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Jornal da

UFRJ
Arte
Mural da Terra
http://www.jornal.ufrj.br
Pág. 24
Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 24 • Março de 2007

Entrevista
Denise Gentil

A crise forjada
da Previdência
De maneira inequívoca, a professora e pesquisadora
do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, desvela o discurso
oficial que sustenta, contabilmente, que a Previdência Social
brasileira é deficitária. Segundo a economista, ao contrário
do que afirmam os governos até aqui, há um superávit no
sistema de pelo menos R$ 1,2 bilhão em 2006.
Denise Gentil, em pesquisa que culminou em sua tese
de doutoramento, constatou que no fluxo de caixa do INSS
“há superávit operacional ao longo de vários anos” e que “o
excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou
– em 2006 – a cifra de R$ 72,2 bilhões”.

Págs. 12 e 13

Armas nucleares em meio à fome Poema de Parmênides:


Tentando melhorar as suas condições de negociação com a comunidade um quebra-cabeça
internacional, o governo da Coréia do Norte lança mão da bomba nuclear de milênios
como forma de pressão.
Traduzido para a Língua Portuguesa
Págs. 4 e 5 por Fernando Santoro, professor do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
(IFCS) da UFRJ, Poema da Natureza,
do filósofo grego, inaugura questões
PAC: a aposta do governo fundamentais do pensamento ocidental.
para dinamizar a economia
Anunciado em 22 de janeiro, o PAC prevê investimentos de R$ 503 bilhões Págs. 22 e 23
em Energia, Logística e Infra-estrutura Social e Urbana. Especialistas da UFRJ
ressaltam os problemas e as virtudes do plano.

Págs. 6 e 7

Movimentos sociais avaliam o PDI


Representantes de estudantes, docentes e técnico-
administrativos apontam erros e acertos no processo de
discussão da proposta de Plano de Desenvolvimento
Institucional para a UFRJ.

Págs. 10 e 11

Tuberculose, uma doença que atravessa os séculos


Romanticamente considerada a doença de uma época de boêmia, poesia
e juventude, a tuberculose, até hoje, vitima milhares de pessoas em todo
o mundo.
Págs. 18 e 19
2 Jornal da
UFRJ Março•2007

Reitor em exercício: José Luiz Fontes Monteiro – Vice-Reitor em exercício: Carlos Antônio Levi da Conceição – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1: José Roberto Meyer Fernandes – Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: José
Luiz Fontes Monteiro – Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Carlos Antônio Levi da Conceição – Pró-Reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-Reitoria de Extensão – PR-5: Laura Tavares
Ribeiro Soares – Superintendente de Graduação SG-1: Déia Maria Ferreira dos Santos – Superintendente de Ensino SG-2: Leila Rodrigues da Silva – Superintendente Administrativa SG-2: Regina Dantas – Superintendente SG-3:
Almaísa Monteiro de Souza – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de
Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Carlos Antônio Kalil Tannus – Superintendente do FCC: Marcos Maldonado – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da
Universidade – ETU: Maria Ângela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Coordenadoria de Comunicação: Francisco Conte

Aloísio e Sylvia concorrem a reeleição Cartas

Reestruturando a universidade brasileira


a partir dela mesma
Ao ler a matéria “Reestruturando a universi- (BI). Quando os alunos da Escola Politécnica
dade brasileira a partir dela mesma”, (Edição 23, abandonam seus cursos, eles raramente seguem
págs. 14 e 15), fiquei estarrecido. A impressão para outra ênfase da Engenharia, ou para a
que se tem é de que está tudo errado em nossa Matemática, a Informática ou a Física, o que é
universidade, desde o acesso a ela até a maneira possível pela transferência interna desde de que
como a graduação está organizada. Dizer que existam (e quase sempre há) vagas ociosas. A
hoje a universidade não atende à cultura e ao dúvida desses estudantes não está entre cursos
mercado, mas sim à inércia, é uma maneira de área similar, o que seria remediado pela
mentirosa e deselegante de se tratar os milhares transferência. Na maioria dos casos, a dúvida
de ex-alunos e alunos das universidades federais dos estudantes que interrompem o curso é entre
brasileiras. Engenharia e Direito, ou Medicina, ou História
Sempre que se fala em evasão ocorre uma etc. Os BI, da forma que estão apresentados,
associação imediata com a escolha precoce da não resolvem este problema.
Aline Durães, do Olhar Virtual
carreira; então, logo em seguida se pensa: por Nos últimos anos foram criadas dezenas
As candidaturas dos professores Aloísio no caminho da obtenção da controversa e que não tornar os cursos mais generalistas, de novos cursos de graduação nas Instituições
Teixeira, do Instituto de Economia (IE), e Syl- desejada autonomia universitária. De acordo permitindo o adiamento da decisão sobre qual Federais de Ensino Superior (Ifes), buscando
via Vargas, da Faculdade de Medicina (FM), com ele, a participação de toda a comunida- carreira seguir? Não conheço estatísticas sobre o em cada um deles atender-se à cultura, ao
à reeleição para a gestão da Reitoria da UFRJ de acadêmica no pleito e a presença de todos assunto, aliás, isso fica como sugestão para uma mercado ou a ambos, mas sempre visando a
no quadriênio 2007-2011 foram homologadas na organização e direção da universidade futura matéria. Mas gostaria de citar minhas um maior grau de especialização. A Uninova
na tarde desta sexta-feira, 2 de março. Os dois, são de suma importância para a solução da observações pessoais como aluno da Escola nos mostra que talvez a universidade federal
licenciados, respectivamente, dos cargos de questão da autonomia. Politécnica (antes Escola de Engenharia) nestes brasileira seja aquele jovem de 17 anos que não
reitor e vice-reitora efetivaram sua inscrição Já Ana Canen, professora da Faculdade últimos quatro anos. sabe o que quer.
no dia 1º de março. A data foi estabelecida de Educação, segunda vice-presidente da Hoje, a Escola Politécnica da UFRJ possui
pelo regimento da consulta à comunidade, Comissão Coordenadora, acredita que o entrada direta pelo Vestibular. Não existe mais o André Nogueira
aprovado pelo Conselho Universitário, para reconhecimento da autonomia passa pela Ciclo Básico, que era semelhante quanto ao pro- Estudante de Engenharia Eletrônica
a inscrição dos docentes interessados em substituição da pesquisa eleitoral por uma cesso de escolha tardia, mas, diferente quanto ao e de Computação
participar do processo de escolha dos novos efetiva eleição. “A pesquisa indica a prefe- conteúdo dos Bacharelados Interdisciplinares Escola Politécnica/UFRJ
dirigentes. rência da comunidade, mas essa preferência
Aloísio e Sylvia integram a única chapa não é sinônimo da eleição de um reitor. O ***
inscrita para concorrer à eleição a ser realiza- Colégio Eleitoral, então, designará uma
da nos dias 2, 3 e 4 de abril. “Talvez, a nossa
maior meta tenha sido alcançada, que foi a pa-
lista para o governo federal e, ainda assim,
será uma lista tríplice, mesmo que apenas o
Aula Magna discute projeto Uninova
cificação da universidade, a possibilidade de professor Aloísio Teixeira tenha se inscrito à Kadu Cayres, do Olhar Vital
existir um debate rico, no qual as diferenças vaga de reitor. O envolvimento democrático
de opinião fluem sem que sejam entendidas da universidade, a transparência e a agili- No dia 14 de março a UFRJ realizará sua a universidade recebeu intelectuais impor-
como outra coisa que não a existência de dade do processo são fatores que nos fazem Aula Magna 2007. O evento terá lugar no tantes, como Cristovam Buarque (ex-reitor
divergências”, ressalta Aloísio, enfatizando reivindicar que esse processo signifique Centro Cultural Horácio Macedo, do Cen- da Universidade de Brasília e ex-ministro
ainda que a principal tônica de sua campanha concretamente a eleição dos futuros reitor tro de Ciências Matemáticas e da Natureza da Educação), Celso Amorim (ministro das
será estimular os estudantes a participarem do e vice-reitor”, explica a professora. (CCMN), às 9h. Desta vez, o responsável por Relações Exteriores), o físico e professor
processo eleitoral e da vida universitária. proferi-la será o professor Naomar Monteiro José Leite Lopes e o poeta e crítico Ferreira
O pleito de 2007 traz inovações. A primei- Prioridades de Almeida, reitor da Universidade Federal Goulart.
ra delas é que, muito provavelmente, sejam Aloísio Teixeira garante que o ensino de da Bahia (UFBA). A Aula Magna é a solenidade que mar-
utilizadas urnas para registrar os votos da Graduação será a prioridade do seu segun- Durante a aula, Naomar discutirá o ca o início das atividades acadêmicas nas
comunidade universitária. A Comissão Co- do mandato. De acordo com o professor, a projeto Universidade Nova (Uninova), uma universidades. É denominada Magna (de
ordenadora já solicitou os equipamentos ao universidade precisa passar por uma reestru- proposta que altera significativamente a es- magnífico) por ser de iniciativa do reitor, que,
Tribunal Regional Eleitoral (TRE). “Nós ainda turação que a permita receber um número trutura dos cursos de graduação e dá novo a seu critério, pode convidar outras perso-
não organizamos nossas unidades para isso. maior de estudantes; o que, portanto, faz significado à instituição universitária. nalidades dos meios acadêmicos e culturais
O TRE está aguardando que encaminhemos das políticas de Assistência Estudantil uma A principal alteração é a implantação dos para proferi-la.
essa parte. A urna eletrônica agiliza a votação, questão essencial para os próximos quatro Bacharelados Interdis-
já que diminui as filas, mas, principalmente, anos. ciplinares (BI), propi-
confere velocidade à contagem dos votos”, Para Sylvia Vargas, candidata à reeleição ciando formação uni-
afirma Edwaldo Cafezeiro, professor emérito como vice-reitora, a experiência à frente da versitária geral, como
da Faculdade de Letras (FL) e presidente da administração central da UFRJ confere à u ma pré - g r adu aç ão
Comissão. atual equipe da Reitoria maior preparação que antecederá a for-
Outra novidade é que pela primeira vez, no enfrentamento de problemas. “Teremos mação profissional de
em um processo coordenado pelo Conselho a chance de realizar ações que poderíamos graduação e a formação
Universitário (Consuni), a consulta será ter feito, mas que não fizemos porque não científica ou artística da
paritária, ou seja, votos dos segmentos de sabíamos como fazê-las. Muitos empreendi- pós-graduação.
estudantes, professores e funcionários téc- mentos precisam ser terminados, outros já O objetivo da sole-
nicos-administrativos terão o mesmo peso foram concluídos, mas existem, sem dúvida, nidade, além de marcar
ponderado no momento da apuração. Para novos que precisam ainda ser implantados”, o início das atividades
Marco Aurélio Rodrigues, representante dos destaca Sylvia. acadêmicas e de dar boas-
técnico-administrativos na Comissão Coor- Até o final do processo eleitoral, os cargos vindas aos calouros, é de
denadora da Pesquisa Eleitoral, a paridade de reitor e vice-reitor serão respectivamente trazer personalidades dos
atrairá a atenção do segmento para o pleito. ocupados pelos professores José Luiz Fontes mais variados campos,
Monteiro, pró-reitor de Pós-graduação e para compartilhar seu
A importância do processo eleitoral Pesquisa (PR-2), e Carlos Antônio Levi da conhecimento com a co-
Na opinião de Edwaldo Cafezeiro, um Conceição, pró-reitor de Planejamento e munidade acadêmica.
processo eleitoral democrático é fundamental Desenvolvimento (PR-3). Nos últimos anos,

Expediente
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Março•2007 UFRJ
Internacional
Reformas Reguladoras

Em relatório divulgado
recentemente pelo Banco
Mundial, o Brasil conseguiu
uma proeza da qual não deve se
orgulhar. Representado por São
Paulo, o seu maior centro de
negócios, o país ficou apenas
em 119º lugar entre as 155
nações citadas.

Bruno Franco
ilustração Patrícia Perez

O Doing Business, ou “Fazendo Negócios”,


da Corporação Financeira Internacional (IFC),
braço para a iniciativa privada do Banco Mun-
dial, foi divulgado no dia 26 de julho, trazendo
informações sobre o grau de facilidade para se
realizar negócios e atividades empresariais em
155 países. Em seu conteúdo específico, o Doing
Business Brazil elaborou comparações entre 13 uma empresa no estado de pior desempenho
cidades brasileiras: Belo Horizonte, Brasília, demora duas vezes mais tempo do que no estado
Campo Grande, Cuiabá, Florianópolis, Forta- de melhor desempenho. No Brasil, a diferença
leza, Manaus, Porto Alegre, Porto Velho, Rio de entre o melhor e o pior é de oito vezes (19 dias
Janeiro, Salvador, São Luís e São Paulo. em Minas Gerais e 152 em São Paulo). O cum-
O relatório cobre cinco áreas de regulamen- primento de um contrato demora quatro anos
tação de negócios: abertura de empresa, registro (1.473 dias) no Rio Grande do Sul, mais tempo
de propriedade, obtenção de crédito, tributação que na Guatemala, o país em que esse processo
e cumprimento de contratos. De acordo com é o mais demorado do mundo. Em São Paulo,
o banco, os procedimentos para a abertura de a demora é de 18 meses para tanto, mas se isso
empresas, no Brasil, são confusos, demorados parece bom comparado às dificuldades dos
e dispendiosos. Eles estão tão dispersos que gaúchos, ainda assim é mais lento do que em ou ter acesso a serviços públicos. Esse tipo de
nenhum dos órgãos envolvidos consegue ter Buenos Aires ou Bogotá. empreendimento também tende a ser menos Como resolver o problema?
uma visão geral de todos os passos e custos Para a economista Margarida Gutierrez, produtivo que seus concorrentes formais. Doing Business Brazil traz diversas propos-
necessários. professora de Macroeconomia do Instituto São necessários 18 procedimentos diferentes tas de reformas, dentre as quais, a introdução
O desempenho brasileiro é ruim, se compa- Coppead e do Instituto de Economia (IE), para abrir uma empresa no Maranhão e em de procedimentos e pagamentos eletrônicos;
rado aos nossos vizinhos que, por sua vez, são ambos da UFRJ, a raiz do problema está no Ju- Santa Catarina. Em Minas Gerais, a adoção de a eliminação da necessidade de impressão de
pífios levando-se em conta as demais regiões. diciário: “a Justiça é lenta e a legislação atrasada. um único local para todos os procedimentos, recibos para objetivos fiscais; a unificação os
Quinze economias européias estão na lista dos Como exemplo, dos bancos que entraram em reduziu esse número para 10. No entanto, essa Cartórios de Notas e de Registro de Imóveis; a
30 melhores países, cujo único representante liquidação na 1ª fase do Plano Real, nenhum iniciativa não cobre todos os procedimentos redução do imposto de transferência de imóveis
sul-americano é o Chile (28°). Os dez melhores deles concluiu o processo. Já se passaram dez federais, e cada um deles requer vários docu- e o estabelecimento de um registro nacional
resultados são, nesta ordem, Cingapura, Nova anos. Estão todos ainda em fase de liquidação mentos e preenchimento de longos formulários. único de títulos e documentos.
Zelândia, Estados Unidos, Canadá, Hong-Kong extrajudicial”. A complexidade desses faz com que 76% dos Além disso, o sistema fiscal brasileiro é com-
(China), Reino Unido, Dinamarca, Austrália, Conforme explica Gutierrez “quando um requerimentos feitos em Minas Gerais sejam plexo e oneroso. Enquanto o Brasil tem mais de
Noruega, Irlanda. Na América Latina, somente dos contratantes não cumpre uma cláusula, o indeferidos ainda em sua fase inicial. De acordo 25 impostos federais, estaduais e municipais
Venezuela e Haiti exibiram desempenho infe- outro lado do contrato tem de procurar a Justi- com Gutierrez, há um excesso de burocracia, diferentes (cobrando, em média, 147% do lucro
rior ao brasileiro. ça”. Mas a ineficiência e sobrecarga da mesma, que explica porque o custo para fazer negócios bruto), a Noruega cobra 60% do lucro bruto das
O Doing Business indica que os maiores obs- somada a um direito de propriedade oneroso é tão alto. “A sua redução passa pela informa- empresas usando somente três impostos pagos
táculos na região são a lentidão dos tribunais e a “explica parte dos altos custos de transação”, tização e redução de procedimentos”, indica a eletronicamente.
tributação elevada e complexa. Na Bolívia, por arremata a economista. economista. Uma das sugestões, contudo, já foi atendida:
exemplo, a tramitação de um simples contrato A dificuldade para empreender no Brasil Os maiores determinantes do custo total são a aprovação, pelo Senado, do Supersimples, que
comercial nos tribunais exige 47 procedimentos repercute na quantidade e qualidade de em- a impressão de recibos para fins fiscais, o alvará unificará oito impostos – seis federais (IRPJ,
e leva 591 dias. No Brasil, uma empresa pode pregos criados e no dinamismo da economia. de funcionamento e as taxas de registro. Esses IPI, CSLL, PIS/Pasep, Cofins e INSS Patronal),
chegar a pagar 72% sobre seus lucros em tribu- O alto custo para se fazer negócios favorece a custos de abertura se comparam com 0% na um estadual (ICMS) e um municipal (ISS). De
tos e ocupar 2.600 horas por ano para atender informalidade, que respondeu, de acordo com Dinamarca (melhor caso) ou 1.442% da renda acordo com Gutierrez, o Supersimples é uma
às exigências. Doing Business, por 42% da produção do país per capita no Zimbábue, que é o pior caso. O boa iniciativa, ainda que não resolva a questão.
A performance além de ruim é desigual. em 2002/2003, em comparação com 33% no alvará municipal é o que demora mais tempo “A Lei de Falências, agora implementada, tam-
Na confusão de leis, tributos, procedimentos México, 16% na China e 26% na Índia. Além em todos os estados e, muitas vezes, inclui a bém é algo que pode contribuir de forma mais
federais, estaduais e municipais, os estados da perda, pelo governo, de recursos oriundos obtenção prévia da licença do Corpo de Bom- eficiente para a realização de negócios no Brasil.
brasileiros apresentam grandes diferenças, bem da captação de impostos, as empresas informais beiros, em Brasília, Manaus, Porto Velho, São Qualquer passo em direção a uma maior agili-
como especificidades. No México, a abertura de enfrentam mais dificuldades para obter crédito Luís, São Paulo e Florianópolis. dade será bem-vindo”, afirma a professora.
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Internacional

A fim de negociar
com a comunidade
internacional, a Coréia
do Norte utiliza armas
atômicas e realiza teste
nuclear. Mas, apesar de todo
o seu potencial bélico, o país
é um dos mais pobres da Ásia, e
precisa de ajuda humanitária para
matar a fome da população.

Mônica Reis
ilustração Marco Fernandes

No último dia 9 de outubro, a Coréia do


Norte realizou seu primeiro teste nuclear, o
que impactou a comunidade internacional e,
sobretudo, a geopolítica da região. Ocorrido em
uma instalação subterrânea e sem risco de va-
zamentos, de acordo com o comunicado oficial
do governo de Pyongyang, o teste contou com
tecnologia 100% norte-coreana e
foi considerado uma afronta pelos
países vizinhos – China, Japão, Rússia
e Coréia do Sul – e pelos Estados Unidos.
O teste é mais um episódio de um processo
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Internacional

que remonta há mais de 50 anos, tendo origem aproximação entre Estados Unidos e China e Norte também precisa de aporte à sua economia. querem resolver seu problema de transição
no final da II Guerra Mundial, com a criação de pelo declínio da URSS, o presidente Kim Il Sung De acordo com Franklin Trein, isso somente vai para uma economia capitalista que possa dar
uma linha demarcatória, pactuada entre Moscou assina, em 1985 o Tratado de Não-Proliferação acontecer quando ela começar a produzir o que condições de alimentar seus 1 milhões e 300 mil
e Washington, chamada de Paralelo 38, que de Armas Nucleares (TNP). As pressões se man- outros países demandarem: “ela precisa vender, habitantes. Ou seja, a China já tem problemas
dividiu a península coreana em duas zonas de tém até mesmo depois da morte do governante, mas também precisa de países que se disponham suficientes”.
influência: a República da Coréia, ao Sul, apoiada em 1994, quando seu filho, Kim Jong Il, assume a comprar, e a comunidade internacional não O esforço por um diálogo mais amplo entre
pelos Estados Unidos, e a República Democráti- o poder. Nesse ano, é celebrado um acordo com tem o interesse em comprar o que ela produz as Coréias, Japão, China, Rússia e Estados Uni-
ca Popular da Coréia, ao Norte, sustentada pela os norte-americanos, por meio do qual a Coréia porque não é nem mais barato, nem de melhor dos já é desdobramento do teste nuclear reali-
ex-União Soviética. Essa demarcação separou do Norte passa a receber 500 mil toneladas de qualidade”. zado no início de outubro. Ele deu à Coréia do
não apenas a nação coreana em dois Estados petróleo por ano e, em troca, é obrigada a sus- Porém, na medida em que o seu programa Norte mais um argumento para reclamar o fim
diferentes, mas também em dois sistemas pender o seu programa nuclear. nuclear vai sendo usado pela Coréia do Norte das sanções comerciais impostas pelos norte-
político e econômicos É também nesse como arma de negociação com a comunidade americanos, que não são apenas diretas: os EUA
opostos: o capitalismo e período que melho- internacional, também ganha significado para exercem pressão sobre terceiros, a fim de que não
o comunismo. ra o relacionamento outro país com interesses estratégicos na região: estabeleçam comércio com os norte-coreanos. E
A Guerra Fria trouxe
para as principais potên-
“Com a recente com a Coréia do Sul.
De acordo com An-
os Estados Unidos. Ainda segundo Franklin
Trein, quando os EUA dão destaque à crise na
essas sanções não atingem somente a Coréia do
Norte, mas também outros países com os quais
cias mundiais a neces-
sidade de ampliação de
derrota eleitoral tônio Celso Pereira,
professor do Depar-
Coréia do Norte, desviam, em parte, as atenções
de um problema maior: o Irã. “A situação nesse
os EUA não tem relação diplomática. Franklin
Trein explica que “para efeito de comparação,
suas áreas de influência.
Em junho de 1950 estou-
do presidente tamento de Ciência
Política do IFCS/
país me parece de um potencial de conflito temos Cuba. As empresas que tiverem ligações
muito mais amplo do que na Coréia do Norte. com aquele país ficam impedidas de comerciali-
ra a Guerra da Coréia, um Bush nas eleições UFRJ, a crise nas duas O Irã tem apoio da comunidade muçulmana, zar com as norte-americanas. E é assim. Os Esta-
episódio ainda hoje con-
troverso. Rapidamente o parlamentares, Coréias obrigou a um
relacionamento mais
da árabe e da Rússia, porque, além de produtor
de petróleo – que mantém o capitalismo atual
dos Unidos estabelecem uma legislação interna
e fazem-na válida para todo o mundo”.
exército norte-coreano
ultrapassa o paralelo 38 poderá haver um positivo entre os dois
países. “A perda qua-
funcionando – ocupa uma posição geográfica
estratégica, na transição entre o Ocidente e o Soluções para a crise
e ocupa a capital do Sul,
Seul. Três meses após o
novo posicionamento se total do arroz em
conseqüência da falta
Oriente. A Coréia do Norte, ao contrário, está
hoje isolada”, explica. Isolamento esse que faria
No entanto, o que esperar dessas negocia-
ções? Segundo Franklin Trein, a Coréia do Norte
início das hostilidades,
a cidade é retomada por
diante do problema, de chuvas e, nos anos
seguintes, pelas inun-
com que ela fosse neutralizada em poucos mi-
nutos pelas bases militares norte-americanas
tem três caminhos possíveis: permanecer atra-
sada e fechada, receber apoio internacional ou
forças internacionais en-
viadas pela Organiza-
uma verdadeira dações, fez com que
a Coréia do Sul sus-
na Ásia. pensar na reunificação. Para ele, a terceira opção
seria a mais favorável. “A Coréia do Norte tem a
ção das Nações Unidas vontade de resolver pendesse o embargo Sudeste Asiático e EUA força de trabalho que seus irmãos do sul preci-
(ONU), sob a hegemonia comercial que havia Os norte-coreanos não contam com o apoio sam para o desenvolvimento de sua economia,
norte-americana. a crise e não agravá- imposto aos irmãos de seus vizinhos mais próximos. Japão, Coréia e esses, por sua vez, têm a tecnologia, a solução
O conflito, porém,
estava longe do fim. As la com a rigidez da do norte. Isso per-
mitiu a retomada das
do Sul, China e Rússia são a favor do desarma-
mento nuclear da porção norte da península
dos problemas de infraestrutura, inclusive de
produção de alimentos para a parte norte da
tropas norte-americanas,
por sua vez, em 1º de ou-
postura unilateral da conversações para a
reunificação”, explica
coreana, até mesmo por questões de proximida-
de geográfica. Esses países fizeram um apelo no
península”, explica o pesquisador.
Seguindo o caminho das negociações, a Co-
tubro de 1950, também
violam a fronteira do
diplomacia dos EUA” o docente.
A cooperação en-
último dia 18 de novembro através da reunião de
cúpula da Asia-Pacific Economic Cooperation
réia dependerá não apenas de vontade própria,
mas também dos Estados Unidos. Antônio Celso
Paralelo 38 e invadem a tre Estados Unidos (Apec), realizada em Hanói (Vietnã), para que Pereira prevê que a postura norte-americana
Coréia do Norte, chegan- e Coréia do Norte os norte-coreanos interrompam seu programa pode ficar mais flexível a partir do encontro
do à fronteira da China. prossegue até 11 de nuclear. Esses aceitaram retomar as negociações, em Hanói. “Com a recente derrota eleitoral do
Sentindo-se ameaçado, setembro de 2001. mas a data de um novo encontro ainda não está presidente Bush nas eleições parlamentares, po-
o país de Mao Tse-Tung entra no conflito. Após os atentados às Torres Gêmeas e ao Pentá- marcada. derá haver um novo posicionamento diante do
Os embates, dessa forma, se arrastam por três gono, o presidente George W. Bush enquadrou-a A reunião da Apec promete dar início à problema, uma verdadeira vontade de resolver
anos e apresentam como saldo de 3,5 milhões no chamado “Eixo do Mal”, ao lado do Irã e do uma nova rodada de conversações. E esse diá- a crise e não agravá-la com a rigidez da postura
de mortos e um armistício, em 1953, que criou Iraque. Bush suspende os acordos de 1994 e, logo é importante não apenas para a Coréia do unilateral da diplomacia dos EUA”, afirma o
uma zona desmilitarizada entre os dois países. em contrapartida, a Coréia do Norte retira-se Norte, mas também para os Estados Unidos. professor.
O tratado de paz nunca foi assinado. do TNP, retomando seu programa nuclear com De acordo com
a colaboração do cientista paquistanês Abdul Antônio Celso
Programa nuclear Qadeer Khan. Essa medida recebeu críticas Pereira, elas vão
Com o fim dos conflitos, a Coréia do Norte mesmo de aliados de Pyongyang, como a de encontro aos
continua recebendo o apoio da então URSS e China, que suspende os programas de ajuda ao interesses dos
da China, mesmo durante as décadas em que país e restringe-se somente a oferecer subsídios EUA no Sudeste
esses dois países estiveram em litígio. Enquanto militares. Asiático. “Não
a URSS aportava subsídios para a implantação é bom para eles
de um modelo de industrialização com ênfase na Intenções reais uma corrida
indústria pesada – em especial a bélica – a China Mas o que a Coréia do Norte pretende com a armamentis-
oferecia proteção contra os vizinhos do Sul. retomada de seu programa nuclear? De acordo ta na região,
As incertezas, mesmo após o fim dos confli- com Franklin Trein, o objetivo é unicamente o muito menos
tos, determinam tanto os rumos da economia de forçar uma negociação em patamares mais uma Coréia do
norte-coreana, como o seu esforço nuclear. favoráveis. “Ela usa seu projeto de desenvolvi- Norte com ar-
Com a permanência de tropas norte-ameri- mento de arma atômica para fazer chantagem mas nucleares a
canas na península, os recursos voltaram-se com a comunidade internacional, de forma que ameaçar cons-
prioritariamente para a defesa militar. No início essa possa vir a oferecer ajuda financeira para tantemente seus
da década de 1960, a URSS começa a fornecer que a Coréia do Norte tenha condições de sair da grandes parcei-
equipamentos e a formar técnicos, origem do situação de miséria em que se encontra”, afirma. ros políticos e
atual programa nuclear norte-coreano. Com isso, concorda Antônio Celso: “como país estratégicos,
De acordo com Franklin Trein, professor nuclear, a Coréia do Norte quer ser ouvida e, como Coréia
do Departamento de Filosofia do Instituto de ao mesmo tempo, quer ter instrumentos para do Sul e Japão.
Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), essa negociar ajuda econômica e não sucumbir diante Para a China,
foi a principal diferença entre a reconstrução de uma reunificação da península coreana”. que tem gran-
pós-guerra da Coréia do Norte e do seu vizinho A situação do país é realmente preocupante. des interesses
do Sul. “A Coréia do Norte fez investimentos mi- Sem riquezas de subsolo ou potencial energé- comerciais na
litares consideráveis, porque se sentia ameaçada, tico extraordinário, dotado de uma geografia área, também
e não fez aquilo que seus irmãos do sul fizeram, adversa – o relevo montanhoso não permite o não é bom o
que foi desenvolver a capacidade intelectual e de desenvolvimento da agricultura – e clima pouco agravamento
produção da sociedade”, afirma o professor. favorável, além de possuir uma população pouco da crise”, explica
O investimento em indústria bélica fez com instruída, a Coréia do Norte não tem condições o professor.
que a Agência Internacional de Energia Atômica de fazer um progresso significativo sem apoio Aind a no
(AIEA) colocasse o país sob suspeita de estar internacional. Hoje depende, freqüentemente, que diz respei-
desenvolvendo armas nucleares. Pressionado e de ajuda humanitária e apresenta baixos índices to aos chineses,
enfrentando uma crise econômica sem prece- de qualidade de vida. Franklin Trein
dentes causada pela escassez de petróleo, pela Além de ajuda à sua população, a Coréia do concorda: “eles
6 Jornal da
UFRJ Março•2007

Nacional

Programa de Aceleração do Crescimento

A aposta do
governo para
dinamizar a
economia

Coryntho Baldez
ilustração Jefferson Nepomuceno
fotos Marco Fernandes

O rascunho do Programa de Aceleração áreas: Energia, Logística (transportes) e Controlando a nau to”, que seria oferecido exclusivamente pelo
do Crescimento (PAC) foi considerado Infra-Estrutura Social e Urbana (habitação Segundo João Sicsú, do Instituto de mercado, “entidade considerada por muitos
tímido pelo presidente Luís Inácio Lula e saneamento). Do total, R$ 217 bilhões Economia (IE) da UFRJ, com o PAC, o go- como suprema e infalível”. Ele cita a falta de
da Silva. Em público, ele criticou a equipe viriam da iniciativa privada, R$ 219 bilhões verno federal procura “retomar o controle dinamismo da economia, nos últimos anos,
interministerial que alinhavava o pacote de de estatais e R$ 68 bilhões do Orçamento da nau Brasil, que estava à deriva”. Segundo para mostrar que o “Deus mercado falhou”.
medidas ao cobrar-lhe dose extra de esforço Geral da União. ele, o programa não aceita a idéia de que o Nos anos 1995-1998, correspondentes ao
criativo. De volta ao forno, o PAC somente Para alguns especialistas, o PAC recupera investimento público expulsa da economia primeiro governo de Fernando Henrique
saiu quando o presidente considerou-o apto a concepção de planejamento estatal e retira o investimento privado – “um fenômeno Cardoso, a taxa média de crescimento do
a acelerar os passos de tartaruga da economia do mercado a patente de comandante supremo conhecido na academia como crowding-out”. Produto Interno Bruto (PIB) nacional ficou
brasileira – cuja taxa média de crescimento da economia do país. Na opinião de outros, a Pelo contrário, “o PAC adota a concepção do em 2,6%. Entre 1999 e 2002, no segundo
ficou em 2,6% nos quatro anos de seu pri- montanha pariu um rato. Ou seja, o PAC não crowding-in, ou seja, o investimento público mandato de FHC, caiu para 2,1% ao ano.
meiro mandato. irá garantir a expansão da economia e poderá atrai para a economia o investimento privado E no período 2003-2006 voltou para 2,6%.
Anunciado finalmente em 22 de janeiro, ter efeito concentrador, ao transferir recursos real”, afirma. Segundo o economista, o gover- Na prática – observa Sicsú – “a iniciativa
o programa prevê investimentos de R$ 503 do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço no Lula retomou a iniciativa depois de quatro de lançar um programa desconstitui a idéia
bilhões até 2010, divididos em três grandes (FGTS) para megaprojetos empresariais. anos esperando o “espetáculo do crescimen- de que a soma de sacrifícios de curto prazo
7
Jornal da
Março•2007 UFRJ
Nacional

resultaria, de forma espontânea, no paraíso, da sucção fiscal será de R$ 6,6 bilhões no ano restringir o tamanho do
alcançável somente no longo prazo”. de 2007, ou seja, aproximadamente 0,7% do serviço público”. Embora
O professor do IE/UFRJ concorda, em PIB. Foi uma medida correta para aumentar não garanta que não haverá
parte, com a crítica de que os valores do a lucratividade esperada dos segmentos se- descontrole fiscal, é uma
investimento público previstos no PAC não lecionados pelo programa”, comenta. Muitos medida que limita a capa-
são notáveis. Contudo, afirma que são muito ainda dizem que a carga tributária no Brasil cidade do governo de forta-
superiores àqueles realizados nos últimos deveria ter redução maior e generalizada. lecer o Estado contratando
anos, já que poderá saltar do patamar de No entanto, segundo João Sicsú, poucos pessoal qualificado – critica
aproximadamente 0,5% para 1% do PIB. lembram que a carga tributária é alta no o professor.
Brasil porque foi aumentada, especialmente Por fim, João Sicsú ad-
China é exemplo nos governos de FHC e Lula, para reduzir verte que a política mone-
Ao comentar as críticas feitas por alguns o déficit nominal. “Esse poderia crescer de tária deve se tornar com-
setores empresariais de forma explosiva por patível com o PAC, que
que o PAC não prevê conta das elevadas prevê taxas de juros que
regras de garantia dos despesas financeiras conflitam com o objetivo
negócios de grande
porte e nem medidas
“A política fiscal do governo devido
às altas taxas de juros
de crescimento econômico
– uma taxa de juros de 10%
de desburocratização,
ressalta que elas não
do PAC contém praticadas durante
esse período”. A causa
ao ano somente seria alcan-
çada em 2010. “Se o país
são essenciais e nem
determinantes para
também o objetivo da elevação da carga
tributária – afirma
mantiver a taxa de básica
de juros elevada manterá o
a economia. Mais do
que reformas e marcos
de promover – foi o crescimento da
taxa de juros básica
modelo estagnacionista do
stop-and-go, que tem sido
legais – segundo Sicsú
– o que os empresários
o crescimento, da economia. “Países
com grau de desen-
muito mais stop do que go”,
ironiza o economista.
desejam é lucro, “uma
palavra que é quase
um objetivo volvimento asseme-
lhado ao do Brasil Modelo financeiro
sinônima de cresci-
mento sustentado”.
consagrado pelas possuem uma taxa
de juros bem menor
Reinaldo Gonçalves,
também professor do IE da
Para ele, a China é um
caso exemplar. “É um
políticas fiscais do que a nossa e suas
dívidas públicas não
UFRJ, afirma que nada vai
mudar se o governo não
país de partido único,
sem eleições diretas,
keynesianas nos são indexadas à taxa
básica de juros o que,
alterar a política macroeco-
nômica. E não existe indício
com alfabeto ininteli-
gível, mas cresce por
anos de ouro portanto, lhes per-
mite ter uma carga
de que isso vá acontecer – comenta. “A pa-
ranóia de geração de um megasuperávit pri-
modelo econômico vigente que privilegia
setores exportadores – “os que geram divisas
mais de duas décadas
a 10% ao ano”. Além
do capitalismo tributária menor”,
analisa Sicsú.
mário continua, assim como o viés restritivo
da política monetária”, diz. Segundo ele, com
para pagar aos credores externos” – e está
orientado para a realização de megaprojetos
disso – prossegue o
especialista – tem uma
durante o século Políticas
o PAC, o governo continua a sustentar um
modelo que privilegia os gastos financeiros,
que nem sempre beneficiam a população.
“Exemplo disso foi a inclusão, no PAC, do
taxa de câmbio que
garante exportações
passado” keynesianas
João Sicsú tam-
em detrimento do investimento público.
Gonçalves também não acha que os R$
Projeto de Transposição do São Francisco,
que afetará seriamente o meio ambiente para
a preços altamente bém considera im- 52,5 bilhões que o PAC destinará ao Projeto beneficiar o agronegócio”. Ele também cita
competitivos. “Esse é portante a ampliação Piloto de Investimentos (PPI) – incluídos projetos que agridem o meio ambiente, como
o país que mais rece- do escopo da política nos recursos que sairão do Orçamento da a hidrovia Paraná-Paraguai e o complexo do
be investimento direto norte-americano no fiscal, que, segundo ele, tinha o objetivo de União e que serão abatidos do cálculo do Rio Madeira, formado pelas hidrelétricas
mundo”, lembra o professor. apenas reduzir a relação entre dívida pública superávit primário – seja um sinal de mu- do Jirau e Santo Antônio. “São empreendi-
Já em relação à “redução da sucção fiscal”, e PIB. “A política fiscal do PAC contém tam- dança de rota da economia. O PPI, fruto mentos benéficos a poucas empresas, muitas
o PAC foi seletivo, aliviando somente setores bém o objetivo de promover o crescimento, de um acordo do país com o FMI em 2004, transnacionais, que facilitarão o escoamento
industriais de bens de capital, TV digital e de um objetivo consagrado pelas políticas fiscais reduziria a meta atual do superávit primá- da produção principalmente de minérios e
semicondutores, além de empreendimentos keynesianas nos anos de ouro do capitalismo rio de 4,25% para 3,75% do PIB. Contudo, commodities agrícolas”, destaca.
de edificação de infra-estrutura e a constru- durante o século passado”, destaca. Tal como segundo o professor, “o PPI é uma tolice O PAC – completa Vieira de Ávila
ção civil – enumera o economista. “A redução foi proposto no PAC, para ele é fundamental contábil que não serve para nada e o arrocho – lamentavelmente não altera essa lógica
que o investimento público fiscal vai continuar. O governo já não tem concentradora de crescimento da economia
seja financiado pela redução mais acordo algum com o FMI e poderia, brasileira.
do superávit primário ou em princípio, fazer o que quisesse com o
das despesas financeiras do orçamento público”.
governo. Rodrigo Vieira de Ávila, economista da Programa pode reduzir
O economista afirma ainda Campanha Auditoria Cidadã da Dívida, tarifa de energia
que é correta a adoção da res- movimento que reúne várias entidades da
ponsabilidade fiscal expressa sociedade civil cujo objetivo é dissecar o O custo menor de financiamento
na busca de um déficit zero processo de endividamento do país, revelar para o setor elétrico, previsto no PAC
para o orçamento do governo a verdadeira natureza da dívida e, a partir (CCEE - Câmara de Comercialização
federal, como prevê o PAC. daí, promover ações no sentido de reduzir de Energia Elétrica), pode ajudar a
“Os déficits orçamentários o montante das dívidas interna e externa, reduzir as tarifas de energia e di-
são sinais de fraqueza de uma também acredita que o PAC não inverte a namizar a economia. A análise foi
economia”, garante. Ele con- relação desigual entre investimentos sociais feita pela conselheira da CCEE, Élbia
corda com a idéia de que, caso e gastos financeiros. Ao contrário, aponta Melo, durante seminário realizado
a economia cresça de forma para a viabilização da proposta de déficit pelo Grupo de Estudos do Setor
continuada a taxas superiores nominal zero, que prega a realização de um Elétrico (Gesel) da UFRJ, em dois
a 5% ao ano, ela pode alcançar ajuste fiscal de longo prazo e foi apresenta- de fevereiro.
o equilíbrio orçamentário. da pelo ex-deputado Delfim Netto, no ano Para Élbia Melo, o fluxo de caixa
“Com pleno emprego, haverá passado. O PAC inclui medidas que visam a das empresas vai melhorar com a
aumento substancial da arre- cortar investimentos sociais pelos próximos queda do custo do financiamento, o
cadação e redução de alguns 10 anos, “principalmente com a Previdência que lhes dará margem para reduzir
tipos específicos de gastos Social, o salário mínimo e os rendimentos as tarifas. O custo menor de geração
sociais, tais como aqueles dos servidores públicos”, afirma Vieira de de energia também permitirá que,
referentes aos pagamentos Ávila. segundo Élbia Melo, o governo de-
de seguro-desemprego e do Ele lembra ainda que, em 2006, os gastos fina um teto mais baixo nos leilões
bolsa-família”, explica. federais com juros e amortizações das dívi- de energia nova. De acordo com a
No entanto, para ele, a das interna e externa atingiram a cifra de R$ conselheira da CCEE, os projetos
regra de contenção dos gas- 275 bilhões, equivalente a mais da metade que estão no PAC não são novidade,
tos da União com pessoal foi do valor previsto no PAC para os próximos mas foram bem planejados e vêm
uma concessão às pressões de quatro anos: R$ 503 bilhões. Além disso, sendo bem acompanhados.
cunho liberal, “que desejam o economista afirma que o PAC reforça o
8 Jornal da
UFRJ Março•2007

Nacional

A política
ainda é
reduto
masculino
Nas últimas décadas,
a participação de mulheres nos
parlamentos ao redor do mundo vem
crescendo, mas os índices continuam
bem aquém do ideal.
A política ainda parece ser uma
atividade eminentemente masculina.
Alcançar uma efetiva igualdade
de gênero nas disputas eleitorais e
consolidar-se nas esferas de
poder são desafios que
enfrentam as mulheres
nesse início de século XXI.

Aline Durães, do Olhar Virtual


ilustração Pina Brandi

Um dos marcos importantes da participa- em movimentos feministas, que


ção das mulheres na política brasileira foi reivindicaram e conquistaram
a eleição, em 1928, de Alzira Soriano, no melhores condições de educação
município de Lajes (RN), como a primeira e trabalho para as mulheres.
prefeita da América do Sul. Embora tenha O Brasil foi um dos primei-
sido impedida de assumir o cargo pela ros países da América Latina a
então Comissão de Poderes do Senado, garantir o sufrágio feminino.
Alzira abriu caminho, quatro anos mais Ao longo de mais de 70 anos, os
tarde, para a inclusão de alguns direitos de avanços efetivos da participação
representação de gênero no Código Eleitoral das mulheres nos parlamentos,
Brasileiro, publicado em 1932, que instituiu no entanto, foram lentos e pou-
o direito de voto para as mulheres e possi- co expressivos. Hoje, de acordo
bilitou, já em 1933, durante o pleito para a com a União Interparlamentar
Assembléia Nacional Constituinte de 1934, (UIP), organismo internacional
a eleição, pelo estado de São Paulo, de Car- que trabalha pelo fortalecimento
lota Pereira de Queiróz, médica e pedagoga, da democracia nas diversas nações
como a primeira deputada da história do do mundo, o Brasil ocupa a 104ª
Brasil; tendo ocupado o cargo até o Golpe posição no ranking de países com
de 1937, quando Getúlio Vargas fechou o presença feminina no parlamento
Congresso. e amarga a pior colocação entre
A trajetória de lutas pela causa feminina seus vizinhos sul-americanos. As
teve em Bertha Lutz um de seus principais brasileiras perdem para o Uruguai
expoentes. O pioneirismo da advogada e (12,1% de representatividade
zoóloga paulista exprimiu-se, já em 1922, feminina), a Bolívia (16,9%) e a
com a criação da Federação Brasileira para o Venezuela (18%). Apenas a Gua-
Progresso Feminino, entidade que defendia, temala e o Haiti ficam aquém em
entre outras coisas, o direito da mulher ao toda a América Latina.
voto. Apesar da curta carreira partidária (no As estatísticas das eleições de
cargo de deputada federal pelo Rio de Janei- 2006 confirmam o baixo desem-
ro, de julho de 1936 a novembro de 1937), penho nacional. Apesar de as mu-
Lutz atuou, durante boa parte de sua vida, lheres representarem, segundo
9
Jornal da
Março•2007 UFRJ
Nacional

em número superior aos demais. Diniz Alves Ela chegou ao poder devido ao assassinato
Trecho do discurso de Carlota Pereira de Queirós proferido em 13 verificou também a maior facilidade de elei- de seu marido, o jornalista Pedro Chamor-
ção de representantes do sexo feminino em ro, que gerou uma comoção nacional. Não
de março de 1934 distritos menores. “As regiões Norte e Nor- teria chegado de outra maneira”, conjectura
deste elegem mais mulheres do que as regiões Mirian Goldenberg.
“Além de representante feminina, país. Não há muitos anos, o lar era Sul e Sudeste. Isso porque a disputa eleitoral Mirian acredita que as mulheres não dis-
única nesta Assembléia, sou, como a unidade produtora da sociedade. nas áreas mais desenvolvidas é mais acirrada, põem de um jeito próprio de fazer política.
todos os que aqui se encontram, Tudo se fabricava ali: o açúcar, o têm mais candidatos, mais partidos, o que Na opinião da pesquisadora, ser mulher não
uma brasileira, integrada nos desti- azeite, a farinha, o pão, o tecido. E, torna mais difícil ainda a eleição de mulheres. sugere maior honestidade. “Em todos os
nos do seu país e identificada para como única operária, a mulher nele Ademais, no Norte e no Nordeste, existe o espaços públicos, elas precisam lutar muito
sempre com os seus problemas. (...) imperava, empregando todas as peso da estrutura familiar. O que vale não é mais do que os homens para conquistarem
Acolhe-nos, sempre, um ambiente suas atividades. Mas, as condições o gênero, mas a família, que é, geralmente, respeito e legitimidade. Assim, seus com-
amigo. Esta é a impressão que me de vida mudaram. As máquinas, a tradicional na região. Isso é menos comum portamentos são corretos, perfeccionistas
deixa o convívio desta Casa. Nem eletricidade, substituindo o trabalho nas localidades mais ricas do país”, esclarece e éticos, pois elas sabem que precisam ser
um só momento me senti na pre- do homem, deram novo aspecto à o pesquisador. muito melhores do que os homens para
sença de adversários. Porque nós, vida. As condições financeiras da conquistarem o mesmo (ou até menos) do
mulheres, precisamos ter sempre família exigiram da mulher nova que eles. Não acredito, entretanto, que as
em mente que foi por decisão dos adaptação. Através do funcionalismo mulheres são melhores do que os homens.
homens que nos foi concedido o e da indústria, ela passou a colaborar Existem políticos éticos, corretos e extrema-
direito de voto. E, se assim nos tra-
tam eles hoje, é porque a mulher
na esfera econômica. E, o resultado
dessa mudança, foi a necessidade
“O aumento da mente produtivos”, destaca a professora.
Citando os casos de Heloísa Helena,
brasileira já demonstrou o quanto
vale e o que é capaz de fazer pela sua
que ela sentiu de uma educação
mais completa. As moças passaram
participação candidata à Presidência da República em
2006, e Denise Frossard, que concorreu
gente. Num momento como este, em
que se trata de refazer o arcabouço
a estudar nas mesmas escolas que os
rapazes, para obter as mesmas opor-
da mulher está ao governo do estado do Rio de Janeiro
na mesma eleição, Hildete Pereira aponta
das nossas leis, era justo, portanto,
que ela também fosse chamada a
tunidades na vida. E assim foi que
ingressaram nas carreiras liberais.
associado, a dificuldade de se afirmar a existência de
um jeito feminino de lidar com a política.
colaborar. (...) Quem observar a
evolução da mulher na vida, não
Essa nova situação despertou-lhes
o interesse pelas questões políticas
principalmente, “Existe, é claro, um corte ideológico próprio,
mas não é porque é mulher que vai defender
deixará por certo de compreender
esta conquista, resultante da grande
e administrativas, pelas questões
sociais. O lugar que ocupo neste mo-
a uma maior os direitos da mulher. Heloísa Helena e De-
nise Frossard, por exemplo, fazem política
evolução industrial que se operou no
mundo e que já repercutiu em nosso
mento nada mais significa, portanto,
do que o fruto dessa evolução.”
igualdade entre como homem. Heloísa é desvinculada das
propostas femininas, chegou nesse lugar por
os gêneros nas representar um setor da esquerda”, opina a
professora.
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 51,53%
do eleitorado, apenas 123 representantes do
que os homens, com a aparência e são mais
vigiadas”.
esferas públicas e Lei de cotas para mulheres
sexo feminino chegaram, no ano passado, às
assembléias legislativas, 46 à Câmara Federal,
Hildete Pereira, pesquisadora e professora
da Universidade Federal Fluminense (UFF),
domésticas. A partir da Conferência de Pequim, re-
alizada na China, em 1995, países de todo
quatro ao Senado e três ao governo de esta-
dos, o que significa apenas 8,6% dos cargos
militante do movimento feminista há 30
anos, sustenta que os baixos percentuais de
Esse é um caminho o mundo se comprometeram em adotar
políticas de cotas para garantir um per-
elegíveis. Os dados disponibilizados pelo TSE
mostram ainda a queda de 1% no número de
participação parlamentar são conseqüências
do papel desempenhado pela mulher na so-
sem volta.” centual mínimo de candidaturas femininas
aos cargos públicos. Na América Latina, 11
mulheres eleitas para o cargo de deputada ciedade atual. A professora assegura que as nações criaram leis próprias que estimulam
estadual. Nas eleições de 2002, elas ocupa- atividades ligadas à reprodução da vida, como o acesso das mulheres à política. Antes da
ram 12,56% das vagas disponíveis em todo o amamentar e cuidar dos filhos, por exemplo, implantação da ação afirmativa, o Peru,
território nacional. Em 2006, esse índice caiu afastam as mulheres da cena pública. “Os es- por exemplo, apresentava índices de repre-
para 11,61%. paços políticos são disputados mesmo depois Mulheres que fazem política sentatividade feminina inferiores aos do
das eleições, e elas não têm a mesma disponi- Mesmo com todas as dificuldades, al- Brasil. Com as cotas, os peruanos, porém,
Dados mundiais bilidade de tempo que os homens para levar gumas mulheres vêm ganhando, nos últi- superaram os brasileiros e, atualmente, pos-
A realidade feminina na política dos adiante essa disputa. A mudança na política mos anos, notoriedade no espaço político suem um parlamento com 29,2% das vagas
demais países também está longe do ideal implica transformações no comportamento mundial. Foi o caso de Angela Merkel que, ocupadas por mulheres.
da igualdade de representação. Estudos da da família, com um homem que participe em novembro de 2005, foi eleita a primeira O Congresso Nacional brasileiro apro-
UIP evidenciam que a média mundial da mais dos afazeres domésticos e da criação dos chanceler da Alemanha. Ainda na Europa, vou, em 1997, a Lei 9.504, que obriga os
participação parlamentar das mulheres é de filhos”, pondera a pesquisadora. Ségolène Royal surpreendeu ao derrotar partidos a reservarem o mínimo de 30% e o
16%. As nações desenvolvidas apresentaram, Para um candidato se tornar conhecido e Dominique Strauss-Kahn, ex-ministro das máximo de 70% para candidaturas de cada
em 2004, média de 20%. Já os países em de- eleger-se em um mercado eleitoral cada vez Finanças, e o ex-primeiro-ministro Lau- sexo. Ainda assim, os avanços foram reduzi-
senvolvimento alcançaram a taxa de 14% de mais competitivo são necessários contatos rent Fabius na corrida presidencial para o dos. Para Diniz Alves, o insucesso brasileiro
participação. e altos investimentos em propaganda. Com governo da França. Royal conseguiu ampla pode ser explicado pela má formulação da
Quatro dos países nórdicos – Suécia base nos dados relativos aos gastos das cam- vitória sobre seus adversários e será a can- lei. “Houve pouco tempo para a discussão.
(43,5%), Noruega (37,9%), Finlândia (37,5%) e panhas de 2006 divulgados pelo TSE, o Centro didata socialista à Presidência do país nas Na pressa a lei acabou mal redigida. Apesar
Dinamarca (36,9%) – preenchem as primeiras Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), eleições de 2007. de garantir 30% de cota para as mulheres,
posições do ranking da UIP, sendo superados organização não-governamental, sem fins lu- Em uma decisão inédita, os democratas ela possibilitou o aumento da quantidade de
apenas por Ruanda, nação africana que possui crativos, que luta pela cidadania das mulheres escolheram por unanimidade uma mulher vagas para cada partido, ou seja, não dimi-
48,8% das vagas do seu parlamento ocupadas e pela igualdade de gênero, calculou que cada como presidente da Câmara dos Represen- nuiu a quantidade de homens candidatos.
por integrantes do sexo feminino. Grã-Breta- concorrente às cadeiras do Senado gastou tantes dos EUA. Nancy Pelosi, ao assumir Por exemplo, se podiam candidatar-se 100
nha (19,7%) e Estados Unidos (15,3) ocupam cerca de R$ 2 milhões durante a campanha; o cargo em janeiro de 2007, tornou-se a pessoas antes da lei, passou a ser possível a
a 50ª e a 69ª posições, respectivamente. já os candidatos às assembléias legislativas segunda personalidade política na linha candidatura de 130 depois dela. Os homens
De acordo com Mirian Goldenberg, pro- desembolsaram, em média, por volta de R$ de sucessão presidencial norte-americana, não perderam nada. Além disso, a lei não
fessora e pesquisadora do Instituto de Filosofia 700 mil cada um. logo após Dick Cheney, vice-presidente do determina que os partidos preencham os
e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), o espaço A urgência de aportes financeiros impõe país. 30% das suas candidaturas com mulheres;
político das mulheres não está relacionado desigualdades nas condições de disputa elei- Michelle Bachelet, eleita presidente do eles podem não preencher nada”, informa o
diretamente ao grau de desenvolvimento eco- toral entre homens e mulheres. “As mulheres Chile em 2006, notabilizou-se, ainda em professor, assegurando que, de acordo com
nômico do país. “O aumento da participação têm mais dificuldade para obterem o finan- 2002, ao se tornar a primeira mulher a suas pesquisas, o eleitorado não discrimina a
da mulher está associada, principalmente, a ciamento das campanhas e aceitação para ocupar o controle do Ministério da Defesa mulher.
uma maior igualdade entre os gêneros nas suas propostas. Elas não têm dinheiro, são de uma nação latino-americana. Diniz Alves lembra a existência de propos-
esferas públicas e domésticas. Esse é um ca- candidatas de idéias”, afirma Hildete Pereira. Seis países da América Latina – Argen- tas consistentes para a elevação do número de
minho sem volta”, explica a docente. José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo tina, Chile, Bolívia, Equador, Nicarágua e mulheres que participam das atividades parla-
pesquisador da Escola Nacional de Ciências Panamá – já elegeram mulheres como chefes mentares “Várias discussões vêm sendo feitas.
Dificuldades das mulheres na política Estatísticas (Ence), instituição de Ensino de Estado. No Brasil, no entanto, nenhuma Basta-nos mudar uma palavra da lei. No lugar
Para Mirian Goldenberg, a política ainda Superior ligada ao Instituto Brasileiro de representante do sexo feminino chegou de ‘vagas’, deve existir ‘candidaturas lançadas’.
é um campo predominantemente masculino. Geografia e Estatística (IBGE), analisando sequer ao segundo turno de uma disputa Propomos que as candidaturas que os partidos
A pesquisadora acredita que as mulheres “têm o cenário político brasileiro, constatou que presidencial. “Na América Latina, muitas lançarem sejam compostas por 30% de mulhe-
maior dificuldade de expressar suas idéias os partidos menos expressivos e os de es- mulheres apenas alcançam posições de po- res. A questão não é falta de propostas, mas a
em público, pois não foram socializadas para querda, por buscarem legitimação diante do der por serem ‘filhas de’ ou ‘esposas de’. Foi ausência de uma reforma política”, destaca o
isso. Precisam se preocupar, muito mais do eleitorado, lançam candidaturas de mulheres o caso de Violeta Chamorro, na Nicarágua. demógrafo.
10 Jornal da
UFRJ Março•2007

Universidade

Movimentos sociais
avaliam o PDI
Depois dos dirigentes das decanias, é a vez de os movimentos
sociais da comunidade da UFRJ discutirem as proposta de Plano de
Desenvolvimento Institucional (PDI). Representantes de estudantes,
docentes e técnico-administrativos apontam erros e acertos no processo
que busca discutir a universidade em seu conjunto.
Aline Durães, do Olhar Virtual
ilustração Jefferson Nepomuceno
fotos Juliano Pires

“Estamos empurrando as questões de Ensino e


de Pesquisa com a barriga, sem que reflitamos
realmente sobre isso. É importante que a
direção tenha saído a campo para discutir
problemas. Deveríamos fazer debates como
esses há mais tempo”, opina o professor do
Instituto de Física da UFRJ.
A coordenação-geral do Sindicato dos
Trabalhadores em Educação da UFRJ (Sintufrj)
considera, no entanto, que faltou maior
espaço para os funcionários explicitarem suas
demandas. “A discussão do PDI foi levada a
cabo, mas não foi planejada. Não houve nada
que determinasse quem deveria participar dos
debates, o que acabou ficando ao bel-prazer
dos diretores das unidades. Se eles eram
democráticos, chamavam todos os segmentos
para as reuniões; se não, convidavam apenas os
membros da direção e do seu conselho”, avalia
Ana Maria Ribeiro, uma das coordenadoras
do Sintufrj, enfatizando que as sucessivas
interrupções dos projetos desenvolvidos
por servidores disseminaram descrença e
acomodação entre a categoria.

Aspectos positivos do plano


Apesar de ser um plano polêmico pelas
mudanças que propõe, o PDI é, na opinião de
Marcílio Araújo, também coordenador-geral
do Sintufrj, um instrumento importante na luta
dos funcionários pelo maior reconhecimento
de suas funções na instituição. Segundo ele, a
aprovação do PDI possibilitará ações concretas
para a qualificação dos servidores que, ao
desempenharem melhor as tarefas técnico-
administrativas, contribuirão decisivamente
para o desenvolvimento da universidade.
Representantes da Associação dos Pós-
graduandos da UFRJ (APG) vislumbram
horizontes promissores para a Pesquisa e a
Pós-graduação em uma UFRJ regida pelo PDI.
“De uma forma geral, estamos de acordo com
o planejamento. O diagnóstico feito é muito
interessante, pois aborda questões cruciais,
como a autonomia universitária e a carência de
verbas de custeio. Planejar a construção de um
alojamento para estudantes da pós-graduação
As reuniões do PDI, embora realizadas, em Para Ubiratan Cassano, aluno do 5º que ela analisasse o que estava certo e o que e a ampliação do acervo das bibliotecas
sua maioria, junto às congregações dos cursos, período de Medicina e coordenador do estava errado.” universitárias é essencial para o crescimento
não se restringiram a esses debates. Estudantes Diretório Central dos Estudantes Mário José Simões também tece elogios da UFRJ”, afirma Renata Anomal, doutoranda
e servidores técnicos-administrativos também Prata (DCE/UFRJ), o caráter democrático à construção coletiva de um plano de do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
participaram das discussões, nas quais puderam dos encontros foi o ponto mais louvável do desenvolvimento para a instituição. De acordo (IBCCF) e coordenadora da APG.
conhecer o planejamento estratégico proposto processo: “o documento não é um plano com o presidente da Associação dos Docentes O raio-x dos entraves institucionais
pela Reitoria e sugerir metas relacionadas aos pronto. A Reitoria não quis impor nenhuma da UFRJ – Adufrj-Seção Sindical –, a Reitoria enfrentados pela UFRJ, presente nas páginas
segmentos que representam. proposta. Conclamou a comunidade para acertou ao problematizar a universidade. do PDI, também agradou a Flávia Calé,
11
Jornal da
Março•2007 UFRJ

outra coordenadora do DCE Mário Prata. Embora não apresentem uma opinião
De acordo com a estudante de História, o consensual sobre a forma de superar a falta de
diagnóstico permitiu à comunidade acadêmica integração entre estudantes e para o fortalecimento
constatar a inexistência de um verdadeiro da interdisciplinaridade, os estudantes do DCE
projeto de universidade no Brasil. “A partir Mário Prata apontam a reorganização física das
disso, o movimento estudantil pode saber unidades acadêmicas como um passo importante
de onde começar. O Estado nunca pensou a para a aproximação dos membros da comunidade
universidade e, com isso, a universidade nunca universitária. Flávia Calé apóia a distribuição de
conseguiu lidar muito bem com a sociedade. cursos entre a Ilha do Fundão e a Praia Vermelha;
Acho que devemos colocar em prática a meta mais radical, Amanda Mendonça é favorável à
de interdisciplinaridade e promover um maior concentração de todos os institutos na Cidade
diálogo entre o Ensino Superior e a sociedade”, Universitária, na Ilha do Fundão. “A dispersão
sublinha Flávia. geográfica impede mesmo a integração entre os
cursos. Um dado interessante é que o Vestibular
Críticas promove a maior conexão entre as disciplinas,
A principal crítica dos movimentos da mas isso acaba quando o estudante ingressa na
comunidade universitária ao PDI é a ausência universidade. Não existe troca entre os cursos, o
de metas específicas. Para Renata Anomal, que prejudica a vida acadêmica dos estudantes”,
por exemplo, o plano é acanhado no que diz afirma Amanda.
respeito ao processo de ampliação de vagas Maiores investimentos em campi avançados
para discentes, pois não menciona se haverá, e na interiorização da UFRJ são as bandeiras
concomitantemente a isso, um aumento no defendidas por Marcílio Araújo. “Temos que
número de docentes. discutir a expansão da UFRJ. Embora o Nupem
Já Amanda Mendonça, também membro (Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé)
da direção do DCE, critica o tratamento seja uma vitória, a interiorização ainda é uma
dado, pela proposta de planejamento, à iniciativa tímida. Atualmente, as pessoas
Assistência Estudantil. A aluna do curso de dispõem de tempo apenas para reivindicar o
Ciências Sociais defende a sistematização das imediato, mas a universidade tem a obrigação
demandas estudantis; políticas substanciais de de pensar o futuro e deve, portanto, criar
permanência dos estudantes e a construção de planos de expansão”, observa o dirigente do
uma creche universitária para acolher filhos Sintufrj, propondo também a criação de uma
de discentes que, de acordo com ela, são as corregedoria para tratar dos casos de desvio
necessidades mais urgentes. de conduta e de abuso de autoridade na
Na opinião de Ana Maria Ribeiro, a instituição.
proposta apresentada pela Reitoria peca por
confundir objetivos relacionados a mudanças Perspectivas
na estrutura universitária com questões de A primeira etapa de aprovação do PDI
planejamento estratégico. “O PDI não discute terminou, depois de sete meses de discussões,
o contexto social da UFRJ. No fundo, ainda das dificuldades da instituição. Segundo não há apoio para o crescimento da universidade no dia 20 de dezembro, quando a Administração
estamos muito balizados pelos grupos de o professor, uma avaliação da conjuntura em um projeto de desenvolvimento do país”, Central se reuniu com os componentes do
pesquisa. A formação de indivíduos para nacional é imprescindível para a eficácia do explica o presidente da Adufrj. Conselho de Ensino de Graduação (CEG).
o mundo do trabalho perdeu importância. documento. “Voltamos a ser um país agro- Simões destaca, ainda, que o afastamento O reitor Aloísio Teixeira já se comprometeu
Esse deve ser o debate central. Se o PDI não exportador; exportamos minério e produtos efetivo entre Ensino e Pesquisa no âmbito a organizar um documento com as sugestões
fizer uma discussão acerca de qual o papel agrícolas e importamos tecnologia. Nesse institucional contribui para intensificar a e os comentários das unidades e colegiados
que a universidade deve cumprir, ele não terá quadro, a universidade não conta com grandes fragmentação universitária. “Cada pesquisador acadêmicos.
sucesso”, complementa a coordenadora do incentivos governamentais. Se continuamos faz o que quer, arruma a sua verba, gerencia-a A proposta passará novamente pelo crivo da
Sintufrj. a fazer pesquisas aqui dentro é porque do jeito que bem entende, e a universidade comunidade universitária. Francisco de Assis,
Na mesma linha de raciocínio, José somos extremamente teimosos. O número de não intervém nisso. Nossos colegiados outro coordenador do Sintufrj, se diz incrédulo
Simões sustenta que o PDI não ataca o cerne patentes que sai daqui é muito pequeno, ou seja, administram o Ensino, e os professores, hoje, quanto ao sucesso da nova empreitada do PDI.
dedicam-se basicamente à pós-graduação, aos “Tudo está muito voltado para o seu próprio ‘eu’
convênios, às bolsas. Não fazemos reuniões de na UFRJ; poucos possuem a visão de conjunto,
coordenação, não discutimos o funcionamento de universidade, que é necessária para o PDI
dos nossos cursos; tudo fica emperrado. Se dar certo. O meu ceticismo em relação aos
não pensarmos mecanismos de valorização avanços prometidos no plano existe em virtude
do trabalho docente em Ensino, não haverá da falta de consciência política do conjunto da
reforma alguma”, alerta o físico. universidade”, pontua o servidor.
Mais otimistas, os dirigentes da APG/
Propostas UFRJ compreendem que a eficácia do
José Simões sugere a mudança na relação plano de desenvolvimento depende de um
da universidade com as agências de fomento acompanhamento da execução das metas por
à Pesquisa. Para o docente, as prioridades professores, alunos e técnico-administrativos.
de pesquisa devem ser definidas pelos “Pode dar certo desde que as discussões
profissionais da UFRJ e baseadas em critérios finalizem no cumprimento dos objetivos.
próprios de cada unidade. Simões acredita que Deve existir a preocupação de colocar em
a autonomia frente aos órgãos financiadores prática as sugestões que estão surgindo para
possibilitaria uma divisão interna de trabalho, ver qual delas é o melhor caminho; devemos
indispensável à reestruturação acadêmica da abandonar as discussões mais teóricas”, sugere
instituição. Renata Anomal.
A APG/UFRJ tamb ém ressalta as Para os dirigentes do DCE Mário Prata,
dificuldades imputadas pela intervenção esse é o momento de o movimento estudantil
das agências de pesquisa, mas a principal ser propositivo. A idéia é evitar posturas
proposta da associação para a versão final do meramente opinativas. Para eles, é importante a
PDI refere-se à integração entre graduandos participação através da formulação de objetivos
e pós-graduandos. Renata Anomal enfatiza sólidos, da construção de um planejamento
que “a reunião de trabalhos na forma de estratégico para a UFRJ. “O PDI pode contribuir
divulgação científica é uma boa saída para para o futuro da UFRJ. Há pontos que devem
essa questão, já que pode unir os alunos ser acrescentados, mas também não podemos
e incentivá-los a participar mais do meio escrever um plano megalomaníaco, com
acadêmico, desenvolvendo seu pensamento metas impossíveis de cumprir. O PDI figura,
crítico”. Lembrando o questionário realizado na prática, como uma mudança de postura do
pela APG junto aos estudantes pós-graduação, governo em relação à Educação. Anos atrás,
no qual a reclamação por bolsas de estudos não havia plano de desenvolvimento, mas sim
foi unanimidade, Renata reivindica ainda um plano de corte. Muitas coisas na UFRJ precisam
incremento no apoio financeiro dados aos ser mudadas; fazer um plano desse tipo ajuda,
pós-graduandos. e muito”, avalia Ubiratan Cassano.
12 Jornal da
UFRJ Março•2007

Entrevista
Denise Gentil

A crise forjada da
Previdência
Com argumentos insofismáveis,
Denise Gentil destroça os mitos
oficiais que encobrem a realidade
da Previdência Social no Brasil. Em
primeiro lugar, uma gigantesca farsa
contábil transforma em déficit o
superávit do sistema previdenciário,
que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em
2006, segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social – que
abrange a Saúde, a Assistência Social e
a Previdência – foi significativamente
maior: R$ 72,2 bilhões.
No entanto, boa par te desse
excedente vem sendo desviado para
cobrir outras despesas, especialmente
de ordem financeira – condena a
professora e pesquisadora do Instituto
de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado “A falsa crise da Seguridade Social
no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005”. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela
ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e
mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções
distintas de desenvolvimento econômico-social.

Coryntho Baldez
fotos Marco Fernandes

Jornal da UFRJ: A idéia de crise do sistema os quais decorreriam, principalmente, de a folha de pagamento, diminuindo dessa cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada
previdenciário faz parte do pensamento uma dramática trajetória demográfica de receita o valor dos benefícios pagos aos da Seguridade para além do limite de 20%
econômico hegemônico desde as últimas envelhecimento da população. A partir de trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, permitido pela DRU (Desvinculação das
décadas do século passado. Como essa então, um problema que é puramente de origem no entanto, é uma equação simplificadora Receitas da União). Há um grande excedente
concepção se difundiu e quais as suas sócio-econômica foi reduzido a um mero da questão. Há outras fontes de receita da de recursos no orçamento da Seguridade
origens? problema demográfico, diante do qual não há Previdência que não são computadas nesse Social que é desviado para outros gastos.
Denise Gentil: A idéia de falência dos sistemas solução possível a não ser o corte de direitos, cálculo, como a Cofins (Contribuição para Esse tema é polêmico e tem sido muito
previdenciários públicos e os ataques às redução do valor dos benefícios e elevação o Financiamento da Seguridade Social), a debatido ultimamente. Há uma vertente, a
instituições do welfare state (Estado de Bem- de impostos. Essas idéias foram amplamente CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro mais veiculada na mídia, de interpretação
Estar Social) tornaram-se dominantes em difundidas para a periferia do capitalismo e Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória desses dados que ignora a existência de um
meados dos anos 1970 e foram reforçadas reformas privatizantes foram implantadas em sobre Movimentação Financeira) e a receita orçamento da Seguridade Social e trata o
com a crise econômica dos anos 1980. O vários países da América Latina. de concursos de prognósticos. Isso está orçamento público como uma equação que
pensamento liberal-conservador ganhou expressamente garantido no artigo 195 da envolve apenas receita, despesa e superávit
terreno no meio político e no meio acadêmico. Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de Constituição e acintosamente não é levado primário. Não haveria, assim, a menor
A questão central para as sociedades ocidentais crise financeira da Previdência vem sendo em consideração. diferença se os recursos do superávit vêm
deixou de ser o desenvolvimento econômico propagada insistentemente há mais de 15 anos. do orçamento da Seguridade Social ou de
e a distribuição da renda, proporcionados Os dados que você levantou em suas pesquisas Jornal da UFRJ: A que números você chegou outra fonte qualquer do orçamento. Interessa
pela intervenção do Estado, para se converter contradizem as estatísticas do governo. em sua pesquisa? apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi
no combate à inflação e na defesa da ampla Primeiramente, explique o artifício contábil Denise Gentil: Fiz um levantamento da economizado para pagar despesas financeiras
soberania dos mercados e dos interesses que distorce os cálculos oficiais. situação financeira do período 1990-2006. com juros e amortização da dívida pública. Por
individuais sobre os interesses coletivos. Denise Gentil: Tenho defendido a idéia De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há isso o debate torna-se acirrado. De um lado,
Um sistema de seguridade social que fosse de que o cálculo do déficit previdenciário superávit operacional ao longo de vários anos. estão os que advogam a redução dos gastos
universal, solidário e baseado em princípios não está correto, porque não se baseia nos Em 2006, para citar o ano mais recente, esse financeiros, via redução mais acelerada da taxa
redistributivistas conflitava com essa nova preceitos da Constituição Federal de 1988, superávit foi de R$ 1,2 bilhões. O superávit da de juros, para liberar recursos para a realização
visão de mundo. O principal argumento para que estabelece o arcabouço jurídico do sistema Seguridade Social, que abrange o conjunto da do investimento público necessário ao
modificar a arquitetura dos sistemas estatais de Seguridade Social. O cálculo do resultado Saúde, da Assistência Social e da Previdência, crescimento. Do outro, estão os defensores do
de proteção social, construídos num período previdenciário leva em consideração apenas a é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos corte lento e milimétrico da taxa de juros e de
de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos receita de contribuição ao Instituto Nacional do orçamento da Seguridade alcançou a cifra reformas para reduzir gastos com benefícios
crescentes dos sistemas previdenciários, de Seguridade Social (INSS) que incide sobre de R$ 72,2 bilhões. Uma parte desses recursos, previdenciários e assistenciais. Na verdade, o
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Jornal da
Março•2007 UFRJ
Entrevista

que está em debate são as diferentes visões de na tributação, transferindo renda de pessoas em outras áreas, a reforma da previdência é recebem benefícios assistenciais e 524 mil são
sociedade, de desenvolvimento econômico e com mais alto poder aquisitivo para as de tratada como inevitável. Depois que o Fórum beneficiários do programa de renda mensal
de valores sociais. menor. da Previdência for instalado, vão começar os vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um
debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é salário mínimo por mês de forma permanente.
Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, impossível prever qual o grau de controle que Evidentemente que tudo isso ainda é muito
noções de Previdência e de Seguridade Social o governo pode lançar mão do orçamento da o governo vai conseguir sobre seus rumos. pouco para superar nossa incapacidade
que dificulta a compreensão dessa questão. União para cobrir necessidades da Seguridade Se os movimentos sociais não estiverem bem histórica de combater as desigualdades sociais.
Isso é proposital? Social? organizados para pressionarem na defesa de Políticas muito mais profundas e abrangentes
Denise Gentil: Há uma grande dose Denise Gentil: É exatamente isso que diz a seus interesses pode haver mais perdas de teriam que ser colocadas em prática, já que a
de desconhecimento no debate, mas há Constituição. As contribuições sociais não proteção social, como ocorreu em reformas pobreza deriva de uma estrutura produtiva
também os que propositadamente buscam a são a única fonte de custeio da Seguridade. Se anteriores. heterogênea e socialmente fragmentada que
interpretação mais conveniente. A Previdência for necessário, os recursos também virão de precisa ser transformada para que a distância
é parte integrante do sistema mais amplo dotações orçamentárias da União. Ironicamente Jornal da UFRJ: A previdência pública no entre ricos e pobres efetivamente diminua.
de Seguridade Social. É parte fundamental tem ocorrido o inverso. O orçamento da Brasil, com seu grau de cobertura e garantia Além disso, o crescimento econômico é
do sistema de proteção social erguido pela Seguridade é que tem custeado o orçamento de renda mínima para a população, tem papel condição fundamental para a redução da
Constituição de 1988, um dos maiores avanços fiscal. importante como instrumento de redução dos pobreza e, nesse quesito, temos andado muito
na conquista da cidadania, ao dar à população desequilíbrios sociais? mal. Mas a realidade é que a redução das
acesso a serviços públicos essenciais. Esse Jornal da UFRJ: O governo não executa o Denise Gentil: Prefiro não superestimar os desigualdades sociais recebeu um pouco mais
conjunto de políticas sociais se transformou orçamento à parte para a Seguridade Social, efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios de prioridade nos últimos anos do que em
no mais importante esforço de construção como prevê a Constituição, incorporando-a ao sociais. De certa forma, tem-se que admitir governos anteriores e alguma evolução pode
de uma sociedade menos desigual, associado orçamento geral da União. Essa é uma forma que vários estudos mostram o papel dos ser captada através de certos indicadores.
à política de elevação do salário mínimo. de desviar recursos da área social para pagar gastos previdenciários e assistenciais como
A visão dominante do debate dos dias de outras despesas? mecanismos de redução da miséria e de Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o
hoje, entretanto, freqüentemente isola a Denise Gentil: A Constituição determina atenuação das desigualdades sociais nos governo esconde, o sistema previdenciário vem
Previdência do conjunto das políticas sociais, que sejam elaborados três orçamentos: o últimos quatro anos. Os avanços em termos perdendo capacidade de arrecadação. Isso
reduzindo-a a um problema fiscal localizado orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade de grau de cobertura e de garantia de renda se deve a fatores demográficos, como dizem
cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento Social e o orçamento de investimentos das mínima para a população são significativos. alguns, ou tem relação mais direta com a
geral. Conforme argumentei antes, esse déficit estatais. O que ocorre é que, na prática da Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra política econômica dos últimos anos?
não existe, contabilmente é uma farsa ou, execução orçamentária, o governo apresenta de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de Denise Gentil: A questão fundamental
no mínimo, um erro de interpretação dos não três, mas um único orçamento chamando- pessoas ou 43% da população ocupada são para dar sustentabilidade para um sistema
dispositivos constitucionais. Entretanto, ainda o de “Orçamento Fiscal e da Seguridade contribuintes do sistema previdenciário. Esse previdenciário é o crescimento econômico,
que tal déficit existisse, a sociedade, através do Social”, no qual consolida todas as receitas e contingente cresceu de forma considerável nos porque as variáveis mais importantes de
Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, despesas, unificando o resultado. Com isso, fica últimos anos, embora muito ainda necessite sua equação financeira são emprego formal
no desemprego, na doença, na invalidez por difícil perceber a transferência de receitas do ser feito para ampliar a cobertura e evitar e salários. Para que não haja risco do
acidente de trabalho, na maternidade, enfim, orçamento da Seguridade Social para financiar que, no futuro, a pobreza na velhice se torne sistema previdenciário ter um colapso
cabe ao Estado proteger aqueles que estão gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo um problema dos mais graves. O fato, porém, de financiamento é preciso que o país
inviabilizados, definitiva ou temporariamente, de geração de superávit primário no orçamento de a população ter assegurado o piso básico cresça, aumente o nível de ocupação formal
para o trabalho e que perdem a possibilidade geral da União. E, por fim, para tornar o de um salário mínimo para os benefícios e eleve a renda média no mercado de
de obter renda. São direitos conferidos aos quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciários é de fundamental importância trabalho para que haja mobilidade social.
cidadãos de uma sociedade mais evoluída, previdenciário do resto do orçamento geral porque, muito embora o valor do salário Portanto, a política econômica é o principal
que entendeu que o mercado excluirá a todos para, com esse artifício contábil, mostrar que mínimo esteja ainda distante de proporcionar elemento que tem que entrar no debate
nessas circunstâncias. é necessário transferir cada vez mais recursos condições dignas de sobrevivência, a política sobre “crise” da Previdência. Não temos
para cobrir o “rombo” da Previdência. Como social de correção do salário mínimo acima um problema demográfico a enfrentar, mas
Jornal da UFRJ: E são recursos que retornam a sociedade pode entender o que realmente se da inflação tem permitido redução da pobreza de política econômica inadequada para
para a economia? passa? e atenuado a desigualdade da renda. Cerca promover o crescimento ou a aceleração do
Denise Gentil: É da mais alta relevância de dois milhões de idosos e deficientes físicos crescimento.
entender que a Previdência é muito mais que Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende
uma transferência de renda a necessitados. mudar a metodologia imprópria de cálculo
Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma que vinha usando. Essa mudança atenderá
transferência que se converte integralmente completamente ao que prevê a Constituição,
em consumo de alimentos, de serviços, de incluindo um orçamento à parte para a
produtos essenciais e que, portanto, retorna Seguridade Social?
das mãos dos beneficiários para o mercado, Denise Gentil: Não atenderá o que diz a
dinamizando a produção, estimulando Constituição, porque continuará a haver
o emprego e multiplicando a renda. Os um isolamento da Previdência do resto da
benefícios previdenciários têm um papel Seguridade Social. O governo não pretende
importantíssimo para alavancar a economia. fazer um orçamento da Seguridade. Está
O baixo crescimento econômico de menos propondo um novo cálculo para o resultado
de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é
do ano de 2006, seria ainda menor se não preciso mudar o cálculo da Previdência já é
fossem as exportações e os gastos do governo, um grande avanço. Incluir a CPMF entre as
principalmente com Previdência, que receitas da seguridade é um reconhecimento
isoladamente representa quase 8% do PIB. importante, embora muito modesto. Retirar
o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas
Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, também ajuda a deixar mais transparente o
quais são exatamente as fontes que devem que se faz com a política previdenciária. O que
financiar a Seguridade Social? me parece inadequado, entretanto, é retirar a
Denise Gentil: A seguridade é financiada aposentadoria rural da despesa com previdência
por contribuições ao INSS de trabalhadores porque pode, futuramente, resultar em perdas
empregados, autônomos e dos empregadores; para o trabalhador do campo, se passar a ser
pela Cofins, que incide sobre o faturamento tratada como assistência social, talvez como
das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os
ficou conhecida como o imposto sobre o benefícios têm menor valor e os direitos sociais
cheque) e pela receita de loterias. O sistema ainda não estão suficientemente consolidados.
de seguridade possui uma diversificada fonte
de financiamento. É exatamente por isso Jornal da UFRJ: Como você analisa essa
que se tornou um sistema financeiramente mudança de postura do Governo Federal em
sustentável, inclusive nos momentos de baixo relação ao cálculo do déficit? Por que isso
crescimento, porque além da massa salarial, o aconteceu?
lucro e o faturamento são também fontes de Denise Gentil: Acho que ainda não há uma
arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se posição consolidada do governo sobre esse
tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. assunto. Há interpretações diferentes sobre o
Por outro lado, a diversificação de receitas, tema do déficit da Previdência e da necessidade
com a inclusão da taxação do lucro e do de reformas. Em alguns segmentos do governo
faturamento, permitiu maior progressividade fala-se apenas em choque de gestão, mas
14 Jornal da
UFRJ Março•2007

Universidade

A vocação
carnavalesca da EBA
Contribuir com profissionais para o carnaval. Essa tem sido uma das mais importantes
experiências da Escola de Belas Artes da (EBA) da UFRJ. Desde o século XIX ela mantém
uma estreita relação com o mundo dos festejos: formando carnavalescos e, no passado,
artistas plásticos que criaram as magníficas decorações que embelezaram as ruas
cariocas e que são lembradas até hoje.
Rafaela Pereira
fotos Marco Fernandes

Fernando Pamplona, Adir Botelho, Rosa a EBA e a Liga Independente das Escolas de pela ornamentação
Magalhães, Maria Augusta e Rodolfo Amoe- Samba (Liesa) – um em 1995 e outro em 2004. do carnaval, “porém,
do são alguns dos muitos professores da EBA Helenise Guimarães, professora de História da ela acabou não se
que, em diversas épocas e em diversos papéis, Arte da EBA, que recentemente defendeu a tese envolvendo de ma-
colaboraram para o sucesso da folia. A escola de doutorado A batalha das ornamentações: neira oficial”.
vem contribuindo há muito com mão-de-obra a Escola de Belas Artes e o carnaval carioca, Para Jack Vas-
técnica e artística para atividades de criação e lembra que foi proposta, durante as discussões concelos, formado
execução de decorações de ruas e salões de bai- do Plano de Desenvolvimento Institucional pela instituição e
les; bem como de fantasias, carros alegóricos, (PDI) realizadas na unidade, a implantação atualmente respon-
ornamentos e demais atividades carnavalescas de mestrados profissionalizantes voltados para sável pelo desfile
envolvidas nos desfiles das grandes escolas de essas atividades, muitas das quais objeto de do G.R.E.S. Impé-
samba do Rio. Um campo de trabalho que se disciplinas do curso de Artes Cênicas. rio Serrano, a EBA
consolida ao longo dos anos 1960, embora Segundo ela, a EBA sempre propiciou os ofereceu um aporte
remonte ao século XIX, quando, ainda não melhores pintores e escultores que se dedica- fundamental para
integrada à universidade, ela se denominava ram aos desfiles. “Os grupos carnavalescos pro- sua vida profissio-
Escola Nacional de Belas Artes e a festa estava curavam seus artistas na nossa escola. O que nal. “Entrei para a
distante de representar o fenômeno midiático hoje é o carnavalesco, naquela época eram os universidade que-
em que se converteu nas últimas décadas. artistas que saiam da EBA”, explica a professora rendo ser carnava-
A demanda por alunos oriunda dos barra- recordando que ainda na década de 1930 se lesco e na minha
cões das escolas de samba se refletiu, nos anos chegou a desenvolver uma campanha para que cabeça a formação
recentes, em dois convênios firmados entre a Escola ficasse responsável, com exclusividade, que mais poderia
trazer benefícios
para mim era a da
Escola. Dificilmente
encontraria em ou-
tro lugar um aporte
de informações que
pudessem me ajudar
tanto”, avalia Vasconcelos. da época. Como regra, a decoração apostava
em motivos venezianos e franceses; as ima-
Ocupando a rua gens universais de carnaval como Rei Momo,
Se hoje o carnaval carioca, em grande parte, Arlequim e Colombina; temas nacionais como
gira em torno do Sambódromo da Marquês a Floresta Amazônica; e figuras típicas como
de Sapucaí – uma construção projetada espe- baianas e malandros.
cialmente para o evento –, no passado eram Rosa Magalhães, ex-professora da Escola
as próprias ruas que se abriam aos foliões. de Belas Artes e carnavalesca do G.R.E.S. Im-
Elas eram consideradas um grande salão que peratriz Leopoldinense, também participou
deveria ser ornamentado para abrigar o baile, como artista plástica na época de consolidação
seguindo uma tradição que remonta ao período desse mercado voltado para a festa, chegando
colonial e, em sua origem, está vinculada às a ganhar a decoração do Theatro Municipal, na
comemorações religiosas e as procissões cató- década de 1970, e da Avenida Rio Branco por
licas. Temáticas, as decorações eram, então, na duas vezes. “Quando ouvi falar pela primeira
verdade, o ponto principal de atração e tinham em decoração de carnaval foi na EBA, por alu-
como objetivo ambientar os espaços urbanos nos que trabalhavam nas diferentes equipes do
do Rio de Janeiro para a festa. Fernando Pamplona e do Adir Botelho”, lembra
O costume de enfeitar ruas, praças e casas se a carnavalesca.
transformou, ao longo do século XX, em uma Helenise Guimarães afirma que o ano de
tradição. E logo em um mercado profissionali- 1965 marca o ponto mais alto da participação
zado. “Eram precisos projetos, propostas, con- da EBA na decoração da cidade quando todos
corrências, concursos e prêmios, aliás bastante os concursos para sua ornamentação foram
significativos”, explica Helenise Guimarães. vencidos por professores da escola. “Era o car-
De acordo com Filipe Vieira, doutor em naval do IV Centenário da cidade. A Avenida
Geografia Cultural pela UFRJ e autor do livro Presidente Vargas foi decorada, com o tema
Inventando carnavais: o surgimento do carnaval Debret, por Adir Botelho, Fernando Santoro e
carioca no século XIX e outras questões carnava- Davi Ribeiro. Pamplona fez o baile do Teatro
lescas (Editora UFRJ, 2005), em pouco tempo Glória. O do Theatro Municipal esteve sob a res-
as principais ruas do Centro do Rio de Janeiro ponsabilidade do professor Manoel Francisco
se engajaram em uma verdadeira batalha para Ferreira, com o tema Largo do Rio Antigo. “Foi
serem incorporadas ao roteiro das decorações. o começo do domínio da EBA. Ali se cristalizou
Desfilar nelas durante o carnaval e ocupar pas- uma tendência que perdura até hoje”, afirma
seios e praças constituíam os grandes troféus com orgulho a professora.
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Jornal da
Março•2007 UFRJ
Universidade

Experiência
de solidariedade
Os “soltecos”, como são carinhosamente chamados os membros do Núcleo de Solidariedade
Técnica (Soltec), da Escola Politécnica da UFRJ, atuam em prol do desenvolvimento social, unindo
os conhecimentos adquiridos em sala de aula à boa vontade em contribuir para a geração de
trabalho e renda para camadas populares.
Fernanda de Carvalho da AgN UFRJ/Centro de Tecnologia
ilustração Jefferson Nepomuceno

O Soltec surgiu em 2003, fruto do esforço ças no comportamento dos estudantes, “são da
comum de estudantes e professores preocupados ordem do poder relacional, isto é, da respon-
em construir para um processo de formação sabilidade social e do trabalho do profissional
mais crítico no curso de Engenharia. Baseado engajado”, define Heloísa Borges. Os alunos
no tripé Ensino, Pesquisa e Extensão, o núcleo, também desenvolvem a capacidade de escutar
vinculado à Escola Politécnica da UFRJ (Poli), o outro, a atuar coletivamente e a valorizar o
reúne uma equipe engajada socialmente. Os compromisso da universidade pública e gratuita
“soltecos” mostram que é possível transformar com a sociedade.
conhecimento e solidariedade em aliados na O Conselho Gestor do Soltec é composto
promoção dos Direitos Humanos. pelos professores Antônio Cláudio, do Depar-
Vários são os projetos interdisciplinares leva- tamento de Engenharia Eletrônica, ex-diretor
dos a cabo que buscam, pela ação solidária, gerar da Poli; Walter Suemitsu, atual Decano do
trabalho e renda para as camadas populares. CT; e Sidney Lianza, coordenador geral do
“Atuar nos projetos, desenvolvendo competên- Soltec e do curso de Engenharia de Produ-
cias sócio-técnicas, faz com que tenhamos uma ção e responsável pela Disciplina Gestão de
visão mais ampla, que vai além da universidade”, Projetos Solidários (GPS), oferecida pelo De-
destaca o “solteco” Vicente Nepomuceno, estu- partamento de Engenharia Industrial (DEI).
dante de Engenharia Mecânica. Heloísa Borges, junto com Walter Suemitsu e
“Nossos projetos são auto-sustentáveis, ou Antônio Cláudio, participa na condução da
seja, não vamos a campo com o pensamento disciplina.
de que, quando formos embora, nada mais será Os docentes orientam, academicamente,
feito; queremos, por outro lado, que as pessoas graduandos dos cursos de Engenharia Am-
e as comunidades beneficiadas possam susten- biental, Civil, Elétrica, Eletrônica e de Produ-
tar-se com o que geramos para melhorar suas ção, assim como os de Geografia, Sociologia,
vidas”, afirma Júlia Castro, aluna de Engenharia Psicologia e Medicina. Todos são inscritos na
de Produção, e também membro do núcleo. disciplina GPS e bolsistas do Programa Insti-
Heloísa Borges, professora, pesquisadora e tucional de Bolsas de Extensão (Pibex). Além
orientadora acadêmico-pedagógica do Soltec, disso, os docentes co-orientam mestrandos
chama a atenção para a importância do trabalho A ação do núcleo permite a interação do locais que foram levantados os problemas da de Engenharia de Produção, e se incluem nas
desenvolvido através dos projetos de Extensão e estudante com sua realidade, fazendo com que pesca na região e os caminhos para solucioná- atividades de pesquisa de campo, por meio de
da metodologia participativa. Segundo ela, um a parte da produção de conhecimento cientí- los. “Brincamos que fazemos reunião para tudo, metodologia participativa.
dos principais objetivos do Núcleo “é reforçar fico e técnico da universidade seja posta em até para decidir quando vai ser a reunião. Mas As bases do trabalho dos docentes e pes-
a responsabilidade da universidade pública e prática em favor da sociedade e da formação essa é a única maneira de deixar todos satisfei- quisadores do Soltec são a solidariedade, a
gratuita para com segmentos da sociedade civil do próprio estudante. Heloísa Borges acres- tos”, afirma Bernardo Zurli, bolsista do Papesca partilha, a autonomia relacional, a co-res-
que, historicamente, foram incluídos na indi- centa que adotam “os princípios do método de e estudante de Engenharia Ambiental. Felipe ponsabilidade, a voz ativa e a técnica. Graças
gência pelos modelos econômicos e políticos abordagem de pesquisa do saudoso engenheiro Addor, pesquisador do Soltec, acrescenta que ao reconhecimento da qualidade do trabalho
instaurados há longa data no Brasil”. de produção e professor do Instituto Alberto o núcleo “é a concretização de um sonho, no realizado, surgiram alianças que permitiram
Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de qual a universidade brasileira, especificamente a formação de uma rede acadêmica e não
Colocando a “mão na massa” Engenharia (Coppe), Miguel de Simoni, o qual na área técnica, seja construída em diálogo com acadêmica que, para Heloísa Borges, “além
A experiência que o Soltec acumulou ao enfatizava que, para pesquisar bem, tem que ir a sociedade”. Diálogo esse em que, para Heloísa da técnica, está enraizada na alteridade e no
articular a Engenharia e responsabilidade social lá para ver, tem que ir lá para viver e tentar ver Borges, “o mais importante é não estabelecer relacionamento ‘eu’ e ‘tu’, sustentado pela afe-
ultrapassa as barreiras da UFRJ, chamando com os olhos do outro”. uma linha limítrofe entre o saber formal da tividade e pela alegria que nos é peculiar. Por
a atenção, inclusive, dos docentes de outras universidade e o saber do homem comum”. isso é um trabalho com qualidade política e
universidades públicas, que demonstram in- Diálogo com a sociedade solidariedade técnica”.
teresse pelo núcleo. Graças à relevância dos Os “soltecos” gostam do trabalho que reali- Pessoas que fa-
trabalhos realizados, o Soltec é convidado para zam e estão conscientes de seu poder transfor- zem acontecer
participar de diversos eventos acadêmicos, o mador. Além do Apac, o núcleo possui outros Quando os
que permite uma troca de experiência com projetos, como o Cooparj (Cooperativa de estudantes co-
outros estudantes e professores de graduação Parafusos do Rio de Janeiro), o Papesca (Pro- meçam a se en-
em Engenharia. jeto de Pesquisa Ação na Cadeia Produtiva da gajar nos projetos
Um dos projetos realizados pelo Soltec é uma Pesca) e Prucore (Projeto Uso Consciente de sociais, o impac-
colaboração com a Associação de Produtores Resíduos da UFRJ). Todos constroem pontes to se estende às
Autônomos da Cidade e do Campo (Apac), em entre o conhecimento técnico – que muitas suas famílias. Os
São João de Meriti (RJ). Nesse projeto, estudantes vezes parece cinzento e insosso – e a apli- próprios pais de
bolsistas e voluntários trabalham na criação de cação prática – que vai além do que se pode alunos acabam
uma horta comunitária no município, próxima aprender na escola. “Nós não apenas ensina- se integrando, de
à associação. O Soltec uniu-se à comunidade mos o que adquirimos nas salas de aula, mas forma voluntá-
local para “colocar a mão na massa”, e dar início à também aprendemos a aprender, a admirar ria, aos Projetos
criação da horta. “Foi gratificante ver tudo o que a subjetividade de cada um”, analisa Augusto de Extensão, de
antes estava no papel, realmente acontecendo”, César, estudante de Engenharia de Produção tanto ouvirem os
relata Diogo Prado, estudante de Engenharia de e bolsista do Soltec. comentários en-
Produção. “Melhor ainda foi ver a comunidade Uma das ações mais importantes do Núcleo tusiasmados dos
local participando, ajudando no preparo do é o diálogo com e na sociedade. No Papesca, filhos.
terreno e dando material para a compostagem”, em Macaé, por exemplo, foi nas conversas entre Para os do-
comemora o futuro engenheiro. os membros do Soltec, os pescadores e os atores centes, as mudan-
16 Jornal da
UFRJ Março•2007

Universidade

Entre a ciência e a
Joana Jahara
ilustração Patrícia Perez
religião
Ao desenvolver um projeto de pesquisa que Diminuição de crenças religiosas A pesquisadora sublinha que “vivemos em Esforço de compatibilização
comparava as culturas acadêmicas produzidas A professora informa que algumas pesqui- um momento no mundo em que as religiões Um outro grupo que o LEC investigou foi
em duas instituições de Ensino Superior, uma sas revelam que há sensível diminuição das estão buscando mais espaço público. São o de estudantes do Ensino Médio, objetivando
brasileira e outra britânica, Eliane Brígida crenças religiosas ao longo da trajetória aca- muitas questões envolvidas que necessitam identificar tanto a presença de crenças reli-
Falcão, professora, pesquisadora e coordena- dêmica. Por exemplo, estudantes em Iniciação de melhor compreensão e, portanto, de mais giosas como compreender como explicações
dora do Laboratório de Estudos da Ciência Científica, mestrandos e doutorandos mos- pesquisas”. científicas estavam sendo recebidas por aque-
do Núcleo de Tecnologia Educacional para tram-se mais religiosos do que os cientistas Nessa linha, o laboratório que coordena les que a professavam. “Considerando que há
a Saúde (Nutes) da UFRJ, identificou sinais já profissionalmente definidos: “em um certo tem buscado estudar grupos específicos, como temas científicos que também são objetos de
da presença de crenças religiosas entre os grupo, 80 a 90% de estudantes de Iniciação o de alunos de graduação do curso de Biologia. explicações religiosas, por exemplo, a origem
cientistas por ela estudados. “É mesmo muito Científica, afirmavam ter crenças religiosas. “Os resultados mostraram que cerca de 70% e evolução do universo e da vida, buscamos
intrigante esse resultado, porque, em alguns Entre os professores pesquisadores esse núme- dos estudantes que começavam e terminavam investigar como interagiam ambas as explica-
setores, se esperava, com o avanço da Ciên- ro caiu para 60%. Mesmo com essa redução, o curso de Biologia aderiam a alguma crença ções junto à estudantes muito jovens”, conta
cia, especialmente na vida acadêmica, que fiquei surpresa com os altos índices”. religiosa. Durante sua trajetória acadêmica, a pesquisadora que analisa o resultado: “foi
as crenças religiosas se não extintas, fossem, Comparando os dois grupos pesquisados, passavam por um período de dúvidas; no constatado uma forte presença de crenças re-
pelo menos, bastante diminuídas. Seja aqui o brasileiro e o britânico, Eliane Falcão afirma meio do curso, evidenciava-se uma queda na ligiosas entre os estudantes investigados. Entre
na UFRJ ou em Cambrigde (Inglaterra), o que que no caso nacional a crença religiosa foi proporção de crentes que, a partir daí, mo- alguns alunos, prevaleceu a ótica religiosa com
me chamou a atenção foi observar a presença mais importante. “Essa afirmação está cir- dificavam seu perfil religioso no sentido de rejeição das explicações científicas; entre ou-
dessas crenças em um ambiente cientifica- cunscrita a dois grupos de uma mesma área do acreditar num Deus distinto daquele pregado tros, a ênfase recaiu sobre a perspectiva cien-
mente avançado, de cientistas em atividades conhecimento das Ciências Naturais. E cada pelas religiões adotadas inicialmente pelos tífica, ocorrendo também sinais de dúvidas e
que estão publicando seus estudos em revistas grupo com cerca de 35 a 40 pesquisadores. Na estudantes, ou seja, seu Deus ficava mais im- conflitos entre uma e outra visão, assim como
internacionais”, constata a pesquisadora. Inglaterra, cerca de 25% afirmaram ter uma pessoal e se tornava menos definido ao final esforços de compatibilização entre elas”.
Eliane Falcão afirma que isso não quer crença religiosa forte. Outros 20% afirmaram do curso”, destaca a professora. De acordo com a professora, as pesquisas
dizer que os cientistas, de um modo geral, ter dúvidas, enquanto que cerca de 50% decla- Essas pesquisas têm sido apresentadas também revelaram que as imprecisões e dis-
possuam crenças religiosas, até por que, “mui- raram-se ateus. No Brasil, do grupo par, cerca e discutidas em seminários e congressos torções encontradas entre os estudantes nos
tos, ou mesmo grande parte deles, são ateus”. de 60% afirmaram possuir crenças religiosas, acadêmicos. “Embora a grande maioria dos conteúdos da Ciência ensinados não se de-
A produção científica como componente da cerca de 30% apresentaram dúvidas e cerca de professores-pesquisadores aceite os resultados viam especialmente às convicções religiosas. O
modernidade colaborou decisivamente para 10% são ateus”, constata a professora. obtidos, ainda que declaradamente surpre- tempo destinado ao ensino desses conteúdos
que a religião perdesse força como influência sos com a extensão da presença das crenças foi considerado inadequado, tendo em vista a
na vida social. “Sem dúvida, ao longo do tem- Deus impessoal religiosas em seu meio, alguns manifestaram complexidade dos conceitos abordados. “Tam-
po, a religião perdeu sua precedência frente a Pelo fato de estudar a cultura científica e entendimento de ser a Ciência incompatível bém não se podia assegurar que professores
outras instituições sociais, mas não significou os contextos em que ela é produzida, Eliane com essas crenças, considerando-as preocu- estivessem adequadamente preparados para
o seu fim”, destaca a pesquisadora. Falcão passou a se interessar pela presença das pante para os seus rumos ou da formação discutir com seus alunos posições e distinções
crenças religiosas no mundo científico. científica”, afirma Eliane. entre os campos da Ciência e da religião. É até
possível dizer que tais assuntos eram evitados
em sala de aula, conforme outra pesquisa re-
alizada mostrou. Não é demais lembrar que o
tópico ‘origem da vida’ não é apresentado de
forma sistemática e regular no currículo de
graduação em Biologia como, por exemplo,
da UFRJ, mas é exigido na grade curricular do
Ensino Médio”, aponta a pesquisadora.
17
Jornal da
Março•2007 UFRJ
Saúde

A Saúde está doente?


Passados quatro anos do primeiro governo petista, a política de Saúde elaborada em Brasília
mantém continuidade com modelo legado pelo governo anterior. Para o bem e para o mal.

Bruno Franco

De acordo com Almir Fraga Valladares, Saúde da Família (PSF) com o qual, o país que representam uma boa política de saúde, quem o governo, nessa área, tem programas
professor do Departamento de Clínica Médica passou a ter 23 mil novos agentes comuni- pois propõem atendimentos integrados de muito interessantes – que podem ser mais
da Faculdade de Medicina (FM/UFRJ) e de- tários de saúde. Outras novidades foram o rotina e de urgência. A idéia é boa, ainda bem implementados em algumas regiões do
cano do Centro de Ciências da Saúde (CCS), Programa de Saúde Bucal, intitulado Brasil que não funcione, infelizmente, em alguns que em outras – mas que não são populistas.
as estratégias de saúde não devem ser apenas Sorridente; o investimento de 75% a mais municípios. “Não são que nem os medicamentos a R$ 1 da
políticas de governo, mas de Estado. Portanto, em compra de medicamentos para o SUS; Segundo ele, o sistema de saúde está doen- Rosinha Matheus, ex-governadora do Rio de
“deveríamos avaliar o governo pelo cumpri- a implantação das farmácias populares e a te. Essa é uma doença complexa, causada prin- Janeiro”, opina Cardoso.
mento da lei que estabelece uma política de criação do Serviço de Atendimento Móvel cipalmente por uma destinação inadequada de Para ele, uma questão-chave é ainda a ca-
Estado para essa área. Isso é conseqüente à de Urgência (Samu). Além disso, a venda recursos. Como exemplo, destaca o caso da pilaridade do sistema: “tendo capilaridade e
Constituição”, explica Valladares. de remédios fracionáveis, que combateu o Contribuição Provisória sobre Movimentação centros de saúde que funcionem, a população
Assim sendo, a política para o setor deve desperdício, o credenciamento de mais de Financeira (CPMF), cuja arrecadação deveria será mais prontamente atendida. O paciente
atender ao que estipula o Sistema Único de 2.700 novos leitos de Unidade de Tratamento ser destinada à Saúde e à Seguridade Social. tem de ter respaldo e ter certeza de que, caso
Saúde (SUS). “Em relação a esses últimos Intensivo (UTI) e o crescimento do núme- “Mas é desviada para diversas outras coisas, seu quadro piore, terá para onde ir”. O im-
quatro anos, a lei não ro de transplantes foram inclusive para sustentar o superávit primário, portante – destaca – nos programas federais
foi obedecida como bandeiras do governo no que o governo apregoa como conquista da área de saúde é a continuidade dos mesmos, que
deveria, não havendo a
universalização, nem a “O governo Lula quadriênio de Lula na Pre-
sidência. O Samu realiza
econômica, mas não é, efetivamente, emprega-
da (a CPMF) na área social. A complexidade
devem ser perenizados como ações definitivas
assistenciais.
hierarquização de ser-
viços de forma a aten- tem propiciado atendimento de urgência,
mediante uma ligação gra-
do sistema não serve como desculpa para a
inação. A CPMF teve intenção de ser o oxi- Intervenção federal no RJ
der as demandas da
população. Não é uma que se avance tuita para o número 192. A
rede implantada já benefi-
gênio necessário para suster o SUS, mas esse
dinheiro não é executado”, critica Valladares.
O Rio de Janeiro viveu um momento
crucial nas ações do Ministério da Saúde no
responsabilidade ex-
clusiva desse governo, no sentido cia 905 municípios.
Em relação ao PSF,
Há também a má gestão dos aportes que
chegam à ponta do sistema, acredita o decano.
governo Lula com a intervenção nos hospitais
da rede pública. Na opinião de Pinto Cardoso,
tampouco o é somente
da esfera federal. Ela é, desejado pela Almir Fraga Valladares,
explica que é responsabi-
“Aí já não é uma questão de governo, as defi-
ciências de gestão atingem mesmo às próprias
houve problemas de gestão, de natureza polí-
tica, causados pela dificuldade de articulação
também, atribuição de
estados e municípios”, sociedade, isso lidade municipal instituir
as unidades e equipes, que
unidades. Além disso, existe a má alocação de
recursos humanos. Faltam profissionais em
da ex-governadora Rosinha Matheus com o
governo federal e com o prefeito César Maia.
afirma o decano.
Opinião diversa dito em linhas farão o cuidado básico em
suas comunidades. “Al-
todos os níveis, tanto da área de saúde como
na de profissionais de apoio”, analisa Fraga
Segundo o diretor, o avanço teórico de
transferir para o município um contingente
manifesta Alexandre
Pinto Cardoso, tam- gerais e não gumas cidades procuram
usar bem os recursos fede-
Valladares, sustentando que o governo fede-
ral deve priorizar investimentos em Atenção
maior de hospitais e o repasse de recursos não
seguiu um mesmo ritmo. “Além disso, os atores
bém professor da FM/
UFRJ e diretor do Hos- em programas rais, porém outras o fazem
demagogicamente. Assim,
Básica, que são menos onerosos que aqueles
realizados em níveis mais complexos: “com
políticos envolvidos não trataram a saúde como
coisa mais importante e quiseram capitalizar
pital Universitário Cle-
mentino Fraga Filho específicos.” o sistema não atende como
deveria, e se não funciona
anos, até décadas de investimentos em nível
básico, a atenção mais complexa exigirá menos
politicamente. Houve o espetáculo pirotécnico
dos hospitais de campanha. A situação não era
(HUCFF), para quem o começa a sobrecarregar o recursos, pois, com isso, se promoveu uma catastrófica a esse ponto”, critica o professor.
governo teve o grande que vem adiante”, enfatiza saúde mais estável”. No âmbito do atendimento hospitalar, Pin-
mérito de integrar ao o professor. Alexandre Pinto Cardoso destaca como to Cardoso sugere a criação de um colegiado
seu projeto para a saúde as conferências nacio- A inspiração do governo nos debates ponto positivo do primeiro mandato de Lula que integre todos os hospitais e que realize
nais de Saúde (as CNS). Em seu entendimento, promovidos pela sociedade civil é assumida da Silva, a política de atenção diferenciada aos um planejamento adequado para a região
Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva pelo próprio Ministério da Saúde. Em sua afro-descendentes. “É importante porque há metropolitana do Rio de Janeiro, “mas sem
adotaram visões parecidas, com a diferença página na Internet, o Ministério explica que incidência maior de certas patologias nesse fugir às características dos mesmos”. O desafio
de que os “tucanos” não incorporaram às po- na elaboração do programa Brasil Sorridente, grupo étnico, como anemia falciforme e hiper- principal, segundo ele, é a gerência, de forma
líticas de saúde, as CNS, ainda que as tenham lançado em 2004, se pautou nas demandas tensão arterial. Diminuindo os riscos, melho- a aplicar melhor os recursos que não são tão
levado em conta. “A gestão de José Serra foi da 8a Conferência Nacional de Saúde e da 1a ra-se o atendimento”, destaca o professor, para escassos quanto apregoa o senso comum.
proveitosa também. Mas os avanços foram Conferência Nacional de Saúde Bucal.
paulatinos ou step by step. O grande passo O Brasil Sorridente, com o intuito de
foi incorporar as conferências de saúde. Em expandir o cuidado odontológico de forma
ambos, entretanto, houve problemas: sangues- mais universal e em níveis mais complexos,
sugas aqui e acolá. O desenvolvimento do SUS aumentou em mais de 60% o valor dos incen-
é, porém, um trabalho de muitos anos. Tem 15 tivos concedidos às equipes de Saúde Bucal.
anos de vida e sofre muitas adjetivações, mas Cada equipe de modalidade I, composta por
está em progresso”, afirma o professor. um cirurgião-dentista e por um auxiliar de
Segundo Pinto Cardoso, a sociedade civil consultório dentário, recebe por ano R$ 20,4
deseja uma política de Estado para a saúde, na mil para custeio e R$ 6 mil para aquisição de
qual a coletividade paute o governo e esse faça um consultório completo. Já as equipes de
avançar os projetos propostos. “Os ministros modalidade II, que também contam com um
de Lula e FHC respeitaram esse anseio e não técnico em higiene dental, percebem R$ 26 mil
interferiram muito no cotidiano das atividades para custeio, acrescidos de dois consultórios
do Ministério da Saúde. Os técnicos tiveram odontológicos, para que cirurgiões e técnicos
tranqüilidade para trabalhar”. Para o diretor possam realizar atendimentos simultanea-
do HUCFF, essa é a grande questão do regime mente.
democrático: a sociedade pode influir nas Até o lançamento do Brasil Sorridente, me-
decisões de governo em suas diversas esferas nos de 3% dos procedimentos odontológicos
e competências: “o governo Lula tem propi- realizados no SUS eram de tratamento espe-
ciado que se avance no sentido desejado pela cializado. A quase totalidade implicava apenas
sociedade, isso dito em linhas gerais e não em intervenções simples, como extração dentária,
programas específicos”. restauração, aplicação de flúor e resina.
Para Fraga Valladares, entretanto, tal como
Atenção básica e odontologia estruturados, os programas Brasil Sorridente
Dentre as conquistas propaladas pelo e Farmácia Popular padecem de um viés as- Almir Valladares: “deveríamos avaliar o governo pelo cumprimento da lei que estabelece uma política de
governo federal estão a criação do Programa sistencialista, ao contrário do Samu e do PSF, Estado para essa área. Isso é conseqüente à Constituição.”
18 Jornal da
UFRJ Março•2007

Saúde

Tuberculose

Uma doença que


atravessa os séculos
Pele alva, tosse, boemia, poesia e juventude compunham o imaginário de uma época em que
se estava condenado a morrer cedo. E a tuberculose – também conhecida como Peste Branca
– em muito reforçou esse arquétipo romântico. Até hoje, não existe consenso a respeito de como
a doença passou a representar uma ameaça. Apesar dos esforços, ela ainda vitima milhares de
pessoas em todo o mundo.
Rafaela Pereira
fotos Marco Fernandes

Doença bastante an- devido ao fato de não


tiga, são encontrados haver mais fronteiras.
índicos da tuberculose Na África, por exemplo,
óssea em múmias egíp- com populações que
cias, datadas de 3.700 vão para a Etiópia ou
a 1.000 a.C. Contudo, Uganda, e que vivem
segundo Leila Fonseca, em campos de concen-
pesquisadora do Insti- tração, um portador da
tuto de Microbiologia doença pode contami-
Professor Paulo de Góes nar de 15 a 20 pessoas
(IMPPG/UFRJ), apesar por ano. Dessas, 10%
de conhecida há muito podem adoecer no de-
tempo, ela ganhou relevo correr da vida. Com a
ao longo da Revolução baixa da imunidade,
Industrial, com a aflu- ela se espalha como um
ência de enormes con- rastilho de pólvora”,
tingentes populacionais analisa Gilvan Renato
empobrecidos, oriundos Muzzi de Souza, pro-
do campo, que deman- fessor do Departamento
davam as cidades, in- de Clínica Médica da
chando-as, e passando a Faculdade de Medicina
viver nelas em condições (FM/UFRJ) e diretor do
sanitárias e alimentares Instituto de Doenças do
precárias. “A aglomera- Tórax (IDT/UFRJ).
ção em ambientes fecha- Diante desta nova
dos propiciou infecção realidade, desde 1993
maior. Antes, as pessoas a OMS declarou a tu-
trabalhavam no campo, berculose como prio-
ao ar livre. Cerca de 1/4 ridade mundial e os 22
das mortes na Europa, países que detêm 80%
nessa época, são atribuí- dos casos estimados no
das à tuberculose”, expli- mundo, entre eles o Bra-
ca a pesquisadora. sil, comprometeram-se,
Sem muito conhe- em 2000, a promove-
cimento sobre ela, até rem ações firmes para
o final do século XIX seu controle. No estado
atribuía-se à tuberculose do Rio de Janeiro, por
uma suposta origem he- exemplo, o combate a
reditária, o que ajudou a doença foi declarado
construir uma atmosfera prioritário desde 1999
romântica ao seu redor. e o Programa Nacional
Já a descoberta, por Ro- de Controle da Tuber-
bert Koch, em 1882, do culose (PNCT), do Mi-
bacilo – de Koch – res- nistério da Saúde (MS)
ponsável pela doença, vem trabalhando para
propiciou um grande reverter o quadro.
avanço no seu conheci-
mento, passando ela, gradativamente, a ser Entretanto, se observa nas últimas déca- epidemia da Aids. Como conseqüência, a Números
identificada como moléstia transmissível. das um novo boom da doença associado às tuberculose foi responsável, na década de De acordo com dados da Agência Nacio-
Na década de 1960 acreditava-se que, com profundas transformações provocadas pelo 1990, por aproximadamente 30 milhões de nal de Vigilância Sanitária (Anvisa), ligada
as descobertas de alguns antimicrobianos que vem sendo chamado de globalização, mortes, segundo a Organização Mundial da ao Ministério da Saúde, a incidência de
e com os avanços no tratamento, estaria, aos graves problemas estruturais das redes Saúde (OMS). “O mundo tinha esquecido tuberculose cresceu 20% na última década.
no fim do século passado, senão erradica- públicas de saúde, potencializados pelo dela. Em alguns países, há muito tempo Embora atinja principalmente países pobres,
da, pelo menos confinada aos países mais desmonte do Estado de Bem-estar Social não se usava a droga para seu tratamento. ela aumentou também no Leste Europeu e
pobres. e, principalmente, devido a emergência da Atualmente é difícil pensar em controle, nas ex-repúblicas soviéticas, onde os sistemas
19
Jornal da
Março•2007 UFRJ
Saúde

ça sob controle. até a casa do paciente para verificar se foi deter a multiplicação do bacilo; porém,
Na Holanda, por ingerido. Esses procedimentos evitam que quando a pessoa está infectada pelo vírus
exemplo, nem muitos pacientes, após algumas semanas de do HIV ela é destruída”, analisa Leila.
vacinar é mais tratamento, se sentindo melhor, parem por
pre cis o. Já os conta própria a medicação. Stop tuberculose
EUA registra- Leila Fonseca sublinha que a violência Esse é um movimento global, conduzido
ram, na década nas comunidades do Rio de Janeiro prejudi- pela OMS junto com diversos organismos
de 1980, o mes- ca bastante o acompanhamento domiciliar. internacionais para acelerar, social e politica-
mo número de “A estratégia DOTS é adotada em várias mente, as ações de controle da tuberculose no
casos que existe comunidades carentes. mundo. A principal medida
hoje no Estado Porém, com a violência preconizada é a adoção da
do Rio de Janei- há dias que o acesso ao estratégia do Tratamento
ro, em torno de paciente está vedado Supervisionado (DOTS),
20 mil pacien-
tes por ano. O
e muitos doentes são
impedidos de sair de
“Em países única estratégia compro-
vadamente eficaz para o
que aconteceu
lá? Migrações
suas casas ou o agente
não pode entrar na co-
subdesenvolvidos, controle da doença, que
após 10 anos da declaração,
importantes e
principalmen-
munidade para fazer o
seu trabalho”, explica a
a tuberculose pela OMS, da tuberculose
em “estado de emergência
te Aids”, analisa
Muzzi.
pesquisadora.
Quanto ao diagnós- chega a matar mundial” já tratou e curou
mais de 10 milhões de pa-
tico, a técnica continua cientes.
Tratamento e a mesma: o exame de cerca de 40 O objetivo dessas ações
diagnóstico escarro que é baseado é atingir a meta de detec-
Durante cer-
ca de seis meses
na indução da expec- mil pessoas ção de 70% e cura de 85%
toração através de ne- dos casos de tuberculose.
é preciso tomar
uma série de
bulização com solução
salina. “Quando o pa-
anualmente.” Em 2010 deseja-se reduzir
pela metade as taxas de
medicamen- ciente tosse, ficam no morbidade e mortalidade,
tos, ininterrup- ambiente partículas tomando por base o ano de
tamente. Com que podem contaminar outras pessoas. Por 2000. Em 2020, evitar 25 milhões de mortes
100% de cura, o isso é que o ambiente deve ser bem arejado. de tuberculose e prevenir 50 milhões de
tratamento pre- É possível que a pessoa fique apenas infecta- casos. E em 2050 diminuir a incidência para
cisa ser rápido, do. Porém, se depois sua imunidade baixar um caso por cada 1.000.000 de habitantes,
de saúde pública se deterioraram após o qualificado e a medicação ser corretamente devido ao estresse, excesso de trabalho ou eliminando a doença como problema de
colapso dos mesmos. adotada. Foi pensando nisso que, na déca- por doenças associadas, o bacilo começa a saúde pública.
Nos países desenvolvidos, a doença chega da de 1990, a OMS passou a recomendar a se multiplicar”, explica Gilvan Muzzi. Anualmente o movimento StopTB cria o
a matar cerca de 40 mil pessoas anualmente estratégia DOTS (Tratamento Diretamente tema da campanha do Dia Mundial de Con-
e mais de 400 mil novos casos são relatados Observado de Curta Duração), tornando-se Tuberculose e a Aids trole da Tuberculose – 24 de março. Assim, é
a cada ano. Nesses países, a tuberculose é o principal instrumento disponível para o Segundo a OMS, foram registrados mais preciso transformar essas iniciativas em um
mais freqüente entre as pessoas idosas, em controle da tuberculose. Em todos os países de 30 milhões de indivíduos HIV positivos brado universal contra a doença e contra as
minorias étnicas e em imigrantes. em que a estratégia foi adotada, os resul- desde os primeiros relatos. Desses, cerca condições que propiciam sua manutenção e
No Brasil a situação continua grave com tados foram bastante positivos. Na China, de 10,8 milhões apresentavam co-infecção seu desenvolvimento.
50 milhões de infectados, uma média anual por exemplo, foram evitadas cerca de 30 mil pelo Mycobacterium tuberculosis, o bacilo
de aproximadamente 100 mil casos novos mortes anuais e no Peru houve queda de 6% da tuberculose, sendo a maioria (68%)
e retratados e 6 mil óbitos decorrentes da ao ano na incidência. na região subsaariana da África e 22% no Rede TB
enfermidade. O que significa 1 milhão de Com esse tratamento diretamente su- Sudeste Asiático. “Com o aparecimento da Existem grupos desenvolvendo
casos em uma década. Vale registrar que pervisionado, o paciente tem que ir ao Aids a infecção por tuberculose aumentou formas de melhorar o diagnóstico
o Brasil é o país com a maior quantidade posto de saúde para tomar o remédio na consideravelmente e como não estávamos da doença, bem como pesquisando
de notificações nas Américas e a OMS, em frente do profissional ou o agente se desloca preparados, começaram a ocorrer micro uma vacina contra ela. “No Brasil
seu relatório anual de 2004, o coloca na 15ª epidemias. In- conseguimos estabelecer a Rede
posição no ranking dos 22 países com mais ternava-se um TB, com pesquisadores de todo o
casos. indivíduo com país. Foi um avanço muito grande
De acordo com dados da Secretaria de Aids e com e uma iniciativa que partiu aqui da
Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ), tuberculose UFRJ e da Fiocruz”, explica Leila
o estado se destaca no quadro nacional por (como doença Fonseca.
apresentar a maior incidência de tubercu- oportunista) e
lose do país. A cada ano são notificados em no final con- O grupo tem cerca de 300 par-
média 16 mil casos. Os 32 municípios prio- taminavam-se ticipantes em 60 instituições de
ritários concentram 95% das notificações e a todos. Pacien- diferentes regiões e conta com o
região metropolitana é responsável por 86% tes com Aids apoio do Ministério da Ciência e
delas. “No momento estão matriculados no são muito mais Tecnologia, através do Programa
Programa de Controle da Tuberculose Hos- sensíveis a in- Institutos do Milênio. A Rede TB
pitalar do Hospital Universitário Clementi- fe c ç ã o e d e - atua como um fórum permanente
no Fraga Filho (HUCFF), 120 pacientes com senvolvimento na identificação de problemas e
tuberculose pulmonar e extrapulmonar. A da doença”, ex- oportunidades, antecipando ten-
tuberculose é muito prevalente no nosso plica o diretor dências, mapeando competências
estado”, explica Gilvan Muzzi. do Instituto e construindo coletivamente ações
Segundo dados do Centro de Vigilância de Doenças do e estratégias em Ciência, Tecno-
Epidemiológica (CVE) da SES/RJ, quase Tórax da UFRJ. logia e Inovação e mobilização
cinco pessoas morrem todos os dias por Quem faz coro social.
conta da doença e, por ano, o número chega com ele é a
a 1.600 vítimas. As principais causas das pesquisadora Na UFRJ, a novidade foi a cria-
mortes são o diagnóstico tardio e o aban- Leila Fonseca. ção do Programa Acadêmico de TB,
dono do tratamento. “A epidemia de em 2002, que engloba atividades
Assim, a tuberculose bate às portas do sé- Aids foi, sem assistenciais (PCTH - Programa de
culo XXI como um grave problema de saúde dúvida, o fator Controle de TB Hospitalar do HU-
pública. Estima-se que cerca de 1,7 bilhões principal para CFF), atividades de Pesquisa (Uni-
de indivíduos em todo o mundo estejam o boom da tu- dade de Pesquisa em TB/HUCFF)
infectados pela doença, correspondendo a berculose no e atividades de pós-graduação
30% da população mundial. De acordo com final do século (Setor de Ciências Pneumológicas
Gilvan Muzzi, os números são altos porque XX. Nós temos do Programa de Pós-graduação de
essa é uma doença cuja transmissão se dá uma certa imu- Clínica Médica da Faculdade de
pessoa-a-pessoa: quando o infectado fala, nidade natural Medicina da UFRJ).
tosse, espirra. “Alguns países têm a doen- e conseguimos
20 Jornal da
UFRJ Março•2007

Cultura

Turistas

“Existe um lugar onde turistas nunca devem ir”. Esse lugar é o Brasil. É com
esse slogan que o filme Turistas – Go Home chegou às salas de cinema de
todo o país, evidenciando a forma como somos vistos no exterior

Mônica Reis
ilustração Anna Carolina Bayer

Seis jovens norte-americanos desembarcam no Brasil e, em meio a praias paradisíacas e festas


exóticas, sofrem o golpe “Boa noite, Cinderela”. A partir daí, acabam as férias e começa o pesadelo:
os turistas são roubados e seqüestrados por um médico e seus comparsas – incluindo um índio e
um negro – dispostos a roubar seus órgãos e doá-los a um hospital carente. Tem início uma perse-
guição implacável, na qual os jovens se vêem obrigados a lutar pela vida e a enfrentar armadilhas
terríveis. Tudo isso em uma casa na selva, em pleno Rio de Janeiro. Esse é o enredo de Turistas
– Go Home (John Stockwell, 2006), produzido nos estúdios Fox Atomic – ramo da 20th Century
Fox voltado para o público adolescente – que vem causando polêmica.
Lançado em 16 de fevereiro nas salas de cinema de todo o país, o longa-metragem divide opi-
niões. Por um lado, é tratado como uma espécie de caricatura da violência no Rio de Janeiro,
por outro, desperta indignação com a imagem do Brasil que surge
na tela: uma terra sem lei, onde os habitantes, avessos a es-
trangeiros, moram em aldeias e festejam o tempo todo.
A revolta com Turistas deu início a uma campanha
de boicote ao filme pela Internet. No entanto, essa
mobilização não conta com apoio de órgãos
que tem interesse direto na repercussão do
longa, como a Empresa Brasileira de Turismo
(Embratur). De acordo com Jeanine Pires,
presidente da instituição, qualquer campanha
desse tipo seria contraproducente, pois pode
ser vista como uma forma de atrair ainda mais
publicidade gratuita para a produção: “como
uma nação democrática, respeitamos a liberda-
de de expressão. Não avalio que caiba qualquer
pedido de banimento ou apoio ao boicote, já que
isso geraria ainda mais polêmica.”
Polêmicas também são as estratégias de marke-
ting adotadas pela Fox Atomic para a divulgação
internacional de Turistas. Uma delas foi a criação
de um site de turismo fictício, chamado Paradise
Brazil, onde o internauta pode encontrar notícias
negativas sobre o país – temas como violência e
tráfico de órgãos, por exemplo, são centrais – e
fotos de supostos turistas perdidos pelo Brasil.
Além disso, há imagens, feitas hipoteticamente
em tempo real, de webcams colocadas nas
“praias desertas mais famosas do Brasil” em
que se vêem corpos abandonados, como se
fossem vítimas de assassinato. A ligação desse
site com Turistas é discreta, consistindo apenas
em anúncios da mesma companhia de ônibus
fictícia utilizada pelos personagens do filme.
Lançado nos Estados Unidos dia 1º de dezem-
bro, Turistas não teve boa recepção pela crítica. En-
quanto o New York Times classificou-o como “letalmente
retardado”, o Los Angeles Times defende que o filme é uma
“encarnação da paranóia xenófoba” norte-americana.
Os produtores tentam se defender. Em recente entre-
vista, o roteirista Michael Ross afirmou que o filme é
baseado em fatos que “poderiam ter acontecido” e que,
para melhorar a imagem do Brasil, seria necessário
mudar sua realidade. Ivana Bentes, professora do
Departamento de Fundamentos da Comunicação e
diretora da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ),
discorda. “Não se altera uma realidade para depois
modificar as imagens que a expressam e ajudam
a construí-la.
21
Jornal da
Março•2007 UFRJ
Cultura
Nacional

A relação do cinema com o mundo não é de Disney criam, em 1942, o personagem Zé


espelho, é construtiva”, afirma a especialista. Carioca. Em seu filme de estréia, Alô Amigos, Turismo e cinema
o papagaio guia Pato Donald em terras brasilei- A influência do cinema no turismo é Nesse sentido, com o objetivo
Clichês e estereótipos ras, onde, ao som da “Aquarela” e “Tico-tico no bastante evidente. Apesar do uso de cli- de incentivar a utilização das cida-
Uma das principais críticas a Turistas é o fato Fubá”, sambam juntos e bebem cachaça. Mas foi chês e de estereótipos, muitos roteiros des brasileiras como locação para
de mostrar o Brasil como um paraíso tropical em sua primeira história nos quadrinhos, “Zé turísticos ficaram ainda mais famosos produções cinematográficas, a Em-
selvagem e inóspito, através da profusão de cli- Carioca, Rei do Carnaval”, em 1950, que suas depois de projetados nas telas. Recen- bratur desenvolveu o Programa de
chês e estereótipos. Esses dois conceitos tendem características foram construídas: malandro, temente, no último Fórum Mundial do Benchmarking (processo contínuo
a ser confundidos. Enquanto o primeiro é uma caloteiro, especialista no “jeitinho brasileiro” e Turismo, realizado em Porto Alegre de comparação de produtos, de
expressão idiomática ou uma idéia que, de tão amante de praia, samba e futebol. (RS), a Film Comission da Nova Ze- serviços e de práticas empresarias)
repetida, se desgastou e passou a ser previsível, Há outros casos polêmicos. Em 2002, um lândia declarou que, apesar de o país para o Turismo, um projeto amplo
despertando uma reação negativa, o segundo episódio do desenho Os Simpsons mostrou o sempre ter apresentado vocação para que tem no cinema um de seus
consiste em uma imagem pré-concebida, for- Brasil como uma grande floresta. Nele, a sim- o turismo, nada se comparou ao fluxo principais focos. A idéia, na prática,
mada a partir de um senso-comum cultural. pática família de classe média norte-americana de visitantes após o sucesso da trilogia é apoiar a formação de comissões
Muitas vezes estão intimamente relacionados, visita o Rio de Janeiro, sendo roubada por de O Senhor dos Anéis. Em 1983, o país por todo o país para o fomento e a
uma vez que é comum certos estereótipos de macacos e seqüestrada. Na época, a Embratur recebia cerca de 500 mil turistas/ano, captação de produções estrangeiras
tão utilizados se tornarem clichês. protestou e ameaçou processar os produtores da enquanto atualmente esse número para locações nacionais. De acordo
O uso desse procedimento é recorrente na série, mas a atitude do governo brasileiro acabou passa de 2,5 milhões, com previsão de com Jeanine Pires, isso favorecerá
indústria cultural. A fim de atingir um público ironizada pela imprensa internacional. 3 milhões de visitantes em seis anos. a produção de filmes que venham a
cada vez maior e mais heterogêneo, o cinema e
O mesmo acontece na Inglaterra. mostrar a diversidade do patrimônio
a televisão procuram sintetizar significados em Clichês made in Brazil Segundo o Visit Britain, órgão de pro- cultural e o estilo de vida do brasi-
mensagens curtas e de fácil entendimento. No Não é somente na indústria norte-americana moção do turismo britânico, 40% dos leiro. “O cinema pode nos ajudar a
entanto, para Ivana Bentes, essa simplificação é o de cinema que os clichês e os estereótipos sobre turistas que visitam a Grã-Bretanha o tornar o Brasil conhecido lá fora,
ponto negativo da estereotipação. “O problema é o Brasil são produzidos. De acordo com Ivana fazem após assistir alguma produção colocando os roteiros turísticos na-
que se reduz a complexidade a um pensamento Bentes, essa produção também é encontrada na cinematográfica cuja locação se passa cionais nas telas do mundo”, avalia
dado e pronto. É claro que isso não surge do televisão e no cinema nacional. “Não precisa no país. a especialista.
nada, mas é o grau zero do pensamento”, explica ser estrangeiro para encontrar clichês, basta
a professora. Karina Kuschnir, professora do assistir alguns programas humorísticos de TV são romântica da pobreza, nos anos 1950, para aspectos podem ganhar maior dimensão do
Programa de Pós-graduação em Antropologia e peças publicitárias. O problema de Turistas uma demonização dos pobres. Nós mesmos que realmente têm”, afirma a presidente da
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais não é ser estrangeiro, mas sim cinematografi- produzimos e mudamos os clichês sociais”. Embratur.
(IFCS/UFRJ), concorda com Ivana. “Dificil- camente pobre e culturalmente redutor”, avalia Para ela, a diferença entre Cidade de Deus e Tu- Essa afirmação parece confirmada pelos
mente o estereótipo é um retrato da realidade. a professora. No entanto, para Karina Kusch- ristas não está na manipulação de estereótipos dados. Dos 96,1% dos verdadeiros turistas
Na maioria das vezes, reúne apenas simplifi- nir, o fato de ser retratado por estrangeiros e clichês, mas na qualidade da produção. “Ci- norte-americanos que vieram ao país preten-
cações, a partir de personagens ou situações deve ser levado em conta: “nada impede que dade de Deus é infinitamente mais interessante dem voltar e 84,2% tiveram suas expectativas
paradigmáticas”, explica a pesquisadora. um brasileiro produza clichês sobre si próprio, esteticamente. A questão é que falamos melhor superadas ou plenamente atingidas. No entan-
Os meios de comunicação não apenas criam mas uma produção escrita por estrangeiros da nossa cultura. E, às vezes, uma caricatura to, para Ivana Bentes, não é necessariamente
e utilizam clichês e estereótipos, mas também pode reforçar o problema, sem dúvida.” pode ser sofisticada, como no humor, por o filme que pode afetar o turismo. “Ele é mais
se encarregam de sua difusão. De acordo com Algumas produções do cinema brasileiro exemplo.”, afirma a pesquisadora. influenciado pelas notícias diárias em jornais.
Ivana Bentes, os filmes de ação e suspense, também foram criticadas pela imagem do A reiteração de clichês acaba produzindo um
como Turistas, são os principais vetores dessa país veiculada no exterior. Dentre elas, Cidade Turismo imaginário que vai sendo reforçado, e a ficção,
circulação global de clichês. “A forma como de Deus (2002), de Fernando Meirelles, foi Mas em que medida os clichês e os estereó- mesmo ruim, reforça o telejornal”, explica
alguns filmes retratam latino-americanos, rus- a que causou, recentemente, mais impacto. tipos presentes em Turistas podem prejudicar Bentes.
sos, orientais e africanos é um amontoado de Ao concorrer ao Oscar em 2003, divulgou a imagem do Brasil no exterior? Segundo Jea- Turistas também pode ser utilizado como
pré-conceitos raciais e culturais”, destaca. Para mundialmente uma história da violência na nine Pires, a imagem de um país não é afetada uma vantagem estratégica, de acordo com Jea-
Karina Kuschnir, há uma forma de se evitar comunidade carioca que dá nome ao filme. por conta de um único evento. “Acreditamos nine Pires. O seu lançamento pode abrir portas
uma divulgação cada vez maior desses valores De acordo com Ivana Bentes, Cidade de que o público tem discernimento suficiente para a imprensa internacional: “a estréia de
pré-concebidos: “quanto maior a diversidade de Deus demonstra que clichês não são imutáveis, para diferenciar a realidade da ficção e perce- Turistas é uma oportunidade de aproximação
meios de comunicação e de fontes de informa- uma vez que marcam a transição de um clichê ber que a única coisa real que Turistas mostra com a mídia norte-americana para abordar o
ção, menor a possibilidade de um estereótipo para outro: “o cinema brasileiro passou da vi- é a beleza natural do Brasil. Na tela, alguns Brasil real, suas belezas e sua cultura”.
tornar-se a forma única de representação”.

A indústria norte-americana de clichês


No caso do cinema, essa diversidade de
fontes esbarra no monopólio da indústria cine-
matográfica norte-americana. O grande alcance
das produções hollywoodianas faz com que os
clichês por elas produzidos sejam exportados,
estabelecendo certa supremacia da visão que
os americanos do Norte elaboram acerca dos
demais países. Um exemplo recente é o filme O
Albergue (Eli Roth, 2005), que conta a história
de um grupo de norte-americanos torturados
quando de férias na Eslováquia.
A semelhança entre a sinopse desse filme
com Turistas é mais que coincidência. De
acordo com Karina Kuschnir, do ponto de vista
antropológico “não é novidade que uma cultura
trate culturas diferentes da sua como exóticas,
sinônimo de atraso e inferioridade. O Brasil,
desde o início do cinema norte-americano,
aparece como um país latino qualquer, cuja
capital ora é Buenos Aires, ora é Caracas ou Rio
de Janeiro”, afirma a professora.
Esse retrato do Brasil, mencionado por Ka-
rina, remonta ao início dos anos de 1940, com
a estréia de Carmem Miranda em Hollywood,
no filme Uma noite no Rio (That Night in Rio/
Irving Cummings, 1941). A atriz ainda hoje é
conhecida mundialmente pelas personagens
latinas e sedutoras, associadas à tropicalidade.
Ainda nos anos 1940, a II Guerra Mundial
faz com que os Estados Unidos adotem o que
foi chamado de “política de boa vizinhança”
na América Latina. É que, nesse contexto, para
ganhar a simpatia dos brasileiros, os estúdios Karina Kuschnir: “não é novidade que uma cultura trate culturas diferentes da sua como exóticas, sinônimo de atraso e inferioridade.”
22 Jornal da
UFRJ Março•2007

Cultura
Poema de Parmênides

Um quebra-cabeça de
milênios
Rodrigo Ricardo “Pois bem, agora vou eu falar, e tu, presta atenção ouvindo a palavra
ilustração Anna Carolina Bayer
foto Juliano Pires acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar: uma,
para o que é e, como tal, não é para não ser”. Esses são apenas alguns
dos 160 versos do “Poema da Natureza” de Parmênides, composto no
final do século VI a.C. pelo sábio de Eléia.

to grego (1984)– que fez a con-


ferência de abertura do nosso
evento”, enfatiza Santoro,
também coordenador do
Laboratório Ousia de Es-
tudos em Filosofia Clássica,
que organizou, em colabo-
ração com o Programa de
Pós-graduação em Letras
Clássicas da Faculdade de
Letras (FL) da UFRJ, um sim-
pósio internacional em outubro
do ano passado, tendo como foco o
Poema de Parmênides.
Durante o evento, Santoro apresen-
tou a sua edição do texto grego, traduzida
para o português e comentada sem a pre-
tensão de ser uma edição crítica, no sentido
estrito da expressão, usada em Filologia e
Paleografia. “Resolvemos chamá-la de versão
beta. A versão alfa será publicada ainda em
2007 com o resultado das discussões desse
simpósio e ampliada com as contribuições
dos conferencistas. Fiz esse trabalho a partir
das edições críticas e da minha interpretação,
que segue a linha da chamada Escola de Lille
(França), dando mais valor ao que está nos
ainda no século V a.C, e vão manuscritos do que o que perpassa, no pre-
até Simplício, no século VI sente, nossas cabeças. Aponto as correções
d.C. “Depois disso, não nos possíveis e sugiro a minha compreensão, mas
chegou nenhuma outra senten- evito fazê-la. No caso das lacunas existentes
ça original e as que apareceram são no texto, mostro as interpretações possíveis
seguramente indiretas. O que o poema diz e até opto por uma, mas não oculto ao leitor
de verdade é impossível saber, trata-se de um que ela decorre de uma escolha”, informa o
paraíso perdido”, admite Fernando Santoro, professor.
professor do Programa de Pós-graduação em
Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Os caminhos
Sociais (IFCS) da UFRJ, lembrando que se A primeira publicação do poema é de
percebe, desde os manuscritos, “diversas ma- 1526, realizada sob os cuidados do editor
nipulações, correções, inversões, amputações, veneziano Aldo Manucio, no bojo da reava-
intervenções, bem ou mal fundamentadas liação da cultura greco-latina levada a cabo
O texto transitou da tradição de copistas, editores, tradutores precedentes, no Renascimento. Entretanto, uma edição
oral para a manuscrita e desta alguns de eméritos helenistas, que foram com maiores cuidados filológicos aparece em
chegou à forma impressa, sendo sendo exercidas, ao longo dos séculos, sobre 1573, empreendida pelo francês Henry Estien-
reconstituído ao longo dos séculos, o texto inicial, chegando às vezes a lhe tolher ne, que se estende até às obras dos primeiros
através dos fragmentos recolhidos qualquer sentido”. Apesar dos percalços, o tra- filósofos, porém sem importantes passagens
por cerca de 30 autores antigos em 40 balho de reunir as fontes existentes e compor como as de Simplício. No século do estabele-
obras diferentes. Um quebra-cabeça sujeito às um texto aceitável está longe de desanimar cimento crítico (o XIX) teve lugar, em 1831,
intempéries das diversas traduções e que ainda Paraíso perdido pesquisadores. a primeira reconstituição integral do texto
oferece lacunas importantes e peças que não O poema narra a viagem de um mortal Em alguns casos, somente um paleógrafo com o descobrimento de outros fragmentos
se encaixam adequadamente. Clássico, por iluminado ao Portal da Noite e do Dia, guar- tem permissão para manusear esses documen- autênticos, realizada pelo filósofo alemão S.
sua importância, ele inaugura a investigação dado por deuses, para aprender os caminhos tos que estão espalhados por diversas bibliote- Karsten, que fez a primeira reconstituição
ontológica (a questão do ser) na Filosofia que levam ao conhecimento. A obra não nos cas do mundo. “Quem teve mais acesso a eles dos 19 últimos fragmentos do poema, consi-
Ocidental e segue sendo um manancial de chegou na íntegra, mas foi sendo montada ou aos estudos paleográficos foi o professor derados autênticos até hoje e encontrados na
interpretações. através de citações que começam com Platão, Nestor Cordero – último editor crítico do tex- obra de Simplício. Esse trabalho foi o pontapé
23
Jornal da
Março•2007 UFRJ
Cultura
Para ler
para as edições de seu conterrâneo, o helenista Hermann Diels Em sua tradução, Santoro também opta por colocar letras Carnaval carioca: dos
(1897), autor de Fragmente der Vorsokratiker. A última edição, maiúsculas nas iniciais dos nomes dos deuses. Uma intervenção bastidores ao desfile
a de 1951, sob os cuidados do editor germânico Walter Kranz, considerada pelo próprio professor como anacrônica, já que a Maria Laura Viveiros
Cavalcanti
de Castro Ca
é considerada até hoje ortodoxa por todos os estudiosos e invenção apenas ganhará curso muitos séculos mais tarde com Editora UFRJ,
editores do poema. os gramáticos alexandrinos. 3º ed. revista e ampliada, 2006
“Essa versão estabelece que existem três vias para se chegar Outra novidade é que os chamados fragmentos duvido- 268 páginas
ao programa de conhecimento descrito por Parmênides. Mas a sos estão sendo estudados e editados pela primeira vez em Mal termina a exibição na passa-
edição crítica Les deux chemins de Parménide, de Nestor-Luis português, o que para Santoro “possibilita que se vislumbre rela da Marquês
Marqu de Sapucaí, carioca-
Cordero, observa que os manuscritos apresentam apenas dois o que há de trabalho crítico na coleta dos fragmentos desses mente apelidada de “Sambódromo”
“Samb
caminhos, que são o da verdade e o da opinião. Uma terceira primeiros filósofos. Que se pense o quanto há nisso da artifi- pela população
popula da cidade, apurados
os votos dos jurados e proclamada
via surge por conta de uma interpolação de Diels e Kranz que ciosa composição de um intricado quebra-cabeças literalmente a campe
campeã, começam os preparativos
acaba sugerindo que haveria um terceiro caminho, na verdade arqueológico; o quanto há de triagem e reconstrução, a partir para o desfile do ano seguinte, com
inexistente”, analisa Santoro. de vest
vestígios muitas vezes soterrados por a escolha de novos enredos a serem
levados à avenida. O carnaval, esse rito que (re)constrói
(re)constr parte impor-
camadas e camadas de textos e signi- tante da nossa identidade, não se circunscreve, assim, ao episódio da
O verbo eimir (ser) fica
cações, esparsos por uma coleção de festa momesca, mas instaura empreendimentos complexos, a partir
Nascido em Eléia – cidade da península itálica obras que abrangem séculos
s e séculos dos quais idéias alinhavadas no enredo vão sendo, gradualmente,
transfiguradas em samba-enredo, alegorias e fantasias das esco-
então colônia dos gregos – Parmênides inaugura a de tradi
tradição filosófica”. Diante disso, o las de samba. É desse ciclo carnavalesco anual que Maria Laura
investigação da relação entre “ser” e “pensar” na tra- pesquisador indaga: “afinal, não n são Viveiros de Castro Cavalcanti, do Programa se Pós-graduação
dição ocidental. Os conflitos interpretativos surgem justamente nas fendas e nos vvãos de em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
em larga medida do fato de o verbo grego eimi (ser) toda ru
ruína que começam a grassar os Sociais (IFCS) da UFRJ, nos oferece uma análise ao mesmo tempo
rigorosa e amorosa.
ter inúmeras variações sintáticas e semânticas, mais do musgos e as vegeta
vegetações que dão outra O livro, cuja origem é a tese de doutoramento defendida pela
que em qualquer outra língua ocidental. “Eimi é explo- vida aos antigos monumentos?” autora, junto ao Programa de Pós-graduação em Antropologia do
rado como cerne da existência, da presença das coisas e Museu Nacional (MN/UFRJ), discute esse amplo processo cultural
que mobiliza a cidade do Rio de Janeiro e que tece redes de relações,
ainda pelos seus aspectos locativo, indicativo e veritativo, Antipatia e rivalidades ora cooperativas, ora conflituosas, entre atores sociais diversos.
quando funciona para dizer que isso ou aquilo é verdadei- O poema nunca ficou oculto ao Ocidente, O carnavalesco, os compositores, os chefes de ala, os inúmeros
ro. No poema, ele aparece em pelo menos quatro modos sendo discutido desde sua elaboração;
elabora um texto de artistas incorporados ou produzidos pelo processo carnavalesco
transitam entre diferentes domínios culturais, e assumem o papel
distintos”, comenta Santoro, lembrando que eimi tem uma provocação filosófica que foi objeto de análise
an de sofistas, de mediadores sociais.
gama de significados que ultrapassa o alcance das traduções de Sócrates, de Aristóteles e de Platão entre outros. Nunca A análise, que tomou por base O G.R.E.S. Mocidade Indepen-
em línguas modernas. “A Ontologia grega, desenvolvida como esquecido ou abandonado, Parmênides também foi alvo de dente de Padre Miguel, no ano de 1992, revela ainda as dimensões
questionamento fundamental da realidade e sua relação com críticas e de interpretações que o consideram como o filósofo estéticas e expressivas que informam a linguagem plástica e visual
das fantasias e das alegorias e a linguagem rítmica e musical do
o pensamento e a linguagem, soube explorar essas riquezas do imobilismo (o ser nunca abandona o ser, deixando de ser ou samba-enredo. O “visual” e o “samba no pé” são compreendidos
significativas e realçá-las de modo extraordinário, sobretudo vindo a ser), iniciador da Lógica e da Metafísica, que despreza como pólos complementares do processo ritual festivo e da própria
em pensadores como Parmênides, Platão e Aristóteles”, afirma a diferença e o movimento. história dos desfiles na vida da cidade. Entre a festa e o espetáculo,
e agregando aspectos mercadológicos a dimensões fortemente co-
o pesquisador. “Essa antipatia tem origem em Nietzsche, com o seu opús- munitárias, o desfile das escolas de samba delineia um significativo
culo A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, de 1872. Essa pu- ritual urbano contemporâneo, revelador das tensões, interações e
Memorização blicação, que resulta de um curso, toma partido por Heráclito, conflitos.
A obra, que, ganha agora uma terceira edição, ampliada e
Apesar de ter sido discípulo de Xenófanes – crítico do invertendo a valoração platônica atribuída aos pré-socráticos. revista, se tornou uma das principais referências para os estudos
antropomorfismo dos deuses tal como surgem nas epopéias Porém, tanto Heráclito quanto Parmênides têm importância do tema. Uma relevante contribuição à Antropologia da nossa
homéricas – Parmênides vive imerso na tradição épica grega. para Platão. Há uma frase num dos seus diálogos – em que ele contemporaneidade.
É dessa tradição que extrairá a forma métrica do seu poema: narra a passagem do estrangeiro de Eléia (aluno de Parmêni- Gilberto Velho, do Museu Nacional, escreve a orelha, e a quarta-
capa é de Roberto DaMatta, da Pontifícia Universidade Católica do
o hexâmetro dactílico, elaborado para facilitar o desenvolvi- des), dizendo que é preciso ser como as crianças que querem Rio de Janeiro (PUC/RJ).
mento da transmissão oral. “Ele teria outras opções. Heráclito, os opostos ao mesmo tempo. O que acontece é que Platão cria
por exemplo, prefere uma estrutura mais oracular feita de uma hierarquização, privilegiando o mundo das idéias aos das
Corpo e subjetividade
sentenças. A poesia homérica,
rica, formalmen- apar
aparências, uma dualidade que já aparece em Parmênides como na Medicina: impasses e
te constituída de dactílicos,
licos, é, opini afirma Santoro, destacando que não parece
verdade e opinião”, paradoxos
ao mesmo tempo, a poesia adequado falar em rivalidade entre Her Heráclito e Parmênides, Liana Albernaz de Melo Bastos
de conhecimento, e o apesar do espírito
esp erístico (controverso) e as competições Editora UFRJ, 2006
212 páginas
ginas
instrumento sobrema- serem comuns entre os gregos: “não“n por acaso a Grécia é o
neira de aprendizagem ber
berço dos jogos olímpicos.
mpicos. Na leitura plat
platônica até parece A Medicina contemporânea, nea,
dos gregos. A sua métrica existir certa disputa, mas ao mesmo tempo menciona-se uma apesar da enorme sofisticação o
funciona como suporte unidade que é composta por contrcontrários. Essa oposição pode gicos, far-
dos recursos biotecnológicos,
mnemônico, ela é rítmica,
tmica, ser entendida como dos lados macêuticos e terapêuticos
uticos postos
ção”,
repetitiva, quase sem variação”, diferentes de uma mesma a sua disposição, o, vive evidente
explica Santoro, observando que realidade”. desconforto. Um mal-estar que,
difusamente, perpassa as queixas
os deuses começamam a ganhar fei- Afinal, como susten- dos pacientes quanto à crescente
menos da natureza:
ções de fenômenos ta Parmênides: “Con- desumanização o dos atendimen-
“na fala da opiniãoo dos mortais, vergente, porém, é tos de saúde e, de forma mais evidente, se traduz na baixa adesão
há a descriçãoo do universo e de para mim, de onde aos tratamentos preconizados e no intrigante crescimento das
uma cosmogonia em que as estrelas, começarei; pois lá terapias alternativas. Liana Albernaz de Melo Bastos, membro
da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e pro-
a lua e outros astros são citados. Parmênides está entre os mesmo chegarei de fessora de Psicologia Médica do Departamento de Psiquiatria e
primeiros filósofos, aos quais Aristóteles denominou físicos, volta outra vez.” Saúde Mental da Faculdade de Medicina (FM/UFRJ), enfrenta
por que tratavam da natureza, peri physeos”. esses impasses a partir da discussão das tensões entre a Medicina
como ciência e como arte; cujas raízes fincam-se no paradoxo
A deusa misteriosa entre a objetividade e universalidade do conhecimento que o
Muitos deuses são citados no poema. Mas no episódio do médico é chamado a dominar, e a subjetividade e singularidade
do encontro clínico.
Portal, quando da instauração do processo de conhecimento O modelo biomecânico da Medicina ocidental, que, apesar de
como uma via que se bifurca em verdade e opinião, cabe a datado, em larga medida ainda embasa o ensino da disciplina, co-
uma misteriosa deusa o discurso que o descreve. Uma di- meçou a se forjar no bojo do projeto Iluminista dos séculos XVI
vindade que não é nomeada pelo poeta, o que dá margem e XVII e ganhou curso geral, mais tarde, com o empreendimento
a inúmeras especulações. “Alguns afirmam que ela é a positivista de extrapolação do paradigma cartesiano-newtoniano
para os demais campos do conhecimento. Uma abordagem que,
própria Deusa da Verdade, Aléthea. Outros acreditam consoante uma visão de mundo que desconsidera contextos so-
ser Perséfone, Deusa dos Mortos – mulher de Hades. ciais e históricos, desvincula, desconecta e, não raro, opõe corpo
Hipótese que faz sentido, pois e psiquê, reduzindo o sujeito-paciente a seu organismo.
como ela está relacionada aos A experiência profissional da autora permite-lhe escolher
infernos remete a uma tradição os conceitos de corpo e subjetividade, como centrais para o
de silêncio e mistério; ao que, de desvelamento dos limites desse paradigma, ao mesmo tempo
em que possibilita eleger o referencial psicanalítico como capaz
qualquer forma, não se pronun- de apontar-lhe os impasses antropológicos, epistemológicos e
cia. Ainda há os que apostam ontológicos.
em Afrodite, Deusa da Sedução. Livro magnífico que merece ser lido não apenas por profissio-
Pessoalmente chamo essa deu- nais da área da saúde, mas por todos interessados em compreen-
sa de inominável. Ela não tem der os dilemas contemporâneos desse campo de conhecimento
e de práxis. O prefácio foi escrito por Carlos Alberto Platino,
nome, mas pronuncia a verdade, psicanalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Ja-
isso é muito mais significativo do neiro (UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), e a
que ficar querendo batizá-la com orelha por Eliana Cláudia Otero Ribeiro, professora do Programa
esse ou aquele nome”, sublinha de Pós-graduação Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de
Santoro. Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes) da UFRJ.
24 Jornal da
UFRJ Março•2007

Arte

Adir Botelho

Mural da Terra
A pintura mural, ao contrário de outras formas de expressão pictórica, está profundamente
vinculada à Arquitetura. A influência, entretanto, ocorre nos dois sentidos, pois o emprego da
cor e do desenho, além do tratamento temático, comumente altera a percepção das proporções
espaciais da construção.
Joana Jahara
foto Licius Bossolan
tratamento de imagem Maria Fernanda de N. Tavares

O projeto Mural da Terra, desenvolvido por Adir Botelho, A adesão dos pintores ao muralismo se dá em um contexto José Guadalupe Posada (1852-1913), cuja contribuição se
artista plástico e professor aposentado da Escola de Belas Artes social e político fortemente marcado pela Revolução Mexicana projeta no desenvolvimento do muralismo daquele país. Sua
(EBA/UFRJ), propõe 11 grandiosos painéis concebidos como de 1910. Os artistas que o adotaram o entenderam como uma virtude era a de pensar como o povo, sendo ele mesmo um
um mosaico de minúsculas pastilhas de vidro a ser executado expressão artística que visava atingir grandes massas, o que filho dele. Havia entre os artistas mexicanos o sentimento de
na empena sudeste do prédio da Faculdade de Letras, na Cidade privilegiou uma simbologia pictórica amplamente accessível; que tudo vinha do século XIX, sobretudo nesse que se nota-
Universitária, Ilha do Fundão, e que são tema do calendário não raro, revalorizando a cultura pré-hispânica. Arte mo- bilizou por satirizar os vivos através dos mortos. Seu trabalho,
oficial da universidade para o ano de 2007. Reelaborando nar- numental e política, a temática central era o próprio povo, afirma-nos o pesquisador e crítico argentino de arte Alberto
rativas e personagens da nossa literatura oral e do imaginário com seus costumes, suas histórias e seus valores. A situação H. Collazo, é a base daquela arte nova que criaram Orozco,
popular brasileiro, Adir retoma uma técnica que, embora usual política do México e seu acervo histórico pré-colombiano Rivera e Siqueiros entre outros, e que propiciou uma revolução
em outros países da América Latina, não logrou entre nós, e colonial inspiraram a temática da maioria dos murais. na expressão mural”, explica Adir Botelho.
afora experiências esparsas levadas a cabo pelos modernistas, Nessas composições estavam freqüentemente representados Para seu trabalho, o professor pesquisou alguns dos murais
a fluência merecida. indígenas, conquistadores espanhóis, camponeses, operários, mais importantes: “conheci os murais de Diego Rivera, Orozco,
“Os murais no México são parte de uma tradição antiga. políticos e revolucionários. As Artes Plásticas, dessa forma, Siqueiros e Portinari. Creio ter tido influência de todos eles”.
Os artistas mexicanos exaltavam as manifestações de arte mo- participaram da expansão de concepções sociais transforma- Mural da Terra está, porém, fincado em nossas tradições po-
numental por considerá-las de utilidade pública. Apesar das doras, influenciadas em grande parte pelo marxismo. pulares mais caras. Bruxas, pajés, bichos estranhos, fantasmas
experiências realizadas entre nós e do maravilhoso trabalho Essa opção por uma estética de matiz popular não implicou, de escravos, curupiras, boiúnas e lobisomens se entrecruzam
desenvolvido por Cândido Portinari (1903-1962), esse tipo porém, desconsideração dos aspectos propriamente estéticos. na obra do artista, que acaba oferecendo-nos um amoroso
de técnica ainda não faz parte do nosso discurso artístico. “Poucos artistas nesse século levaram para a Plástica tantas ino- testemunho do seu apego às coisas do Brasil. Um conheci-
Na opinião do crítico brasileiro José Roberto Teixeira Leite, vações como Siqueiros. Ele concebia o espaço arquitetônico de mento que a universidade, infelizmente, não deu, segundo
por exemplo, a obra muralista de Portinari nada fica a dever maneira dinâmica, unindo planos diferentes, superfícies cônca- o artista, ainda a atenção merecida. “Nenhum saber possui
à dos mexicanos Rivera, Orozco e Siqueiros”, informa Adir vas e convexas, sobrepondo formas, dando-lhe um certo traço maior espaço de estudo e aproximação humana do que os
Botelho. cinematográfico. Siqueiros introduziu na pintura os materiais conhecimentos das tradições de um povo, expressas em suas
Esse tipo de técnica alcançou relevo na produção pictórica da química moderna, os acrílicos, os vinílicos, que se tornaram lendas, crenças populares, canções e costumes. Elas, como
dos Estados Unidos, da Espanha, onde se destacaram artistas mais tarde de emprego universal. Adotou a pistola de jato e se diz Câmara Cascudo, folclorista brasileiro, vêm carregadas de
como José Gutiérrez Solana (1886-1945) e Ignácio Zuloaga valeu da câmara fotográfica para a exploração de novas formas”, confidência arrebatada, ressuscitando todas as nossas glórias
(1870-1945), e da antiga União Soviética. Foi entretanto no afirma Adir, destacando a apreciação de Antonio Rodríguez gerais e domésticas”, lembra-nos Adir.
México que ela se elevou, no século passado, a patamares sem (1908-1993), escritor e jornalista de origem portuguesa que, Ao desenvolver os estudos que deram origem ao projeto,
precedentes na modernidade. “No século XX, o México ganhou exilado da ditadura salazarista, acabou naturalizado-se mexi- Adir Botelho afirma ter compreendido que as histórias de um
inúmeros murais de Diego Rivera (1886-1957), José Clemente cano, segundo a qual Siqueiros “converteu a realização de um Brasil perdido estão ali. “O verdadeiro poder dele, no entanto,
Orozco (1883-1949), e David Alfaro Siqueiros (1896-1974), mural em uma verdadeira fábrica, com aparatos, ferramentas não reside no fato de recuperar as recordações da tribo, que
pintados em igrejas coloniais, teatros, escolas, pátios de pré- e equipamentos. Mais de 50 artistas trabalharam com ele no pajés e mães amavam repetir aos filhos, mas no de compreender
dios públicos, museus, universidades, hospitais e fachadas de Polyforum, na Cidade do México”. o alcance da Educação através da Arte e da Estética. E, também,
modernos edifícios”, ressalta Botelho. No processo artístico de reelaboração do conhecimento no reconhecimento da relevância de obras de extraordinários
popular, o muralismo é um poderoso meio de expressão plás- estudiosos das nossas tradições, especialmente as de Luís Câ-
tica, assim como a gravura. “A gravura popular, satírica, tem na mara Cascudo, autor de trabalhos considerados essenciais. Um
América Latina uma tradição de continuidade e força. Grande homem que compreendeu, e amou, como ninguém a literatura
parte desse poder advém do trabalho do gravador mexicano oral brasileira”, conclui.

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