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Bergson e o budismo

Docente: Paulo César Rodrigues


Discente: Mateus Roberto Joaquim
Disciplina: Filosofia contemporânea I

Introdução

Pretendo nesse texto apresentar algumas ideias centrais do filósofo


francês Henry Bergson (1859-1941), apontando suas críticas ao pensamento
tradicional e consolidado de sua época. Além disso tentarei fazer uma ligação
entre o conceito de percepção plena, apresentada pelos budistas, como um meio
de se compreender a realidade como ela realmente é. Analogamente a realidade
para o budista também é impermanência, e isso se assemelha com o conceito
de duração, desenvolvido por Bergson em sua originalidade intelectual, que
também seria uma maneira de compreender a realidade sem ilusões criadas pela
inteligência.

A ruptura com a psicologia racional

Bergson, ao estudar a teoria do conhecimento presente em sua época


identifica alguns enganos, falsos problemas sobre como compreendia-se a
realidade. Do ponto de vista das ciências naturais, e as influências que a ciência
sofreu de movimentos como o positivismo, o mundo seria dividido entre
extensão, determinismo causal e multiplicidade numérica. Se analisarmos a
realidade pelo seu caráter prático perceberemos uma visão que transforma os
objetos do mundo em corpos sólidos justapostos em um espaço homogêneo. Ao
espacializarmos as coisas que nos aparece externamente, tentamos
compreender suas relações causais, tendemos a propor por fé no hábito - como
já havia nos alertado Hume - que todos os eventos possuem leis invariáveis que
podem ser descobertas através do método teórico-científico, utilizado por
exemplo, pela física. O problema é que ao desenvolvermos essa teorização nos
esquecemos da própria vida como processo, como um vir-à-ser ininterrupto,
criando a aposta de que nós mesmos, enquanto seres psíquicos, seguimos uma
regra bem estabelecida de comportamento e variações íntimas que
supostamente podem ser medidas

Negamos o qualitativo por trás das sensações, das ações, em prol de uma
sistematização que teria o poder profético e seguro sobre as condutas. Para a
psicologia comportamental e a psicofísica, por exemplo, nós seríamos capazes
de lidar, através do conhecimento causal, com as questões psíquicas de maneira
segura. Bastaria entendermos os estímulos, movimentos físicos, e suas
respectivas excitações, seus efeitos fisiológicos. Ao estabelecermos a mesma
lógica científica que tenta teorizar e prever fenômenos no mundo, acabaríamos
determinando o ser humano e suas ações, como se não houvesse liberdade,
como se tudo não passasse de uma relação fechada e invariável dos ditos
estímulos e excitações, transformando a consciência em mera passividade.

Para Bergson, essa segurança que os psicofísicos tentam propor não


passam de uma ilusão diante de um eu superficial, que pode sim ser resultado
passivo das causalidades físicas e fisiológicas, mas o espírito, o mundo psíquico,
está além desse eu superficial, pois além dele existe o eu profundo, um “eu” que
independe das determinações físicas e fisiológicas, é um campo onde os
sentimentos se bastam a si mesmos, sem seguir uma ordem pré-determinada, é
a própria duração. Para ele quando tentamos fazer previsões sobre o campo
psíquico, na tentativa de antecipar acontecimentos sociais com a mesma
segurança que um astrônomo prevê a passagem de um cometa, estamos na
verdade desconsiderando a natureza da mente e considerando uma igualdade
entre fisiológico e psíquico.

Em síntese, toda a psicofísica está condenada pela sua própria


origem a girar num círculo vicioso, porque o postulado teórico em
que assenta condena-a a uma verificação experimental, e ela não
pode verificar—se experimentalmente a não ser que se admita
previamente o seu postulado. É que não há nenhum contacto
entre o intenso e o extenso, entre a qualidade e a quantidade.
Interpretar—se uma pela outra, transformar uma noutra
equivalente; mas, mais tarde ou mais cedo, no princípio ou no fim,
há que reconhecer o carácter convencional desta assimilação.
(BERGSON, 1988, p.52)
Porém, reconhecer essa limitação da ciência não impossibilita uma
compreensão do eu profundo, pois para o pensador, bastaria vivenciar a
duração, o tempo real e vivido - uma constante e ininterrupta sequência de
movimentos -, para conseguirmos entrar em contato nossos sentimentos
profundos. Nesse sentido os sentimentos profundos são mais compreendidos
pela literatura, que se utiliza da linguagem de maneira metafórica, intuitiva, do
que da ciência com sua máxima na medição e na previsão, que tende sempre à
fixação para se manter na segurança. Ao contrário da ciência, que se volta ao
objeto fixo, a compreensão da consciência profunda dissolve o objeto, ele se
torna o próprio vir-à-ser, enquadra-se no seu engendramento de criação que é
chamado de absurdidade fundamental.

Tempo e espaço

O realismo da psicologia científica não passaria de uma ingenuidade, pois


trabalha de maneira superficial sobre o cérebro, quando na verdade deveria, se
quisesse realmente denominar-se realismo, compreender o psíquico enquanto
profundidade qualitativa. Ao se fechar no que Bergson chama de eu superficial,
essa vertente da psicologia acaba se transformando num idealismo que dá saltos
sobre o qualitativo por meio do fisiológico. Ou seja, podemos entender que a
psicologia racional constrói seus objetos supondo que os indivíduos possuem
uma multiplicidade interna bem delimitada, numérica, como a que é descrita pela
ciência sobre o externo, o mundo físico. Relacionando o interno, os sentimentos,
com objetos justapostos que podem ser compreendidos pela matemática, cria-
se a ilusão de que é possível medir os sentimentos, considera-los mais intensos
ou menos intensos, prevê-los, quando na verdade, a multiplicidade qualitativa
existente na consciência profunda, como aponta Bergson é uma multiplicidade
de elementos psicológicos que se confundem e, portanto, não podem ser
medidos. Bergson, ao contrário da psicologia associacionista, não nega a
liberdade dos indivíduos, mas pelo contrário, apresenta dados e faz
comparações que derrubam essa visão determinista, e assim reafirma a
liberdade humana.
Para Kant, o que possibilita a matemática é a junção das duas intuições
homogêneas e puras, o espaço (externo) e o tempo (interno). Por isso, a
sucessão dos juízos 2 + 5 = 7 é possível em nós porque possuímos uma forma
pura que produz tal juízo, e essa forma pura seria o tempo. Mas Bergson
discorda, ele percebe que essa compreensão kantiana sobre nossos juízos, na
verdade residem no espaço, na justaposição. A aritmética é um exemplo, ao
pensarmos o 2 estamos justapondo dois pontos no espaço, pois querendo ou
não, a representação de qualquer número é uma justaposição. Assim, o autor da
tese “Ensaios imediatos da consciência” compreendia que Kant, na verdade
havia cometido um erro ao interpretar o sentido interno como tempo, pois na
teorização kantiana, o tempo também é espacializado, sendo um mero
desdobramento do espaço compreendido pela Inteligência.

Se é a ilusão nos hábitos compreendido pela inteligência nos faz pensar


tudo de maneira espacializada, devemos então tentar nos desvencilhar do
racionalismo intelectivo para conseguir pensar o tempo enquanto duração. Não
podemos nos prender apenas ao caráter pragmático da vida, pois este no torna
fixos. Devemos compreender o tempo pela duração, e não pelo seu viés
cronológico, espacial, que impossibilita a compreensão da constante mudança.
A ciência tem grande atuação no mundo prático, e o espaço está por trás das
elaborações teórico-científicas, pois há uma adequação entre mundo físico e a
matemática, porém, é preciso reconhecer as limitações dessa compreensão,
uma vez que existem aspectos do real que não são abarcados pela visão
espacial do mundo, como o verdadeiro estado psíquico, e o próprio devir da vida.

Apontando esses erros, demonstra-se a importância de entender o tempo


espacializado como falso e enganador. Além disso apreendemos a influência da
linguagem social que suprime o real enquanto temporal, enquanto duração. É
sobre isso que devemos estar atentos, pois do contrário, enquanto filósofos,
estaremos desenvolvendo problemas insolúveis através de uma função
psíquica, a linguagem, que, além de tudo, está comprometida na sua maior parte,
graças à inteligência, com interesses práticos.

O budismo
Aparentemente essa visão do tempo enquanto duração, continuidade
constante que apresenta a transitoriedade pode parecer desesperadora. Se
temos um impulso prático pela vida, consequentemente tendemos a negar essa
perspectiva do incerto sobre o transcorrer da existência. Reconhecer que não
temos controle sobre muitas coisas tende a ser difícil, a história da humanidade
mostra o quanto tentamos desenvolver nosso conhecimento para controlar a
natureza, transformá-la perante nossas necessidades. Quantas estórias sobre a
eternidade já foram desenvolvidas, o engajamento de uma vida inteira em busca
de burlar nossa natureza, de tentar romper com a morte, manter-se fixo e fugir
do fluxo. As próprias noções de eternidade pós-morte têm bases nessa tentativa
de promover, através das fábulas, um conforto. Interpreto que para o budismo,
assim como para Bergson, reconhecer o tempo real, e não seu desdobramento
espacial, intelectual, é reconhecer o que nos caracteriza enquanto humanos. É
apreender a dignidade por trás de nossa existência passageira. Nietzsche, em
seu texto “A verdade e a mentira no sentido extra-moral”, enxerga uma certa
arrogância sobre como tratamos a capacidade intelectiva do ser humano, e
reitera que essa presunção sobre o conhecimento não passa de uma ilusão
diante da perspectiva cosmológica.

“Em algum remoto recanto do universo, que se deságua


fulgurantemente em inumeráveis sistemas solares, havia uma vez
um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento.
Foi o minuto mais audacioso e hipócrita da ‘história universal’:
mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Após alguns
respiros da natureza, o astro congelou-se, e os astuciosos
animais tiveram de morrer. ” (BARROS, 2007, p. 20)

Embora Nietzsche tenha um sentido próprio para compreender esta


citação, o importante aqui é reconhecer que outros filósofos já pensaram
criticamente sobre como desenvolvemos nosso conhecimento e como ele
reverbera diante da vida enquanto natureza e seu processo contínuo. Os
budistas tendem a classificar a vida com a palavra vida-morte, onde vida e morte
não são descontínuos, mas estão ligados pelo Uji, palavra budista para designar
o tempo, uma vez que tempo não seria tomado como algo meramente
espacializado, passado, presente e futuro. Tudo é tempo pois o tempo é o não
fixo. Assim como Bergson pensava, tempo é a própria existência, é o próprio fluir
característico da vida como um todo, tudo está em relação com o tempo, com a
duração. Nossa compreensão intelectiva sobre a vida, que nos faz reconhecer a
existência por justaposição, pode nos tornar presos em uma interpretação
fechada e incapacitante diante da impermanência.

Bergson reconhece que pela inteligência não podemos perceber a


duração, pois a inteligência se comunica através de mediações linguísticas que
captam e fundamentam o imóvel por uma necessidade instrumental. Se a
inteligência tentasse expressar um qualitativo interno, ou a própria duração como
um todo, falharia, pois é de sua natureza se relacionar com o estático, e não com
o movimento. Um exemplo dessa dificuldade seria o paradoxo de Zenão sobre
a flecha: ao atirar uma flecha em um alvo, o deslocamento da flecha passaria
por uma sequência temporal e espacial, t1 - s1, t2 – s2 e assim
consecutivamente, então sempre que analisássemos a posição da flecha,
teríamos a impressão paradoxal de que ela está em repouso. Para
compreendermos o devir criador devemos pensar a duração através da intuição,
uma característica humana que também segue um fluxo e se modifica sem
seguir uma determinação. Como estamos inseridos num mundo epistemológico
prático, torna-se difícil o acesso a intuição, precisaríamos nos treinar para
conseguir entrar em contato com ela, o que parece ser algo quase impossível de
controlar. A intuição pode ser mais facilmente compreendida pela arte, como
uma pintura abstrata que aparentemente não significa nada, mas que é, ao
mesmo tempo, uma maneira pela qual um artista consegue expressar um
sentimento fluido, orgânico que, pelas palavras, torna-se indizível.

Penso que, para os budistas, entrar em contato com o que Bergson


entende por intuição parece ser possível e, de certa forma, controlável. Através
da noção de percepção plena, que tenta ser uma maneira de captar o dinamismo
e a espontaneidade da vida, os budistas acreditam ser possível analisar as
coisas no mundo sem nenhum juízo ilusório, possibilitando a compreensão da
impermanência. A percepção plena pode ser treinada através do zazen, que
traduzido significa sentar em estado meditativo profundo, meditar em silencio,
sem se deixar levar pelos pensamentos, mas colocar-se em terceira pessoa e
presenciar o constante fluxo do pensamento e das coisas, que nunca param.
Treinar a percepção plena é aceitar a vida como duração, é conseguir olhar para
o mundo e não se prender aos conceitos. Como diz uma sentença zen: “Antes
que eu penetrasse no Zen, as montanhas nada mais eram senão montanhas e
os rios nada a não ser rios. Quando aderi ao Zen, as montanhas não eram mais
montanhas nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o Zen, as
montanhas era só montanhas e os rios, só rios. ”

Outro exemplo de como a percepção plena e a meditação podem auxiliar


nesse processo de compreensão do mundo enquanto devir que escapa aos
conceitos, é uma parábola budista chamada “A Lua”:

“Um monge aproximou-se de seu mestre — que se


encontrava em meditação no pátio do templo à luz da lua — com
uma grande dúvida:

— Mestre, aprendi que confiar nas palavras é ilusório. O


verdadeiro sentido surge através do silêncio. Mas vejo que os
sutras e as recitações são feitas de palavras e que o ensinamento
é transmitido pela voz. Se o Darma está além das palavras, por
que as usamos para explicá-lo?

O velho sábio respondeu:

— As palavras são como o dedo apontando para a Lua.


Olhe para a Lua, não se preocupe com o dedo que a aponta.

O monge replicou:

— Mas eu não poderia olhar a Lua sem precisar de um


dedo que a indicasse?

— Poderia — confirmou o mestre —, e assim o fará, pois


ninguém mais pode olhar a lua por você. As palavras são como
bolhas de sabão: frágeis e inconsistentes, desaparecem quando
em contato prolongado com o ar. A Lua está e sempre esteve à
vista. O Darma é sempre presente e completamente revelado. As
palavras não podem revelar o que já está revelado desde o
Primeiro Princípio.
— Então — o monge perguntou —, por que os seres
humanos precisam que seja revelado o que já é de seu
conhecimento?

— Porque — completou o sábio —, da mesma forma que


ver a Lua todas as noites faz com que as pessoas se esqueçam
dela pelo simples costume de aceitar sua existência como fato
consumado, assim também as pessoas não confiam na verdade
já revelada pelo simples fato de ela se manifestar em todas as
coisas, sem distinção. Dessa forma, as palavras são um
subterfúgio, um adorno para embelezar e atrair nossa atenção. E,
como qualquer adorno, pode ser valorizado mais do que o
necessário. (COEN, 2017 p. 50)

O mestre ficou em silêncio durante muito tempo. Então, de


súbito, simplesmente apontou a lua. ”

Conclusão

Por fim, é importante salientar que o Darma se refere aos ensinamentos de Buda,
considerados como leis verdadeiras, onde uma dessas leis salienta um fluir ininterrupto
da vida que, embora possamos captar naturalmente, acaba sendo deturpado por ilusões
que nos faz desenvolver um apego que resulta em sofrimento. O apego por coisas que,
por natureza, são efêmeras produz a infelicidade, reconhecer isso e aceitar essa
condição é um dos passos para se tornar feliz. Por isso devemos nos esforçar para
compreender, utilizando essa suspenção do juízo intelectivo pela meditação, pela
percepção plena, a impermanência das coisas. Creio que pela meditação nós podemos
entrar em contato com processo que Bergson entende por Duração e criação, nos
afastamos do eu superficial e reconhecemos a impermanência em nós mesmos. Espero
que tenha ficado claro essa analogia sobre como algumas ideias de Bergson podem ser
interpretadas com esse olhar budista, e como a intuição pode ser regulada através da
meditação e da percepção plena, que tentam se desligar dos conceitos da linguagem,
para entenderem as coisas em seu processo criativo.
Referência

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução: João


da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1988

NIEZTSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução: Fernando de Morais


Barros. São Paulo. Editora Hedra, 2007

COEN, Monja. 108 Contos e parábolas orientais. São Paulo, 2015

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