial, a
| O Corifeu: transcendência, isto é, quando ente com caráter do ser-no-mundo irrompe
– E você já está falando do Heidegger... para dentro do ente, existe a possibilidade de o ente se revelar.97

| Ela segue entusiasmada: | A atriz vai falar sobre sua experiência pr ática:
– Fazer o quê? – O ator alquímico, atleta afetivo busca constantemente essa
possibilidade de revelar-se, de acontecer no mundo que é a sua arte;
Não há divisão entre o mundo sensível e o mundo inteligível, eles
essa possibilidade de revelação.
acontecem simultaneamente, através da linguagem, a linguagem como
ação poética. Eu venho pesquisando formas de treinamento98 que levem o ator a um
estado de disponibilidade, como um pedaço de solo pronto para ser
O estabelecimento deste mundo e o acontecimento desta verdade é o que
fecundado. Esse estado é também um estado de neutralidade. Nessa
estamos buscando em nossa arte, que seria uma arte viva, um teatro vivo
pesquisa deparei-me com algumas técnicas como a de uso de máscara
em oposição ao teatro morto ou burguês criticado por Peter Brook e por
neutra proposta por LeCoq.99
tantos outros, aquele teatro onde o espectador (e aqui ele possui o sentido
passivo da palavra) vai para observar um drama que não lhe diz repeito,
do qual ele está essencialmente separado do que acontece, e esse teatro
também provavelmente é feito por atores que vivem esta separação da sua
arte, como se ela fosse um Outro. 97 Heidegger, Sobre a essência do fundamento, 1973. p. 314 (2. A transcendência
como âmbito da questão da essência do fundamento).
O performer não é um ator, mas um ator pode ser um performer. Nota do autor: Através da interpretação ontológica do ser-aí como ser no mundo
não caiu nem positiva nem negativamente, a decisão sobre um possível ser
para deus. Mas pela clarificação da transcendência se alcança primeiramente
um adequado conceito do ser-aí, o qual levado em consideração nos permite
então, perguntar qual é, sob o ponto de vista ontológico, o estado da relação
do ser-aí com deus.
98 O treinamento que eu proponho na minha pesquisa de mestrado: “A construção
do personagem através do ritual”.
99 LeCoq, Role de Masque dans la Formation de L’acteur, 1988.
114 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 115

| O Corifeu: | O corifeu ator 1:


– O que é máscara neutra? – Cara, não seja vago, esse negócio de Teatro Oriental é muito vago.

| A atriz: | O corifeu ator 2:


– É uma máscara que cobre o rosto e tira a sua expressividade. Ao tirar – Estou falando do Nô e Kiogen no Japão, no teatro de Bali, na Ópera de
a expressividade do rosto do ator a máscara leva-o a um estado de Pequim, em que cada ator especializava-se em um personagem e buscava
neutralidade. O ator deixa de ser ele mesmo para ser algo novo, e precisa a repetição mais perfeita possível, e aí residia a beleza de sua arte: nesta
reaprender cada movimento, desde como olhar até como andar ou precisão, neste rigor do repetir.
manifestar sentimentos.
| O corifeu ator 1:
Esse estado neutro me parece fundamental na busca da minha arte,
– Podes crer. No Ocidente, pela história do teatro a expressão mais próxima
na busca de algo novo, de me revelar Obra no Mundo. Percebi que
e significativa de trabalho de ator anterior a este século que temos notícia
para chegar a essa neutralidade era necessário o controle do tagarelar
é a Comedia Dell`Arte, em cada ator especializava-se também em um
interno. Os budistas, entre outros, mostram tipos de meditações para
único papel, mas o improviso e não a repetição era a base de sua arte.
controlar o diálogo interior, pois o silêncio da mente permite que
estejamos conectados com os acontecimentos do tempo presente, com | O corifeu ator 2, empolgadíssimo:
o fluxo do universo.
– É disso que eu estou falando! Aqui podemos perceber uma diferença
É a energia que a movimentação do ator produz que vai colocá-lo em fundamental entre o Teatro Oriental e Ocidental: um se baseia na
contato com o movimento do universo, com as sombras. A ação de tradição do conhecimento, em sua repetição e o outro...
criar energia e a um tempo deixar-se arrebatar pela arte é a sua ação de
acontecer no e com o mundo. | O corifeu ator 1:
– O nosso...
Quando lemos Artaud não podemos esquecer de seu fascínio pelo teatro
de Bali, em que existe um rigor extremo no trabalho do ator, e que é desse | O corifeu ator 2:
rigor que ele fala ao pensar no ator como um atleta afetivo. E esse rigor, – Sim, no nosso teatro nós buscamos sempre criar algo novo, muitas vezes
se pensarmos em uma divisão Apolíneo/ Dionisíaco, é uma qualidade desprezando os ritos e a tradição.
apolínea, mas que por ser um rigor poético, embebido em sombras, é
também dionisíaco. | O corifeu ator 1:
Somos lançados nesse aberto em que se dá a tensão entre inesperado e – Mas lembre-se que caras como Barba têm baseado sua busca em técnicas
preciso, entre a disciplina e a fúria do guerreiro, com os quais o ator de tradições de diferentes culturas e no Teatro Oriental.
tenta lidar (já disse Artaud que o mais difícil para um ator é não cometer
| O corifeu ator 2:
um assassinato100 ...), e é nesse sentido que surge pra mim a idéia da
performance, de um teatro de improviso..., mas onde os atores possuem – É o lance do Artaud com o teatro de Bali...
rigor em sua arte....
| O corifeu ator 1:
Luz sobre a mesa de bar. Os corifeus atores 1 e 2 conversam: – E Grotowski, no final da vida, juntamente com seu discípulo Thomas
Richards, voltou-se para os cantos das ilhas do Caribe.
| O corifeu ator 2:
– No Teatro Oriental... | O corifeu ator 2:
– Pelo menos ele saiu um pouco dessa coisa com o Teatro Oriental que às
vezes enche o saco. Haja antropofagia!
100 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987.
116 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 117

| O corifeu ator 1: | Ambos congelam com os copos


– Tem também o Peter Brook, que volta-se um pouco mais para a questão erguido. Fala a atriz:
do improviso em uma busca inter-racial, trabalhando com atores das – Esta interação improvisada com o acontecimento presente chama-
mais diversas etnias e tradições... se performance101. Não podemos negar essas correntes ao pesquisar e
discutir um trabalho que faça existir este ator guerreiro. Aqui também é
| O corifeu ator 2: preciso haver um diálogo, não se pode negar o rigor e nem o improviso.
– O que esses caras têm em comum é a extrema precisão com que trabalham, O ator guerreiro usa técnicas rigorosas para se preparar, como um
o extremo rigor exigido do ator. guerreiro que treina com seu arco, mas muitas vezes seu campo de batalha
será o caos ou o precipício, situações das quais somente o inusitado (ou a
| O corifeu ator 1:
arbitrariedade da peste) poderá salvá-lo.
– O ator tem de ter rigor em seu trabalho.
Mas essa guerra é jogo, como jogo de criança: extremamente sério. Nesse
| O corifeu ator 2: jogo do ator há três participantes: o ator, o personagem e o espectador. O
– É isso aí! ator guerreiro/ artaudiano/ performer cria esse um jogo o personagem/
platéia; um jogo no qual ambos estejam em perigo.
| Erguem os copos. O corifeu ator 2:
| E torna a ecoar a pergunta colocada
– E aí, você vai pro ensaio mais tarde? pela criança Peter Handke:
| O corifeu ator 1: – Por que eu sou eu e não você?
– Acho que não, já estou com um ressaca antecipada. | A atriz:
| O corifeu ator 2: – E esta possibilidade de ser o outro é tentadora, a idéia de fundir-se, de
tornar-se Uno é quase uma idéia religiosa.
– Só.
| Os corifeus atores olham indignados.
| O corifeu ator 1: O corifeu ator 1 fala:
– Ei, você já viu aquela performance da Marina Abramovic? – Mas espera aí: essa coisa de personagem nem existe mais.
| O corifeu ator 2: | O corifeu ator 2:
– Cara, a gente não pode deixar de brindar aos performers. – Totalmente por fora, a gente está falando de performance...
| Ambos: | O corifeu ator 1:
– Aos performes! – De teatro contemporâneo.
| O corifeu ator 2: Congelam novamente.
– A artistas como John Cage! | A atriz:
| O corifeu ator 1: – Vou abrir aqui um parêntesis para introduzir a questão do personagem102:
o personagem de que falei não é agente de uma obra de ficção literária, e
– A John Cage, que não planeja absolutamente o momento seguinte de
seu ato.
101 No Brasil, temos um grande artista multimídia que trabalha com performance:
Otávio Donasci, criador das vídeo criaturas, com quem tive o prazer de
trabalhar durante três anos.
102 Vamos retomar esta questão no diálogo com Carlos Castaneda.
118 O Ator Guerreiro frente ao abismo

muitas vezes não está sequer vinculado a uma obra literária. Personagem
em cena é a Obra do ator, sua linguagem. O personagem não é interno,
nem externo ao ator, personagem é ele e é Outro.
É nessa direção que o ator tenta abandonar o sentimento de dualidade com
o qual fomos educados, esta forma metafísica ocidental de ver o mundo.
É preciso ir além da busca do fundamento e deixar-se integrar em um
processo mais dinâmico de mundo, um processo onde o movimento de
nascimento e morte, desvelamento e ocultação constitui uma ação única,
como o símbolo do Yin e Yang, que é dividido, porém em cada parte
dividida encontra-se a semente da outra parte e ambas se encontram no
mesmo círculo, no mesmo movimento.
Para que ator busque este movimento em sua arte, ele precisa renunciar 4 O Deus Andarilho
a inúmeros conceitos internos e tornar-se algo novo, entender a clareira
dentro da sua floresta e ser movimento/ tensão clareira/ floresta.

| O coro: Cena I:
– Onde estão a tensão e o movimento? As sombras? Onde estão os caminhos Dioniso
de Perséfone e Orfeu, que desceram aos infernos? Quem ousa segui-los?

| A atriz: | A criança:
– Artaud andou por esses caminhos, ou melhor, por essas veredas, e – Por que eu sou eu e não você?
também sua linguagem é vereda, é caminho do campo e é abismo. A Entra Dioniso, tocando sua flauta e dançando pelo palco, a criança senta-se e
linguagem em Artaud não é fundamento e sim, “aberto” e é nesse sentido observa-o executar os passos, saltos, piruetas... a criança ri e bate palmas.
que transcende o mundo da contingência, enquanto linguagem vigorosa,
viva. É em sua obra que Artaud realiza a alquimia de transformar técnica | A criança:
em sombra, palavra em obra; em sua obra escrita, e também, segundo – Quem é esse?
relatos, em sua obra como ator.
| A atriz, ao fundo do palco, enquanto Dioniso
| O coro: continua sua dança:
– É preciso saltar no abismo para falar do abismo... – Esse é Dioniso, nasceu da paixão de Zeus pela mortal Sêmele, princesa
de Tebas. Em seu arrebatamento, Zeus jurou jamais negar-lhe pedido
algum. Esse juramento vai determinar toda a seqüência dos fatos: a
enciumada Hera, disfarçada em ama de Sêmele, a convence a pedir a
Zeus que se mostre a ela com toda a sua magnitude de deus.
Zeus não pode negar o pedido de Sêmele, e mostra-se tal qual ela pedira.
Sêmele é instantaneamente morta por ter visto a resplandecência do deus,
consumida pelo raio e relâmpagos que o envolviam.103

103 Touchard, Dioniso, seguido de O amador de teatro, 1978. p. 14.


120 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 121

Ao perceber que Sêmele vai morrer carbonizada, Zeus salva o feto que sanidade. Mas Cibele, a grande deusa da Frígia, personificação das forças
estava em seu ventre e o coloca na barriga de sua própria perna. naturais, devolve-lhe a razão.
Assim começa a vida do deus Dioniso, que, apesar de ser filho de uma Dioniso é um deus errante (como é errante o teatro), o culto de Dioniso
mortal, foi concebido em um deus. Daí vem a origem de seu nome: duas não era feito em um templo específico, mas estava presente onde houvesse
vezes nascido. rituais de fertilidade.

| Os corifeus atores continuam na mesa de bar. | O corifeu professor 1, levantando-se da mesa de


Agora usam óculos e roupas mais formais, bar e assumindo uma postur a de sala de aula:
demonstrando que fizeram mestrado, doutorado – Percebam que Dioniso é um deus originalmente Frígio e, apesar de ser
e agora são professores de Teoria Teatral na uma divindade muito antiga, só aparece na literatura grega no século VII
universidade. O corifeu professor 1 observa: antes de Cristo. Até essa data Atenas era dominada pelos Eupátridas, os
– Perceba que não há hesitação na atitude de Zeus. bem-nascidos, e Dioniso era um filho ilegítimo, sendo ainda um deus
agrário, da fecundidade, da sexualidade. Dioniso era a prova viva do
| O corifeu professor 2: contato sexual entre um deus e uma mortal, ou seja, tornava frágil a
– Zeus não pode voltar atrás com sua palavra, apesar de saber que distância entre ambos, indo contra os valores vigentes na época. Só com
matará Sêmele. a decadência dos Eupátridas é que Dioniso foi admitido na Pólis.
| O corifeu professor 1: | O corifeu professor 2:
– E ainda, há o métron do qual nem Zeus estava liberto: mesmo sendo – Dioniso continua pondo em risco a estrutura de valores baseada no
um deus, ele não pode salvar sua amada. Nesse momento, Zeus iguala- princípio de desempenho104, onde a medida das coisas é sua eficiência,
se ao herói trágico. O termo Tragédia vem de Tragus (bode) – Ode sua causalidade. Dioniso continua sendo uma força inerente ao próprio
(canto). O deus bode nada mais é do que Dioniso, em uma de suas homem, como os instintos, e, por trazer em si essas forças inconscientes,
inúmeras máscaras. consideradas trevas, ele desafia um mundo em que o bom e o belo são
colocados como forças inerentes unicamente à luz, o mundo apolíneo,
| A criança: desafia o mundo do pensamento metafísico, o mundo dialético, e desafia
– Shhhhhhhhhiiiiiiiiiiiiiiiiiiiu. Fiquem quietos, quero ouvir o final da o mundo da culpa, o mundo cristão.
história.
| A criança murmur a:
| A atriz: – Chatos...
– Hera, enfurecida quer matar Dioniso e Zeus tenta escondê-lo na Corte
de Átamas, Rei Beócio da Queronéia, casado com a irmã de Sêmele.
Hera faz enlouquecer Átamas e sua mulher, Ino, que acabam matando
seus próprios filhos.
Para proteger seu filho, Zeus, então, transforma-o em bode, deixando-o
aos cuidados da ninfas e dos sátiros no Monte Nisa.
Quando vivia entre as ninfas e sátiros, Dioniso, após ter sido novamente
transformado em um lindo menino por seu pai, descobre como fazer
vinho, e descobre também a embriaguez do vinho. Hera aproveita-se de
um momento em que ele estava embriagado e sem defesas para tirar-lhe a
104 Do termo usado por Marcuse em Eros e Civilização, contraposto ao princípio
de prazer.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 123

Cena II:
Dioniso e o teatro

| O corifeu professor 1:
– Percebam que o teatro grego se originou dos rituais em homenagem a
Dioniso.

| Walter Otto:
– (Dioniso) Era o deus da embriaguez feliz e do amor extático, mas ainda o
Perseguido, o sofredor, o moribundo... deus do êxtase e do pavor, da selvageria
e da feliz libertação, deus louco cuja aparição deixa os homens em delírio105

| O corifeu professor 2:
– Em sua homenagem eram cantados ditirambos (hinos uníssonos). Os
ditirambos, no princípio, eram cantados em volta do altar do deus por
cinqüenta homens, cinco de cada uma das dez tribos áticas, que cantavam
homenagens e contavam a vida de Dioniso. Eram acompanhados pela
flauta e apresentavam-se mascarados de sátiros.
Esse coro foi evoluindo, incluindo em seu repertório outras histórias, de
heróis e semideuses, seus conflitos e paixões, e não só o culto ao deus.
O auge desta evolução é marcado pela atitude de um homem, Téspis,
nascido em Icária. Conta a história que ele teria se destacado do coro e
assumido a identidade do deus ou herói que estava sendo homenageado,
passando a falar em seu nome. Assim, o que era antes apenas ritual passou
a ser também teatro.

| Huizinga:
– Originalmente (a tragédia), era uma coisa muito distante da literatura
destinada ao palco, era um jogo sagrado ou um ritual lúdico. Mas com
a passagem do tempo, a representação dos temas míticos tornou-se uma
interpretação teatral com mímica e diálogos, de uma série de acontecimentos
que constituem uma história com enredo.106

105 Cf. Walter Otto: Dioniso, apud Touchard, Dioniso,seguido de O amador de


teatro, 1978. p. 14.
106 Huizinga, Homo Ludens, 1980. p. 160.
124 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 125

| A atriz: colocado como a fonte da vida, mas como a manifestação. O deus não é
– Assim, a primeira encenação teatral teria sido em meio a esse ritual em colocado como fundamento, mas como o próprio movimento da vida.
homenagem a Dioniso.
| O Corifeu:
Entra Téspis. – Ok! O deus era a manifestação da vida, e em suas origens, o teatro era a
manifestação do deus, o ritual, Ok! Então o artista dionisíaco faz com
| A atriz:
que esses mitos sirvam à nova divindade e, dessa forma, a tragédia ainda
– Vejam! Aquele foi considerado o primeiro ator. possui o invólucro mítico, não é?
Todos olham para Téspis.
| O corifeu professor 1:
– Dizem que no meio do ritual ele gritou: – Sim, bem colocado. Perceba que conforme o mito vai perdendo sua força,
também o teatro vai se afastando de sua origem, ao mesmo tempo que
| Téspis e a atriz em uníssono:
toma para si a salvaguarda do mito. As representações divinas tornam-se
– Eu sou Dioniso! símbolos teatrais.
| O corifeu professor 1: | O corifeu professor 2:
– Percebam que essa parece ser, de fato, a primeira noção que o mundo – A história do teatro nos conta que os ídolos em certa tribo na África
ocidental possui sobre a prática teatral. ganharam vida artificial, membros manipuláveis, sendo transformados em
| O Corifeu: marionetes, e as faces de deus (máscaras) adquiriram um aspecto lúdico.
– Mas será que o teatro realmente nasceu no momento em que um homem | O Corifeu exclama, impressionado
disse poder reproduzir a presença de um deus? com tamanha erudição:
| O corifeu professor 2: – Nossa!
– Pode ser que exista algo além da reprodução e encarnação de um | O corifeu professor 2 prossegue, vaidoso:
personagem dentro do conceito de teatro; o teatro sem dúvida nasceu – Sim. Foram descobertas na África108, juntamente com alguns objetos
do ritual, mas não podemos ser tão simplistas a ponto de pensar apenas sagrados, bonecas de mais de mil anos de idade que possuíam membros
nessa idéia do surgimento do primeiro ator. manipuláveis, que em algum momento da história deixaram de ser a
| O corifeu professor 2: imagem representativa e inerte de um deus para ganharem o sopro da
vida dado pelo homem.
– Joseph Campbell107 estuda a manifestação das divindades e os mitos em
diferentes culturas através da história. Às distintas manifestações das Isso nos leva a crer que o surgimento do teatro esteja ligado à consciência de
divindades, Campbell chamou máscaras. que as imagens poderiam ser manipuladas pelo homem que, identificado com
essas efígies, descobriu que, através delas era possível contar uma estória.
| A atriz interrompe:
Nesse caso, quando o ritual passou a ser teatro, quando o boneco e a
– E essas máscaras são a mesma máscara do teatro: uma manifestação viva, máscara ganharam vida, é que a magia passou a acontecer realmente. Um
uma personificação do oculto, que o revela, mas que também oculta, homem dando vida a uma imagem, o homem ganhando um duplo de si
oculta o rosto, oculta a face do deus. Os deuses, ao mesmo tempo que se mesmo, e esse duplo se tornaria o teatro.
mostram no mito, desvelam e velam em sua manifestação os mistérios
do mundo. Dentro das sociedades chamadas não plurais, deus não é
108 Dumango, Los origenes religiosos de los objetos animados y de las
marionetas negro
107 Campbell, As máscaras de Deus, 1993. Africanas, 1991.
126 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 127

| A atriz: uma e outra é origem desse movimento – arte. E, no entendimento de


– Mas esse aspecto lúdico continha em si a memória e o valor do Artaud, esse movimento é parto, é dor, é Dioniso dilacerado e renascido
sagrado, a seriedade da tragédia, dos ritos, da criança que brinca, na dor e no Mistério.
mas reverencia seu brinquedo, que a um tempo é brinquedo, e vida, é A sombra, por ser velada, é o inexplicável, é onde reside esse Mistério.
perigo e é mundo manifesto. O mundo mítico adquire um aspecto de
duplo do mundo quotidiano. O Mistério do ator de ser duas vezes nascido e de possuir um duplo, de
ser Homem e de ser Obra.
O duplo no teatro é própria máscara invisível do ator, independente
de maquiagem ou figurinos, é o que o torna uma figura mágica, um | O corifeu professor 1:
totem moderno. – Percebam que um fator importante na passagem do ritual para o teatro,
ou seja, nesta história de Téspis dizer: “Eu sou Dioniso!” é que o foco
| O corifeu professor 1 adianta-se, querendo
de atenção desses eventos passou a ser o indivíduo, deixando de ser uma
também mostr ar seu conhecimento:
manifestação coletiva. O Corifeu destacado do coro se individualiza.
– Percebam que em nossa sociedade esse duplo só é tolerado enquanto
manifestação artística. Afora disso seria considerado algum tipo de | O Corifeu:
esquizofrenia ou crendice. – Yesssssss!
| A atriz: | O corifeu professor 2:
– E no entanto, somos homens fragmentados, dilacerados, em busca da – Mas dessa separação que é sempre fonte de dor surge um Novo, um
unidade perdida, em busca do outro. terceiro Dioniso, de que nos fala Nietzsche: a tragédia, o teatro, que é
arte.
| A criança:
– Por que eu sou eu e não você? | A atriz aproveita par a falar sobre as tensões,
unidade e movimento, aparentemente seu
| O corifeu professor 1: assunto preferido:
– Ora, meu bem, perceba que nas sociedades não plurais se admitia a – E arte pressupõe unidade, pressupõe tensão harmônica de contrários,
presença do duplo. O homem dessas sociedades se entendia como: “eu movimento. E essa unidade face à dor da individuação é esperança.
sou eu, mas eu sou também meu totem”, e não havia discernimento, nem Téspis que deixa de ser parte de uma unidade para ser um deus (dois...).
necessidade de discernimento entre um e outro.
| Como ouviu seu nome, Nietzsche entr a no palco
| Artaud: e profere:
– Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte se instala – [...] a doutrina da tragédia que está nos mistéri: o conhecimento fundamental
a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma da unidade de tudo que existe, a consideração da individuação como o primeiro
espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso. 109 fundamento do mal, a arte como a alegre esperança de que o exílio da individuação
pode ser rompido, como o pressentimento da unidade restaurada.110
| A atriz:
– A presença do duplo no teatro é também sombra. | O corifeu professor 2:
A obra de arte é sempre viva, quando Artaud fala em dilaceramento do – Essa separação/ individuação está contida no próprio mito de Dioniso.
repouso, ele nos fala do nascimento das obras, junto com aquilo que se Nietzsche vê a paixão de Dioniso como um processo de individuação, e
revela (a escultura), surge aquilo que se oculta (sombra), e a tensão entre arte como esperança de que o exílio da individuação possa ser superado.

109 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 20. 110 Nietzsche, Obras Incompletas, 1978. p. 10.
128 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 129

| Nietzsche: celebração de estar vivo. Dioniso é o deus andarilho. Andarilho como o


– [...] Em verdade, porém, esse herói é Dioniso sofredor dos Mistérios, aquele deus teatro, mas também o deus da fertilidade e das colheitas.
que experimenta em si o sofrimento da individuação, do qual mitos maravilhosos
| O corifeu professor 1:
contam que, quando rapaz foi despedaçado por Titãs e nesse estado é venerado
como Zagreu: o que sugere esse despedaçamento, em que consiste propriamente a – Ou seja, o deus primordial, de todas as manifestações da vida.
paixão dionisíaca, equivale a uma transformação em ar, água, terra e fogo e que,
portanto, temos de considerar o estado da individuação como a fonte e o primeiro | O corifeu professor 2:
fundamento de todo o sofrimento, como algo repudiável em si mesmo. Do sorriso – E também o deus da embriaguez.
de Dioniso nasceram os deuses olímpicos, das lágrimas, os homens.111
| Ambos, correndo par a a mesa de bar
| O corifeu professor 1: e erguendo seus copos:
– Percebam que Dioniso, como Orfeu, faz uma trajetória de descida aos – A Dioniso!
infernos, mas, diferente do mito de Orfeu, os infernos de Dioniso, estão
dentro dele, admitidos como sua própria loucura, ou seu sofrimento ao | A criança:
ser despedaçado pelos titãs112. – O que é embriaguez?
| A atriz: | Atriz:
– E o deus oriental percorre a trajetória de sua reconstituição: psíquica, – A embriaguez dionisíaca, diferente da bebedeira destes dois, é ver o mundo
ao narrar sua loucura devido ao vinho; e corporal, ao se tratar de seu de outra forma ou sair da linearidade com que nos habituamos a ver o
despedaçamento pelos Titãs. Depois, vitorioso, Dioniso retorna, para mundo. É derreter a forma, derreter as estruturas. A colheita e a fertilidade
reinar ao lado de seu pai todo-poderoso. são pilares deste outro mundo, pois ele é feito de formas vivas, de matéria
| O corifeu professor 1: humana, de sangue e esperma. Esse outro mundo é o teatro do deus.
– Percebam que Dioniso é a personificação da catarse, o que retorna | O coro:
purificado, tendo passado por tantas tramas alheias à sua vontade, – E o mundo de Dioniso vai além do teatro.
fugindo da vingança de Hera, assumindo diferentes máscaras e sempre
celebrando a si mesmo, celebrando o “estar vivo”, e seu celebrar é o | A atriz:
mais alegre, e seu ódio o mais insano, pois assim são os sentimentos na
– Pelo menos vai além desse teatro que ainda precisa alcançar o mundo
tragédia: primários, arché.
de Dioniso, esse mundo onde há fertilidade e embriaguez, loucura e
| O corifeu professor 2: renovação, e vida, vida sob tantas diferentes formas.
– Dizia-se dos cultos de Dioniso ser tão perigoso desprezá-los e deixar de Dioniso termina sua dança, faz uma reverência e sai.
comparecer a seus rituais quanto querer contemplar Zeus em toda sua
glória, como fizera sua mãe.

| A atriz:
– O ódio de Dioniso é do que não se celebra, pois para o deus, assim
como para o teatro, a vida é eterna celebração, celebração de si mesma,

111 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978. p. 10.


112 Há versões diversas do mito do despedaçamento ritual do deus; nas “Bacantes”
de Eurípedes, por exemplo, fiel ao espírito “humanista” do teatrólogo, Dioniso
é morto pelo coro de suas sacerdotisas.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 131

Cena III:
Ho mythos

Os dois corifeus atores/ professores agora são dois críticos e comentam a


performance de Dioniso.

| Crítico 1:
– Eu acho que em certo momento ele perde o ritmo...

| Crítico 2:
– Eu achei meio over aquela parte do meio.

| Crítico 1:
– Falta disciplina.

| Crítico 2:
– Falta ordem.

| Crítico 1:
– É incompreensível.

| Crítico 1:
– E aquela discussão sobre a origem do teatro ao fundo, que falta de
veracidade.

| Crítico 2:
– Uma bobagem, nada diz a respeito de nós enquanto homens...
Saem.

| A atriz está novamente só sentada frente ao


abismo e repete par a si mesma:
– O caminho do homem... como é o caminho do homem? Por onde passa?
Estará escrito nas linhas da história?

| Entr a o Corifeu tr azendo um quadro negro


cheio de gr áficos, ele diz:
– Idade Média, predomínio da emoção, Idade Moderna, predomínio da
razão, Romantismo, Revolução Industrial, Revolução Francesa, Marx...
132 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 133

| A atriz: | A atriz:
– Engraçado, acabo de pensar que aquele papo de Shirley Maclaine e a – Acho que o mito é uma estória que parece falsa por fora se tentarmos
teoria das vidas passadas... enquadrá-la nos padrões da nossa razão moderna dicotômica. Parece-
me que o mito é mais do que um relato daquela vivência, ele é a re-
Entra a polícia ideológica munida de seus bastões.
presentificação daquela vivência, neste sentido, ele é re-presentação, que
| Ela: torna presente de novo, originalmente. O mito traz em si aquelas forças
que Artaud identificou como Manas. Essas forças não exercem seu poder
– Calma, galera! só estava pensando que a teoria das vidas passadas nos
sobre nós se simplesmente as contemplarmos. É preciso abrir-se para elas
insere historicamente nesta linha temporal e nos conecta com a explicação
para que elas adquiram vida, é preciso ver os totens fora dos museus,
de mundo que estamos acostumados a aceitar... mas se passamos de uma
onde estão aprisionados, onde podem ser estudados, categorizados,
fase a outra, de um tempo a outro, mantendo e desenvolvendo um espírito
historiografados. Também o mito se torna um relato coadjuvante na
progressista, estamos sempre em linha reta, em direção ao futuro? Um
história se o olhar que lançamos a ele é um olhar separado, mas aí ele
futuro que se distancia do ponto de partida, do fundamento? E se andamos
deixa de ser mito e passa a ser relato e nada descobrimos ou aprendemos
em círculos? E se não houver reencarnação? Se cada um de nós for esta
a respeito do nosso caminho de homens.
linha do homem ao além do homem, falhando em sua tentativa de alçar
vôo, finitos sobre a terra, mas imperturbáveis, tomados por uma falsa noção | O Corifeu:
de imortalidade, que nos torna seguros e preguiçosos diante da vida?
– Que caminho como homens? Do que você está falando?
| A polícia ideológica dá de ombros e sai,
| A atriz:
indiferente. Ela continua:
– Do nosso agir no mundo.
– Se vivemos e morremos, independente da história, na qual somos apenas
um curto espaço de tempo, o que faz que sejamos quem somos? | Entr a Manuel Antônio de Castro,
orientador da atriz pesquisador a:
| Entr a Caetano, cantando:
– O QUE É AGIR?
– Existirmos, a que será que se destina?113
A atriz embanana-se...
| Fala Emmanuel Carneiro Leão:
– Aquilo que nos tira da inércia?
– [...] “ ho mythos” exprime o destino que se lega historicamente à existência. | O Corifeu, vitorioso:
Por isso, em sua originalidade, todo mito é uma etiologia. A vivência
– Os instintos nos tiram da inércia!
de uma estruturação destinada. Só originalmente o mito é um relato, a
expressão daquela vivência.114 | Ela:
| O Corifeu: – Se os instintos nos tiram da inércia, então o nosso agir deveria ser comer,
dormir, fazer xixi e cocô e procriar... tudo bem, aí vêm os evolucionistas
– O que é mito?
e dizem que o homem criou as roupas e o fogo para se proteger do frio, as
| A criança responde: armas para se proteger dos inimigos e para caçar, aprendeu a plantar para
poder ficar mais tempo em um mesmo lugar, criou casas, domesticou
– Mito é uma estória que é falsa por fora, mas verdadeira por dentro.115
animais, e assim foi até os dias de hoje. Agora, a pergunta é como o
homem começou a se perguntar sobre as coisas, sobre si, sobre a sua
113 Cajuína, música e letra de Caetano Veloso.
114 Leão. “A hermenêutica do mito” in Aprendendo a pensar, 1977. p. 196.
115 Essa resposta à questão “o que é mito?” foi dada por um menino de cinco anos “Das tradições míticas ao misticismo moderno na visão de Joseph Campbell,
e foi citada pelo prof. Robert Walter, da fundação Joseph Campbell na palestra na PUC- São Paulo, em 9 de outubro de 1997.
134 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 135

morte e a sua origem, sobre as estrelas, sobre o dia e sobre a noite, e, pior, um filho não há diferença nenhuma do ponto de vista de ser mãe-mulher. A
como e porque ele começou a fazer arte e poesia, que não se encaixam mãe-mulher é sempre originária. A mãe-mulher é o originário junto com o
nessa tabelinha de sentido, ou seja, “criou a roupa para se proteger do homem, a physis originária em sua concentração máxima.118
frio”, criou a arte pra quê? Para passar o tempo... Por que passar o tempo?
Toda resposta que aventurarmos a partir daí será uma nova questão que | Ela:
não abrange a totalidade da questão primeira. – Então, origem não diria respeito a um ponto de partida, mas a uma
fonte que ainda existe e que permanece, como o mito, que não se
| Nietzsche: localiza no tempo espaço, mas no próprio acontecer do ser do homem
– Agora como que se abre diante de nós a montanha mágica do Olimpo, e que se dá como presente.
mostra-nos suas raízes. O grego conhecia os pavores e sustos da existência:
Então se mito nos diz quem somos, ele nos fala de nossa origem, não em
simplesmente para poder viver, tinha de estender à frente deles a resplandecente
tempo cronológico, o mito traz o princípio e o fim de nós mesmos, é o
miragem dos habitantes do Olimpo.116
que está em um passado indefinido e nos leva a um presente também
| Ela: indefinido, pois não é o presente do relógio, do noticiário, dos carros
passando. É o presente que nos torna conectados com nossa origem como
– É... talvez o mito possa explicar alguma coisa...
homens, que criam a si próprios, que se manifestam em um mundo que
| Manuel Antônio de Castro a interrompe: nós mesmos fizemos eclodir e que já existia antes de nós...
– Quando dizemos que alguns mitos são explicações naturais de processos | Manuel a interrompe:
psíquicos ou divinos, significa que não entendemos nada do que a physis era
– Que nos foi destinado pelo ser.
para o mito e para os pensadores originários. A palavra explicação ou processo
psíquico já são atitudes e conceitos metafísicos, que pressupõem fundamento, | Ela:
causalidade e explicação.117
– Mas não foi o homem quem criou o mito, pela mais profunda necessidade119,
| Ela se defende: como disse Nietzsche?
– Mas é difícil nos desvencilharmos da necessidade da segurança que nos | Entr a Ja a Torr ano:
dá a explicação, até o menos metafísico dos filósofos aventurou uma
– Mythos é uma das muitas palavras que a língua de Homero e de Hesíodo dispõe
explicação... quando perguntamos quem somos, essa pergunta nos remete
para designar o ato da fala. Nessa riqueza vocabular, correspondente à espantosa
imediatamente para a pergunta: de onde viemos, e partimos do princípio
exatidão com que o homem na grande época do mito do mundo percebe e se dá
de que há um ponto de origem.
conta dos diversos matizes da concretude e da pluralidade, descobre-se um senso
| Manuel: de realidade cujo modo privilegiado de conhecimento é a intuição instantânea
do sentido totalizante do ser em seres imediatamente dados em cada caso. 120
– Para que se entenda o tempo poético-ontológico é necessário fazer uma outra
distinção. Não podemos confundir o conceito metafísico de origem com a | Ela:
questão do originário. A origem é causal e linear. O originário não. Ele
– Então seria algo como: “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”
é como a fonte que alimenta sempre o rio, esteja em que altura estiver a
Estava lendo um texto do Walter Otto, ele faz a contraposição de Mythos
sua correnteza, da nascente à foz. Originária é a Terra, que sempre é a
e Lógos, ambos significam palavra em grego, lógos é a palavra refletida,
permanente fonte de toda vida e de todos os viventes, inclusive nós seres
pensada, daí o termo lógica. Já mythos é a palavra original, então ele chama
humanos. Originária é a mulher-mãe ao conceber, gestar e dar à luz um
a atenção para como nós vemos os mitos, histórias cada vez mais tidas
filho. Entre a primeira mulher que deu à luz um filho e a que hoje dá à luz

118 Castro, Poiesis, sujeito e metafísica.


116 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978. p. 7. 119 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978. p. 7.
117 Castro, Poiesis, sujeito e metafísica. 120 Torrano, O sentido de Zeus, 1996. p. 25.
136 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 137

como inverossímeis, invenção dos poetas, e no entanto mythos significa a


palavra verdadeira, antes do lógos, antes de ser refletida, ou construída.121
O homem se cria a partir do mito e cria o mito, que o criou...

| O Corifeu:
– Complicado...
Brevíssimo intermezzo entre a
atriz e o Filósofo
| Ela: Novamente, temos apenas a atriz e o
– Também acho, mas preciso continuar. A primeira roupa que o homem Filósofo na boca do palco
vestiu foi o mito. Mythos vem do verbo mytheomai, significa abrir,
manifestar pela linguagem: mito é linguagem. | Ela:
E a linguagem torna-se lógos e também é vestimenta. – Cá estamos, como estivemos há pouco, sentados diante do abismo.
Mas o homem começa a identificar-se com a vestimenta, que forma uma | Friedrich:
redoma, uma casca ao redor dele, e essa casca já não faz mais parte do
mito. O homem chama essa casca de realidade, dentro do tempo e do – O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e
espaço, assim começa a pensar em si historicamente e filosoficamente. limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento
E o mito começa a morrer quando se tenta inseri-lo em um sistema letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado.
dogmático: entendê-lo como religião, ou dar-lhe credibilidade histórica. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do quotidiano e a
Ou talvez esses acontecimentos sejam indícios, e não a causa da morte do efetividade dionisíaca separam-se um do outro.123
mito, uma vez que todas as questões relacionadas ao mito se apresentam
de forma circular, são as questões que nunca são respondidas, as questões | Ela:
pelo ser, pelo existir, e quando nos esquecemos do mito, nos restringimos – Sim, agora entendo. Teu abismo é diferente do meu, apesar de neste
à questão relativa à verdade, mas não nos perguntamos “o que é verdade?”,
momento, em que ambos estamos sentados no procênio deste palco, o que
perguntamos: “isto é verdade?” E, claro, exigimos comprovação! A palavra
está entre nós e a platéia é o abismo, estamos na beira do palco e estamos na
refletida toma o lugar da palavra original, que é legada ao esquecimento,
beira do abismo, e não há diferença se o poeta finge sentir a dor que deveras
à vitrine do museu, ao livro de História, escrito por Fulano de Tal e que
o menino precisa estudar, pois pode cair na prova. sente124. Este abismo nos separa do quotidiano, nós consagramos este espaço
a Dioniso, espaço sagrado, espaço vazio... Para mim, no abismo mora o
| Nietzsche: Mistério. O mundo de Dioniso também é mistério, aliás as celebrações
– Pois este é o modo como as religiões costumam morrer: ou seja, quando os dos chamados Mistérios faziam parte do culto a este deus... Talvez o que
pressupostos míticos de uma religião, sob os olhos rigorosos, razoáveis, de um eu entendo e o que tu entendes não sejam iguais, mas sejam o mesmo.
dogmatismo bem-pensante, são sistematizados como uma soma acabada No teatro, este teatro artaudiano, dionisíaco, ator e espectador entram
de acontecimentos históricos e se começa angustiosamente a defender a em um mundo diferente, um mundo comum em que ação é presente e
credibilidade dos mitos, mas a rebelar-se contra toda a sobrevivência e arrebatadora, suspendendo ambos em uma linha além do tempo um
propagação dos mesmos, quando portanto, o sentimento pelo mito morre, e presente que não contém o passado conhecido, não contém a segurança
em seu lugar introduz a pretensão da religião a ter bases históricas. 122 do indivíduo, é um passado mítico, que é antes de tudo presente, pois
está sendo revivido e cada vez que revive é a primeira, e é original. E este
A luz no palco diminui gradativamente até um black out completo.
teatro não é assim tão utópico, tu mesmo crês que assim foi no tempo da
Tragédia, antes de Eurípedes, do cristianismo, da dialética e de Wagner.

121 Otto, “Le mithe” in Essays sur le mythe, 1987. p. 47-49. 123 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978. p. 9.
122 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978. p. 11. 124 Pessoa, “Autopsicografia”, in Obra poética de Fernando Pessoa, 1986.
138 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 139

| Ao ouvir o nome Wagner Nietzsche br ada | Ela:


impropérios, depois, mais calmo, fala em tom – De novo esse papo de juiz da própria lei? É assim que compreendes
professor al: a diferença entre a tragédia e o drama? Dioniso aceita com leveza os
– Pela tragédia, o mito chega a seu conteúdo mais profundo, a sua forma mais sofrimentos da existência, dança-os, zomba deles, sofre, não há culpa,
expressiva; mais uma vez ele se levanta, como um herói ferido, e todo o não há injustiça, assim é o herói trágico, assim é o guerreiro... Por isso
excedente de força, ao lado da sábia tranqüilidade do moribundo, queima odeias Eurípedes? Por Medéia acusar Jasão de seu sofrimento ao invés
em seu olho com última, poderosa luminosidade.125 de concebê-lo na hybris, na loucura dos deuses, no caos da vida não-
ordenada?
| Ela:
Black out.
– A tragédia surge para presentificar os mitos sem tentar inseri-los em
sistemas filosóficos ou religiosos (dogmáticos). Mas ainda assim, sou atriz,
e o que temos hoje desta magnífica tragédia são os textos... grandiosos,
sem dúvida, mas não dizem respeito ao ator. Tu dizes que todos os heróis
da tragédia são Dioniso. E Dioniso é o herói trágico por excelência e o
ator que o encarna e personifica. O seu mito não pode ser separado da
origem da tragédia...

| Nietzsche:
– A verdade dionisíaca toma para si todo o reino do mito como simbolismo
do seu conhecimento e enuncia este conhecimento, em parte no culto público
da tragédia, em parte nas práticas secretas das celebrações dramáticas dos
Mistérios, mas sempre sob o antigo invólucro mítico.126

| Ela, exultante por conseguir fazer uma ponte


entre Nietzsche, Artaud e o mito:
– O mito torna a repetir seu ciclo e perpetua-se. É o surgimento do teatro
ritual e mágico de Artaud. É deus ex-machina vestido de Ésquilo e
Sófocles tomando para si o mito, quase banido da Pólis, dando-lhe vida,
através de novos sacerdotes, a gente do teatro.
Tu dizes que Eurípedes matou Dioniso, mas quando Téspis, o primeiro
ator, diz “eu sou Dioniso”, não está ele tomando para si e para nós, todos
os atores, este karma e essa honra de ser Dioniso? Ou será que Dioniso
está morto e nossas buscas como atores não passam de tentativas ridículas
e quixotescas?

| Ele:
– Terrível é estar a sós com o juiz e o vingador da própria lei.127

125 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978. p 11.


126 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978, p. 11.
127 Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 78.
5 O Guerreiro de Carlos
Castaneda e a proposta de
um ator guerreiro nascido
desta eclosão do poético

5.1 Em busca dos mitos modernos

Cena I:
Castaneda e a tr ajetória do herói

| Ao fundo ouve-se uma voz bíblica:


– Do pó viemos ao pó retornaremos...

| A atriz:
– Eu estava observando as formigas no prato de comida do meu gato. Todo
dia eu mato um monte delas e elas continuam voltando para roubar a
comida do gato... que saco essas formigas, será que elas não têm nenhum
instinto de preservação? Elas sabem que vão morrer, no entanto, elas são
coletividade, para elas não há a diferença: eu e o outro. Elas são parte de
um todo. Em quase todas as cosmogonias, nós partimos de um todo e
sofremos uma individuação, perdendo essa consciência do todo. Hoje,
pesquisas holísticas e muitas de nossas buscas filosóficas apontam para
um retorno a essa unidade perdida. Olhei de novo para as formigas e
pensei nos homens bomba... que saco esses homens bomba, eles não
142 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 143

têm instinto de preservação? Eles são como as formigas, não têm essa | Don Juan:
consciência da separação, um morre para que o ideal de muitos sobreviva. – Você está confundindo assuntos novamente. Consolo, porto, medo, todos eles
E nesse momento eu tiro o chapéu para Platão e para o discernimento são estados de humor que você aprendeu sem jamais questionar o seu valor.
e a busca da luz além da escuridão da caverna. Mas a escuridão da Como se pode ver, os magos negros já engajaram toda sua submissão.
caverna também faz parte do nosso mundo. Ocultar as sombras já não
dá conta do que nos tornamos ou do que estamos nos tornando. Não | Carlos:
podemos negar a nossa carga, tampouco carregar os cadáveres. Talvez – Quem são os magos negros, Don Juan?
por conhecer e aceitar a existência das sombras, o filho pródigo seja o
preferido do deus bíblico. | Don Juan:
– Nossos irmãos homens são os magos negros. E a partir do momento em que
| O coro:
você está com eles, você também é um mago negro. Pense por um momento.
– Existe de fato uma volta ao lar? Você pode divergir do caminho que eles delinearam para você? Não. Seus
Entra Carlos Castaneda, ele permanece na penumbra, sobre ele em nenhum pensamentos e suas ações sempre são fixas nas condições deles. Isso é escravidão.
momento brilhará nenhum foco de luz: Por outro lado, eu trouxe liberdade por você. Liberdade é cara, mas o preço
não é impossível. Assim, tema seus captores, seus mestres, não desperdice seu
– Então (Don Juan) falou sobre o homem antigo. Disse que aquele homem tempo e seu poder tendo medo de mim. 129 2
antigo sabia, da maneira mais direta, o que fazer e como fazê-lo melhor.
Mas, porque procedia tão bem, começou a desenvolver o senso do eu, que
lhe deu a sensação de que podia predizer e planejar as ações que estava
acostumado a realizar. E assim, a idéia de um “eu individual” apareceu.
Um eu individual que começou a ditar a natureza e o escopo das ações do
homem. À medida que a sensação de eu individual se tornava mais forte, o
homem perdia sua conexão natural com o conhecimento silencioso. O homem
moderno, sendo herdeiro desse desenvolvimento, encontra-se, portanto, tão
desesperançadamente removido da fonte de tudo que só lhe resta expressar seu
desespero em atos violentos e cínicos de autodestruição”.128
A atriz está ao fundo. No procênio estão Don Juan e Castaneda.

| Fala Don Juan:


– Você tem medo de mim?

| Carlos:
– Não de você, mas do que você representa.

| Don Juan:
– Eu represento a liberdade do guerreiro. Você tem medo disso?

| Carlos:
– Não, mas eu tenho medo da estranheza de seu conhecimento. Não há nenhum
consolo para mim, nenhum porto para ir.

128 Castaneda, O poder do silêncio, 1997. p. 150-151. Nota da autora: algumas


alterações na tradução foram feitas por Andrea Copeliovitch. 129 Castaneda, Tales of power, 1974. p. 26.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 145

Cena II:
Os críticos

A pergunta pelos mitos modernos segue ecoando no rastro de Dioniso:

| A atriz:
– Onde se esconde o deus fauno? Que máscaras usa e que histórias nos
conta? Quem de nós ousa descer aos infernos e retornar para contar?

| O coro:
– É sob esse olhar do mito que vamos abordar a obra de Carlos Castaneda,
autor latino- americano radicado nos EUA que em meados de 1960
publica The teachings of Don Juan, a Yaqui way of knowledge130 , no qual
inicia o relato de sua relação de aprendizado com o feiticeiro Yaqui.131

| Um corifeu:
– A obra de Castaneda tem sido amplamente lida em todo o mundo e
igualmente criticada. Carlos Castaneda conta sua trajetória para se tornar
um “guerreiro”, termo utilizado por seu mestre e que abordaremos com
mais profundidade mais adiante.

| Outro corifeu:
– O questionamento principal das críticas à obra de Castaneda é a veracidade
dos ocorridos, já que a obra é narrada em primeira pessoa, sendo dois de
seus livros, o primeiro e o terceiro, traduzidos no Brasil como A erva do
diabo e Viagem a Ixtlan, dissertação de mestrado e tese de doutorado, nesta
ordem, o que implica um “compromisso científico com a verdade”...

| O coro:
– Daí inúmeras críticas…

130 Traduzido no Brasil como A erva do diabo.


131 Os Yaquis são índios do norte do México e possuem uma tradição
xamânica da região de Sonora e foram a última tribo a resistir ao
conquistador espanhol, que não conseguiu dominá-los pela força,
mas pela inserção de costumes “ocidentais”, que os enfraqueceram,
como a criação de hierarquias e a noção de comércio – Gouy-Gilbert,
Une résistance indienne: les Yaquis du Sonora, 1983.
146 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 147

Entram os críticos e sentam-se confortavelmente. | Crítico 1:


– Como assim?
| Crítico 1:
– O leitor mais atento pode encontrar uma série de pequenas incoerências | Crítico 2:
nos fatos narrados, por exemplo: Castaneda afirmou ter se aproximado de – Em Tales of power, Don Juan dá a Castaneda uma explicação do mundo
Don Juan na expectativa de saber mais sobre plantas psicotrópicas, sobre que ele chama de a explicação dos feiticeiros (the sorcerers explanation).
as quais tinha pouquíssimo conhecimento, no entanto, descobriram que
ele havia dissertado sobre o assunto em um curso na universidade. | A atriz:
– Aqui precisamos abrir um parêntesis para introduzir a explicação dos
| Crítico 2:
feiticeiros.
– Também há provas de que ele leu As Portas da percepção, de Huxley,
que também fala sobre o uso de psicotrópicos para atingir estados | O Corifeu:
alterados de consciência. – A explicação dos feiticeiros? Que coisa mais hippie... e qual é essa
explicação?
| Crítico 1:
– E que o conhecimento que Castaneda atribui aos Yaqui é na verdade um | A atriz:
conhecimento dos índios Huichol132. – A explicação dos feiticeiros é de que tudo se divide em Nagual e Tonal.
Tonal é o conhecido, o mundo que se traduz por palavras, Don Juan dá
| Crítico 2:
o exemplo dos objetos sobre a mesa do restaurante onde estão sentados,
– Existem também pequenas diferenças no relato da forma como Castaneda Castaneda vai perguntando por aquilo que faz parte do Tonal e Don
encontra seu mestre pela primeira vez. Juan vai mostrando os objetos na mesa, as coisas conhecidas. Castaneda
pergunta sobre deus e Don Juan diz que deus é o saleiro, todos os conceitos,
| Crítico 1:
todas as emoções, tudo o que é conhecido, cognoscível, nomeável faz parte
– E olha que ele repete essa história em diversos livros e também em do Tonal. Nagual é o que há em volta, o Mistério. Sobre o Nagual, nada
algumas entrevistas. se pode dizer, pois o Nagual está além do conhecimento das palavras... e
| Crítico 1: Don Juan pede a Castaneda que recite poesia, para falar do inexplicável.
– Ah, aquele papo de que ele conhece Don Juan na estação de ônibus… | O Corifeu e os Críticos em uníssono:
cada vez ele conta de um jeito… – Poesia? Que coisa mais hippie...
| Crítico 1: | O Crítico 1, dirigindo-se à atriz:
– É um absurdo. E há controvérsias com relação à sua origem. Na entrevista a – Você leva mesmo a sério toda essa bobagem?
Carmina Fort, em Conversando com Carlos Castaneda, ele afirma ser brasileiro,
estudos feitos nos registros de imigração provariam que ele era peruano. | Nosso herói, Castaneda, acorre em defesa da atriz:
– Segundo Don Juan, os poetas eram profundamente conscientes do nosso elo
| Crítico 2:
de ligação com o Poder133, mas essa consciência é intuitiva, não possui o modo
– Além de todos esses detalhes, talvez o que mais assuste o leitor, seja uma deliberado e pragmático dos feiticeiros. 134
mudança de perspectiva entre o quarto e o quinto livro (Tales of power e
The second ring of power).
133 Em O poder do silêncio, tradução de Antônio Trânsito, o termo utilizado é
espírito, mas seguindo a lógica dos primeiros livros, vou usar sempre Poder,
em vez de espírito, pois espírito me parece muito supersticioso, enquanto
132 Fikes, Carlos Castaneda: academic opportunism and the psychedelic poder é o intangível, é a infinitude das possibilidades.
sixties. 1996. 134 Castaneda, O poder do silêncio, 1997. p. 65.
148 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 149

| A atriz: | Crítico 2:
– E dado a esse pragmatismo, ele fez com que você, como seu aprendiz, – Totalmente incongruente com a guerra que se trama entre os aprendizes
também experienciasse em seu próprio corpo o salto no abismo, que após sua morte.
marca o fim do seu aprendizado, em 1973, ano do desaparecimento de
seus professores, Don Juan e Don Genaro. | Crítico 1:
– Esses aprendizes afirmam que Don Juan os instruiu para tentar matar
| Ela continua, agor a dirigindo-se ao público: uns aos outros, roubar-lhes o poder, um rolo danado.
– O último encontro entre Castaneda e seu mestre, Don Juan dá-se em frente
ao abismo. Os aprendizes Carlos e Pablito devem saltar e sobreviver, é um | Crítico 2:
prova final para testar seu poder e suas habilidades, um rito de passagem. – Se bem que essa guerra entre os aprendizes vai ser esclarecida no próximo
O salto no abismo não é metafórico. Carlos retorna dois anos depois para livro, The Eagle’s gift.
procurar os outros discípulos de Don Juan e Don Genaro, Nestor e Pablito135
em busca da verdade sobre o que aconteceu naquele precipício. Então, | Crítico 1:
Carlos descobre a existência de outros aprendizes, homens e mulheres, que – O que contribui para tornar este livro mais folhetinesco.
o aguardam para ser seu novo nagual. Aquela mesma palavra que designa
o desconhecido, é usada para designar o líder do grupo de feiticeiros. Aí | Crítico 2:
passamos a ter duas narrativas diferentes: uma é a narrativa dos novos – Verdade, é preciso sempre esperar pelas cenas dos próximos capítulos.
eventos que Castaneda vive no meio dessas pessoas e a outra é uma nova
| Crítico 1:
visão sobre os fatos passados dada por esses outros aprendizes e baseadas
no resgate de memórias esquecidas de eventos que se deram em um estado – Enquanto os quatro primeiros livros podem ser lidos independentemente
alterado de consciência chamado de segunda atenção. uns dos outros, pois enfatizam mais a visão de mundo apresentada
por Don Juan e menos os conflitos dos personagens e a ordem dos
| Crítico 2: acontecimentos, que vai ter maior importância a partir de The second
– The second ring of power é um livro bem menos conciso do que os ring of power.
quatro primeiros. Nesse livro ele repete a narrativa de diversos eventos
| Crítico 2:
já conhecidos do leitor, utiliza termos incoerentes com o que havia sido
construído anteriormente. Por exemplo, neste livro, Castaneda coloca a – Voltando às pequenas discrepâncias na narrativa, em The eagle’s
palavra destino na boca de Don Juan gift Castaneda fala que todos os membros do grupo do benfeitor
de Don Juan, inclusive o próprio benfeitor, o Nagual Julian, eram
| Crítico 1: índios, a partir de The fire from within, saberemos que o nagual
– Mas em Tales of Power Don Juan afirma que não existe destino. Julian é um homem branco e também ator, bem como outros
membros de seu grupo.
| Crítico 2:
– Exato! Don Juan afirma existir o que ele chama de Poder, que seria parte | Crítico 1:
do Mistério, do Nagual. – Aliás, em Passes Mágicos, um livro bem mais recente e que trata
basicamente de técnicas corporais que Castaneda teria aprendido com
| Crítico 1: seu mestre e a quais ele nos apresenta minuciosamente para que qualquer
– E também em Tales of power Don Juan fala do grande amor que ele e um possa praticar, ele lembra que o nagual Julian era ator, e aproveitava
Genaro sentem pela terra, por este mundo. sua profissão para mostrar os passes mágicos às pessoas (toda vez que o
crítico pronuncia a palavra ator, ambos olham com um misto de desprezo e
piedade para a atriz e balançam a cabeça).
135 Castaneda, O segundo círculo do poder, 2004.
150 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 151

| Crítico 2:
– Há ainda muitos outros detalhes que outros autores, leitores, críticos e
curiosos descobriram ao ler a obra de Castaneda.

| A atriz: Cena III:


– Mas talvez essas incongruências sejam propositais no sentido de mostrar A estrutur a do mito ou o percurso do herói
a confusão do aprendiz diante da ausência do mestre.

| Crítico 2: | A atriz:
– Isso pode ser uma justificativa para as incongruências a partir do quinto – O que encontramos na obra de Castaneda que a tornou relevante para
livro, The eagle’s gift. nós, foram questões fundamentais e uma trajetória que poderíamos
chamar de trajetória mítica, uma jornada do herói, que acompanhamos
| Crítico 1: em suas descidas ao inferno, ao desconhecido, aos mistérios em busca do
– Bullshit! conhecimento. Por toda a obra de Castaneda, esse herói volta ao mundo
ocidental metafísico trazendo notícias de uma outra verdade, de uma
| A atriz: outra forma de ver o mundo, ou mesmo de um outro mundo. Esse herói
– O que fazer com o conhecimento adquirido? Como seguir uma trajetória que nos leva pelo braço, pois também ele partilha de nossa incredulidade
que parecia já desenhada agora pelos próprios pés, sem o amparo de seu científica, também é cheio de idiossincrasias, também tem medo. Ele não
Don Juan/ Zaratustra? E ainda tendo que lidar com toda uma parte de é guerreiro, mas se torna guerreiro no acontecimento da obra, e é esse
sua vivência que permanecia esquecida, em algum ponto da memória movimento que a torna viva, e que nos abre essa possibilidade de tratá-la
onde a recordação cronológica não era suficiente, pois tudo de que tratam como trajetória mítica, sem buscar convicções e afirmações científicas
os livros seguintes à Tales of Power é relativo ao processo de lembrar do que comprovem ou não a sua veracidade, pois as incongruências da
que estava oculto, de um aprendizado que havia sido realizado em um narrativa não chegam a afetar a estrutura do mito nem a cosmogonia que
outro nível de consciência, inconcebível para nós, inconcebível para o ele cria.
estudante de antropologia Carlos Castaneda que tomava notas de tudo o
| Fala Octavio Paz:
que via, ouvia e fazia.
– Confesso que o mistério Castaneda me interessa menos que seu trabalho.
| Crítico 1: O segredo de sua origem: – é peruano, brasileiro ou chicano? – parece-
– Onde estão as notas a respeito desses últimos livros? me um enigma medíocre, sobretudo se se pensa sobre os enigmas que nos
propõem seus livros. O primeiro desses enigmas recorre à sua natureza:
| Crítico 2: antropologia ou ficção literária? Dir-se-á que a minha pergunta é ociosa:
– Onde no tempo e no espaço se deu esse aprendizado paralelo? documento antropológico ou ficção, o significado da obra é o mesmo. A ficção
literária já é um documento etnográfico e o documento, como seus críticos
| A atriz: mais violentos reconhecem, possui certo valor literário. O exemplo de Tristes
– Essa dúvida causa uma reviravolta no nosso próprio pensamento de tropiques (Trópicos tristes: autobiografia de um antropólogo e testemunho
leitores, tudo na obra de Castaneda nos coloca face a face com aquilo que etnográfico)136 – responde à pergunta. Responde realmente? Se os livros de
chamamos realidade para, em seguida, destruir essa realidade, quebrar Castaneda forem um trabalho de ficção literária, eles o são de um modo
o espelho da nossa auto-reflexão e nos fazer mergulhar no mistério que muito estranho: seu tema é a derrota da antropologia e a vitória da magia;
cerca a nossa ignorância e pequenez. se são obras de antropologia, seu tema não pode sê-lo menos: a vingança do
Os críticos saem de cena balançando a cabeça.
136 Texto autobiográfico de Claude Lévi-strauss, escrito em 1955, sobre uma
expedição ao Brasil no final da década de 1930.
152 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 153

“objeto” antropológico (um brujo) sobre o antropólogo até transformá-lo em | Voz do crítico 1 em off:
um feiticeiro. Antiantropologia. 1373 – Castaneda refere-se ao encontro de Don Juan com a mulher nagual,
Carol Tiggs, estando esta em estado de conscientização intensificada.
| O crítico1:
– Octavio Paz, poeta e pensador, nos acompanha nessa reflexão sobre a | A atriz:
importância da obra de Castaneda no prólogo que escreve para a versão – O mistério permanece mistério e só nos resta aceitar a sua possibilidade
mexicana de The teachings of Don Juan, intitulado “La mirada anterior”, e respeitá-lo, assim como aceitar a nossa impossibilidade de resolvê-lo
e nesta sua fala ele reflete sobre a questão da veracidade em Castaneda. como se resolveria um enigma.139
| A atriz: Castaneda luta contra seu próprio ego, sendo obrigado a aceitar as
– O mito nos conta sobre este herói que parte em busca de conhecimento. explicações de um índio inculto; ele, que é um acadêmico, antropólogo,
Nessa busca ele enfrenta perigos e desafios, encontra aliados e inimigos, estudante de uma das mais importantes universidades dos Estados
torna-se um guerreiro e conta sobre suas batalhas. Unidos, a UCLA. Quando ele primeiro encontra Don Juan , aproxima-
se dele como um antropólogo, um cientista, aproxima-se de um objeto
Castaneda está com um amigo em uma estação de ônibus no Arizona de estudo. Ele é o sujeito e Don Juan, o objeto, o índio, o outro. Ele
e avistam um velho índio que seu amigo diz ser um especialista em quer estudá-lo, lança seu olhar superior sobre ele, em resposta, Don Juan
plantas psicotrópicas. Castaneda aproxima-se dele em busca de um lança-lhe um olhar com o olho esquerdo, que é o olhar do Brujo. Com
conhecimento específico, ou seja, saber mais a respeito dessas plantas, esse olhar ele captura Castaneda através da sua vontade. Vontade, como
e acaba tornando-se seu aprendiz, naquilo que ele mesmo chama de “o Don Juan lhe dirá mais adiante, não é um sentimento abstrato e sim um
caminho do guerreiro” . ponto localizado próximo à região do umbigo. Dessa maneira, o índio
Como um Téspis contemporâneo, Castaneda narra esse mito em primeira assegura-se que Castaneda volte para visitá-lo.
pessoa. Ele é o herói desajeitado e também o leitor metafísico que sempre
| O Corifeu:
põe em dúvida a veracidade dos fatos ocorridos, buscando dar explicações
científicas às vivências fantásticas pelas quais passa. Don Juan, seu professor, – Por que o índio teria todo esse interesse no antropólogo?
atua como o protetor do mito, destruindo os argumentos científicos de
| A atriz:
Castaneda um a um de forma que o mistério permanece inexplicável.
– Don Juan obedece ao que ele chama os “desígnios do poder” e ele está
Black out permanentemente aberto à escuta destes desígnios, então ele percebe
pelos sinais (omens) que Castaneda lhe foi designado. Ele também vê a
| Foco sobre Castaneda no canto do palco
configuração energética de Castaneda, conforme vamos compreender a
(lembr ando que há um jogo de luz par a
partir do quarto livro, e Castaneda possui a configuração de nagual, o
que não tenhamos clareza do rosto deste
líder, o homem dividido140.
personagem enigmático):
– (Don Juan) Levou-a para fora de casa e mostrou-lhe que o mundo era Mas nada disso fica claro no princípio dessa relação. Don Juan permite que
dividido em duas metades. O lado esquerdo era claro, mas o direito era Castaneda jogue o jogo do homem branco superior tratando com um índio
oculto por uma névoa âmbar. Disse-lhe que era monstruoso pensar que o ignorante, mas ele manipula esse jogo de tal forma que Castaneda acaba
mundo é compreensível, ou que nós mesmos somos compreensíveis. Disse que fazendo papel de bobo. Várias vezes durante a narrativa, Don Juan vai
o que ela percebia era um enigma, um mistério que só se podia aceitar com tratar com este Castaneda intelectual e sempre vai transformá-lo em piada,
humildade e respeito.138 como disse Octavio Paz, é a vingança do objeto em relação ao sujeito.

137 Paz, “La mirada anterior”; prólogo a Las enseñanzas de Don Juan, de 139 Sobre a passagem citada, podemos pensar em uma cadência progressiva, um
Carlos Castaneda, 1992. enigma... mais do que um enigma, um mistério.
138 Castaneda, O presente da águia, 1988. p. 182-183. 140 Vamos retornar às questões de ver e do nagual mais adiante.
154 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 155

Don Juan trata de destruir a auto-imagem de seu discípulo, como um | Entr a Don Juan e fala sobre esse agir
passo para destruir a reflexão dessa imagem, aquilo que conhecemos por ou guerr a do guerreiro:
realidade, o mundo como espelho dessa reflexão. E cada vez que Castaneda – A guerra para um guerreiro não significa atos de estupidez individual ou
aventura criar um novo entendimento, seu mestre cria artimanhas para coletiva ou de violência sangrenta. A guerra, para um guerreiro, é a luta
destruí-lo. Por isso, ao longo da obra, Castaneda retorna várias vezes aos total contra aquele eu individual que privou o homem de seu poder.143
acontecimentos primeiros lançando sempre um novo olhar sobre os fatos.
| A atriz:
No primeiro livro, A erva do diabo, Castaneda enfatiza o uso de drogas
psicotrópicas no seu aprendizado, ele passa por vivências fantásticas e – Castaneda, então, empenha-se em seu aprendizado como guerreiro. Neste
aventuras, como dissemos, mas atribui estes acontecimentos sempre ao aprendizado, Don Juan apresenta-lhe diversas técnicas, sendo que para
uso das drogas que o levavam a estados alterados de consciência. utilizar estas técnicas é fundamental conseguir parar o diálogo interior.

Mais adiante Don Juan vai dizer que nada disso era necessário, que Podemos considerar essas técnicas como sendo as armas do guerreiro.
o uso das drogas fora necessário simplesmente porque Castaneda As técnicas básicas são: sonhar, não-fazer, usar a morte como conselheira,
era muito “cabeça dura”. Também nós leitores somos cabeça dura e espreitar e ver.
Castaneda vai nos dando tempo para acostumarmo-nos com a visão de
mundo à qual ele nos introduz, onde aquilo que chamamos de real é Sonhar consiste em agir durante o sonho, a primeira técnica para se
simplesmente um reflexo numa casca de ovo141 que envolve cada ser, e, aprender a sonhar é muito simples, basta lembrar de olhar para as próprias
como o Demian142 de Hermann Hesse, ele nos incita ou nos apresenta a mãos ao entrar no estágio de sonho, de forma que a pessoa lembra que está
possibilidade de quebrar esta casca e penetrar no Mistério, ou voar para sonhando e passa a agir conscientemente. Em A arte de sonhar, Castaneda
Abraxas (como disse Hesse). vai se aprofundar nas técnicas relativas ao sonhar e também relatar várias
experiências detalhadamente.
| O crítico 1:
Espreitar (stalk) é uma arte sobre a qual Castaneda vai nos falar mais
– Voltando à estrutura do nosso mito que fala sobre o homem comum que detalhadamente a partir do livro O presente da águia. Espreitar é a ação
se torna um herói para poder lidar com o extraordinário. do guerreiro no mundo dos homens, é como a ação do ator, uma ação
Os primeiros quatro livros tratam da relação de treze anos de Castaneda calculada que faz com que quem assista acredite naquilo que o espreitador
com seu mestre, Don Juan, que basicamente é mostrada na forma de quer que a pessoa acredite, ver aquilo que ele quer que seja visto.
experiências narradas e diálogos que antecedem essas experiências ou que
| O Corifeu:
esclarecem a respeito delas. Percebam que nesses diálogos, Castaneda
assume o papel de bobo e Don Juan diverte-se muito com sua ignorância – Ué, não é isso que vocês atores fazem?
e, também, o leitor diverte-se, ao mesmo tempo em que se identifica com | A atriz:
esta ignorância.
– Pelo menos deveria ser… continuando: não fazer é a arte da contemplação.
| A atriz: Não fazer é uma foram de meditação, é ser capaz de contemplar o que
– O mundo que Don Juan apresenta a Castaneda é um mundo além quer que seja por horas, mantendo a mente quieta; mas também pode ser
das fronteiras conhecidas, não há limite nem para o terror nem para um fazer absurdo, ou seja, fazer coisas inúteis ou inusitadas, e aí não fazer
as maravilhas. Don Juan adverte Castaneda que para atuar/ agir relaciona-se diretamente com espreitar.
neste mundo misterioso, é preciso ser um guerreiro, e esse agir tem Usar a morte como conselheira é ter consciência da própria mortalidade,
de ser impecável. Don Juan diz que Castaneda se acha imortal.

141 Castaneda, Tales of power, 1974.


142 Personagem do livro Demian, citado no primeiro capítulo. 143 Castaneda, O poder do silêncio, 1997. p. 151.
156 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 157

| O Corifeu: explica suas ações. É o método da espreita. Através de seu agir, Don
– Como a maioria de nós, aliás. Genaro destrói o mundo ou a concepção de mundo de Castaneda.

Foco sobre Castaneda e Don Juan: | Octavio Paz:


– A iniciação de Castaneda pode ser vista como um retorno, guiado por Don Juan
| Castaneda:
e Don Genaro – esse Quixote e esse Sancho Pança da feitiçaria andante, duas
– O que você quer dizer com isso Don Juan ? figuras que possuem a plasticidade dos heróis dos contos e lendas – o antropólogo
desanda o caminho. Volta a si mesmo, não ao que foi nem ao passado: ao agora.
| Don Juan:
Recuperação da visão direta do mundo, esse instante de imobilidade em que
– Um ser imortal tem todo o tempo do mundo para dúvidas e assombro e tudo parece deter-se, suspenso em uma pausa do tempo. Imobilidade que porém
medos. Um guerreiro, por outro lado, não pode se agarrar ao significado sob transcorre -impossibilidade lógica porém realidade irrefutável pelos sentidos.
a ordem do Tonal, porque ele sabe ser um fato que a totalidade do seu ser não Maturação invisível do instante que germina, floresce, desvanece, brota de
tem senão um curto tempo sobre esta terra.1444 novo. O agora: antes da separação, antes de falso-ou-verdadeiro, real-ou-
| A atriz: ilusório, bonito-ou-feio, bom-ou-mau. Todos nós vimos alguma vez o mundo
com essa mirada anterior, mas perdemos o segredo. 1465
– O mundo é dividido. Também os seres humanos possuem essa divisão:
um lado é conhecido, é compreensível, o outro é mistério, cabe ao | A atriz:
guerreiro permitir que esses dois lados se comuniquem até que ele possa – Essa imobilidade é o que Don Juan chama de “parar o mundo”, a
atingir o que eles chamam de “a totalidade do ser”, os dois lados do ser mirada anterior é nossa capacidade de nos zerarmos, de sermos nada e ao
também são o Nagual e o Tonal. O benfeitor ajuda ao aprendiz a fazer mesmo tempo abarcarmos todas as possibilidades que se apresentam na
uma “limpeza no seu Tonal”, organizar essa partição conhecida do seu infinitude do mistério. Suspendemo-nos por um instante sobre a tênue
ser para então ter acesso ao Nagual, e juntar as duas, deixando de ser um linha do momento presente e permanecermos ali, abissais e abismados, o
ser dividido para ser um ser total. mundo parado, e cada instante torna-se gigantesco e único. Precisamos
Ver é a capacidade do guerreiro de enxergar além da forma, enxergar a dessa força de guerreiros para segurar a implacabilidade do tempo, para
energia e seu movimento, quando um guerreiro domina a arte de ver ele adentrarmos a névoa do mistério. Para isso é necessária tanta energia,
é chamado vidente145. que o salto no abismo em si torna-se quase banal. O acúmulo de energia
é conseguido através da impecabilidade. O guerreiro não desperdiça sua
| Crítico 1: energia com pensamentos incessantes que fortaleceriam sua auto-imagem
– Há poucos personagens envolvidos nesses primeiros quatro livros, sendo e sua auto-reflexão/ mundo. O guerreiro vive monasticamente, não por
os principais: Don Juan , Castaneda e Don Genaro, o amigo de Don princípios morais ou dogmáticos, mas por essa necessidade imperativa de
Juan, que sempre age de forma absurda, tentando ensinar a Castaneda o possuir um nível energético acima do normal para lidar com situações
absurdo de sua própria existência e apresentar a ele o mistério que é de fora do considerado normal.
fato a existência.
| Crítico 2:
| A atriz: – Nos primeiro livros aparecem também outros aprendizes, Elígio, aprendiz
– Don Genaro é de uma extrema alegria e sempre aparece com situações de Don Juan e Nestor e Pablito, aprendizes de Don Genaro, que só vão
cômicas e inusitadas, mas para Castaneda, sua presença é sinal de puro ter uma importância maior em Tales of Power. Esa obra marca o fim do
terror, pois Don Genaro tenta ensinar a Castaneda pelas ações, e jamais aprendizado de Castaneda com Don Juan.

144 Castaneda, Tales of Power, 1974. p. 191. Tradução de Andrea Copeliovitch.


145 Termo utilizado a partir do sexto livro: O fogo interior, 1988. 146 Paz, La mirada anterior, 1992. Tradução de Andrea Copeliovitch.
158 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 159

| A atriz: daquela compreensão de mundo que simplesmente jamais chegaram a


– Para finalizar seu aprendizado, Castaneda e Pablito saltam de um ver os monstros, quanto menos, a ser derrotados por eles. O poder dos
despenhadeiro, após despedirem-se do mundo, de Don Genaro e de Don videntes não os afetava. Os feiticeiros foram derrotados e tiveram mortes
Juan, que lhes dizem que irão partir e que mesmo que eles sobrevivam ao horríveis nas mãos dos conquistadores europeus, mas seu conhecimento
salto, não os verão novamente, não neste mundo. permaneceu, e aqueles que mantiveram o conhecimento resolveram fazer
tudo de forma distinta dos feiticeiros. Chamaram-se novos videntes.
| Don Genaro lhes diz:
Para isso resolveram dominar a espreita, o sonhar e o “intento”: o
– Nós agora seremos como pó na estrada, que talvez entre nos seus olhos controle da vontade. Lembrando que vontade para eles é um ponto
algum dia 147. energético do nosso corpo, localizado um pouco abaixo do umbigo.
Os antigos feiticeiros eram vaidosos e por isso, sabendo como haviam
| O coro:
sido derrotados, os novos videntes resolveram acabar com qualquer
– A partir de então começa o segundo momento do mito. traço de vaidade.
| A atriz: | Carlos:
– Castaneda volta ao México, depois de dois anos, em busca de Nestor – Quando perguntei a Don Juan certa vez qual era o caráter essencial
e Pablito, na tentativa de descobrir se o salto no abismo realmente dos videntes do novo ciclo, respondeu que são os guerreiros da liberdade
aconteceu ou se foi uma aventura forjada pelo seu cérebro148 . É a partir total, mestres da consciência, “espreita” e “ intenção” a tal ponto que não
daí que acontece o tumultuado encontro com os outros aprendizes, que são colhidos pela morte como o resto dos homens mortais, mas escolhem o
seriam o grupo que ele teoricamente deveria liderar. Nesta segunda fase, momento e o modo de sua partida deste mundo. É então que os consome
nosso herói descobre que seu aprendizado havia sido mais complexo do um fogo interior e desaparecem da face da terra, livres, como se nunca
que ele podia supor. tivessem existido.151
Ele começa a recordar que houve todo um aprendizado em estado
| Ela:
de consciência alterado149: em consciência intensificada ou do “lado
esquerdo”, como ele diz. Estes aprendizes, na verdade, haviam convivido – A liberdade total é o velo de ouro para nossos argonautas toltecas,
com ele, e também com um outro grupo de feiticeiros, ou videntes, que liberdade de não ser colhido pela morte como o resto dos mortais. O
constituíam o grupo do próprio Don Juan . Ao mencionarmos o “grupo” que quer dizer que eles acumulam energia e adquirem conhecimento
de Don Juan, precisamos notar que a partir daí o mito se abre para uma de como manipular essa energia de modo a não cair no esquecimento
gênese dos feiticeiros que ele chamou de toltecas. Tolteca para Don Juan da morte. Esses guerreiros podem manter a consciência na hora da
queria dizer “homem de conhecimento”150 e não tinha relação com a morte e realizar uma passagem, uma transcendência pela força férrea da
história da civilização tolteca. vontade, do intento. Para isso, o guerreiro treina a arte de sonhar. No
sonho nos entregamos ao devaneio, à seqüência dos acontecimentos que
Os feiticeiros toltecas teriam aparecido no México muito antes da fogem ao nosso controle. O guerreiro controla seu agir no sonho, é capaz
conquista pelos Espanhóis. Eram muito poderosos e sabiam ver, por de deslocar-se no sonho, é capaz de sonhar junto com outro guerreiro, e
isso eram chamados videntes, eram capazes de manipular a energia, um dia, se for impecável e o Poder152 lhe permitir, será capaz de manter
chegaram a criar monstros enormes que guardavam seus templos dos sua consciência na hora da morte, será capaz de passar para uma outra
inimigos. E durante séculos foi assim, até que os espanhóis chegaram e dimensão, sozinho ou na companhia de outros guerreiros.
os massacraram. Os espanhóis eram tão distantes daquela realidade ou

147 Castaneda, Tales of power, 1974. p. 283. ‘We will now be like dust on the road’ 151 Castaneda, O fogo interior, 1988. p. 13.
Don Genaro said, ‘perhaps it will get into your eyes, someday’. 152 Sim, pois o guerreiro é livre para aceitar com humildade o seu destino, ele
148 Como no poema “Fui” de Kavafis. se silencia para escutar e luta para cumpri-lo impecavelmente, sendo que na
149 Castaneda, O presente da águia, 1988. última hora, se ele for um grande guerreiro, como um toureiro, ele dá um olé
150 Castaneda, O fogo interior, 1988. p. 17. na morte e tenta sair invicto desta que seria sua última batalha na terra.
160 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 161

Existe a águia que está no princípio e no fim de tudo. Nós somos for um guerreiro impecável não terá energia suficiente para lembrar-se
emanações desta águia, é ela que nos dá a consciência e só a vemos na hora do regulamento nem de nenhuma outra instrução que lhe tenha sido
de nossa morte, uma águia gigante que vem devorar nossa consciência. dada neste estado de consciência, no qual ele realiza a maior parte de
Segundo os relatos de Castaneda, a morte é um doloroso processo antes seu aprendizado. Se ele não for impecável e não se tornar um guerreiro,
do esquecimento total do ser. O vidente/ guerreiro é capaz de manter sua jamais suspeitará do conhecimento recebido neste estado.
consciência na hora da morte. Ele tapeia a águia, e a águia também lhe
O regulamento fala sobre a águia, essa forma energética que ordena a
concede um presente, a liberdade.
existência, e da insignificância do homem perante este poder, que não
O guerreiro também precisa apagar a sua história pessoal, viver como se é capaz de ouvir suas súplicas nem de lhe oferecer misericórdia. O
nunca tivesse existido, sem amarras e sem fronteiras. E isso faz parte de regulamento diz quantos são os guerreiros e as guerreiras de cada grupo,
sua impecabilidade e domínio da espreita. dividindo-os em categorias, cada qual com uma função específica,
conforme o sexo e a configuração energética. O regulamento mostra
| Carlos: a possibilidade de realizar uma passagem através de uma cortina de
– Já me dei ao poder que o meu destino rege, fumaça e passar a existir em uma outra dimensão. Os esforços são
sempre realizados em grupo, mesmo que os guerreiros façam a passagem
Não me prendo já a nada, para assim não ter nada o que defender
separadamente. Cada grupo sempre busca preparar um próximo grupo,
Não tenho pensamentos, para assim poder ver. mantendo viva a memória deste conhecimento155. Os grupos são guiados
Já não temo nada, para assim poder recordar-me de mim. pelo homem e pela mulher nagual, seres duplificados, energeticamente
mais poderosos do que os outros. O regulamento fala que a mulher
Sereno e desprendido, nagual deve ir antes de todos e ficar “do outro lado” como um farol,
Deixar-me-á a águia passar para a liberdade.153 6 esperando pelos guerreiros de seu grupo liderados pelo nagual. Cabe
sempre ao nagual encontrar aquele que será o próximo nagual e ajuda-lo
| A atriz: a formar seu grupo e também encontrar a próxima mulher nagual, foi
– Os videntes do novo ciclo também estabeleceram uma forma de assim que Don Juan encontrou e foi encontrado por Carlos Castaneda
aprendizado que consistia em ensinar coisas do lado direito, o lado naquela estação de ônibus no Arizona.
racional, e outras do lado esquerdo, em estado de consciência alterada A linhagem de videntes à qual Don Juan pertence começou em 1723,
obtido através de um empurrão entre as omoplatas154. O guerreiro data na qual o nagual Sebastian conheceu o desafiador da morte e foi
aprendiz só seria capaz de lembrar-se de seu aprendizado anos depois, apresentado ao regulamento da águia.
quando estivesse pronto para atingir a totalidade de seu ser, ou seja,
juntar os dois lados, quebrar a casca e ver o mundo como totalidade e a si Os antigos videntes eram obcecados pela superação da morte, mas tinham
mesmo como totalidade dentro do mundo. a idéia de uma libertação como os novos videntes. Os antigos videntes
almejavam garantir uma sobrevida atuando nesta realidade conhecida.
Os guerreiros atuam em grupos, a formação dos grupos e a forma Alguns chegaram a conseguir essa sobrevida e foram conhecidos como
como atuam segue as especificações de um regulamento, chamado o os desafiadores da morte. Um desafiador da morte entrou em contato
“Regulamento da águia”. com o primeiro nagual e ensinou-lhe tudo o que sabia em troca de um
O regulamento da águia é apresentado a todo aquele que ingressa no pouco da sua energia. Dessa forma, todos os naguais passaram a ter um
caminho do conhecimento no início de seu aprendizado, porém em encontro com o desafiador da morte e ganhar conhecimento em troca de
estado de consciência intensificado. Isto é, enquanto o aprendiz não energia, cada qual recebendo um dom deste ser milenar.

153 Castaneda, O presente da águia, 1988. p. 244. Esta é uma fórmula mágica que
ele ganhou de Sílvio Manuel, um dos integrantes do grupo de Don Juan . Trad. 155 É interessante pensar que este foi um conhecimento transmitido oralmente por
de Andrea Copeliovitch. Vide original no apêndice. séculos e que Castaneda nos deixou por escrito, não apenas para os guerreiros
154 Mudança do ponto de aglutinação de que vamos falar mais adiante. escolhidos e indicados pelo Poder, mas para quem se dispusesse a ler...
162 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 163

Castaneda também terá seu encontro156 como descreve e também Genaro, guerreiros impecáveis que chegam à sua Ítaca, que atingem a
ele possuiu um grupo para liderar, mas de alguma forma houve um liberdade total, fazendo a passagem para o outro mundo juntamente com
equívoco (ou uma mudança) e o nagual Carlos Castaneda falhou em sua seu grupo de guerreiros.
tentativa de liderar o grupo de aprendizes. Depois de muitos conflitos,
os aprendizes de Don Juan se dispersaram e ficaram sem seu nagual e | O Corifeu:
Castaneda foi deixado Nagual sem seus guerreiros. – E o que aconteceu a Castaneda? Que herói é esse que não volta para casa?
Entra o coro: | A atriz:
| Um corifeu: – Segundo a imprensa, Castaneda morreu de câncer, em uma sala de
operações em 1998.
– E será que ele se dirige a nós, homens modernos, ao divulgar esses
conhecimentos que permaneceram secretos por tantos séculos e | O coro:
talvez milênios?
– Terá sido realmente nosso herói que morreu?
| Outro corifeu:
| A atriz:
– Será que ele espera que alguns de nós possamos deter-nos e escutar como
– Castaneda nos aponta um método para superarmos nossa condição
pede o Zaratustra de Nietzsche?
humana medíocre, nos aponta uma visão do mundo como energia.
| E outro corifeu: Essa visão de mundo parece uma ‘descrição científica’, pois é tão
meticulosa e tão plausível, no entanto é uma visão que não se comprova.
– Será que ele espera alguma coisa de nós?
O que é explicado foi visto e ver é uma capacidade do guerreiro e não
| A atriz: do homem comum. E aqui chamamos também o super cientista de
homem comum. Ver não pode ser fotografado, registrado, decupado em
– Um guerreiro não poderia ter esse tipo de expectativas, um guerreiro segue
equações matemáticas; ver pertence a um outro âmbito, ver é um dom
os desígnios do poder157. Um guerreiro age no mundo sem fazer parte do
que se aprende de nagual para aprendiz, faz parte de um conhecimento
mundo. Como compreender tal conhecimento tornado best seller, nesse
transmitido oralmente através dos séculos. E no entanto, temos aqui,
mundo em que gastamos o nosso tempo para assistir a programas como
graças ao nagual Carlos Castaneda, esse conhecimento tornado best
o reality show Big Brother?
seller, traduzido em diversas línguas.
| O crítico 1:
| O Corifeu:
– E ainda por cima, desperdiçamos a nossa energia pensando e
– Como podemos compreender essa passagem do conhecimento oral,
comentando a respeito.
restrito a um grupo seleto para a divulgação em massa, abertura total?
| A atriz:
| A atriz:
– Castaneda vem e como o melhor dos profetas, diz: “há um mundo melhor,
– Com certeza, nem tudo está nos livros. Para aplicar muitas das técnicas
ou há outras opções de mundo, mas nós, homens comuns, não temos
é preciso ver e a maioria de nós, leitores mortais, não pode ver. Muitas
energia para chegar lá, ou se tivermos, não teremos o suficiente para nos
pessoas leram os primeiros três livros e depois pararam, acreditando que ali
mantermos lá.” E nos aponta o exemplo de seus mestres, Don Juan e Don
estava o relato de uma experiência com drogas e não uma visão de mundo
acompanhada de uma possibilidade mínima, quase utópica de libertação.
156 Castaneda, A arte de sonhar, 1998.
157 Eu uso a palavra “poder”, pois nos quatro primeiros livros, Don Juan fala em
poder e não em destino – não entendo bem porque ele faz esta diferença, mas
ele a faz. Castaneda coloca a palavra “destino” várias vezes em sua boca, mas
é interessante notar que só depois do quinto livro, quando Don Juan já não
está mais sobre esta terra.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 165

5.2 O ator

Cena I:
Os dois fr ades

| A atriz:
– Era uma vez dois frades muito idosos, irmão Seze e irmão Akhel, que
periodicamente visitavam cada um dos mosteiros de uma confraria
pregando sermões...

| Gurdieff158:
– Quando é o irmão Seze quem fala, crer-se-ia ouvir o canto dos pássaros no
paraíso. Ao escutá-lo pregar, fica-se tocado até as entranhas e fica-se como
que encantado.
Sua palavra flui como o murmúrio de um rio e nada mais se deseja na vida
a não ser ouvir a voz do irmão Seze.
Quando é o irmão Akhel quem prega, sua palavra tem ação quase contrária.
Fala mal, com voz indistinta, sem dúvida devido à velhice [...].
Se os sermões do irmão Seze produzem na hora forte impressão, em
compensação, esta impressão se desvanece com o tempo e, por fim , não fica
absolutamente nada. Quanto à palavra do irmão Akhel, de início não
causa quase nenhuma impressão. Mas, com o tempo, a própria essência de
seu discurso toma, dia a dia, forma mais definida e penetra totalmente no
coração, onde fica para sempre.
Tocados por essa conclusão, pusemo-nos a buscar, porque isso era assim e
chegamos à conclusão unânime de que os sermões do irmão Seze provinham
apenas de seu intelecto e, por conseguinte, só agiam sobre nosso intelecto,
enquanto os do irmão Akhel vinham de seu ser e agiam sobre nosso ser.

| A atriz:
– O que é este discurso que age sobre nosso ser?

158 Gurdieff, Encontros com homens notáveis, 1997. p. 235.


166 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 167

| O Corifeu repete a velha pergunta:


– O que faz com que um ator se torne mais interessante que o outro,
mesmo que ambos digam o mesmo texto, com a mesma entonação, com
os mesmos gestos?
Cena II:
| Ela:
Sobre personagem
– Se pensarmos em um ator, em uma primeira instância, desejaríamos
que ele fosse como o irmão Seze: encantador, quase hipnótico; mas se | Fala Ana Maria Amar al:
pensarmos no ator alquímico de Artaud, então esse ator seria o irmão
Akhel, cujo discurso é capaz de produzir mudanças profundas como o – Um ato teatral acontece quando o indivíduo que o executa se modifica e
coloca uma personalidade em lugar da própria. É outro seu tom de voz, é
teatro alquímico, de Artaud.
outra sua aparência. Trata e representa outra coisa que não a sua simples
Os dois frades são como dois atores no palco, um ator com uma emissão rotina. É o personagem. É quando o homem deixa de ser simplesmente o que
de voz perfeita, que gesticula lindamente, que conhece a marcação de suas é para simbolizar algo além de si próprio”.159
cenas, mas que não emociona, e um bufão, mal-vestido, a coluna encurvada,
feio, mas que nos abre uma nova dimensão. Talvez possamos colocar uma | O Corifeu:
diferença entre o ator “ser” em cena e o ator estar em cena. Esse “ser” em – Ué, mas precisa de personagem para atravessar o espaço vazio? O Brook
cena seria um “estar com todo o seu ser”, como o irmão Akhel. não tinha dito que se uma pessoa atravessa o espaço e outra observa está
configurado o ato teatral?
| O Corifeu:
| A atriz:
– Como “ser” uma coisa que não se é?
– É verdade. Não há necessariamente um personagem em cena, assim
como não há necessariamente um texto, e se houver um texto, por mais
magnífico que seja, não quer dizer que o teatro ocorra...

| O Corifeu:
– Você já saiu do assunto. Agora eu vou ser obrigado a perguntar e nossa
conversa vai se envielar mais uma vez. Não entendi esta história do texto.
Você parece não fazer distinção entre um texto qualquer e uma obra
como... sei lá, Édipo Rei, por exemplo.

| A atriz:
– O texto não faz diferença no espaço vazio. Uma grande obra pode ser
um tédio se é um ator medíocre que a apresenta. E um texto de jornal
pode ser uma obra-prima quando apresentado por um ator mágico, como
o irmão Akhel. Até mesmo a pessoa atravessando o espaço vazio, sem
texto, sem ser outra sua voz, ou seus gestos, pode ser mais interessante do
que um canastrão representando Édipo.

| O Corifeu:
– Então não há personagem?

159 Amaral, Teatro de animação, 1997. p. 63-64.


168 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 169

| Ela: | O Corifeu:
– Quando se estuda o ator dentro do teatro é inevitável pensar em personagem. – Espere, está tudo muito confuso... Por que tentar esconder? Esconder o
Mas pensar em personagem é bem mais complexo do que simplesmente quê? Branco? Augusto? Iniciação? Esclareça.
pensar no ator em cena. Luiz Otávio Burnier dizia que o clown, por exemplo,
não é personagem160, mas um aspecto do ator. Mas o personagem não é um | A atriz:
aspecto do ator? Será o personagem uma fusão ator/ autor? O clown seria a – Para descobrir o clown, o ator passa por um processo seguido de uma
separação de apenas um aspecto do ator? Como se separássemos um pouco iniciação.
da ingenuidade do ator e a colocássemos no microscópio?
| O Corifeu:
| O Corifeu: – Descreva.
– Desculpe, senhorita, mas eu sou leigo em teatro, o que diabos é clown?
| Burnier:
| A atriz: – É impossível descrever o exercício do picadeiro. Entrar em contato com a
– Para responder à sua pergunta, vou chamar Luiz Otávio Burnier, que foi ingenuidade estúpida de cada um é um processo tão particular e privado,
quem me iniciou no clown. que não só é indescritível (por não haver dois casos similares) como
seria um desrespeito aos atores de minha parte. É interessante destacar,
| Luiz Otávio Burnier: no entanto, como todas as pessoas ficam tensas e acabam apelando para
– O clown é a exposição do ridículo de cada um, logo, ele é um tipo pessoal fórmulas já prontas, pré-fabricadas (piadas, estórias, personagens, gestual
e único. Assim uma pessoa pode ter tendências ao clown branco ou ao estereotipado). Tudo isso é descartado. O exercício propõe justamente este
clown augusto, dependendo de sua personalidade. O clown, portanto, não confronto entre o que é estereótipo (as máscaras que escondem a nossa pessoa)
representa, ele é – o que faz lembrar os bobos e bufões da Idade Média. e a essência de nosso ser, nossas fraquezas, nossa pureza, nosso ridículo tão
Não se trata de um personagem, ou seja, uma entidade externa a nós, mas bem camuflado. A máscara do clown, o nariz, é a menor do mundo, a que
da ampliação e dilatação dos aspectos ingênuos, puros e humanos, portanto menos esconde e mais revela.162
“estúpidos” do nosso próprio ser.” 161
| A atriz:
| Entr a Manuel Antônio de Castro: – Vou contar a minha experiência com o clown. Havia um grupo de
– Na verdade o clown não é porque é imagem poético manifestativa. aspirantes a clown. Inicialmente, passamos por um período de descoberta
e brincadeiras com o ridículo e o ingênuo de cada um. Era um trabalho
| O Corifeu: leve e divertido, como, por exemplo, íamos ao “shopping” descobrir roupas
– Ele é e não é? para nossos clowns: todos traziam roupas velhas que eram espalhadas pelo
centro da sala e tínhamos que escolher algumas, para isso era necessário
| A atriz: em geral negociar, pois as roupas mais engraçadas ou interessantes eram
– O clown é uma manifestação da poiesis do ator, é o ator despido de seus objeto de cobiça de todos os candidatos a clowns (digo candidatos, pois
artifícios, de sua beleza construída, o clown é como o irmão Akhel. Não só seríamos clowns após a iniciação no picadeiro). Aqui, já começávamos
é aquilo que queremos ou gostaríamos de ser, mas aquilo que se manifesta a imaginar quem seriam os brancos, que são os “mandões” e os augustos,
a partir de nós, apesar de tentarmos esconder... os submissos, que cumprem as ordens dos brancos, claro que sempre
fazem alguma coisa errada e em geral, quem acarreta as conseqüências
160 Melo, A arte do ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e
sistematização de técnicas corpóreas e vocais de representação para o ator, 162 Melo, Arte do ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e
1994. sistematização de técnicas corpóreas e vocais de representação para o ator,
161 Melo, Arte do ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e 1994. p. 263.
sistematização de técnicas corpóreas e vocais de representação para o ator,
1994. p. 252.
170 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 171

deste erro são os próprios brancos, como em O Gordo e o Magro, o Gordo consegui fazer para expressar minha tristeza, pois não seria capaz de falar
é o branco e o Magro é o augusto. sem chorar. Quando o clown é admitido no circo ele ganha o seu nariz.
Neste primeiro, momento a pessoa sozinha tentava apontar este ridículo Meu clown não era do tipo para fazer rir, apesar de meu suposto “talento”
para si e para os colegas, recebendo algumas indicações do professor. para comédia. Ele era patético e totalmente augusto. Esse processo foi
muito doloroso e foi o princípio da minha pesquisa em teatro. Eu saí
Para este trabalho, o professor Burnier assumia um personagem, o
em busca de opções para chegar a essa poesia do clown, esse estado de
Monsier Loyal, o dono do circo.
não ser, e ser o princípio, uma folha em branco, o ingênuo, sem precisar
Nesta fase, comecei a achar que meu clown fosse branco. Eu era uma passar por um processo tão dolorido.
turista que não falava português, e que em sua linguagem pessoal acabou
escolhendo o nome de Friula. Eu a vesti com óculos escuros, três chapéus, | O Corifeu:
calças largas, camisa brega, andava com uma cesta cheia de tranqueiras, – E por que o processo de criação do clown é doloroso?
como máquina fotográfica, dicionário russo, guia de sueco, folhetos,
mapas e uma flauta. Friula me colocava em situações divertidas por sua | Burnier:
dificuldade de comunicação, sua personalidade imponente (mandona) e – O trabalho de criação do clown é extremamente doloroso pois confronta o
seu visual ridículo. artista consigo mesmo, colocando à mostra os recantos mais escondidos da sua
pessoa, vem daí seu caráter profundamente humano.163
Passado esse período de descobertas, cada clown ia sendo chamado ao
picadeiro (nome dado à iniciação do clown), onde ele tentaria ser admitido | O Corifeu, dirigindo-se a Luiz Otávio Burnier:
a qualquer custo no circo a partir de suas habilidades e de sua capacidade
– E se o senhor diz que o clown não é personagem, então o que é?
de fazer rir. Por trás desse show de habilidades estava a capacidade de se
mostrar como realmente era, de se desmascarar. Só depois de admitido | Fala Copeau:
no circo, ele seria batizado pelo Monsier, a partir de sugestões dos – O personagem, visto como um ser externo apodera-se da vida psicofísica
companheiros. do ator. O trabalho do ator é tornar-se um recipiente sensível e hábil. Na
Quando eu fui ao picadeiro pensava em conquistar meu emprego a partir verdade, o que essa afirmação descreve é o conceito de personagem como uma
de minha habilidade em imitar a sonoridade das línguas e pela própria máscara que o ator coloca para uma representação164.
graça de Friula.
| O Corifeu:
A primeira coisa que o Monsier fez foi despir Friula de todos seus acessórios, – Então o personagem é um ser externo, como uma entidade, ou ainda, um
roupas largas, óculos, chapéus, permitindo que permanecesse apenas de arquétipo que se manifesta através do corpo do ator?
shorts e top e com sua flauta. Proibiu-a de falar outras línguas que não
o português. Enquanto isso, os insultos e gozações dos outros clowns | A atriz:
iam despindo a minha própria alma, mexendo em complexos muito – Ou o ator é o personagem?
arraigados, complexos em relação a meu corpo, à minha personalidade.
Minha coluna se curvou e eu disse para mim mesma: “não vou chorar, | O Corifeu:
não vou dar o braço a torcer, não quero que eles saibam o quanto isso me – Ou ainda, o personagem é um pretexto para que o ator se mostre?
afeta”. E essa atitude fez com que eles tentassem adjetivos cada vez piores
e que cada vez tocavam feridas mais doloridas.
Através de uma eleição, ganhei o nome de Assumpción (do Paraguai),
que a meu ver era realmente o menos ofensivo dos nomes e consegui
163 Melo, Arte do ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e
minha admissão no circo tocando flauta, que foi a única coisa que eu sistematização de técnicas corpóreas e vocais de representação para o ator,
1994. p. 252.
164 Eldredge, 1975, p. 124, in Lopes, A máscara e a formação do ator, 1990.
172 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 173

| Ana Maria Amar al: | A atriz:


– O ator confunde sua própria imagem com a do personagem. O ator encarna – Aqui estamos falando de máscara em dois sentidos distintos: a máscara
o personagem. O ator é visto”.165 – persona, ou seja, a máscara do próprio teatro, e a máscara utensílio
cênico, feita de couro, papel maché ou qualquer outro material que sirva
| A atriz e o coro em uníssono: para confeccionar este objeto.
– Como separá-los?
| O Corifeu:
| A atriz: – E qual a importância da máscara utensílio para esta nossa conversa em
– Mais uma vez é interessante pensarmos nesse grandioso acessório teatral que tentamos compreender o que é personagem?
que é a máscara, ou melhor, neste símbolo do teatro: a máscara. E a máscara
| A atriz:
é o próprio personagem utilizando o corpo e às vezes a voz do ator.
– Muitas vezes o ator transfere para a expressão facial o vasto leque da
Ao vestir a máscara, o ator torna-se o personagem que possui o rosto dessa representação de suas emoções. Na prática, pudemos observar que se pedirmos
máscara, deixa de ser ele mesmo para emprestar seu corpo para outro. a um ator menos familiarizado com seu corpo que, por exemplo, demonstre
estar fazendo força, tencionará os músculos faciais, deixando de realizar a
| A criança: tensão necessária em outros músculos de seu corpo, cuja ausência de vivacidade
– Por que eu sou eu e não você? faz com que não ocorra a transmissão de energia da qual fala Artaud.

| A atriz: A máscara oculta esta característica física tão marcante do ser humano:
o rosto. Ela age como se ocultasse nossa personalidade, nosso ego, e ao
– Na verdade, não sei. Estamos acostumados à essa idéia de personalidade, ocultar, revela; nos deixa expostos, desprovidos da armadura do ego, o
de que somos o que somos, como a estátua congelada da mulher de Lot. nosso eu mais verdadeiro, íntegro e universal, aquele que nos aproxima dos
Acreditamos sermos rígidos e não fluidos. Pensarmos que o outro dentro outros seres humanos, aquele que nos torna identificáveis com a platéia,
de nós é o personagem é uma possibilidade de ser este outro e não perder que, segundo a idéia do desnudamento de Grotowski, ao nos ver assim
o controle total de nossos atos; é colocar uma máscara sobre a nossa despidos, também se sentirá desmascarada e identificada. A máscara
própria máscara, sem a necessidade de despi-la. despe e, ao mesmo tempo, protege o ator fisicamente, escondendo-o,
Grotowski falava em o ator desnudar-se perante a platéia, rasgar a máscara dando-lhe a segurança necessária para expor-se...
diária para realizar um ato total.166 Aí o ator perde a sua rigidez, a ave Essa reflexão sobre a máscara como ausência de rosto para pensarmos
quebra o ovo. Grotowski realizou essa alquimia no teatro, treinando seus a relação ator- personagem pode ser exemplificada por uma experiência
atores com o rigor de guerreiros, treze, catorze horas por dia, tornando- prática de Copeau167, na escola do Vieux Colombier, e que deu origem à
os sacerdotes de uma arte, religiosos do profano, capazes de transformar idéia de uma máscara neutra (aquela que neutraliza o rosto do ator) para
este teatro profano em sagrado. ser utilizada no treinamento e preparação dos atores.
É dessa forma que nós atores tentamos, intentamos e muitas vezes | Conta Elizabeth Lopez:
conseguimos rasgar a máscara quotidiana para vestir a máscara do teatro. – Uma jovem atriz atrasou o ensaio porque ela não podia superar sua autocrítica
e expressar os sentimentos de sua personagem através de ações físicas apropriadas.
| O Corifeu:
Cansado de ter que esperar que ela relaxasse, Jacques Copeau, o diretor, jogou um
– Estou confuso com esse papo de máscara. Máscara quotidiana, máscara lenço sobre o rosto dela fazendo-a repetir a cena. Ela relaxou, imediatamente,
que oculta o rosto do ator... que rolo! seu corpo tornou-se capaz de expressar o que lhe haviam solicitado. 168

167 Copeau, Notes sur le métier du comédien, 1955.


165 Amaral, Teatro de animação, 1997. p. 22. 168 Saint-Denis, 1982. p. 169-170 in Lopes, A máscara e a formação do ator, 1990.
166 Grotowiski, Em busca de um teatro pobre, 1987. p. 180. p. 32.
174 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 175

| A atriz: | O Corifeu:
– O rosto coberto facilita a busca da desindividualização. – Como assim?
A máscara re-ensina o ator a se movimentar, a reagir, a ser, pois modifica | Ela:
seu rosto, tirando-lhe a consciência quotidiana de quem é: ao vestir a – É como se a atenção não estivesse voltada ao ser, é não ser, não estar.
máscara, o ator despe-se das suas próprias máscaras quotidianas. É viver um tempo não sagrado, pois o tempo do corpo que morre é
E se pensarmos em máscara/ personagem externo ao ator, vestido por ele, precioso, é vida. Nosso corpo está morrendo a partir do momento em que
ocultando-o/ revelando-o, é inevitável a relação com o boneco (entenda- nascemos. Nesse sentido, o guerreiro é um ser com consciência do tempo,
se por boneco, objeto de animação), que é o personagem, externo ao ator o guerreiro é um ser que não pode se distrair, sua atenção é total.
que recebe vida através da manipulação realizada por ele, ou seja, que Assim é o ator alquímico, diferente do ator de entretenimento.
recebe vida através de uma expressão do corpo deste ator que não é visto
ou cuja presença não influencia os acontecimentos dramáticos, como no A oportunidade de vivenciar diversos “eus” é dada ao ator
descompromissadamente, a oportunidade de morrer e renascer a cada dia.
caso do bunraku169, em que o ator é visto manipulando o boneco, não
deve ser percebido. Estar em cena deveria ser apenas o jogo que lhe dá a oportunidade de
descobrir que as nossas máscaras diárias são apenas elementos desse jogo.
| O Corifeu: Estar em cena é buscar a essência, a nossa própria essência e a essência de
– É o quê? Bun o quê? nossas máscaras. E prosseguir... além delas.

| A atriz: | O Corifeu:
– Ah, vê se lê aí no rodapé e deixe-me continuar meu pensamento. Cara – Jogo? Que jogo?
chato < ela fala baixinho > o corifeu não vai escutar, pois estará procurando
a nota de rodapé. O boneco pode ser considerado, então, uma máscara
que oculta o rosto e o corpo do ator, deixando-se perceber apenas a sua
manifestação simbólica, o personagem. O ator totalmente neutralizado,
despido de sua persona quotidiana, para revelar o personagem, para
realizar o teatro. Distanciado e ao mesmo tempo integrado ao personagem.
Sendo e não sendo o personagem ao mesmo tempo. Afinal esta não é a
grande questão do teatro: ser ou não ser?170

| O Corifeu, voltando do rodapé:


– Qual a diferença entre estar e não estar, ser e não ser?

| A atriz:
– Há no ator esta eterna contradição de ser e não ser que se dá em diversos
níveis, ser ou não ser o personagem, estar ou não estar em cena, ser ou não
ser completo, entreter ou ser? O irmão Seze é capaz de produzir grande
entretenimento, mas o entretenimento é para matar o tempo, distrair...

169 Teatro de animação japonês no qual os manipuladores ocultam-se vestindo-


se de preto.
170 Ora, a caricatura mais comum do teatro é um ator/ Hamlet declamando em
frente a uma caveirinha: Ser ou não ser, eis a questão, será que é por acaso?
O Ator Guerreiro frente ao abismo 177

Cena III:
O jogo e o sagr ado

| Fala Huizinga171:
– Todo ritual autêntico é obra de canto, dança e jogo. Hoje em dia,
perdeu-se o sentido do jogo ritual e sagrado. Nossa civilização está exausta
com a idade, tendo se tornado excessivamente sofisticada. Mas nada
contribui mais para nos fazer recuperar esse sentido do que a sensibilidade
musical. Quando sentimos a música, também somos capazes de sentir o
ritual. Quando escutamos música, queira ela expressar idéias religiosas ou
não, acontece uma fusão entre a percepção do belo e o sentimento sagrado, na
qual é inteiramente resolvida a distinção entre o jogo e a seriedade.
Hamlet atravessa o palco com a caveirinha na mão, pára por um momento e
pronuncia as célebres palavras, seguindo para a coxia.

| Hamlet:
– To be or not to be172

| A atriz:
– Essa relação entre ser e não ser no teatro, como jogo, já não se apresenta
como contradição,.mas como movimento, a ação poética de ser e não ser
em si é jogo, para as crianças, no momento do jogo: somos; mas se o
bandido mata o mocinho a criança não está morta. O jogo tem um aspecto
sagrado, mas, pela própria natureza de ser jogo, também é profano.
O aspecto sagrado do jogo é a criação, o inusitado que surge, o rompimento
do tempo cronológico, que não mais é contado em números, mas contado
em histórias, que abrem espaços na imaginação e na memória.
O sagrado surge como uma explosão, onde um ponto fixo torna-se
responsável pelo surgimento de algo novo.

| Fala Eliade:
– A irrupção do sagrado não projeta somente um ponto fixo no meio da fluidez
amorfa do espaço profano, um “centro” no “caos”, ela efetua igualmente uma

171 Huizinga, Homo ludens, 1980. p. 178.


172 Shakespeare, Hamlet, Ato 3, cena I, linha 57, p. 1087, 1980.
178 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 179

ruptura de nível, quer dizer, abre comunicação entre os níveis cósmicos (entre perambulando, ninguém reclamou. No dia seguinte, sentaram-se à
a terra e o céu) e torna possível a passagem de ordem ontológica de um modo mesa da diretoria, ninguém reclamou. Assim foi, até que um dia, eles se
de ser a outro.173 sentaram à cabeceira da mesa e assumiram a direção do prédio. Ou seja,
não vamos prescindir da razão e do ego, mas devemos colocá-los de volta
| A atriz: em seu lugar de funcionários.
– A irrupção do sagrado é responsável por uma reorganização do universo.
É a irrupção do extraordinário no ordinário. E é isso que nós, atores, | O Corifeu:
estamos sempre buscando. – Que coisa hippie! Tsc. Tsc.
Para fazer irromper o sagrado no teatro é necessário buscar um fazer
teatral de transformação, este teatro alquímico, no qual o contato entre
ator/espectador deve ocorrer em um nível psíquico que implique uma
transformação para ambos, e cuja viabilidade está relacionada à destruição
de todas as formas que Artaud chamou de insuficientemente apuradas174 ,
um teatro que, assim como a alquimia, trouxesse a espiritualidade para o
plano da matéria.
E, como já dissemos, qualquer transformação é perigosa, pois nos coloca
em contato com o desconhecido.
O ego protege o homem deste desconhecido. Manuel Antônio de Castro
em seu texto O canto das sereias: da escuta à travessia poética175 fala de
como, na Odisséia de Homero, Ulisses se ata ao mastro do navio para não
se lançar ao mar ao escutar o canto das sereias; o mar ali é o desconhecido,
o abismo. Lançar-se ao mar é lançar-se no infinito. O mastro é o limite.

| O coro:
– E o que é esse limite do homem, que é a um tempo cárcere e salvação? O
que nos permite ir além e quando devemos nos atar a esse mastro? É o ego
que nos dá esse limite? Ou a razão? E em que sentidos a razão se separa
do ego? Quando podemos transcender o nosso ego? Quando podemos
prescindir da razão?

| Ela:
– Outro dia fui a uma palestra sobre meditação, e o palestrante176
apresentou uma figura interessante sobre essa questão do ego e da mente.
Ele disse que nós somos como um edifício e que o ego e a mente eram
os ascensoristas. Um dia eles subiram até a sala da direção e ficaram

173 Eliade, O sagrado e o profano, 1956.


174 Vide: “O teatro da crueldade (Primeiro Manifesto)”, Artaud, O teatro e seu
duplo, 1987.
175 Castro, O canto das sereias: da escuta à travessia poética, 2003.
176 Palestra de Ernani Fornari em 2004, Espaço Saúde, Rio de Janeiro.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 181

Cena IV:
Quebr ando o mundo

| Fala Demian:
– Quem quiser nascer tem de destruir um mundo.177

| A atriz:
– Don Juan Mattus, o mestre de Castaneda, coloca que é o diálogo interior
que nos faz ver o mundo da forma como o vemos; que é esse tagarelar
interno constante que nos faz afirmar e reafirmar aquilo que entendemos
tacitamente por realidade. É interessante que muitas correntes do
pensamento oriental pregam a meditação, o controle do tagarelar interno
como forma de ascendência espiritual.
Don Juan fala em dois círculos de poder distintos; um seria o círculo que
configura o homem comum, cujo centro é a razão, que se conecta com a
fala; o outro é o círculo da vontade, que se conecta com emoções, sonhar
e ver – lembrando que esses termos têm um significado bem específico
na obra de Castaneda178, e que vontade...
O coro a imterrompe, enfadado pela repetição
– ... é um ponto localizado abaixo do umbigo.

| Ela:
– Sim, um centro energético do nosso corpo que o homem, que vive restrito
ao círculo da razão, não teria ativado. Mas o guerreiro, em seu caminho
para ser um feiticeiro, ou um homem de conhecimento, trabalha para
ativar a sua vontade. É através da vontade que ele vê o mundo, e aqui ver
é contraposto a olhar, olhar é ver as coisas como estamos acostumados no
círculo da razão, cadeira é cadeira, mesa é mesa179. Ver é inusitado, é um
salto no abismo, é lançar-se ao mar das sereias, é o mundo mutável dos
sonhos, onde tudo representa perigo e o ser é fluido.
E novamente chegamos à questão do limite do ser, o que contorna essa
fluidez do ser, o que nos torna sólidos?

177 Hesse, Demian, 1988.


178 Castaneda, Tales of power, 1974.
179 Falaremos sobre esses conceitos mais adiante.
182 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 183

Na prática do teatro180 acabamos por associar essa solidez do ser ao ego,


e colocamos a necessidade de romper com esse “ego – casca sólida” para
fazer irromper a criação.
Podemos pensar nessa experiência como uma morte ou aniquilação
temporária do ego. Cena V:
O eu e a máscar a
| Um Corifeu, fr anzindo a car a:
– O quê??????? | A atriz:
| Entr a Stanislav Grof181: – Como um guerreiro ou um aprendiz, o ator passa por uma preparação
para transformar seu “eu-quotidiano” em “eu-ator”, um “eu-essência”,
– Essa experiência da “morte do ego” parece acarretar uma destruição
de que Burnier nos falou quando descreveu o clown, fluido e pronto a
instantânea e impiedosa de todos os pontos anteriores de referência da vida
receber qualquer máscara que o teatro possa lhe oferecer.
do indivíduo.
| A atriz chama os corifeus professores que
| A atriz:
saem do coro, põem os óculos e impostam a voz,
– O ator, como artista do momento, vive essa experiência momentaneamente, limpando a garganta. O corifeu professor 2:
no espaço vazio. Ao deixar o tapete vermelho, ao sair de cena, ao tirar
– Para explicar melhor esta relação “eu-quotidiano” e “eu-ator” vamos utlizar
a máscara volta a ser o que era antes, porém como poeta fingidor que é,
algumas colocações de Mauss em Noção de pesssoa. Nessa obra, o autor
nunca saberemos quão profunda foi essa mudança.
cita algumas sociedades, por exemplo, algumas tribos australianas onde os
Esse rompimento da casca está muito claro quando falamos do clown. habitantes exercem diferentes funções na sociedade e de acordo com cada
Também Castaneda, aprendiz de feiticeiro passa por sua iniciação como função que exerce recebe um nome diferente. Esse indivíduo usa esse nome
um clown, Don Juan e Don Genaro estão constantemente zombando quando o ator veste uma máscara ou assume um personagem. É esse nome
dele, imitando-o, sua auto-importância, seus acessos de raiva, tudo é que especifica quem ele é e o tempo/ espaço no qual está atuando.
motivo de riso para eles, e eles o põem à prova o tempo inteiro, como
o Messieur Loyal faz com o clown, Castaneda tem de conseguir ser um | O corifeu professor 1:
feiticeiro ou morre. Como o clown, que se não for aceito no circo, morre. – Percebam que possuir um nome diferente para cada função provavelmente
O clown só existe no picadeiro. Se não puder ser clown no picadeiro, ele o libera de conflitos internos em um momento de ação, pois, por exemplo,
deixa de existir, por isso ele faz qualquer coisa que o Messieur mandar, um pai tem atitudes diferentes de um sacerdote, e como os nomes atuam
submetendo-se a humilhações e dificuldades. O picadeiro de Castaneda neste caso como máscaras, um está claramente distinto do outro. Essa
é um abismo no qual ele tem de saltar, se ele não for um feiticeiro de distinção tem como conseqüência criar uma integridade da pessoa
verdade, não sobreviverá ao salto. O abismo do clown é o picadeiro. Se ele no papel, pois o papel é a pessoa e a pessoa é o papel, pelo menos em
não for um clown de verdade, morrerá. determinado espaço de tempo em um local que se estabelece em função
daquele momento e daquele papel que também acontecem em função
daquele espaço.

| O corifeu professor 2:
– Este triângulo (tempo, local, papel) pode ser destacado daquilo que nós
180 Em minha pesquisa de mestrado, A construção do personagem através do em nosso contexto da sociedade ocidental contemporânea conhecemos
ritual, 1998.
181 Grof, Além do cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia, como quotidiano profano. Esse triângulo organiza o mundo. O tempo
1988. p. 93. Aqui Grof se refere a experiências de morte do ego em terapias, sagrado, de acordo com Eliade, é o tempo puro, que repete o momento
mas acredito ser a mesma experiência vivida pelos atores ao transcenderem
seu ego em determinados momentos de seu processo. da criação do mundo, o momento da passagem do caos ao cosmos, quando
184 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 185

nada existia ou apenas o caos existia e a partir de um mito passou a existir Agora eu tenho a honra de convidar o poeta novamente ao palco, dessa
um mundo organizado. vez despido de suas máscaras, nomes diferentes, só ele... Nu como veio
ao mundo. Senhoras e Senhores, o único, o incomparável, Fernando
O triângulo, função específica no tempo espaço, é um momento de
Pessoa!!!!!!!!
organização, um ponto fixo no caos. E o tempo que se vive aí é o tempo
presente, pois mesmo quando se busca recontar os mitos, o ritual retorna | Pessoa (na penumbr a, pois está despido
ao tempo primordial e os fatos acontecem no tempo presente. E cada e não queremos ser censur ados):
participante em sua função deve viver esse presente integralmente, sem
O poeta é um fingidor,
que o seu pensamento, seu sentimento nem sua energia se dispersem.
finge tão completamente
| A atriz:
que chega a fingir que é dor
– E assim se dá conosco, atores.
a dor que deveras sente.184
| O corifeu professor 1:
– Não só com os atores.
| A atriz:
| Mauss:
– O poeta, no tempo dos gregos, antes da escrita, era o contador de
– Um vasto conjunto de sociedades alcançou a noção de persona, de um papel
histórias, era o agente da ação, ele tornava a ação, imagem, vida, o poeta
que o indivíduo preenche em dramas sagrados como desempenha na vida
era o ator, esse ator fingidor. O poeta é o agente da poiesis, poeta é o que
familiar.182
age, ator, e ele vive essa contradição de ser e não ser, do jogo sagrado,
| O corifeu professor 2: em que a seriedade é lúdica e o risco incalculável, ele ouve o canto das
sereias, atira-se no mar, mas é fingidor, está atado ao poste e, no entanto,
– Esse papel muitas vezes vem acompanhado de uma caracterização que o
foi abismo abaixo, no abismo da linguagem, no mar do canto, do silêncio
simboliza, muitas vezes uma máscara.
e da escuta. Ele é, e deixa de ser no momento seguinte, para vir a ser
| Mauss fala a respeito das mascar adas novamente, por seu constante esforço em manter-se presente, vivo e não
tempor árias que ocorrem em tribos deixar-se cair na inércia do não ser, porque aí, ele já não é mais como o
austr alianas: clown quando tira o nariz, ou o ator quando fecham-se as cortinas.185
– O homem com elas (máscaras) fabrica-se uma personalidade superposta, O ator é aquele que faz tudo. O ator não é tão bom bailarino quanto o
verdadeira na situação de ritual, fingida na situação de jogo. Porém entre bailarino, mas quem o vê dançando não duvida que ele seja um grande
uma pintura de cabeça ou de corpo , e uma roupagem e uma máscara, só há bailarino, um grande cantor, um grande canalha.
diferença de grau e nenhuma diferença de função. Tudo ali desemboca numa
Em março de 2004, eu dei um workshop em Syrus, uma ilha na Grécia (já
representação extática do ancestral.183
que estamos a falar de gregos) e meu trabalho inclui danças brasileiras na
| A atriz: preparação do ator. Quando eu dou cursos no exterior eu peço que a turma
me ensine uma dança e um canto do país no final do dia de trabalho. A turma
– A máscara no caso do ator trabalhando com o ritual deve ter essa exata
me ensinou uma música grega e a dança. Para aprender, eu busco decupar os
função de fabricar uma personalidade superposta, o personagem, que traz
sons e movimentos, explicitando o meu processo de aprendizado.
em si o real e o fingido.

184 Pessoa, “Autopsicografia” in Obra poética de Fernando Pessoa, 1986.


182 Mauss, Noção de pessoa, 1974. p. 222. 185 Esse é o esforço do guerreiro de Castaneda, continuar a ser, manter o mesmo
183 Mauss, Noção de pessoa, 1974. nível de presença 24 horas por dia.
186 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 187

E eu dancei, cantando a música em gromelô186 como a mais grega | O corifeu professor 1:


das gregas. – Eliade diz que o homem religioso tem uma obsessão por reencontrar
Alguns dias depois, quando eu estava voltando a Atenas, encontrei um a perfeição dos primórdios191, por isso está sempre apresentando em seus
dos participantes, Nikos, e ele me contou que ele havia tentado aprender rituais o mito da criação, que se deu quando o mundo recente era puro e
aquela dança antes de seu casamento, ensaiando exaustivamente sem forte. Percebam que o autor se refere a esse sentimento a respeito do mito
conseguir aprender os passos. No workshop, ele percebeu que estava da criação como nostalgia.
dançando com total fluidez e domínio dos passos. Ele me disse que foi
| A atriz:
necessário uma professora brasileira para ensinar-lhe uma dança grega. E
eu não estava sequer acertando os passos, mas estava na minha mais séria – Também alguns de nós atores... eu... creio que se pudermos chegar a esse
posição de fingidor, o ator ensinando a agir, fingindo a ação, fingindo momento de pureza total, analogamente repetiremos esse mitos da criação
que sei, e acreditando a ponto de ensinar corretamente o que não sei187 do mundo. Ou melhor, mostraremos a quem nos assiste a possibilidade
(Senhores, não deixem de ler a nota). de representar, com a força dos povos que contam seus mitos.

E o ator vive essa eterna contradição entre ser e fingir, fingir sendo e ser O momento de pureza para o ator equivale também a um estado mental,
fingindo, porque se ele fingir fingindo ele não estará sendo, e para agir a um estado de disponibilidade, como um pedaço de solo pronto para ser
(atuar, concretizar a ação, poiein) é preciso ser. fecundado, como na experiência com a máscara neutra, onde é necessário
que o ator reaprenda cada movimento, desde como olhar até como andar
Novamente, lembramos que a máscara188 nos ajuda a vivenciar esse ou manifestar sentimentos. Pois a máscara neutra é uma persona neutra que
paradoxo do ator sem que ele seja vivido como contradição. Ela auxilia cobre o ator. De qualquer forma, para chegar a essa neutralidade é necessário
o ator a ver esse personagem de forma externa a si mesmo. Ele se olha controlar o tagarelar interno, esse diálogo interior incessante, que afirma o
no espelho e a imagem que vê refletida não é ele, mas ele sabe que é ele nosso mundo quotidiano, como disse Don Juan. Através de treinamento
mesmo quem está ali, então, ele joga.189 A máscara é o personagem, uma psicofísico o ator pode aprender a controlar o seu diálogo interior e viver
nova persona, diferente da persona quotidiana do ator. intensamente o momento presente, desenvolvendo, assim, a sua capacidade
de estar, a sua presença total, que deverá resultar em uma entrega total em
| O corifeu professor 2:
relação ao espectador, possibilitando uma forma comunicação inusitada,
– O próprio Mauss coloca em seu texto a definição latina do termo Persona. uma comunicação capaz de estabelecer mundo entre eles.
| Mauss:
– Persona: máscara, máscara trágica, máscara ritual e máscara de antepassados. 190

186 Gromelô é uma linguagem pessoal do ator em que ele pode imitar uma
sonoridade estrangeira.
187 Claro que as técnicas e os exercícios criaram uma abertura em Nikos
e também em mim, um estado de disponibilidade, que é o ponto
principal da proposta da minha pesquisa prática no teatro: criar um
estado de disponibilidade a partir do qual o ator seja capaz de fazer
o que ele quiser, introduzir técnicas, criar cenas, personagens, etc.
Como se fosse por mágica? Não, o primeiro momento da criação vem
facilmente, como um insight ou uma resposta imediata do corpo, o
resto é trabalho duro, repetição, disciplina. Encontramos os homens
notáveis, e agora? Precisamos aprender com eles e aprender nunca é
uma tarefa fácil.
188 Aqui podemos pensar, que em diferentes graus, a máscara seria não só o
artifício de couro ou pano, mas também maquiagem e figurino, ou a máscara
facial que Grotowski trabalhava com seus atores.
189 Em inglês: the actor plays, em francês: l’acteur joue, e assim em várias outras
línguas, o ator joga.
190 Mauss, Noção de pessoa, 1974. p. 225. 191 Eliade, O sagrado e o profano,1956. p. 82.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 189

Cena VI:
A dança do inusitado

| A atriz:
– Senhores, permitam-nos algumas observações práticas.
O ator deve se permitir viver e preencher essas personas/ máscaras /
personagens completamente, sem permitir que a sua persona quotidiana
interfira, ou seja, o ator vai buscar seus personagens além de sua memória
pessoal, ele se permite mergulhar no mar do inusitado, abrindo-se para
a criação, para que o mundo se manifeste através de sua obra, através do
aberto criado pelo seu ato.
Minha tarefa como pesquisadora de teatro, na prática, tem sido preparar
o ator para essa ausência da sua persona/ transformação. Através
dessa pesquisa, cheguei a uma proposta de treinamento composto por
preparação e celebração, em que o ator celebra sua própria preparação,
através de cantos e danças misturados a exercícios mais específicos.
O estudo desses cantos e danças é baseado na observação e estudos de
rituais onde as pessoas dançam juntas para fortalecer o contato com o
mundo sagrado. Dançando juntas, as pessoas criam um “eu-coletivo”,
no qual elas dissolvem sua personalidade quotidiana, tornando-se parte
dessa unidade coletiva.192
Através do treinamento, buscamos encontrar movimentos genuínos no
corpo do ator, provenientes da energia produzida e emitida pelo corpo.
Para isso, exploramos o maior número de possibilidades de movimento
de cada ator, analisamos as qualidades deste movimento, buscando esse
movimento genuíno, nascido de um impulso real e que movimenta não
só a musculatura do intérprete, mas a sua energia.
É a energia que a movimentação do ator produz que vai colocá-lo em
contato com o movimento do universo, que vai torná-lo aberto à escuta
e ao mesmo tempo fluido o suficiente para contar com seu corpo o que
as musas sussurraram em seu ouvido, tornar-se personagem – poesia,

192 Copeliovitch, A construção do personagem através do ritual, 1998.


190 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 191

criador de mundos e de linguagem. Quando o ator encontra seus próprios


movimentos, saberá apropriar-se também dos movimentos aprendidos.
Sua movimentação produz energia e desloca-se no tempo (possui um
ritmo) e no espaço (constitui formas), constituindo a dança do ator. Seu
corpo-em-vida-atoral é criado a partir de uma elaboração técnica que 5.3 O guerreiro e o teatro
utiliza como base essa movimentação inerente a cada ator, à qual nos
referiremos como dança pessoal, acrescida de movimentos pesquisados,
observados, aprendidos, imitados que comporão seu repertório próprio. Cena I:
Nosso ator busca abrir-se à escuta, penetrar no mundo das musas a partir A ação do guerreiro
da dança. A partir da descoberta de linguagens, de formas de expressão do
seu corpo que sejam genuínas, cuja raiz gera essa energia, ou essas forças.
| A atriz:
| Fala Inaicyr a Falcão dos Santos: – O teatro é a arte do tempo presente, a arte do efêmero e, paradoxalmente,
– Consideramos que essas forças geradas pela raiz do movimento, recarregam o é a arte da repetição. E todo fazedor dessa arte efêmera é um pouco Sísifo,
indivíduo no tempo, no ritmo de corpos, no ritmo dos mundos, aproximando- que quase atinge o topo do penhasco carregando a pedra pesada, mas
nos à nossa força de origem, da evocação dos poderes cósmicos, das suas jamais consegue chegar lá, ao topo...
interligações com os seres humanos”.193
| O coro:
| A atriz: – E o que há no topo? Imortalidade? Perfeição? Abismo?
– Como o atleta afetivo de Artaud...
| Ela:
– O ator vive este momento em que ele se acredita imortal em sua glória e ao
mesmo tempo morre, desmancha-se e torna-se fluido, uno com sua arte,
o momento onde essa arte acontece, onde se concretiza este movimento
do fazer poético, o ocultamento e o desvelamento. Neste movimento dá-
se a obra do artista, ou melhor acontece a Obra em si, que é a obra teatral,
a um tempo imortal e efêmera, cujo movimento é de criação e morte,
como as mandalas de areia dos budistas tibetanos, que ao atingirem a
perfeição são desmanchadas como um símbolo da impermanência das
coisas do mundo.
Em nossas batalhas individuais de atores buscamos a ação de Arjuna
ao decidir lutar contra seus parentes194, a ação pura, desinteressada e
desvinculada do passado, do futuro ou da moral, é a ação de Hamlet195,
enojado diante da existência, mas que segue com a sua vingança até o fim
até o seu próprio fim, a ação do sonho de que nos fala Artaud.
A ação do ator acontece no momento do palco, e deixa de acontecer no
momento seguinte. Muitos atores tendem a discutir a ação passada: “eu
deveria ter feito isso, você deveria ter feito aquilo”. Essa discussão só é

193 Santos, Da tradição Africana Brasileira: uma proposta pluricultural de dança- 194 Carrière, O Mahabharata, 1991.
arte-educação, 1996. p. 32. 195 Nietzsche, O nascimento da tragédia no espírito da música, 1978.
192 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 193

importante se houver um dia seguinte, e mesmo nesse caso não se trata


do futuro do pretérito, mas do futuro simples: amanhã farei tal e tal coisa
diferente do que fiz hoje.
A questão que colocamos é que existe uma diferença qualitativa para
quem está assistindo entre ver um ator que está pensando sobre o Cena II:
que ele deve fazer e ver o ator que simplesmente faz, sem pensar. No O guerreiro
segundo caso, a ação está inserida no seu corpo, seja partindo de uma
forte capacidade intuitiva, seja através de um trabalho de repetição e | Fala Octavio Paz:
memorização rigoroso de sua partitura cênica, como propõe Grotowski. – A outra realidade não é prodigiosa: é. O mundo de todos os dias é o mundo
Também é possível que esta ação silenciosa tenha nascido de um trabalho de todos os dias: que prodígio!196
com possíveis técnicas para desenvolver estados não quotidianos, ou
então de um estado de alerta tão intenso que permite ao ator improvisar | O coro:
como se fosse um mergulho no inusitado. – Que prodígio ser, simplesmente ser.
Como no sonho, o ator leva a platéia de uma ação a outra sem que entre
elas exista um momento de dispersão, o ator é capaz ou deveria ser capaz | A atriz:
de levar quem o assiste a uma situação de sonho, se essa for a proposta. – O ator é, mas por alguns instantes, depois ele deixa de ser, esse artista do
efêmero é um herói que acredita receber medalhas que sobrevivem apenas
| O Corifeu: até o fim dos aplausos, e depois somem nas sombras do esquecimento,
– A-há! Então o ator é responsável por um estado de alienação no público! para tornarem a brilhar no próximo momento de aplauso.

| A atriz: O ator é quixotesco em sua luta pela glória, pela arte, pelo momento. E é
nisso que reside sua poesia e sua capacidade de sobrevivência.
– Não podemos chamar de alienação, o ator é um criador de mundos,
mas veja o caso do teatro proposto por Brecht, a proposta é que o ator | O Corifeu:
leve o espectador a este estado onírico e depois “lhe puxe o tapete”, – Quando você fala em ator quixotesco, me lembro daquele fime, “A
fazendo-o questionar a realidade, em geral de forma voltada às questões viagem do Capitão Tornado”.
político-sociais. Ou seja, o ator “sai” do personagem, despertando assim
o espectador e fala com ele diretamente, sem a máscara da personagem, | O coro:
mas essa entrada brusca no quotidiano político só é possível se o ator – Ah! do Martim Scorcese.
primeiramente levar o espectador à outra realidade, que fica à margem
da Pólis, ou em uma Pólis diferente. | O Corifeu:
– Penso naqueles atores ainda saltimbancos.

| O coro:
– Na Idade Média.

| A atriz:
– Os atores... saltimbancos, bufões, clowns, bobos da corte sem corte, as
trupes dos rejeitados, dos marginalizados pela sociedade, marginais à

196 Paz, “La mirada anterior”. La otra realidad no es prodigiosa: es. El mundo de
todo los días es el mundo de todos los días: ¡qué prodigio!.
194 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 195

Pólis, poetas expulsos. Esse filme tem tudo a ver com a nossa história. Cena III:
E ainda fala da questão do ser ou não ser: os atores estão inserido num
O guerreiro diante da morte
tempo, a Idade Média, e súbito, são arrancados desse tempo, por nós,
pelas cortinas que se abrem para os aplausos no final do filme, pelo
teatro dentro do teatro, dentro do filme que se evidencia como a puxada | A atriz:
de tapete de Brecht que nos deixa em confronto com duas realidades – Castaneda relata a história de uma amiga que pegou dois gatos de rua
e conseqüentemente com a noção de real e tempo. Qual tempo é real? para criar. Havendo encontrado ambos em péssimo estado, deu-lhes casa,
A Idade Média ou o aqui e agora? Para o ator, o tempo real é o tempo comida e afeto, castrou-os e eles se tornaram gatos grandes, dóceis, gordos e
da ação, efêmero. Parece óbvio, mas é importante, principalmente para domésticos. No entanto, ela precisou mudar-se para um apartamento para
o ator saber que a ação tem começo meio e fim, por dois motivos: o o qual não poderia levar os bichanos, não havendo encontrado quem ficasse
primeiro por uma questão técnica: a existência de ponto neutro (que é o com eles, decidiu levá-los ao veterinário para que lhes desse uma injeção
momento do início da ação)197; e segundo, pela idéia de que entre uma letal. Ela pede a Castaneda que a acompanhe. No carro, um dos gatos está
ação e outra, há a morte. muito inquieto, arranhando a dona ou quem quer que se aproxime dele.
Ela leva então o gato mais dócil primeiro, enquanto Castaneda fica no
Na obra de Castaneda, seu mestre, o feiticeiro tolteca, Don Juan Mattus,
carro com o outro. Então após uma troca de olhar com o gato, ele abre
lhe ensina que ser Guerreiro é parte do percurso para chegar a ser um
a porta e liberta-o, este corre, até perder-se de vista. Para ele, essa história
homem de conhecimento.198
fala desse gato ter recuperado sua “felinidade”, apesar de gordo, castrado e
Um guerreiro, tal como o descreve Castaneda, é um ser com consciência doméstico, ele pressente a morte e corre, como um gato de rua.
do presente e da iminência da morte, como o ator que nasce e morre com
seu personagem a cada apresentação. | A professor a:
– Há nessa história três itens fundamentais para se compreender o que é o
O guerreiro não está interessado no resultado dessa ação, apenas na
guerreiro de que fala Castaneda:
essência do seu agir.
O guerreiro é aquele que é impecável em seu agir, é responsável por todas | O Corifeu mostr a uma plaquinha na qual se lê:
as suas ações, não se permitindo auto-indulgência nem autopiedade. A iminência da morte
O guerreiro busca nada menos do que a perfeição. O Guerreiro vive no | O corifeu professor 2:
limite de morte, portanto vive no momento presente, mas sua ação é – O primeiro ponto é a iminência da morte, que torna o animal doméstico,
planejada, embora ele esteja sempre pronto para o improviso no caos. gato; que torna o “homem rebanho” de que fala Nietzsche, homem, que
Ser um guerreiro é a forma de um homem conseguir adquirir e armazenar torna o homem guerreiro a partir do momento em que ele age para salvar
energia para manipular o poder da forma como bem entender, e é a sua vida.
forma como ele manipula o poder que define se ele vai ser um brujo ou
um homem de conhecimento. Um brujo busca o poder em si, poder em | A atriz:
relação aos outros, um homem de conhecimento busca a consciência, e – Ao mesmo tempo, o Guerreiro é fluido...
consciência para os toltecas, como vimos, é a capacidade de transcender
| O corifeu professor 1:
o esquecimento da morte.
– Entenda-se por fluidez uma capacidade de adaptar-se desapegadamente,
contrária à rigidez do ego.199

199 Não vou me aprofundar nesta questão do ego, pois ela foi amplamente
197 Tornaremos a falar de ponto neutro mais adiante. abordada em minha dissertação de mestrado. Vide Copeliovitch, A construção
198 Termo utilizado por seu benfeitor, Don Juan. do personagem através do ritual, capítulo III, O teatro e o ritual, 1998.
196 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 197

| A atriz: que ele sabe que pode ganhar ou perder e que isso não é importante, o
– É equivalente à capacidade que o ator tem de dissolver o ego e tranformar- importante é jogar, mas o jogar em si pressupõe a vitória, então ele joga
se em outra coisa quando necessário, é a capacidade de tornar-se nada como se vencer fosse a coisa mais importante do mundo.
para ser inteiro. | O Manuel:
No conto O muro...200 – Sartre é metafórico. Ele fala da afirmação do sujeito, jamais do ator-
guerreiro.
| O coro (todos meneiam as cabeças em aprovação):
– Ah! Sartre! | A professor a:
– Com certeza. O ator-guerreiro, como o guerreiro de Castaneda, talvez
| A atriz: tivesse agido da mesma forma que Ibietta, mas sua ação teria sido calculada,
– Sartre conta a história das últimas horas de Pablo Ibietta, um anarquista ele talvez tivesse se recusado a denunciar Ramon Gris, mas essa recusa seria
condenado à morte. Sartre mostra a sua decadência física e moral que como o movimento de um jogo de xadrez, é bem possível que ela o ajudasse
resulta em um total desprendimento, em uma perda do ego. Ele perde a a zombar de seus carcereiros, ou que com a observação e compreensão dos
necessidade das convenções sociais, a necessidade de estar limpo ou de fatos e pessoas envolvidos, ele antecipasse o resultado dessa ação. Ou, talvez,
responder quando lhe dirigem a palavra, ou de sentir pena do colega que possamos crer, e queiramos crer que há um certo planejamento ou uma
chora. Ele perde também a autopiedade, ele olha para o pequeno Juan destinação que torna Ibietta um guerreiro, e chegamos ao segundo ponto:
que chora e também ele sente vontade de sentir pena de si mesmo, mas
não sente. Ele se lembra de situações prazerosas de sua vida tentando | O Corifeu adianta-se com uma placa na qual lê-se:
sentir a falta delas, mas não sente. A sua única necessidade passa a ser A fé
o conhecimento, compreender o que se passa consigo mesmo nesse
momento de iminência da morte. | O corifeu professor 2:
Quando, após o fuzilamento de seus companheiros de cela, lhe oferecem – O segundo ponto é a fé do guerreiro, através da qual ele crê que o gato
a vida em troca do esconderijo de Ramon Gris, ele se recusa. E não há foi vitorioso em sua corrida, não tendo sido atropelado ou morrido de
nada de moral ou ético nessa recusa. A recusa torna-se a ação de Pablo, e fome em menos de um dia. E também a fé que faz com que Castaneda
essa ação passa a ser o seu motivo. Não existe passado ou presente nesta identifique-se com o gato sobrevivente e não com o gato que vai
ação; nem o desejo de salvar seu companheiro, nem o desejo de morrer passivamente para a morte.
ou viver, mas torna-se fundamental persistir na ação. E é essa ação que, | A atriz:
ironicamente ou não201, o salva no final do conto.
– Lembrando que há uma diferença entre ir passivamente para a morte e
Existe em sua ação um prevalecer da vontade, ele impõe a sua decisão. aceitar a sua presença, admitir que ela está lá e que é uma inimiga e uma
Ele crê na decisão e sua vontade faz com que se mantenha firme nela. aliada poderosa.
| O corifeu professor 1: | O corifeu professor 1:
– Percebam que essa não é ainda a ação do guerreiro de Castaneda, pois este – Logo, nosso terceiro ponto:
guerreiro age como um desafio, existe um sentido de jogo nesse desafio,
| O Corifeu com sua plaquinha:
200 Sartre, Le mur, 1939. A humildade diante da morte
201 Digo ironicamente ou não, porque talvez possa haver aí uma relação de causa
e efeito na intenção de Sartre, que em certo momento coloca nos pensamentos | O corifeu professor 2:
de seu personagem a idéia de que sua vida vale menos para a revolução do
que a de Ramon, mas essa causalidade não é o motivo de sua decisão de não – O terceiro ponto é a comparação entre o guerreiro e o homem comum,
denunciar seu companheiro. O seu motivo é muito mais perfeito: ele passa
a adquirir conhecimento, ele passa a ser verdadeiro, inteiro, não no sentido sendo o segundo visto como gado de abate, ou seja, vítima dócil dos
moral, mas no sentido existência; quem sabe então seu criador não tenha acontecimentos.
decidido que ele merecia viver agora mais do que Ramon Gris?
198 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 199

| A atriz:
– O homem torna-se guerreiro como um ato de fé inabalável.
O guerreiro escolhe não morrer naquele momento, ao mesmo tempo que
ele tem a consciência da inexorabilidade da morte, ele age de forma a
enganá-la e utiliza essa proximidade para tornar-se mais forte, segundo
Cena IV:
o termo utilizado nos livros de Castaneda, acumular poder pessoal. Os inimigos
Essa liberdade de escolha o torna guerreiro e, no entanto, ele adquire
uma humildade total face a essa mesma morte. O guerreiro tem uma | A atriz:
consciência do destino distinta do homem comum, ele age, luta para – O guerreiro luta contra inimigos praticamente imbatíveis. O primeiro
acumular poder pessoal, para adquirir conhecimento e driblar a morte, inimigo é o medo, o medo diante do desconhecido, do saber que sobre a não
só um desígnio maior do que a sua vontade é capaz de derrotá-lo, e é nesse segurança do mundo em que tudo é impermanente e que o conhecido é quase
momento que ele é humilde, mas sem abrir mão da responsabilidade por sempre uma ilusão ou parte pequenina diante do mistério. Ao se deparar
todos seus atos. com o medo, o guerreiro pode fazer a escolha de Matrix e tomar a pílula
Entra o Heidegger. vermelha203, voltando à falsa segurança da realidade conhecida e esquecendo
o mundo de “tudo é falso”, ou ele prossegue com seu aprendizado, suas
| A atriz: práticas que o fazem ver o mundo de forma cada vez menos conhecida.
– O senhor diz que a Verdade está intrinsecamente ligada à liberdade. Uma vez tendo derrotado o medo, ele adquire clareza de espírito, que
se torna então seu segundo inimigo, pois a clareza de espírito vai lhe
| O Heidegger:
dar a falsa sensação de saber tudo e de possuir poder, ele crê que há
– E a liberdade já colocou previamente o comportamento em harmonia com o o desconhecido e que com sua impecabilidade e poder ele pode atuar
ente em sua totalidade, na medida em que ela é o desvelamento do ente em ali, de modo que esse desconhecido se torne conhecido. De fato há o
sua totalidade e enquanto tal.202 desconhecido que pode se tornar conhecido, mas é preciso saber que há
o mistério, e que o mistério não tem medida, nem limite, é preciso ser
| A atriz:
humilde diante do mistério, como é preciso ser humilde diante da morte,
– Essa liberdade é uma liberdade de ser o que se é. O pescador é livre para que também é mistério.
pescar, e em sua pesca ser pescador. O guerreiro é livre e no entanto ele
não tem outra alternativa senão ser guerreiro e seguir na impecabilidade Se o guerreiro consegue derrotar o segundo inimigo, ele adquire o
de seus atos. A liberdade é a possibilidade de ser inteiro dentro das verdadeiro poder, que se torna o terceiro inimigo.
próprias possibilidades. O guerreiro vive essa integridade do ser em sua
| O Corifeu:
relação com a morte, pois cada segundo pode ser o último e ele o vive
integralmente como se assim o fosse. – Como assim?

| A atriz:
– Vou falar do budismo, talvez seja mais fácil compreender por aí. No
budismo, os seres dividem-se em 12 categorias, entre elas os deuses, que

203 Referência ao filme Matrix em que os personagens escolhem entre duas


pílulas, uma que os leva a uma árdua realidade onde tem de lutar pela sua
sobrevivência e liberdade, na qual contudo estão vivos, com seus corpos; ou
a vermelha que os faz permanecer no Matrix, uma ilusão virtual de um mundo
“como o nosso”, enquanto os corpos permanecem em uma encubadeira e sua
202 Heiddeger, Sobre a essência da verdade, 1979. p. 338. energia é sugada por máquinas que dominam a humanidade.
200 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 201

possuem poder ilimitado, mas que pecam pela sua vaidade, talvez essa luminosos, faz com que vejamos o mundo da forma tal como é, ou tal
vaidade esteja associada ao terceiro inimigo, ou simplesmente ao fato como o vemos. Um brujo é capaz de mover o seu ponto de aglutinação
de achar que a busca termina no poder, quando a busca do homem ou o de seus discípulos204, fazendo com que o mundo conhecido deixe de
de conhecimento é o conhecimento, a sabedoria, e a busca é também existir tal como é para eles. A partir daí eles passam a atuar em esferas do
a própria busca, de Ser, e nesta busca que o guerreiro acaba sendo, se caos, onde toda a segurança obtida do conhecimento das coisas tal como
ele achar que esta busca terminou em algum momento, ele deixa de ser são se perde em meio ao perigo do inusitado.
guerreiro. Se o guerreiro derrota o terceiro inimigo, ele se torna o homem
de conhecimento, tendo agora o implacável quarto inimigo pela frente, a
velhice e a morte...
No entanto, na obra de Castaneda, Don Juan, o mestre, consegue
derrotar o quarto inimigo fazendo a passagem para um outro lado, que
seria a morte, mas o seu corpo atravessa a “cortina de fumaça” e o que
resta dele deste lado são só unhas e cabelos. E assim é que os grandes
brujos fazem sua passagem, ou seja, derrotam o quarto inimigo. Existe
nessa passagem a questão da fé. A crença de que é possível derrotar o
inderrotável, a fé para o guerreiro é um escolha, uma escolha estratégica,
que lhe permite seguir em frente mesmo sabendo que o fim é inevitável,
mas por sua humildade diante do mistério, sabe que pode estar errado.

| O coro:
– Não será esta a mesma fé que permite que se continue vivo dentro dessa
loucura que é a vida no emaranhado das relações humanas? Será essa fé
que nos permite sobreviver a essa guerra quotidiana, essa guerra que se
dá quando entramos no metrô pela manhã, na fila do supermercado, no
banheiro entre marido e mulher, pela última fatia de pão entre irmãos,
entre a polícia e os bandidos no morro, entre dois estudantes por uma
bolsa de estudos, entre Estados Unidos e Iraque, etc.?

| A atriz:
– Essa guerra de que você fala não é uma guerra de guerreiros, essa guerra
é a guerra de autômatos, é o que nos mantém na roda do Karma, que o
budismo chama de Samsara. E da qual somos prisioneiros. Para sair desta
guerra é preciso alterar a nossa forma de ver o mundo.
Don Juan fala que quando uma pessoa é capaz de ver, ela vê que a energia
dispõe-se ao redor de cada indivíduo na forma de um ovo, formado pelas
linhas luminosas que emanam de nosso corpo, ou seja, em invés de ver
uma pessoa com braços, pernas, rosto, ela vê o indivíduo como um ovo
luminoso. Nesse ovo, existe um ponto, localizado mais ou menos entre as
omoplatas, nesta periferia energética do corpo, que se chama “ponto de
204 Eu uso o termo “discípulos”, mas nos livros de Castaneda, Don Juan faz
aglutinação”. Esse ponto, localizado no mesmo local em todos os corpos questão de dizer que ele não é mestre, chamando-se às vezes de benfeitor
em relação a Castaneda.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 203

Cena V:
O ponto neutro e a Sagr ada Família

| A atriz:
– Os guerreiros dividem-se em dois tipos: dreamers (sonhadores) e stalkers
(espreitadores), cada um desenvolve um tipo de técnica. Os dreamers
agem no mundo dos sonhos conscientemente, mantendo a consciência
quotidiana. São capazes de controlar suas ações neste mundo onde tudo
está em evidente estado de mutação. Os stalkers agem como atores no
mundo “da realidade estável” ou da realidade tal como a concebemos
quotidianamente. O stalker se disfarça, cria situações inusitadas para si
e para seu interlocutor, deixa-o confuso sobre o que está acontecendo,
transforma a realidade estável em situação de perigo. Don Genaro nos
livros de Castaneda costumava apavorá-lo fazendo coisas inusitadas
como saltitar sentado com o topo da cabeça no chão.
Quando eu vi a Sagrada Família de Gaudi, em Barcelona eu vi essa relação
entre a arte e o movimento do ponto de aglutinação ali, na minha frente,
não na minha cabeça, não como uma teoria, ou como uma utopia. A
Sagrada Família é uma catedral, construída para ser um templo católico,
no entanto é uma catedral que se derrete, é feita de concreto, mas está
se desfazendo em sua aparência, dá a impressão de ser um elemento de
sonho e no entanto está ali, em meio aos edifícios, em meio àquilo que
204 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 205

consideramos real. A Sagrada Família não se parece com o senso comum | O Corifeu:
de real, no entanto, é concreta. Você pode tocar, chutar, lamber, todos – Então, o que seria necessário para que ele construísse a Sagrada Família?
os sentidos do corpo respondem à sua realidade. Podemos pensar que
o artista, Gaudi, move nossos pontos de aglutinação, mostrando uma | A atriz:
realidade que se derrete, mostrando a insegurança do caos em oposição à – Essa pergunta está aí não para ser respondida, a arte jamais responderá a
sensação de estabilidade do concreto. E Gaudi morreu antes de conseguir uma fórmula matemática. As técnicas servem apenas para manipular o
terminá-la, ou seja, é uma obra-de-arte-viva e em aberto, em movimento, cimento. O resto é alquimia, é poiesis, é mistério, são sombras. Mas ainda
em direção a uma conclusão que não se conclui. Pode até ser que a assim nosso ator quixotesco se coloca essa pergunta, não como pergunta,
terminem, há obras, projetos, mas ainda assim, a Sagrada Família não é mas como pesquisa, como caminho em direção à sua obra, sua alquimia.
conclusão, é movimento. Nessa pesquisa, o ator deixa de ser o observador de si mesmo para ser
Quando Artaud fala em um ator alquímico, um ator capaz de mover o sujeito da pesquisa e o agente da ação, ao mesmo tempo, é capaz da
as sombras, capaz de transformar o espectador, creio que seria um ator frieza de distanciar-se e cuidar dos detalhes dessa arquitetura fantástica
capaz de construir a Sagrada Família que é um trabalho meticuloso, que configura a ação do guerreiro, que é completa, sem passado e sem
disciplinado, um mergulho calculado no caos. presente: ação cênica.
Esse ator executa a dança do guerreiro: perfeita, detalhada e efêmera. É a
| O Corifeu: dança da morte que suscita a transformação e que é dançada sempre pela
– E quais seriam as armas deste guerreiro/ ator, como ele sai de seu estado última vez e com toda a densidade de ser a última.
utópico/ literário?
Ao fundo, ouve-se uma canção andina. Dançando, entra o Chamam
| A atriz: Chamalu.
– Existem inúmeras propostas, técnicas de atuação, envolvem domínio do | Chamalu:
corpo como um instrumento, compreensão da ação, domínio do espaço, – Não basta contemplar a canoa, aproximar-se dela, embarcar nela
da energia... rapidamente e tornar a abandoná-la; não é suficiente imaginar-se nela, é
Buscamos em nossas batalhas individuais de atores compreender em preciso, é urgente, é necessário subir na canoa e tornar-se navegante que nada
nosso corpo e experienciar essa ação desinteressada, para que a ação seja detém, viajando para a origem dos tempos.205
desinteressada, ela precisa partir, não de um objetivo racional, mas daquele
| O Corifeu:
estado neutro da mente. De um momento de inércia, que é o princípio
de toda a ação. Vivemos nessa necessidade de segurança, de planejar o – E existe uma origem dos tempos?
futuro, estamos executando a ação no presente, mas a mente está no | A atriz:
futuro, ou no passado, como quando caminhamos na rua, pensando no
– Creio que quando a origem é também o fim... não sei, realmente não sei,
lixo que ficou do lado de fora, ou na palestra que vamos dar, sem que esse
sei que temos de subir na canoa, sinto essa necessidade, mas não saberia
caminhar seja real. Se o caminhar é presente, ele passa de um pé para o
dizer para onde ela nos leva...
outro, de um estado de equilíbrio (dois pés no chão) para um estado de
desequilíbrio (passada). Esse estado de equilíbrio é o princípio de toda a | Álvaro:
ação, o ponto zero ou estado neutro, e corresponde também a um estado – A única conclusão é morrer.
de silêncio. A ação começa e termina neste estado de silêncio.
Esse estar presente, partindo de um ponto zero e retornando a ele, | A atriz:
responde à necessidade do ator estar inteiramente no palco. Mas tudo
isso é capaz de transformar nosso ator em um excelente construtor de
catedrais, não em um artista que constrói a Sagrada Família.
205 Chamalu, Apu Inti: o oráculo solar, 1995, p. 10.
206 O Ator Guerreiro frente ao abismo

– Se a única conclusão é morrer, somos todos Don Quixotes? Estamos


todos em busca de utopias? É uma utopia, a alquimia no teatro? Quem
jamais encontrou a pedra filosofal?

| Manuel Antônio de Castro:


– Você está sendo metafísica...

| A atriz:
– Eu sei que estou pensando metafisicamente, mas é difícil ser inteiro
quando se está tão fragmentado... Será que em nosso ser fragmentado é
possível saber se de fato alguém realizou a grande transmutação? Nossas
narinas e olhos estão sobrecarregados pelas emanações do enxofre, e no
entanto ele não catalisa nenhuma transformação... As musas presas neste 6 Proposta pr ática:
inferno206, pois essa é a impressão dada aos sentidos pela substância,
gritam, mas não conseguimos escutá-las. Um ou outro pressente esse
Grotowski – reflexão sobre
grito desesperado e propõe-se à escuta, mas a parir daí só lhe é possível
falar a linguagem das musas, pois é lá que seu ser agora habita. E também
a essência do agir
suas palavras então perdem-se no burburinho infernal...
As palavras que se escutam não têm correspondente na explicação
(representação), então não se pode explicar, e o que não se explica, Cena I:
para aqueles que querem apenas segurança das linhas retas no concreto O último discurso
(muitos), nada é.
Entra o coro. Para este ato, lembrando que os integrantes do coro ainda são
atores, roupas coloridas, etc.

| O coro:
– Texto sem nome por Jerzy Grotowski, Pontedera, Itália, 4 de julho,
1998

| O Corifeu:
– De acordo com o desejo de Jerzy Grotowski esse texto foi publicado
postumamente.

| Grotowski:
– É possível que o fim de minha vida se aproxime. Eu gostaria em primeiro
lugar de retificar uma informação que conduz a uma falsa compreensão do
trabalho do Workcenter de Jerzy Grotowski e Thomas Richards.

| O coro:
– “Ação: o último espetáculo de Grotowski”
206 Utilizando uma imagem que o prof. Manuel A. de Castro usou em sala de
aula.
208 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 209

| Grotowski: Se eu repito estas afirmações, é para deixar tudo claro antes de abordar os tópicos
– Essa informação contém três deformações da verdade. que têm me habitado por muito tempo.

Meu último espetáculo, como diretor de teatro, é intitulado Apocalypsis cum O que uma pessoa pode transmitir? Como e para quem transmitir? Estas são questões
figuris. Foi criado em 1969 e suas representações terminaram em 1980. Desde que toda pessoa que é herdeira de uma tradição se coloca, porque essa pessoa herda
então eu não fiz nenhum espetáculo. também de certa forma o dever de transmitir aquilo que recebeu para si.

Ação não é um espetáculo. Não pertence ao domínio de arte como apresentação. É Que participação tem a pesquisa em uma tradição? Até que ponto deve uma
uma obra criada no campo de arte como veículo. É concebida para estruturar, em tradição de um trabalho em si ou, falar por analogia, de uma ioga ou de uma
um material ligado às artes cênicas, o trabalho em si dos fazedores (doers). vida interior, ser ao mesmo tempo uma investigação, uma pesquisa que atinge
com cada nova geração um passo à frente?
Testemunhas, observadores de fora, podem estar presentes ou não. Depende
de várias condições que, sob circunstâncias diferentes, esta abordagem exige. Uma vertente do Budismo Tibetano diz que uma tradição pode viver se a
Quando eu falo de arte como veículo, eu me refiro à verticalidade. Verticalidade nova geração for um quinto além da geração precedente, sem esquecer ou
– nós podemos ver este fenômeno em categorias de energia: energias pesadas mas destruir suas descobertas.
orgânicas (ligadas a forças vitais, a instintos, a sensualidade) e outras energias, Eu sei, eu sei... no stricto sensu do domínio artístico podemos dizer que há apenas
mais sutis. A questão da verticalidade quer dizer passar de um nível, por assim uma evolução e não um desenvolvimento. E que o trabalho de Beckett, porque chega
dizer, grosseiro, em um certo senso, poderíamos dizer um “nível cotidiano”, para em um tempo posterior, não é mais desenvolvido do que o trabalho de Shakespeare.
um nível de energia mais sutil ou até mesmo para a conexão mais elevada. Eu
simplesmente indico a passagem, a direção. Aqui, há outra passagem: se alguém se Mas aqui eu falo de um domínio que é artístico e não é exclusivamente artístico.
aproxima da conexão mais elevada – quer dizer, falando em termos de energia, No campo de arte como veículo, se eu considerar o trabalho de Thomas Richards
se a pessoa chega a energia muito mais sutil – então também há a questão da em Action, com as antigas canções vibratórias e com todo este vasto terreno que
descida, trazendo este algo mais sutil para a realidade mais comum que é ligada liga a tradição que ocupa as pesquisas aqui, eu observo que a nova geração já
à densidade do corpo. avançou em relação à precedente.

Thomas Richards analisou sua percepção, sua experiência individual neste tipo de | O Corifeu, tir ando bruscamente a
processo, e a caracterizou como “Ação interna” (inner action). car acterização de estudante de teatro:
Em relação à verticalidade a questão é não renunciar a partes de nossa natureza – Qual é a desse cara? Do que ele está falando?
– tudo deve reter seu lugar natural: o corpo, o coração, a cabeça, aquilo que está
“ debaixo de nossos pés” e aquilo que está “sobre a cabeça.” Tudo como uma linha
vertical, e esta verticalidade deveria acontecer entre a organicidade e o estado
de atenção – estado de atenção quer dizer a consciência que não está ligada à
linguagem (a máquina de pensar), mas à Presença.
Assim eu repito: Ação não é um espetáculo. É uma obra inteiramente criada e
dirigida por Thomas Richards, e em que ele continua trabalhando desde 1994.
Pode-se dizer que a Ação foi uma colaboração entre Thomas Richards e eu? Não
no sentido de uma criação a quatro mãos; só no sentido da natureza de meu
trabalho com Thomas Richards desde 1985 que teve o caráter de transmissão,
como é compreendido na tradição; transmitir para ele aquilo a que eu cheguei em
minha vida: o aspecto ‘ interior’ do trabalho.
Em relação à Ação, Thomas Richards é seu autor exclusivo.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 211

Cena II:
A ação

| A atriz:
– Jerzy Grotowski foi um dos grandes nomes do teatro do século XX. Inovou
a cena teatral com sua proposta de um teatro pobre, no qual o ator seria a
única peça indispensável. Esse ator que seria como o atleta afetivo proposto
por Artaud, com total domínio do seu corpo, mas sua alquimia sempre foi
só para raros207. Esse ator também era sacerdote e guerreiro, marcado por
uma disciplina férrea e um treinamento constante e intensivo.
Na década de 1990, Grotowski estava realizando um trabalho em seu
Workcenter em Pontedera, cuja natureza causou enorme polêmica em
um simpósio no SESC São Paulo em outubro de 1996.
O que Grotowski fazia nestes últimos tempos consiste, vamos dizer,
na antítese do teatro interativo, tão em voga ultimamente, pois ele
dispensava a presença do público, podendo algumas poucas pessoas
assistirem ao trabalho de seus atores com a condição de não interferirem.
Ele usa o termo “testemunhas”, pois o trabalho poderia e é realizado
independente da presença delas. Esse trabalho, que é baseado em ações
físicas acompanhadas de canções e textos rituais de diversas civilizações,
busca alcançar energias cada vez mais sutis em sua execução. A prática
à qual as testemunhas são convidadas a assistir e que é uma síntese
(ou decorrência) dos treinamentos diários realizados no Workcenter é
chamada “A Ação”.
A ação é uma seqüência de movimentos e cantos que mobilizam os estados
energéticos do ator (e das testemunhas). A Ação se assemelha a um ritual,
e ao mesmo tempo traz elementos do humano de cada participante, o
indivíduo, o ator desnudo de Grotowski.
Entra Thomas Richards.

| O Corifeu:
– Quem é esse cara?

207 Parafraseando o TEATRO MÁGICO: entrada só para os raros, in O lobo da


estepe, de Hermann Hesse, 1968.
212 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 213

| A atriz: E então todo um território especial de descoberta interior, por meio do


– Thomas Richards, discípulo de Grotowski nos últimos anos. trabalho com esses cantos pode começar para o “atuante”, relacionado a algo
que Grotowski chamou de “verticalidade”.
| O Corifeu:
| O Corifeu:
– O tal que o superou em um quinto pelo menos?
– Ah, o Grotowski falou sobre essa verticalidade... O que é? E o que é
| A atriz: atuante?
– O próprio.
| A atriz:
| O Corifeu: – O ator não é mais chamado ator, mas sim atuante (doer). O corpo e suas
– E o que ele fez de tão especial? manifestações energéticas são estudados minuciosamente, é a realização
do “atleta afetivo” de Artaud (um ator tão ciente do uso de seu corpo que
| A atriz: seria capaz de enviar jatos de energia direcionados a partes específicas
– Introduziu um trabalho com cantos de uma tradição que tem ramos nas do corpo do espectador), mas no atuante de Grotowski a energia flui
ilhas do Caribe. verticalmente, ascendente, e não direcionada ao público. Peter Brook
chamou esse trabalho de A arte como veículo.
| O Corifeu:
– Como assim? | O Corifeu:
– Veículo de quê? De ascensão espiritual? De autoconhecimento? Da fusão
| A atriz: ciência espiritualidade? Do Super-homem nietzscheano?
– Pergunte a ele.
| A atriz:
| O Corifeu, dirigindo-se a Richards: – Não sei, também me pergunto, acho que só quem vivencia esse processo
– O que são esses cantos? Qual a sua importância no trabalho do da forma como eles vivenciam, ou seja, intensamente, disciplinadamente,
Grotowski? onze, treze horas por dia, pode ter alguma idéia a respeito. Para mim é um
pouco doloroso falar sobre isso, pois eu tive uma oportunidade de participar
| Thomas Richards208: disso e deixei passar, foi em 1997... no ano seguinte, Grotowski morreu...
– Esses cantos, e um trabalho específico relacionado a eles, são o eixo do nosso
trabalho. No desenvolvimento de estruturas performáticas muito precisas, | O Corifeu:
não improvisos, em torno destes cantos, não é tanto o comportamento do – E como é o trabalho? Se não há público, ninguém pode saber, só os
dia-a-dia que é essencial, embora tudo tenha que ser verdadeiro209. O que se atores...
torna fundamental é algo que nós podemos perceber como sendo uma corrente
de impulsos, que nascem de dentro do corpo, e não da periferia. É como se | A atriz:
essa corrente de impulsos, que é quase como um rio, carregando o canto, de – Há o que eles chamam de testemunhas. As testemunhas são escolhidas
certa maneira pudesse carregar e mudar a ressonância do canto. No trabalho por ele e pelos participantes do grupo e chamadas em suas casas para
com os cantos da tradição, esse ponto de início – o impulso – é fundamental. que compareçam ao local onde será apresentada “A Ação”. Todo um
mistério é criado em torno desse convite, não é permitido divulgar local
nem horário onde se dará o evento, não é permitido levar outra pessoa
208 Entrevista concedida a Sérgio de Carvalho, em O Estado de São Paulo consigo. A condição de não interferir deve ser tomada ao pé da letra,
(outubro de 1996).
209 Quando Richards fala da ação quotidiana verdadeira está se referindo a uma as testemunhas devem conter espirros, pigarros e exclamações. Mas as
ação em que todos os músculos do corpo e toda a concentração da mente testemunhas acabam sendo responsáveis (embora isto não tenha sido
estão empenhados em sua realização. A ação perfeitamente consciente que
acontece aqui e agora. A ação do Guerreiro. discutido na época) por tornar esse evento memorável. E eu fui uma
214 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 215

dessas poucas e privilegiadas testemunhas do trabalho de Jerzy Grotowski


e Thomas Richards.
É interessante notar que ao excluir o público (ou o interesse por um
público que não fosse previamente escolhido) da sua pesquisa, ela acabou
se centrando completamente no ator e em como a partir de sua experiência Cena III:
corporal, ele pode transformar a sua energia. Essa transformação O teatro
se dá em diversos níveis: a transformação da energia quotidiana em
extraquotidiana 210 e a transformação do que ele chamou de energias mais | Luiz Otávio Burnier:212
baixas em energias mais sutis211. – Do grego clássico, theátron tem por raiz théa, que significa ver, contemplar,
O fato da exclusão do público foi amplamente questionado no simpósio e e o sufixo tron, dos adjetivos , conota o lugar onde, portanto, théatron é o
a grande questão colocada pelos profissionais da área foi: o que Grotowski lugar de onde se vê, ou se contempla.
faz hoje é teatro?
| A atriz:
| O Corifeu: – Na Grécia, na época de seu surgimento tal como o conhecemos hoje em
– Afinal de contas, o que é teatro? . nossa sociedade ocidental, Teatro era o espaço onde se dava a apresentação
do espetáculo: aquilo que se vê.
Teatro era o lugar e o que se dava lá era comédia, ou tragédia, catarse e Arte.
Arte vinda da escuta das musas pelos poetas, posta em ação pelos atores.
Arte tornada Memória para o povo que ali “contemplava”, porque o
teatro nesta época ainda estava muito próximo do ritual e dos deuses.

| O Corifeu:
– Seria o palco ainda templo?

| A atriz:
– Arte articula memória, nesse sentido arte é co-memoração. A Memória da
arte é tornar vivo e memorável o canto das musas. Arte é uma articulação
do silêncio e da expressão, silêncio para escutar o que as musas sopram,
ao pé do ouvido, no coração, no espírito, onde quer que o artista esteja
pronto a escutar. Se ele apenas escutasse, a arte não se daria. O artista
transforma a sua escuta em ex-pressão (um movimento em direção ao
exterior), transforma seu silêncio em canto, em ação. Ação conjunta, ação
210 Barba, A canoa de papel, 1993. Barba refere-se a este tipo de energia como
real, ação manifestadora de mundo.
energia extraquotidiana, e explica que a utilização de energia quotidiana, ou
seja, para fazer coisas às quais estamos condicionados se dá de forma a | Manuel:
economizar o máximo de energia possível em cada ação, no caso da energia
extraquotidiana do ator, ele deve procurar expandi-la o máximo possível. – Arte é tradução de techné. A poiesis foi esquecida, recalcada...
211 Essa é uma discussão muito longa na qual não sei se pretendemos nos
aprofundar, mas para esclarecer podemos pensar no conceito de chakra,
definido por Peter Hayes como “literalmente roda”. No corpo humano existem
sete grandes centros energéticos ou plexos nervosos, chamados chakras” 212 MELO, Arte do ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e
(A suprema aventura, Record, 1994); e também nos níveis de comunicação sistematização de técnicas corpóreas e vocais de representação para o ator,
propostos por Ken Wilber em Um deus Social (Cultrix, 1989). 1994. p. 18.
216 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 217

| O Corifeu:
– Onde está a poiesis?

| A atriz:
– Pensamos em arte como representação, chamamos o que acontece no Cena IV:
teatro de “representação”, termo cujo sentido depreciativo parecemos O ator
ignorar... o teatro, enquanto arte, não representa nada, não é simulacro, é
acontecimento, é manifestação de mundo. Mas se a arte tem sido vista pela
| Grotowski:
metafísica como representação de alguma coisa já feita, para Grotowski,
(e outros grandes que nos têm ensinado), a arte, mais especificamente – Consideramos a técnica pessoal do ator como a essência da arte teatral213
essa arte sobre a qual nós estamos debruçando: o teatro, é a apresentação | A atriz:
de uma coisa construída. E essa apresentação é feita de uma maneira tal,
imbuída de tamanha busca da verdade, que cada apresentação traz essa – A técnica pessoal do ator é forma como ele treina, esculpe e explicita sua
semente do único, do sagrado, que se re-apresenta, mas não se representa. linguagem, o teatro. Quando Grotowski fala em técnica ele quer dizer a
Cada apresentação é poiesis, é realização. disciplina com que o ator manifesta sua linguagem através de si mesmo.
No princípio de sua trilha pelas veredas do teatro, Grotowski propôs
| O Corifeu: que o ator se desnudasse frente à platéia, como um ato de sacrifício, uma
– Será o teatro a memória do ritual? oferenda. De modo que, através dele, o espectador também estivesse se
desnudando. A idéia do processo não era ser agradável a nenhum dos dois
| A atriz:
participantes: ator e espectador.
– A memória e a sombra, pois o teatro, tendo nascido no ritual, foi
também a sua profanação. O teatro será sempre o Duplo de que nos | Grotowski:
fala Artaud pela sua busca pela unidade perdida, que talvez existisse no – Podemos então definir teatro como o que ocorre entre o ator e o espectador. 214
ritual, mas que as próprias tensões inerentes ao homem não permitiram
que prosseguisse como unidade, mas sim como ambigüidade. E se o | O Corifeu:
teatro criou a separação do Sagrado e do Profano, ele é o único capaz de – Mas teatro não era a pessoa atravessando o espaço vazio?
apresentá-la como unidade, pois só a Arte abrange as contradições e os
opostos. É só através da Arte que o homem é capaz de se mostrar, não só | A atriz:
em sua luz e beleza, mas como trevas e horror, como humanidade e como – Com o espectador que a observa... esse acontecimento de atravessar o
duplo. E essa característica da arte está explícita no teatro de Grotowski. espaço vazio sendo um ato teatral não deixa de ser o que acontece entre
Ele designou a seus atores, que ele chamou de santos, a tarefa de mostrar essas duas pessoas.
a humanidade do homem, através da arte-viva e presente do teatro.
| O Corifeu:
– E como Grotowski chegou a essa definição de teatro?

| A atriz:
– Através da “via negativa”, analisando o que não era necessário para que o
teatro ocorresse.

213 Grotowski, Em busca de um teatro pobre, 1987. p. 14.


214 Grotowski, Em busca de um teatro pobre, 1987. p. 28.
218 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 219

| O Corifeu: no mistério. Grotowski percebeu que para que esse desnudamento tivesse
– Mas ele não disse que o espectador não era necessário? tal poder de “redenção e catarse” era necessário que o ator mostrasse
algo inusitado, o nu não podia ser banal, mas sim impactante, como um
| A atriz: mundo manifesto da arte. E para tal o ator necessitava de recursos que
– Sim, décadas depois, ele descartou o espectador também. o jargão teatral chamou de técnica. Esses recursos seriam o requinte de
sua linguagem. A partir do estabelecimento de uma linguagem própria
| O Corifeu: dessa arte – o teatro – totalmente diversa da linguagem quotidiana, o
– Confuso isso. Agora entendo porque a classe teatral brasileira ficou tão ator poderia realizar-se como manifestação poética.
alvoroçada quando Grotowski expôs suas idéias no tal simpósio... E esse
| O Corifeu:
desnudamento foi uma grande inovação no teatro?
– Então só há a manifestação poética do ator a partir da técnica?
| A atriz:
| A atriz:
– O desnudamento já era uma idéia presente no pensamento teatral anterior
a Grotowski, Artaud também propõe uma revelação através do teatro, ele – De forma alguma. A técnica ajuda a construir o silêncio, ajuda a moldar
crê que ambos, ator e espectador, correm um perigo ainda mais pungente o corpo do ator, mas não estamos falando de uma equação matemática.
do que o desnudamento, o perigo da peste, que mata (transforma), mas
antes de matar, contamina a todos que lhe forem susceptíveis. Para
Artaud, a metamorfose deve ser total e catártica tanto para o ator como
para a platéia; o desnudamento deveria ir além da pele, expondo as
vísceras do ator: não um desnudamento, mas uma dissecação.

| O Corifeu:
– E como a platéia é desnudada?

| Jean Genet215:
– Vou ao teatro para me ver em cena (restituído em uma única personagem ou
com a ajuda de uma personagem múltipla e sob a forma de conto), tal como eu
não sei – ou não ouso – ver-me ou imaginar-me, e tal como eu no entanto, sei
que sou. Os comediantes têm, pois, por função, endossar os gestos e os arrebiques
que lhes permitirão mostrar-me a mim próprio e mostrar-me a nu.

| O Corifeu:
– Então o teatro teria a função de espelho? Então o teatro é uma
representação, uma cópia.

| A atriz:
– Falar sobre os comediantes mostrarem quem os assiste a nu pode ser
mal compreendido. Se o teatro fosse espelho, mostraria uma imagem
refletida, conhecida, e não uma imagem tal como não sei – ou não ouso –
ver-me ou imaginar-me, um eu desconhecido, um eu que se revela envolto

215 Genet in “Carta a Roger Blin”, Voies de la Création Teatral, vol. 3.


O Ator Guerreiro frente ao abismo 221

Cena V:
A linguagem

Entram Gerald Thomas vestindo calça de couro preta e nosso Corifeu


caracterizado como um repórter da Folha de São Paulo.
| O Corifeu:
– O que o senhor pode comentar sobre Grotowski?
| Ger ald Thomas:
– Ele odiava a palavra.216
| O Corifeu (par a Grotowski):
– O senhor odiava a palavra? Por quê?
| Grotowski:
– É por causa dela que nascem todos os mal-entendidos da humanidade, A
palavra só serve para evitar a comunicação e sua pobreza é tão óbvia que todas
as guerras terminam com milhares de corpos mudos espalhados pelo chão.217
| O Corifeu:
– Ora, de que palavra afinal está nos falando Grotowski? Ele mesmo já
trabalhou, em seus espetáculos com a palavra, com textos de Marlowe e
Calderón de la Barca?
| A atriz:
– Ele está falando dessa palavra que é simplesmente palavra, instrumento
verbal ou escrito, e que ao longo dos tempos vem se confundindo com
linguagem, essa característica tão inerente ao ser humano. A palavra cujo
sentido comunicativo compreendemos como obra no teatro.
| O Corifeu, folheando Língua Tr adição e Língua
Técnica de Heidegger:
– Não seria essa mesma palavra que o Heidegger chamou de língua técnica, uma
língua instrumentalizada, voltada para uma finalidade de comunicar algo?

216 Gearld Thomas em matéria para o Caderno Ilustrada da Folha de São Paulo,
16 de janeiro de 1999.
217 Citado por Gearld Thomas em matéria para o Caderno Ilustrada da Folha de
São Paulo, 16 de janeiro de 1999.
222 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 223

| Ela: | Grotowski lança um olhar impaciente ao


– Desde os primórdios de seu trabalho Grotowski lutou contra esse uso da Corifeu. A atriz tenta apaziguar a situação:
expressão quotidiana, não só da palavra, mas de toda a linguagem. O ator – O que Grotowski fala é que a obra literária não é necessária e nem basta
evidencia a linguagem como ser. A linguagem vai muito além da palavra, para que haja teatro. Há alguns séculos o Teatro Ocidental tem sido visto
linguagem é ele mesmo, seu corpo sua voz, sua capacidade de demonstrar como um subordinado da literatura, Grotowski consegue visualizar as
emoções e de emocionar-se, e de emitir energia. E Grotowski suspeitou diferenças inerentes a um e à outra, que nada mais são do que diferenças de
de que a confusão que se faz entre teatro e texto dramático pudesse ser linguagem. O teatro, para ser Obra teatral, dá-se no âmbito do teatro, que
por conta desse mau uso da palavra: a palavra como instrumento de pressupõe uma linguagem, assim como a música, a pintura e a escultura.
recitação de um texto, uma representação do que estava escrito. Então ele Teatro é linguagem em movimento, por isso é tão difícil captá-la, é uma
caminhou pelas veredas da linguagem poética, buscando essa expressão linguagem que não se fixa.
não quotidiana por parte de seu ator, que se desnudava frente à platéia,
mas que criava também esse mistério, esse velado pela sua linguagem | Artaud, repetindo sua fala:
inusitada, apresentando a seu espectador esse mundo distinto do mundo – [...] o teatro, que não se fixa na linguagem e nas formas, com isso destrói as
técnico, digo técnico no sentido de utilitário, dominado pela razão e pela falsas sombras preparando o caminho para o nascimento de sombras à cuja
língua instrumental. volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida. 219

| Grotowski comenta a respeito | A atriz:


do texto no teatro218: – Essa linguagem do teatro independe do texto. Uma obra teatral pode ser
– Se o texto contém certas concentrações de experiências humanas, representações, sem texto, um texto teatral pode existir sem palavras a serem recitadas,
ilusões, mitos e verdades que ainda são válidos para nós hoje – então o texto como o Ato sem palavras, de Beckett. Pode haver um obra teatral que se
torna-se uma mensagem que recebemos das gerações anteriores. Todo o valor origine em uma obra literária, que parta da escuta dessa obra, que inspira
do texto já está presente uma vez escrito: isto é literatura, e nós podemos ler e respira no movimento dos atores. A obra literária deixa de ser literária e
peças como parte da “ literatura”. Na França, às peças publicadas em forma de passa a ser teatral, arte do presente, do momento tornado obra e mandala,
livro é dado o nome de Teatro – um engano em minha opinião, pois isso não desfeito no momento seguinte, restando de si apenas memória, talvez a
é teatro, e sim literatura dramática. Diante dessa literatura, podemos tomar possibilidade de se repetir no dia seguinte, ou de nunca mais acontecer.
uma destas duas posições: ou ilustramos o texto, através da interpretação dos O “teste da montagem” seria exatamente essa condição de arte do teatro:
atores, da montagem, do cenário, da situação da peça, e nesse caso o resultado ou ele se dá, acontece, ou não.
não é teatro, sendo o único elemento vivo em tal montagem, a literatura;
ou ignoramos, virtualmente, o texto, tratando-o apenas como um pretexto | Fala Grotowski:
, fazendo interpolações e modificações, e reduzindo-o a nada. Sinto que – Não são nossas boas idéias, mas a nossa prática que constitui o verdadeiro
essas duas soluções são falsas, porque nos dois casos não estaremos cumprindo texto. 220
nosso dever como artistas, mas tentando cumprir certas regras – e a arte não
gosta de regras. As obras-primas estão baseadas na transcendência das regras. | A atriz:
Embora, é claro, o teste se verifique na montagem. – Ou seja, como foi dito no início, teatro é a arte da praxis do ator, da
linguagem que ele desenvolve, com sua técnica...
| O Corifeu:
– Essa colocação me parece simplória. Não entendo quando o senhor fala | O corifeu a interrompe:
do texto teatral, o senhor menospreza o texto? – Mas você fala em técnica? Você não disse que a linguagem no teatro não tem
esse cunho instrumentalizado da língua técnica de que o Heidegger falou?

218 Grotowski, Em busca de um teatro pobre, p. 47-48. Essa passagem é do ano 219 Artaud, O teatro e seu duplo, 1987. p. 21.
de 1967. 220 Grotowski, Em busca de um teatro pobre, 1987. p. 48.
224 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 225

| Ela:
– Talvez técnica não seja a palavra mais fortuita, mas é com essa “técnica”
do ator que ele se opõe à língua técnica. Essa palavra “técnica” relacionada
ao ator nada mais é do que pesquisa de linguagem através da exploração
dos próprios limites do corpo não separado da vida e das possibilidades Cena VI:
que ele apresenta. O encontro
| O Corifeu:
| O Corifeu:
– Mas porque os atores insistem em utilizar essa taxonomia “cientificista”
para se referirem à prática de sua arte? – Voltemos à pergunta inicial: o que é teatro?

| A atriz: | A atriz:
– Porque estamos sempre tentando dar um valor à arte dentro do mundo – Voltemos a dar a palavra ao mestre Grotowski. S’ il vous plaît, Messieur.
utilitário, sem sequer nos questionarmos se os valores que nos apresentam | Grotowski:
têm um sentido de valor para nós. Ainda assim me pergunto: por que
tentamos estabelecer parâmetros para a arte dentro dos limites da razão – A essência do teatro é o encontro. O homem que realiza um ato de auto-
estruturada (que nem é como opera o pensamento do Homem), se arte revelação é, por assim dizer, o que estabelece contato consigo mesmo.
não é regra e não faz parte da regra? Quer dizer, um extremo confronto, sincero, disciplinado, preciso e total
– não apenas um confronto com seus pensamentos, mas um encontro que
Tantas coisas (e aqui eu uso o termo coisas propositadamente) são envolve todo o seu ser, desde os instintos e seu inconsciente até o seu estado
realizadas em um espaço teatral, casas de espetáculo, teatros de arena, mais lúcido. 221
espaços alternativos e a essas realizações dá-se o nome de teatro. E
pressupõe-se que ali esteja acontecendo arte, arte manifestando-se em | A atriz:
linguagem teatral. Como dizer que aquilo não é? Com que propriedade – O encontro que o senhor coloca como condição primeira para que o
pode um espectador levantar da sua cômoda cadeira na platéia e vociferar teatro ocorra é o encontro do homem consigo mesmo, sua revelação, mas
contra os atores: essa revelação não poderia ocorrer numa iniciação religiosa ou em uma
sessão de psicanálise? E ainda, esse encontro ocorre em diversos níveis da
| A atriz e o coro em uníssono: busca. Que encontro é esse que se busca?
– Isto não é teatro!?
| Grotowski:
| A atriz: – Trata-se de mistérios enfumaçados. O homem sempre precisa de outro ser
– Podemos estabelecer parâmetros para a arte dentro da própria arte, humano, que pode realizá-lo e compreendê-lo absolutamente. Mas isso é
uma crítica pertinente? A própria palavra parâmetros já soa meio como amar o Absoluto ou o Ideal, amar alguém que nos compreende mas que
agressiva, como um estabelecimento de limites para aquilo cuja nunca encontramos.
natureza é transgressão.
Alguém por quem se procura. Não há uma resposta simples, única. Uma
coisa é clara: o ator deve dar-se, e não representar para si mesmo ou para
o espectador. Sua procura deve ser dirigida de dentro dele em direção ao
exterior, mas não para o exterior.222

221 Grotowski, Em busca de um teatro pobre, 1987. p. 48-49.


222 Grotowski, Em busca de um teatro pobre, 1987. p. 202-203.
226 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 227

| A atriz: | José Carlos Michelazzo comenta Heidegger em


– Pensando no que o senhor falou, faz sentido que o senhor seja tão “Ser e tempo” a respeito da questão do tempo
insistente na questão da precisão. Essa revelação é uma abertura para que finito e impermanente do homem:
outra coisa se mostre, essa outra coisa é o teatro. É a forma, forma que se – O ser, cujo sentido Heidegger quer compreender, é aquele que sai do puro
estabelece com a disciplina, precisão e busca de linguagem. Mas não é infinitivo para ser modulado no tempo. Este por sua vez, sai do seu único
apenas forma. É a transformação de um ato interno em um ato externo. modo apreendido pela metafísica, isto é, o presente objetivado, para ser
A essência do teatro sem dúvida é o encontro, é diálogo e escuta. Como interpretado, como vimos, a partir da experiência fáctica do “existir humano”
em toda arte, é onde os opostos se encontram, onde a unidade se forma a que se dá numa perspectiva histórica, isto é, tomado sempre como instante,
partir do duplo. imprevisibilidade e subtaneidade. Esse tempo, diferentemente do cronológico,
é fruto do repentino.225
O encontro é um momento, um ponto na impermanência do tempo.
Entra o cego, de Strindberg. | Heidegger:
– No instante, o tempo produz-se. O tempo é produção do instante, e não uma
| O cego: série de instantes. Produção finita e não infinita ou indefinida.226
– Encontrarem-se as pessoas... e depois, separarem-se... Separarem-se para
voltarem a se encontrar...223 | A atriz:
– No teatro é preciso Ser. E Ser é preciso. O tempo do Ser é o único tempo
Foco de luz sobre o cego. Silêncio.
possível no teatro, esse instante único em que ocorre o encontro do Ser
| O cego: com o tempo, da sua essência com a sua aparência.
– Perguntei um dia a uma criança por que é que o mar era salgado, e ela, cujo Que tipo de encontro Grotowski busca quando exclui o público desse
pai era marinheiro de longo curso, respondeu-me: < É por causa das lágrimas encontro? Será a vingança do Poeta contra a Pólis que o expulsou?
da gente que anda no mar. > E por que é que essas pessoas choram tanto? <
Esse encontro imprevisível, seja do ator consigo mesmo, mostrado a poucas
Porque são constantemente obrigadas a partir – disse-me ela – e é por isso que
testemunhas escolhidas para memorizá-lo; seja do ator desnudo frente à
põem todos os dias os lenços a secar no alto dos mastros... > E por que é que
platéia, seja do ator proposto por Artaud, espalhando a catarse como se
os homens choram quando têm algum desgosto? Para que tenham os óculos
fosse a peste e a peste de forma catártica; é um momento de alquimia,
lavados e possam, assim, ver mais claro...224
de encontro com o desconhecido. O homem associa o desconhecido à
| A atriz: morte, e a morte é a perda total do controle, da consciência do ser tal
qual ele se conhece. Então pode-se dizer que a transformação representa
– O teatro é cruel no sentido de que sendo encontro e sendo breve, explicita
para o homem um terror metafísico. Será o teatro capaz de produzir
a impermanência desse encontro, que se estende à própria vida. E em
tamanho terror, de apresentar tal perigo? Se a resposta for afirmativa,
nossas buscas por um mundo de segurança, de limites e conformidades,
então devemos estar muito distantes dele... E será só o terror que se
fazemos questão de esquecer que somos mortais e momentâneos. É
apresenta? Não haverá porventura a extrema alegria do encontro? E que
preciso que nos lavem os óculos, é preciso que o teatro nos dispa, que
encontro é esse?
a filosofia nos instigue e que a obra de arte nos revele tal como somos:
impermanentes, pequenos, e no entanto dotados de possibilidades Será o retorno ao ritual proposto por Artaud?
infinitas, que não realizamos por um simples medo (e não tão simples)
de nos lançarmos para além de nós mesmos.

225 Michelazzo, Do um como princípio ao dois como unidade, 1999. p. 123.


223 Strindberg, O sonho, 1974. p. 143. 226 Heidegger, “Ser e tempo”, p. 26, in Michelazzo, Do um como princípio ao dois
224 Strindberg, O sonho, 1974. p. 142. como unidade, 1999. p. 124.
228 O Ator Guerreiro frente ao abismo

Aqui é importante lembrar que Artaud compara o teatro à peste mas,


ao mesmo tempo, aponta o mesmo teatro como a única cura possível
para o Homem.
A poesia do teatro e sua própria essência estão nessa individuação, na
separação do ritual. Existe também no teatro um movimento ambíguo
de separar-se e aproximar-se do ritual, como os encontros e desencontros
das pessoas mencionados pelo cego de Strindberg; é nesse movimento
que ele se torna teatro. Apenas o ritual não é teatro. O teatro que não
contém em si essa busca da unidade não é teatro.

7 A conclusão,
a morte e as questões
Na floresta há caminhos que, muito freqüentemente encobertos pelo mato, param
subitamente no não-aberto.
São chamados Holzwege.
Cada um segue seu próprio caminho, mas na mesma floresta.
Freqüentemente, parece que um se parece com o outro. Isto não é senão uma aparência.
Lenhadores e habitantes das florestas sabem sobre isso nos caminhos. Eles sabem o que
quer dizer: estar em um Holzwege, em um caminho que não leva à nenhuma parte. 227
(Martin Heidegger)

Cena I:
As questões

| O Filósofo:

227 Heidegger, Chemins qui ne mènent a nulle part. 1962. p. 7. Dans la forêt, il
y a des chemins qui, le plus souvent encombrés de broussailles, se arrêtent
soudain dans le nonfrayé.
On les appelle Holzwege.
Chacun suit son propre chemin, mais dans la même forêt.
Souvent, il semble que l’un ressemble à l’outre. Mais ce n’est qu’une apparence.
Bûcherons et forestiers s’y connaissent en chemins. Ils savent ce que veut
dire: être sur un Holzwege, sur un chemin qui ne mène nulle part .
230 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 231

– Queres procurar o caminho de ti mesma?228 nenhuma montagem em vista. Esse ator traz como herança as tradições de
teatro de rua, o contato com o Teatro Oriental e as visões e pensamento de
| A atriz: Artaud, que foram desenvolvidos especialmente por Grotowski e Eugenio
– De certa forma, as questões voltam a mim, e talvez ainda mais questões Barba com a criação de um teatro antropológico. O treinamento do ator...
componham esse labirinto de mim mesma. o ator que treina seu corpo, sua voz e sua energia junto com sua capacidade
criativa, como um atleta, um bailarino ou um instrumentista. Mas a
Sai daqui filósofo, não é de ti que eu preciso neste momento.
linguagem para este treino não está tão clara. Esse ator, filho do ocidente,
O Filósofo sai de cena. da contemporaneidade vai criando a sua própria técnica.
| O Corifeu: O descobrimento dessa técnica trata-se de encontrar uma gramática
– Vejo que já estamos chegando ao fim, qual é a conclusão de tudo isso? que esteja contida na linguagem do ator. A linguagem do ator não é a
técnica, mas existem elementos técnicos que podem ajudar a chegar a essa
Álvaro de Campos atravessa o palco correndo: linguagem. Talvez aparentemente isso seja oposto ao que Peter Brook diz
– A única conclusão é morreeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeer... quando afirma que basta uma pessoa atravessar um espaço vazio e outra
observar para que se estabeleça o teatro. Mas por que essa pessoa parou
| A atriz, impedindo-o de atir ar-se do procênio: para observar esse movimento de atravessar o espaço vazio? E como essa
– Calma, Álvaro, ainda não... primeira pessoa, o ator, chegou a esse espaço vazio? O caminho que se
percorre na tentativa de responder a essas perguntas, para nós, é o processo
| A atriz, dirigindo-se ao coro: pré-expressivo do ator, são os elementos da técnica, o vocabulário e a
– Por favor, ajudem-me nesta aventura de concluir... gramática do ator. Atravessar um espaço vazio e chamar a atenção de um
observador não é o mesmo que esbravejar algumas linhas de Shakespeare
| Álvaro, interrompendo-a: agitando os braços e forçando os músculos da face. É sobre essa diferença
– A única conclusão... que queremos falar. Há tempos que se chama qualquer coisa sobre a cena
de teatro. E qualquer coisa não é teatro. Essa busca de elementos técnicos
| Ela: não quer dizer necessariamente estabelecer uma gramática cênica, mas
– Já entendi. Mas preciso finalizar meu texto, não quero falar da morte... garantir vocabulário e autodomínio para os atores, para que eles sejam
ainda não. Talvez possamos voltar às questões iniciais e criar um cículo capazes de atrair a atenção desse observador, é transformar o ator naquilo
hermenêutico. No princípio tínhamos o ator guerreiro frente ao abismo. que Artaud chamou de atleta afetivo, é possibilitar ao ator esvaziar o
espaço e atravessá-lo.
| O coro:
Penso no aprendizado do kung fu: há o tatame e o mestre, vários aprendizes
– Então podemos perguntar: quem ou o quê é esse ator guerreiro?
em diferentes níveis de aprendizado. Cada aprendiz que chega, aprende os
| A atriz: exercícios de aquecimento, depois os chutes, os socos, e treina primeiro no
ar, o movimento, só depois ele treina no saco, para então poder treinar com
– Obrigada, essa questão nos ajuda a fechar o círculo, mas ainda não
o adversário. Ele aprende inúmeras seqüências de lutas codificadas em que
consigo saber exatamente como ele é. Ele vai se formando em minha
executa os movimentos de ataque e defesa com o corpo, depois também
mente, em meu corpo... em mim, quando cessa o limite dessa divisão.
com as armas em um treino solitário. As conquistas são individuais
O ator, para vir a ser o que chamamos de ator guerreiro, passa necessariamente mesmo que treine em grupo. O treino é repetitivo, rigoroso. Nós no teatro
por um processo pré-expressivo, um treino, que o acompanha em sua não temos um mestre que nos ensine estas seqüências de chutes e socos,
jornada de ator e de guerreiro. É um ator que treina mesmo que não tenha somos todos meio ronim (ninja sem mestre), temos de inventar nossos
próprios golpes, nossas próprias defesas que não vêm de uma tradição
do teatro, mas do estudo de outras tradições, de dança, mesmo das artes
228 Nietzsche, “Do caminho do criador” , Assim falou Zaratustra, p. 77.
232 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 233

marciais, dos teatros orientais, da nossa observação de tradições que nos percurso do ator, seu salto no abismo. Se Stanislavski propôs uma Quarta
são próximas, tradições populares e/ ou religiosas. parede separando o ator da platéia, protegendo-os, assim, um do outro
e possibilitando ao ator um passo mais ousado na direção de si mesmo,
E também, nesse percurso para tornar-se um atleta afetivo, o ator, como
Grotowski, seguindo a sombra de Artaud, arrancou essa parede e mostrou
o menino do poema, depara-se com questões: o que é esta ação poética,
o ator desnudo ao espectador amedrontado e fascinado, e depois mandou
diferente de qualquer coisa? O que é ação e o que a torna poética? E o
que esse ator prosseguisse, além de si mesmo, além do espectador. E se foi
que é qualquer coisa? Por que eu sou eu e não sou o personagem? Ou sou?
permitido a alguns poucos presenciarem esse salto no abismo, esse vôo
O que me torna ator? O que é teatro? O que é espaço vazio? E assim as
vertiginoso, foi porque não se tratava de um ato religioso, mas de uma
questões vão levando uma à outra e acabam se tornando a viela do seu
busca do próprio Homem, e sem dúvida, o caminho dessa busca nunca
pensamento a ser percorrido e não respondido, e nosso ator tenta tornar
deixou de ser o Teatro.
vivo esse caminhar.
Um ator guerreiro se prepara como um guerreiro. Ele treina até a
exaustão, com disciplina, com rigor e adquire força e domínio sobre seu
corpo. E vai para o campo de batalha, o espaço vazio, onde qualquer
coisa pode acontecer, mas só a presença do guerreiro determina que esse
acontecimento seja uma grande batalha e não qualquer coisa

| A atriz:
– E voltamos à nossa pergunta inicial, ponto de tamanha controvérsia entre
a classe artística de São Paulo naquele ano de 1996:

| O coro:
– O que Grotowski fazia em Pontedera nos seus últimos anos de vida era teatro?

| A atriz:
– E já essa pergunta perde seu vigor, pois seu único mérito foi ter nos
lançado no percurso de outras questões mais fundamentais: a primeira
e aquela que nos alimenta – o que é teatro? E a segunda, e não menos
fundamental, e a que eu venho percorrendo em minha vida – como fazer
para que ele aconteça?
Decerto Grotowski estava comprometido até o dedão do pé com essa
última questão: como fazer para que o teatro aconteça? E ele buscou
o que era fundamental no teatro, e seguiu negando: o palco não era
fundamental, nem a luz, nem os figurinos, nem o cenário, nem o texto,
chegando, na década de 1960, à conclusão de que era preciso o ator e
o espectador para que ocorresse esse teatro. O espectador era a parte
passiva, não iniciado, não previamente instruído. Era natural que ele se período como encenador, Grotowski dedicou-se à pesquisa dos possíveis
desmembramentos ou experiências partindo desta linguagem artística: o
lançasse para além desse ponto de passividade229, que talvez atravancasse o encontro, com o parateatro, a busca das formas rituais e da transcendência
com o teatro das origens e nos anos oitenta lançou a experiência do drama
objetivo, “uma investigação sobre a existência de ‘fragmentos performativos’
229 Claro que o espectador de Grotowski nunca foi completamente passivo, comuns aos diferentes grupos étnicos, culturais ou religiosos em relação ao
suas montagens sempre tiveram um caráter de impactar e mobilizar esse ser humano como tal” in Marinis, El nuevo teatro: 1947-1970, 1988. p. 97, nessa
esepctador que não era protegido pelo palco italiano; Depois de seu época Grotowski conheceu Thomas Richards.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 235

Cena II:
O último ato

| Don Juan:
– E, por fim, no dia em que termina seu prazo de estada na terra e ele sente o
toque da morte no seu ombro esquerdo, seu espírito, que está sempre pronto,
voa para o lugar de sua predileção e ali o guerreiro dança até a sua morte.
Cada guerreiro tem uma forma específica, uma postura de poder específica,
que ele desenvolve durante sua vida. É um tipo de dança. Um movimento
que ele executa sob a influência de seu poder pessoal.
Se um guerreiro agonizante tem um poder limitado, sua dança é curta, se seu
poder for grandioso sua dança é magnífica. Mas caso seu poder seja pequeno
ou imenso, a morte tem de parar para assistir à sua última posição na terra.
A morte não pode alcançar o guerreiro que está contando a luta da sua vida
pela última vez, até ele terminar sua dança.230

| O coro:
– Como fazer para que o teatro aconteça?

| A atriz:
– Não posso responder precisamente. Mas posso falar sobre meu aprendizado
no teatro, que partiu da descoberta da minha dança pessoal em direção à
construção de uma linguagem corporal, cujo vocabulário se constitui de
técnicas aprendidas e de outras desenvolvidas individualmente.

| O Corifeu:
– Como?

| A atriz:
– Explico: por exemplo, eu aprendi a enraizar com Luiz Otávio Burnier.
Enraizar é passar o peso de um pé para o outro, sendo que o pé vai
recebendo o peso do corpo e dispondo-se no solo a partir do dedão, como
se realmente se plantasse sobre a terra, esse enraizar serviu e serve de base
para grande parte da minha movimentação cênica, esteja eu fazendo um

230 Castaneda, Viagem a Ixlan, 1982. p. 150.


236 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 237

espetáculo de dança, ou trabalhando com um personagem de um texto da Graziela com a Gracia, então já eram as técnicas das Gracia, e com
dramático que tenha uma movimentação mais “realista”. Também foi ela, eu aprendi três novas formas de enraizamento, baseadas no estudo
Burnier quem me ensinou a descobrir a dança pessoal, essa dança que desse corpo brasileiro, das danças de rua, dos rituais, que também eu,
vem dos movimentos que são próprios da pessoa. Não são movimentos como elas, havia pesquisado. E essas técnicas viraram as técnicas da
aprendidos, mas movimentos que se manifestam através do corpo, que Andrea, pois é assim que o conhecimento é transmitido na arte, há uma
contam sobre essa pessoa, sobre sua relação de peso e leveza, de força, de apropriação da técnicas, nós ganhamos palavras, vocabulário em nosso
rapidez, de plantar-se e deslocar-se sobre o mundo. persurso. As técnicas deixam de ser técnicas e passam a ser linguagem. É o
que aconteceu entre Grotowski e Thomas Richards e que é o tema de seu
A partir daí eu comecei a pesquisar esse deslocar-se sobre o mundo, as
último discurso sobre esta terra, que eu traduzi e coloquei na íntegra nesse
maneiras de atravessar o espaço vazio...
último capítulo, pois esse discurso é um testamento, o testamento que o
Durante o mestrado, eu fiz pesquisa de campo em festas e rituais maior mestre de teatro do século XX, aquele que mudou a concepção de
populares brasileiros... ser ator, de atuar, de teatro, deixa para nós atores, aprendizes e para seu
dileto aprendiz, Thomas Richards.
| O Corifeu:
Nesse discurso, Grotowski lega a Richards os últimos anos de seu
– Festas e rituais brasileiros? Isso é muito amplo.
trabalho e lega a nós a tarefa de compreender, continuar e ultrapassá-
| A atriz: los em pelo menos um quinto, como ele diz. Nesse testamento ele nos
– Você tem razão. Eu enfoquei a minha pesquisa em rituais de candomblé deixa a tarefa de questionar o teatro. Ele nos disse o que não é o teatro, e
e umbanda, danças de orixás, festas de caboclo, acontecimentos onde agora ele nos deixa em uma viela escura, com a tarefa de seguir adiante,
houvesse incorporação e também festas de largo, onde as pessoas dançam impetuosamente, tendo como armas nossa fé e treinamento de atores
e cantam, como a Festa de Reis na Lapinha em Salvador e Festa do guerreiros, que usam a arte como veículo para seguir adiante, sem saber
Divino, em São Luiz do Paraitinga, tudo isso na tentativa de elaborar aonde é “adiante”. A arte como veículo é a melhor definição da arte,
uma técnica minha, de conhecer o meu corpo, de compreendê-lo dentro pois a arte como veículo não é definição, é movimento, não há nunca
de seu próprio contexto cultural. ponto de chegada, a arte como veículo não serve para nada, não diverte
ninguém, não é para o público, não é objeto, muito menos objeto de
Eu sabia que meu corpo dançava, e que essa dança era muito brasileira consumo, a arte como veículo é, verbo ser, intrasitivo. Ser.
apesar da minha origem gringa. E essas danças que eu ia encontrando
pelo caminho me ensinavam a enraizar, me colocavam em contato com a Meu intento como atriz é aprender a ser e estar nesta última dança. E
terra, me faziam girar e contar a minha história: a história que vai sendo eu apresento esta dança sabendo que é a última. Mas se acaso não for,
escrita no meu corpo e que eu espero dançar até a última linha no dia da quero reapresentá-la quantas vezes for possível, reapresentá-la neste espaço
minha morte. vazio, na beira do abismo, sabendo que qualquer erro conduzirá à queda
e inevitavelmente à morte. Para não cometer erros, treinamos. Por isso,
Depois de oito anos de pesquisa, eu ganhei um grande presente: um Grotowski treinou seus atores tantas horas por dia, e assim fez Luiz Otávio
encontro, o encontro com a dança. Esse encontro se deu em 1998, ano Burnier e faz Eugenio Barba ainda hoje. Aprendemos a improvisar, a jogar
que eu passei em Campinas e fui fazer um curso de dança com Inaicyra com o inusitado, pois só ele nos salvará na iminência da queda.
Falcão. Ali eu comecei a compreender os elementos e as sutilezas dessa
movimentação no meu corpo do ponto de vista da dançarina em mim. A última dança do guerreiro é a dança pessoal que aprendi com Burnier,
e que depois ganhou mais palavras e novas frases e que conta sobre mim
A partir desse curso, eu fui fazer um trabalho com Gracia Navarro e e sobre a minha passagem por esta terra. É também a dança do clown e
Diane Ichmaru, na Confraria da Dança, e com Gracia. Eu entrei em a mystery play.231 Mystery play era um trabalho que Grotowski propunha
contato com as técnicas de Graziela Rodrigues, que baseou sua pesquisa a seus atores que, partindo de uma canção da infância, traziam uma
na descoberta de como se dá um corpo brasileiro, um corpo como mastro
que aponta para o céu e que enraíza no chão. Mas eu aprendi as técnicas
231 Richards, Al lavoro con Grotowski sulle azioni fisiche, 1993.
238 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 239

memória, que tornavam presente como ação. Foi a mystery play de Thomas momento certo, calculado, puxar-lhe o tapete e tirar a máscara de
Richards que originou The Action, que foi seu último ato com Grotowski, personagem, despertando o espectador de seu sonho, o homem por trás
uma dança em parceria, uma dança com um único espectador: a Morte, do ator conversa com o homem sentado na poltrona, cara a cara, ele
e que teve alguns de nós como testemunhas, dispensáveis, sem acento manifesta uma opinião, uma crítica, um pensamento, uma interpretação
cativos, silenciosos diante da morte e do último ato. a partir daquilo que a cena havia mostrado.

| Fala Ibr al Vitti:232 E nesse momento o espectador percebe que há dois mundos manifestando-
se diante de si, um que o absorveu e o outro que o desperta.
– Não foi em vão que Cristo disse para os seus discípulos: “Deixai tudo, Vinde e
segui-me”. Cristo arrancava assim as pessoas de suas rotinas diárias e as iniciava | O Bardo:
nas coisas que essas rotinas adiam durante a vida toda. Levava-as para passear
– Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia233.
no deserto, atravessar os rios, ficar acordado à noite. Com isso, Cristo fazia os
discípulos mudarem a sua percepção de mundo, pois estavam sempre atentos, não | O coro:
sabiam o que iam comer, nem quando nem onde, seus pensamentos entravam
– Ano de 1998:
em outra viagem, cheia de visões, de verdades, de premonições.
A filosofia oriental não age diferente. O guru está sempre procurando | O repórter Caveirinha 234:
despertar no seu discípulo uma nova percepção, pois a percepção normal está – Extra! Extra! Morre Carlos Castaneda, autoproclamado bruxo e autor
completamente embotada para a magia do universo. No fundo, a percepção de best sellers sobre aventuras mentais induzidas por drogas. Morreu há
normal é apenas o mais eficiente instrumento de poder. É através dela que dois meses, diz o Los Angeles Times de ontem. Segundo a executora de seu
um homem pode fazer o mesmo gesto até morrer, sem reclamar. É obstruindo testamento, Deborah Drooz, Castaneda morreu em 27 de abril em sua
a visão mágica do universo, que só vem através a atenção constante, que o casa, em Los Angeles, vítima de câncer no fígado.
poder escraviza os homens. E Cristo, Buda, Maomé e outros foram exatamente
contra essa dominação, que se faz dentro da cabeça de cada um. | O coro:
– Ano de 1999:
| A atriz:
– O que é o inusitado? O que nos tira de nosso torpôr de rebanho? | O repórter Caveirinha:
– Extra! Extra! Morre Jerzy Grotowski, diretor, teórico de teatro, um dos
Em meu aprendizado de teatro com Luiz Otávio Burnier, passávamos maiores nomes do chamado teatro de vanguarda. Morreu de leucemia no
horas tentando descobrir maneiras inusitadas de nos deslocarmos no dia 14 de janeiro, na cidade de Pontedera, Itália.
espaço, formas de movimentar articulações que sequer nos lembrávamos
que possuíamos, tínhamos de dançar uma música sem obedecer a seu | A atriz:
ritmo, descobrir oposições no nosso corpo, formas de entrar em contato – É minha predileção pensar que o nagual Carlos Castaneda atravessou a
com o outro através da energia produzida por uma movimentação não passagem entre mundos, passou pela névoa, cruzando a ponte, seguido
quotidiana, não objetivada, com o objetivo inusitado único de entrar em de seus guerreiros e guerreiras, para encontar Don Juan e Don Genaro. E
contato com outro a partir da energia. que, antes de ir, executou a sua última dança, a dança do guerreiro.
Podemos pensar na proposta de distanciamento de Bertold Brecht, do Também Grotowski e Luiz Otávio Burnier executaram essa dança no local
ator envolver o espectador em uma estória, deixar que ele seja absorvido de sua predileção. Suas danças foram impecáveis e a morte, essa testemunha
por ela e que ele se entregue a esse estado onírico para de repente, no implacável, teve de parar para assistir espetáculo de tamanha beleza.

232 Este ensaio foi escrito em 1974 pelo jornalista brasileiro Ibral Vitti. Feito com o
impacto da recepção dos quatro primeiros livros (até Porta Para o Infinito) traz 233 Shakespeare, Hamlet, Ato I, Cena 5, p. 1077, 1980.
uma abordagem interessante, que busca sobretudo dimensionar a obra em 234 O repórter de Boca de Ouro. Só para fazer uma homenagem a Nelson
sua verdadeira importância, diante do menosprezo da crítica oficial. Rodrigues...
O Ator Guerreiro frente ao abismo 241

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SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Da tradição Africana Brasileira: uma proposta
pluricultural de dança-arte-educação. 1996. Tese (Doutorado em ) – FEUSP,
São Paulo, 1996.
SANTOS, Maria Lúcia Pessoa. Metodologia em biodança. Belo Horizonte:
[s.n.], 1996.
SARTRE, Jean Paul. Le mur. Paris: Gallimard, 1939.
SHAKESPEARE, William.
SÓFOCLES. Antígona. Tradução de D. P. Cegalla. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.
SPEAIGHT, G. The history of English puppet theatre. London: Hall, 1990.
O Ator Guerreiro frente ao abismo 249

Apêndice
Originais dos textos traduzidos pela autora
i
Lied Vom Kindsein – Peter Handke:

Als das Kind Kind war,


ging es mit hängenden Armen,
wollte der Bach sei ein Fluß,
der Fluß sei ein Strom,
und diese Pfütze das Meer.
Als das Kind Kind war,
wußte es nicht, daß es Kind war,
alles war ihm beseelt,
und alle Seelen waren eins.
Als das Kind Kind war,
hatte es von nichts eine Meinung,
hatte keine Gewohnheit,
saß oft im Schneidersitz,
lief aus dem Stand,
hatte einen Wirbel im Haar
und machte kein Gesicht beim fotografieren.
Als das Kind Kind war,
war es die Zeit der folgenden Fragen:
Warum bin ich ich und warum nicht du?
Warum bin ich hier und warum nicht dort?
Wann begann die Zeit und wo endet der Raum?
Ist das Leben unter der Sonne nicht bloß ein Traum?
Ist was ich sehe und höre und rieche
nicht bloß der Schein einer Welt vor der Welt?
Gibt es tatsächlich das Böse und Leute,
die wirklich die Bösen sind?
Wie kann es sein, daß ich, der ich bin,
bevor ich wurde, nicht war,
und daß einmal ich, der ich bin,
nicht mehr der ich bin, sein werde?
Als das Kind Kind war,
würgte es am Spinat, an den Erbsen, am Milchreis,
250 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 251

ii
und am gedünsteten Blumenkohl. ‘Are you afraid of me ?’ he asked.
und ißt jetzt das alles und nicht nur zur Not.
‘Not of you, but of what you represent’
Als das Kind Kind war,
‘I represent the warrior’s freedom. Are you afraid of that?’
erwachte es einmal in einem fremden Bett
und jetzt immer wieder, ‘No, but I’m afraid of the awsomeness of your knowledge. There is no solace for
erschienen ihm viele Menschen schön me, no haven to go’
und jetzt nur noch im Glücksfall,
‘You are again confusing issues. Solace, haven, fear, all of them are moods that
stellte es sich klar ein Paradies vor
you have learned without ever questioning their value. As one can see, the black
und kann es jetzt höchstens ahnen,
magicians have already engaged all your allegiance.’
konnte es sich Nichts nicht denken
und schaudert heute davor. ‘Who are the black magicians, Don Juan?’
Als das Kind Kind war, ‘Our fellow men are the balck magicians. And since you are with them, you
spielte es mit Begeisterung too are a black magician. Think for a moment. Can you deviate from the path
und jetzt, so ganz bei der Sache wie damals, nur noch, they’ve lined for you? No. Your thoughts and your actions are fixed forever in their
wenn diese Sache seine Arbeit ist. terms. That is slavery. I, on the other hand, brought you freedom. Freedom is
expensive, but the price is not impossible. So fear your captors, your masters, don’t
Als das Kind Kind war,
waist your time and your power fearing me.’
genügten ihm als Nahrung Apfel, Brot,
und so ist es immer noch. Carlos Castaneda
iii
Als das Kind Kind war, Confieso que el “misterio Castaneda” me interesa menos que su obra.
fielen ihm die Beeren wie nur Beeren in die Hand El secreto de su origen -¿es peruano, brasileño o chicano ?- me parece un enigma
und jetzt immer noch, mediocre, sobre todo si se piensa en los enigmas que nos proponen sus libros.
machten ihm die frischen Walnüsse eine rauhe Zunge El primero de esos enigmas se refiere a su naturaleza: ¿antropología o ficción
und jetzt immer noch, literaria? Se dirá que mi pregunta es ociosa: documento antropológico o ficción,
hatte es auf jedem Berg el significado de la obra es el mismo. La ficción literaria es ya un documento
die Sehnsucht nach dem immer höheren Berg, etnográfico y el documento, como sus críticos más encarnizados lo reconocen,
und in jeden Stadt posee indudable valor literario. El ejemplo de Tristes Tropiques -autobiografía
die Sehnsucht nach der noch größeren Stadt, de un antropólogo y testimonio etnográfico- contesta la pregunta. ¿La contesta
und das ist immer noch so, realmente ? Si los libros de Castaneda son una obra de ficción literaria, lo son de
griff im Wipfel eines Baums nach dem Kirschen in einemHochgefühl una manera muy extraña: su tema es la derrota de la antropología y la victoria de
wie auch heute noch, la magia; si son obras de antropología, su tema no puede ser lo menos: la venganza
eine Scheu vor jedem Fremden del “objeto” antropológico (un brujo) sobre el antropólogo hasta convertirlo en un
und hat sie immer noch, hechicero. Antiantropología. (Octavio Paz).
wartete es auf den ersten Schnee, iv
‘What do you mean by that, Don Juan?’
und wartet so immer noch.
‘An immortal being has all the time in the world for doubts and bewilderment
Als das Kind Kind war, and fears. A warrior, on the other hand, cannot cling to the meaning made under
warf es einen Stock als Lanze gegen den Baum, the tonal’s order, because he knows for a fact that the totality of himself has but
und sie zittert da heute noch. little time on this earth’.
\ Carlos Castaneda
252 O Ator Guerreiro frente ao abismo O Ator Guerreiro frente ao abismo 253

v
La iniciación de Castaneda puede verse como un regreso, guiado por Don Juan y My last performance, as a theatre director, is entitled Apocalypsis cum figuris.
Don Genaro -ese Quijote y ese Sancho Panza de la brujería andante, dos figuras
It was created in 1969 and its representations ended in 1980. Since then I
que poseen la plasticidad de los héroes de los cuentos y leyendas- el antropólogo
have not made any performances.
desanda el camino. Vuelta a si mismo, no al que fue ni al pasado: al ahora.
Recuperación de la visión directa del mundo, ese instante de inmovilidad en que Action is not a performance. It does not belong to the domain of art as
todo parece detenerse, suspendido en una pausa del tiempo. Inmovilidad que presentation. It is an opus created in the field of art as vehicle. It is conceived
sin embargo transcurre -imposibilidad lógica pero realidad irrefutable para los to structure, in a material linked to performing arts, the work on oneself of
sentidos. Maduración invisible del instante que germina, florece, se desvanece, the doers.
brota de nuevo. El ahora: antes de la separación, antes de falso-o-verdadero, real-
Witnesses, outside observers, may be present or not. It depends on several
o-ilusorio, bonito-o-feo, bueno-o-malo. Todos vimos alguna vez el mundo con esa
conditions which, under different circumstances, this approach demands.
mirada anterior pero hemos perdido el secreto.
When I speak of art as vehicle, I refer to verticality. Verticality – we can see
Octavio Paz
this phenomenon in categories of energy: heavy but organic energies (linked
vi
Ya me di al poder que a mi destino rige. to the forces of life, to instincts, to sensuality) and other energies, more subtle.
The question of verticality means to pass from a so-called coarse level – in
No me agarro ya de nada, para así no tener nada que defender.
a certain sense one could say an “everyday level” – to a level of energy more
No tengo pensamientos, para así poder ver. subtle or even toward the higher connection. I simply indicate the passage,
the direction. There, there is another passage as well: if one approaches the
No temo ya a nada, para así poder acordar-me de mi.
higher connection – that means, if we are speaking in terms of energy, if one
Sereno y desprendido, approaches the much more subtle energy – then there is also the question of
descending, while at the same time bringing this subtle something into the
Me dejará el aguilla pasar a la libertad.
more common reality, which is linked to the density of the body. Thomas
Carlos Castaneda Richards analyzed his perception, his individual experience of this kind of
vii
The Drama Review process, and he characterized it as inner action.

43, 2 (T162), Summer 1999. With verticality the point is not to renounce part of our nature – all should
retain its natural place: the body, the heart, the head, something that is
Copyright © Jerzy Grotowski “under our feet” and something that is “over the head”. All like a vertical
1998 line, and this verticality should be held taut between organicity and the
awareness. Awareness means the consciousness which is not linked to language
All rights reserved. (themachine for thinking), but to Presence.
11 So I repeat: Action is not a “performance”. It is an opus entirely created
Untitled Text by Jerzy Grotowski, Signed in Pontedera, Italy, July 4, 1998 anddirected by Thomas Richards, and on which, since

According to the wish of Jerzy Grotowski this text is published posthumously. 1994, he carries on a continuous work.

It is possible that the end of my life approaches. I should like first of all to Can one say that Action has been a collaboration between Thomas Richards
and myself? Not in the sense of a creation by four hands; only in the sense of
rectify an information which leads to a false understanding of the work of the the nature of my work with Thomas Richards since
Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.
1985 which has had the character of transmission, as it is understood in the
“Action: the last performance of Grotowski”: this information contains three tradition; to transmit to him that to which I have arrived in my life: the inner
deformations of the truth. aspect of the work.
254 O Ator Guerreiro frente ao abismo

As for Action, Thomas Richards is its exclusive author. If I repeat these


statements, it is to make a clean sweep before approaching the topics which
have been inhabiting me for a long time.
What can one transmit? How and to whom to transmit? These are questions
that every person who has inherited from the tradition asks himself, because
he inherits at the same time a kind of duty: to transmit that which he has
himself received.
What part has research in a tradition? To what extent should a tradition of a
work on oneself or, to speak by analogy, of a yoga or of an inner life be at the
same time an investigation, a research that takes with each new generation a
step ahead?
In a branch of Tibetan Buddhism it is said that a tradition can live if the new
generation goes a fifth ahead in respect to the preceding generation, without
forgetting or destroying its discoveries.
I know, I know. . . in the artistic domain stricto sensu we can say that there
exists only an evolution and not a development. And that the work of
Beckett, because it arrives after in time, is not more developed than the work
of Shakespeare.
But here I speak of a domain that is artistic and that is not exclusively artistic.
In the field of art as vehicle, if I consider the work of Thomas Richards on
Action, on the ancient vibratory songs and on all this vast terrain linked to the
tradition that occupies the researches here, I observe that the new generation
has already advanced in respect to the preceding one.
Jerzy Grotowski
July
4, 1998 Translated from the French by Mario Biagini

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