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Graduanda pelo Centro Universitário de Maringá (Unicesumar). E-mail: samirachain@hotmail
**
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor de literaturas em língua
Inglesa e Teorias da Literatura da UniCesumar. E-mail: silvinhoparadiso@hotmail.com
uma sociedade que dominava o planeta”. dade cultural se perde e é erguida uma pirâ-
Esses fatores fizeram com que se criasse mide de hierarquização.
um conceito de raça superior e, sendo as- O racismo não deixa nenhum espaço
sim, outremizar os povos não brancos para de negociação para o outro recuperar a sub-
justificar essa pseudossuperioridade. Com jetividade, e nem a sociedade ocidental “ci-
o surgimento de uma literatura anglo-afri- vilizada”, exceto em raros casos individuais,
cana, constata-se que não somente Ndebe- mostra-se permeável a conviver com a di-
le abordava temas como racismo, exclusão ferença (BONNICI, 2009, p. 82). Assim, em
e repressão, mas outros autores também temas como o Apartheid na literatura, por
evidenciam isso em suas obras literárias. O exemplo, não se observa a transculturação,
que poderia ser chamada de “literatura ne- isto é, a troca cultural. Todavia, a literatura
gra britânica” é um “movimento”, verifica- africana em língua inglesa pode, sim, con-
do a partir de 1950, que registra a zona de tribuir para a exposição da marginalização
contato entre o pós-colonialismo e as cultu- que os brancos praticam contra os negros;
ras britânicas no Reino Unido, produzindo ainda que isso não seja considerado uma
um entremeio no centro literário britânico solução, é de grande importância para que a
(BONNICI, 2009, p. 62). Mas foi desde os identidade cultural dos negros não se perca
anos de 1970 que o campo de estudos pós- ao longo da história.
-coloniais ganhou proeminência e, com a Provando que essa solução ainda este-
desintegração do império europeu depois ja longe de acontecer, Telles (2003, p. 324)
da Segunda Guerra Mundial, houve grande afirma que o movimento negro, por si só,
interesse atual pela literatura e crítica pós- não tem a força de um movimento de massa
-colonial (BONNICI, 2005, p. 21). No en- que possa, de modo eficaz, clamar por mu-
tanto, é somente em meados do século XX danças sociais significativas. Se somente os
que acontece uma recuperação da voz dos negros, vítimas do racismo, praticarem tais
negros para contribuição literária. Como manifestações, ainda assim não é o bastan-
exemplo de outros textos em que as mes- te para que sejam recuperados seus direitos,
mas situações de racismo aparecem temos sobretudo por tudo o que aconteceu ao lon-
Foreigner: Three English Lives, publicado em go da história, das marcas deixadas de ge-
2007 por Caryl Phillips. rações para gerações, pois cada vez mais as
Tanto Ndebele como Phillips mostram dificuldades dessa classificação de “negros”
que o personagem negro, mesmo sendo um e os sofrimentos por um mundo igualitário
sujeito diaspórico, carrega sua cultura, en- já estão enraizadas na população sofrida e
tretanto são considerados estranhos em sua percebe-se que há um tipo de anestesia no
própria terra. A hostilidade dos olhares da sentimento de luta por seus direitos.
população branca tira o negro do seu lugar Por fim, sabe-se que uma democracia
e o marginaliza, deixando clara a divisão racial não será alcançada, pois o planeta não
colonizador/colonizado; é quando a identi- é e nem será uniforme para todos. Pode-se
dizer que o que de fato pode ser consegui- É importante saber o significado do
do é um respeito entre as etnias, todavia que é colonialismo, para que se entenda
somente quando a questão do racismo for mais claramente o que são os estudos
abordada de forma séria por todos, inde- pós-coloniais e o que nos diz e denuncia a
pendente da “cor dérmica”; não deixando o literatura pós-colonial. Colonialismo é o
preconceito para quem já é alvo dele. termo que se refere à política de exercer o
controle ou a autoridade sobre um territó-
Racismo e apartheid em Death of
rio ocupado e administrado por um grupo
a Son (A Morte de um Filho), de de indivíduos por meio militar ou político
Njabulo Ndebele. (PARADISO, BARZOTTO, 2007 p. 125). Sen-
do a colonização um processo de invasão, é
Filho de Nimrod Njabulo Ndebele e
apropriado lembrar que geralmente é con-
Makhosazana Regina Tshabangu, Njabulo
tra a vontade do colonizado, havendo uma
Simakahle Ndebele nasceu em 4 de julho
opressão militar, econômica e cultural so-
de 1948, em Johanesburgo, na África do Sul.
bre o povo colonizado. Entender o que esse
Graduou-se em Língua e Literatura Inglesa e
colonialismo impõe ajuda a entender o va-
Filosofia pela University of Botswana, Lesotho,
lor dos termos pós-coloniais e da literatura
and Swaziland, em 1973. Fez seu mestrado
também pós-colonial. Ademais, os estudos
em Literatura Inglesa pela Universidade
pós-coloniais analisam as consequências
de Cambridge, em 1975, e seu doutorado
da colonização na cultura. A partir disso, te-
em 1983, em Filosofia. Njabulo Ndebele foi
mos na literatura pós-colonial os relatos de
reitor da Universidade da Cidade do Cabo
toda a cultura afetada pelo império desde o
e Universidade de Limpopo, além de ter
momento da colonização até hoje. Devemos
ocupado várias outras posições importantes
saber que o imperialismo é uma ideia do
em universidades e fundações por toda a
colonialismo, com poder econômico tendo
África do Sul (RAMRAJ, 2009, p. 375).
concentração no capital e nos monopólios.
Como escritor, destacou-se com o ro-
Na África do Sul essa invasão e o regi-
mance The Cry of Winnie Mandela, receben- me Apartheid desencadearam uma grande
do seu livro de contos Fools and Other Stories perda de identidade.
o prêmio Noma, o mais alto prêmio literário
africano. Ndebele também é conhecido por A colonização europeia, ao apropriar-se
seus ensaios e críticas culturais, tendo a das terras dos nativos africanos, de-
sencadeou enorme desorganização
África como leitmotiv.
na economia do continente, obrigan-
Por sua forte influência no mundo aca- do os povos locais a abandonarem
dêmico e literário, Njabulo Ndebele apro- a agricultura, a pesca, a caça ou até
veitou a literatura como instrumento de mesmo a produção metalúrgica – que
denúncia contra as mazelas da colonização algumas sociedades dominavam mui-
e a perversa segregação racial que ainda as- to bem -, para atender às exigências
sombra a África do Sul, como em seu conto dos colonizadores. (PENNAFORTE,
Death of a son, publicado em 1996. 2006, p. 19).
policiais, se achavam donos das leis, tendo Buntu sonhava este menino com um futuro
eles assim o direito de serem racistas e não promissor, estudando nas melhores escolas
precisar pagar por isso. particulares e frequentadas por brancos.
No início do conto é mostrada a rea- Sonhos de um pai que, apesar de carregar
lidade de um casal no começo do namo- na sua pele a tatuagem do regime Apartheid,
ro, que via de longe a opressão sobre o seu queria o melhor, uma igualdade, para o fi-
povo. Eles viam de longe porque, apesar de lho. “Buntu já havia começado a se informar
já ter sido finalizado o regime de segregação em escolas particulares de brancos. Era para
racial, não significava que os brancos tra- lá que queria mandar seu filho, que portava
tassem os negros por igual, ou seja, em lei já seu nome.” (NDEBELE, 2007, p.224). Essa
havia acabado, porém, essa linha de divisão tentativa de igualdade advinha da parte da
racial ainda existia. A humilhação física e maioria negra, pois eles, sim, tentavam um
psicológica perdurava, pois o olhar, o trata- mundo igualitário. Eles achavam que com o
mento dos brancos para com os negros era fim do Apartheid todos poderiam ter as mes-
de quem ainda vivia em regime de segrega- mas oportunidades, ser tratados por igual;
ção racial. Viam, porém, não podiam fazer todavia, eles estavam errados em pensar
nada, pois também não tinham voz contra dessa forma, pois em uma sociedade onde
os brancos; suas palavras ficavam apenas os brancos ditam as regras, a igualdade
presas na garganta e na vontade de assumir nunca será atingida. Até hoje o mundo não
o posto de sujeitos da história, então apenas é homogêneo, pois o racismo e o conceito
agarravam-se um ao outro, na esperança de de raça estão enraizados no pensamento
tomar para si as suas dores. O mundo hostil social.
em que viviam não deixava que se pudessem Como os pais trabalhavam o dia todo
fazer promessas e então as palavras já não para garantir o sustento da família, a crian-
tinham poder. E é justamente por apoiar-se ça ficava com a avó, mãe da narradora. E em
um no outro que acontece o matrimônio. um dia de infortúnio, os policiais, brancos,
Já casados, Buntu trabalha como fun- em seus Casspirs1, saíram pelas ruas daquele
cionário de uma fábrica americana de pro- bairro atirando a esmo, distribuindo gra-
dutos agrícolas, e a esposa, como jornalista. nadas de gás lacrimogêneo pelas casas; um
Observa-se que quando se fala que os per- dos tiros acertou a janela do casal e, infeliz-
sonagens negros tinham seu emprego, seu mente, o menino. O trecho a seguir ilustra a
posto, significa que eles tinham agência, ou cena em que a narradora chega a sua casa e
seja, capacidade de agir sobre suas vidas, descobre a morte da criança.
tomar suas decisões. Dessa união cresce a
Era tarde quando voltei para casa e,
vontade de comprar coisas, de ter uma vida
ao chegar lá, encontrei uma multidão
digna, pacata, capaz de fazer as marcas da
sofreguidão serem amenizadas. Nasce uma
1
O Casspir é um veículo blindado antiminas, preparado
criança, um menino, a alegria do casal. para o transporte de pessoas. Foi usado por toda África
do Sul, durante mais de duas décadas.
de gente no jardim. Eram os que não enterrá-lo com o devido respeito. Mas as lu-
tinham conseguido entrar. Senti tas não são de horas e, sim, de dias, de inter-
pânico. O que havia acontecido? mináveis dias, de labuta, de humilhação, de
Não perguntei aos que estavam fora, condições e promessas falsas e, acima disso,
desesperada para entrar em casa.
de desrespeito com aquele que é designado
Eles abriram caminho com facilidade
quando me reconheceram. Então ouvi
“negro”.
a voz de minha mãe. O grito dela subiu No final, Buntu consegue recuperar o
bem acima do barulho. Transformou- corpo da criança, depois de muita humilha-
se num berro quando me viu. ‘O que ção; faz o funeral do filho e tenta obter for-
foi mãe?’, perguntei, abraçando-a com ças, depois da perda, para recomeçar tudo
uma sensação de terror vagamente de novo.
desesperadora. Mas ela me empurrou O conto em análise retrata as marcas
com uma violência histérica que me de opressão militar, econômica e cultural
chocou. (NDEBELE, 2007, p. 221).
que o colonialismo deixou com a invasão
Logo que a narradora começa a ligar as europeia da África do Sul. BONNICI (2009,
peças daquela cena, a angústia, os sons do p. 22) diz que a carga de alteridade e obje-
choro das pessoas que estavam em volta fi- tificação produzida no sujeito colonizado
zeram com que ela visse a cena em sua men- e em toda a sua cultura foi tão devastadora
te. Ela era jornalista, portanto cobria cenas e abrangente que contaminou, em diferen-
violentas envolvendo a polícia, os tiroteios e te grau e profundidade, a cultura de todos
já imaginava tudo o que não poderia ter sido os sujeitos no período pós-independência.
visto por ela. Mas ela não teve muito tempo Tantos os sujeitos brancos como os negros
para raciocinar sobre o acontecido. A polí- foram criados a partir desse regime. Os
cia estava passando em mais uma ronda de brancos, porque são produtos de uma cultu-
tiroteios e viu a multidão reunida. Logo en- ra imperialista, e os negros, porque, além de
traram na casa, perguntaram sobre o acon- serem produtos dessa cultura imperialista,
tecido e como tinha acontecido e em segui- o são sob a forma de objeto. Assim, Ndebele,
da saíram arrastando a mãe da narradora através de Death of a son, mostra a imagem
para fora, obrigando-a a não contar o que de um povo sofrido que literalmente carre-
tinha visto, e levaram o corpo da criança ga na derme as marcas do regime de segre-
embora. “Por qual estranha lógica espera- gação racial e de toda a alteridade e objeti-
vam eles que com esse ato a sua carnifici- ficação que esta política causou. Alteridade,
na nunca fosse descoberta?” (NDEBELE, porque o sujeito negro é olhado pelo branco
2007, p. 222). com total diferença, tanto de cor como de
A partir da morte da criança, começa a status social; isso aconteceu antes e aconte-
luta para recuperar seu corpo. A polícia pre- ce na contemporaneidade. Por mais que já
cisa ser protegida e os pais precisam pagar tenha acontecido a abolição da escravatura
para poder recuperar o corpo de seu filho e no Brasil em 13 de maio de 1888 e o fim da
segregação racial na África do sul em 27 de Sob esse ângulo, verifica-se que os po-
abril 1994, não se pode negar que o sujeito vos das raças consideradas não europeias
negro é um sujeito diaspórico, ou seja, con- foram intitulados primitivos e inseridos na
tra sua vontade ou não, foi banido de sua área marginal e de subordinados, seguindo
terra, precisou viver em um lugar estranho, o sistema de que as raças não europeias de-
foi desprovido da sua cultura, dos seus cos- veriam assumir a condição de margem e o
tumes, do seu lar. europeu, imperial, no centro, criando uma
“O bôer me empurrou para o lado ideologia de superioridade racial. Todavia,
como se estivesse limpando a passagem por mais que não se queira falar sobre teo-
para sua família” (NDEBELE, 2007, p. 220). rias raciais, BONNICI (2005) endossa que
Desde o início, com a chegada dos holande- há um consenso entre os antropólogos e ge-
ses e ingleses naquela terra, os negros fo- neticistas de que a classificação morfológica
ram empurrados, tirados, privados dos seus dos humanos significa muito pouco em ter-
costumes, do seu lar, para que os brancos, mos de genoma, embora a aparência física
em sua minoria, passassem e ali estabele- seja socialmente salientada. Atualmente, a
cessem o seu forte e olhassem de cima para aparência de uma pessoa faz com que uma
baixo para os que habitavam aquela terra e sociedade inteira a classifique como sendo
ali fundissem a sua cultura conforme sua de outro grupo sócio-étnico; sendo assim,
autoridade permitisse. seu status depende da sua categoria racial.
Ele – o sujeito negro – é carregado de Esse conto denuncia que o que acon-
significados, todavia a história deste sujei- tecia na época do regime de segregação ra-
to não é levada em consideração; de forma cial, acontece depois dela, pois o sujeito ne-
negativa, ele é olhado com diferença, discri- gro veio carregado de história, de marcas
minado e alvo do racismo. E é nessa trama e, partindo do pressuposto que raça é uma
pós-colonial que se verifica a forte presença do ideia e está enraizada na cabeça as pessoas,
racismo e do regime do Apartheid. Pode-se di- pode-se concluir que o preconceito racial
zer que o termo raça cause muita discussão também está. O termo raça emprega-se de
hoje, principalmente no período de globali- forma pejorativa, pois, desde o século XVII,
zação, o que não quer dizer que isso tenha aqueles que eram designados não euro-
começado somente agora. Desde o início peus eram considerados “raças primitivas”
do período colonial, a classificação por gru- e na hierarquização estavam em último lu-
pos distintos começou a dar forma para o gar. Raça serve para demarcar ainda mais
termo raça. No fim do século XVII, ou seja, o binarismo e, mesmo que as ideias raciais
no auge do crescimento do comércio colo- desapareçam, o termo ainda será causa de
nial, os grupos humanos não eram apenas inúmeros debates. É válido, pois, dizer que
distintos por características faciais e cor da o termo etnia seria mais adequado e mais
pele, mas especialmente hierarquizados em humano quando se trata da diversidade
categorias superiores (brancos) e inferiores dos povos.
(negros) (BONNICI, 2005, p. 50).
Esse regime privou o negro de habitar a história real, o que não acontece nos dias
na sua própria terra, ter sua própria atuais. Os livros de história e até mesmo os
agricultura, votar, andar livremente pelas professores trazem de maneira muito bran-
suas terras, ascender economicamente, da o fato da violência racial na África do Sul.
entre outras atrocidades. Figueira (2002) O conto é baseado na realidade, afinal, mui-
diz que a África do Sul era o país mais rico e tas mães sofreram com essa mesma humi-
desenvolvido do continente e era governado lhação, opressão e atitude racista dos poli-
por uma minoria, descendente de holandeses ciais brancos, todavia, a verdade é omitida
que colonizaram a região. E como uma pela estética de se mostrar uma sociedade
minoria branca teria tanto domínio sobre a capaz de passar por cima do que já acon-
maioria da população de um país? Com seu teceu, esquecendo-se da real opressão dos
discurso elaborado, sua visão de alteridade brancos sobre os negros na África do Sul.
invadiu o país e determinou o que era Em Death of a son, os sonhos do casal
“certo e errado” e permitido fazer. Mesmo são desconstruídos a partir da morte de seu
que o regime de segregação racial tenha único filho. Buntu tenta ser sujeito da sua
acabado e que a democracia tenha chegado própria história, acreditando que após o tér-
à África do Sul em 1994 – ano da eleição de mino do regime Apartheid o mundo poderia
Nelson Mandela – ainda restaram algumas ser igualitário e os negros poderiam ter os
heranças dessa colonização devastadora. mesmos direitos, como o de colocar o filho
Então, o autor e, consequentemente, o conto em uma escola onde estudava uma maioria
narram a história real, de forma ficcional, branca, “Buntu já havia começado a se in-
denunciando o que os livros narram de formar em escolas particulares de brancos.
forma mais branda: a violência racial na Era para lá que queria mandar seu filho,
África do Sul. que portava seu nome.” (NDEBELE, 2007,
Por isso, a literatura também sofreria p. 224.), ou até mesmo tendo seus próprios
com essas mudanças, pois, ao mesmo tem- empregos:
po em que os escritores queriam debater as
Buntu, funcionário do departamento
questões do país, sentiam-se pressionados
de pessoal em uma fábrica americana
e evitavam essa escrita política; o escritor que manufaturava implementos agrí-
branco não pode reproduzir a história e a colas. Ele havia viajado aos Estados Uni-
memória do colonizado de maneira efetiva dos e voltado com a mente incendiada
e denunciativa. de sonhos. (NDEBELE, 2007, p. 223.).
Ndebele denuncia essa opressão, so-
A supremacia branca impediu que essa
bretudo militar: “Tinha acontecido durante
subjetificação acontecesse, porque não bas-
o dia, quando os soldados e a polícia vie-
ta somente ter definido essa ‘libertação’ em
ram patrulhar a towship com seus Casspirs
lei; os brancos, com seu olhar “por cima”
blindados começaram a atirar a esmo pelas
dos negros, faziam como se a objetificação
ruas” (NDEBELE, 2007, p. 222). Ndebele
ainda acontecesse psicologicamente. Após
narra, através do conto, de forma ficcional,
a morte, “Buntu partia sempre para supor- humano dos negros, pois, se partirmos
tar a derrota sozinho” (NDEBELE, 2007, do pressuposto que animais não fazem
p. 223.), ter que negociar para conseguir funerais, estariam eles dando o mesmo
o corpo de seu próprio filho. Como se não tratamento para Buntu e sua esposa.
bastasse o sujeito negro perder o espaço no Embora conseguissem o corpo de volta,
seu próprio país, ele deveria ter o recibo que após quase duas semanas, as marcas da sua
comprovava a posse, a compra do corpo do história ficaram para sempre.
filho (produto).
Por fim conseguimos o corpo. Quarta-
Além disso, o crime mostra que, mes-
feira. Tempo justo para um enterro
mo que os protagonistas tivessem sua casa, no sábado. Estávamos exaustos.
seu emprego, seus móveis, seus filhos, a Vazios. Com o enterro ainda pela
polícia (símbolo metonímico do branco) se frente. Tínhamos que encontrar a
achava no direito de sair “atirando a esmo” força de sofrer. Não tinha havido
pelas casas, matando quem quer que fosse, tempo para sofrer, realmente. Só
além de cobrar dinheiro para devolver o que muita perplexidade e confusão. Agora
já era de direito do sujeito negro, confir- sofrer. Pois sofrer não é a consciência
mando a injustiça, a ideia de superioridade da perda? (NDEBELE, 2007, p. 215).
racial e a corrupção política do regime. Enfim, a narradora apenas se aneste-
Nota-se que, no conto, a narradora e seu sia e se conforma com toda a situação, ten-
esposo não têm condições de serem sujeitos tando recomeçar sua história, não com um
da história, pois são tratados como objetos final feliz, mas realista.
(incapacidade de agir); são privados de
realizar seus sonhos e, ainda mais, privados Eu estaria pronta para mais um mês.
por vários dias de realizar o funeral de seu Pronta como sempre, a cada e todo
filho. Eles deixam de ter domínio sobre sua mês, para novos começos. E Buntu?
Vou ficar com ele agora. Para sempre.
história, pois os policiais brancos mostram
Sem sabermos, todos os duros aconte-
que quem domina aquela situação são eles:
cimentos tinham preparado para nós
primeiro, por serem brancos; segundo, por novos começos. Então não vamos re-
serem donos das leis, policiais. O fato de o sistir? (NDEBELE, 2007, p. 228).
filho deles ser comercializado revela o ápice
da objetificação, pois mostra uma situação Ndebele, através da narradora do seu
de repressão, como se eles ainda não conto, questiona sobre o que fazer. No regi-
estivessem libertos da segregação racial. me de Apartheid, na ideologia racista, na co-
Porque eles são negros, porque já foram a lonização, lutar muitas vezes é em vão; logo,
maioria dominada pela minoria branca, cabe apenas resistir.
sofrem como fator de humilhação ter de
pagar pelo corpo de seu filho e encobrir a
sujeira dos policiais brancos. Isso mostra
como a supremacia branca influía no lado