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ISSN 2318-0811
Volume III, Número 1 (Edição 5) Janeiro-Junho 2015: 281-292
*
Martim Vasques da Cunha cursou a graduação em Jornalismo pela Pontifícia Universidade de Campinas
(PUC-Campinas), é mestre em Filosofia da Religião pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e é
doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo (USP). Concebeu e executou o planejamento
estratégico da gestão da imagem do projeto “Telecomunicações do Brasil”. Foi editor e um dos criadores da
revista cultural Dicta&Contradicta, sócio-fundador do Instituto de Formação e Educação (IFE), coordenador da
área de Humanidades do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS) e responsável pela produção, roteiro
e co-direção dos documentários (curtas) “Nada Mais Será Longe, Demais”, “O Esplendor”, “O Maestro” e “O
Segredo”. É autor dos livros Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória
– Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015), bem como de inúmeros artigos publicados em
diferentes periódicos.
E-mail: martim.vasques@gmail.com
282 A Importância de Ser um Flaneur: Uma Introdução ao Pensamento de Nassim Nicholas Taleb
maneira explícita para quem não estava pane no sistema energético e certamente
preparado2. iniciará um blecaute em toda a cidade)4.
Estes fatos que ocorrem no Extremistão
Apesar da aparência do aviso de podem ser um Black Swan positivo ou negativo
catástrofe ou crise perpétua, Taleb também tanto para quem sofre as consequências dele
observa que existem tanto Black Swans como para quem os provoca – o que aumenta
positivos como negativos. Surge aqui o ainda mais o terreno de incerteza onde esses
segundo conceito em seus livros: todos sistemas intrincados se encontram.
estamos expostos à fragilidade, pois nunca É neste ambiente instável que a obra de
nos preparamos para a incerteza de quando Taleb surge como uma meditação filosófica
acontecerá ou não acontecerá um Black de extrema seriedade, sem, contudo, cair no
Swan; o oposto disso não é o robusto ou o reducionismo de querer mitigar os temores
resiliente, que seria aquele que é indiferente dos seus leitores a respeito do que pode e do
à imprevisibilidade desses eventos que, que não pode acontecer em suas vidas. Ao
mesmos raros, atingem a qualquer um. O estudar as infinitas variações do risco e da
que Taleb propõe como o oposto de frágil incerteza, usando dos diferentes instrumentos
– e aqui surge o seu terceiro e talvez mais da filosofia, da economia, da estatística, da
importante conceito – é o AntiFrágil, o que literatura e da matemática, Taleb pretende nos
não só aceita a incerteza causada pelo Black ajudar a entender melhor o que motiva a ação
Swan, mas também a deseja porque sabe que humana e como podemos aperfeiçoar nossas
pode sair mais fortalecido com o seu encontro3. decisões em um mundo que, atualmente,
Nossa exposição a estes eventos parece estar repleto de “cisnes negros”.
acontecem em dois tipos de domínio
da realidade: o do Mediocristão e o
do Extremistão. Estes conceitos são II
complementares aos de Black Swan e
aos de AntiFragilidade. Segundo Taleb, o Taleb escreveu e publicou quatro livros
Mediocristão é o domínio onde todos nós nos últimos quinze anos, mas eles formam, na
vivemos e onde podemos fazer nossas verdade, uma única obra – um ciclo orgânico,
previsões, independentes se errarmos, sem começo nem fim definidos, chamado
porque o erro terá consequências mínimas Incerto e que, segundo o próprio autor,
na sociedade (Por exemplo: um acidente de registrará o trabalho de uma vida inteira5.
trânsito na sua rua certamente não iniciará O primeiro livro foi Fooled by randomness
um colapso no tráfego de uma metrópole). (no Brasil, traduzido como Traídos pelo
Já o Extremistão é o domínio dos grandes acaso), lançado em 2001 e que causou uma
sistemas complexos e interdependentes, considerável sensação no mundo de Wall
onde é impossível se ter uma previsão Street. Ele fazia algo que poucos traders do
exata, pois qualquer fato improvável terá
um enorme impacto no tecido da sociedade 4
TALEB. The Black Swan: The Impact of the Highly
(como o uso excessivo de energia elétrica em Improbable. p. 213-227.
um dia intenso de verão, que causará uma
5
Taleb também escreveu dois livros técnicos que
complementam os que fazem parte de Incerto: Dynamics
2
TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan: The Hedging (1997), que o transformou em uma lenda
Impact of the Highly Improbable. Londres: Penguin, viva no mercado de derivativos, e Silent Risk (2014),
2007/2010. p. 3-21. que põe em prática várias das ideias apresentadas
em AntiFragile. No caso de Silent Risk, o livro pode
3
TALEB, Nassim Nicholas. AntiFragile: Things that ser encontrado no seguinte endereço: <https://drive.
Gain from Disorder. New York: Random House, 2012. google.com/file/d/0B8nhAlfIk3QIR1o1dnk5ZmRaaGs/
p. 29-79. view>. Acessado no dia 8 de setembro de 2015.
284 A Importância de Ser um Flaneur: Uma Introdução ao Pensamento de Nassim Nicholas Taleb
mercado financeiro gostariam de fazer: colocar suas principais diversões: a de ofender com
todas as supostas regras que comandam contundência e elegância os sujeitos que são
o jogo em uma saudável suspeita. Taleb pagos para falarem besteiras em público,
afirmava a quem quisesse ouvir que nada era como os economistas e os cientistas políticos
certo e que nenhuma lei conseguiria explicar que acreditam prever a incerteza e acabam
a instabilidade do mundo real, mesmo no prejudicando o resto da sociedade por causa
mais fugaz dos ambientes que é o da bolsa de das suas opiniões sem nenhum fundamento.
valores. Portanto, o que um bom negociador Ao aproveitar o embalo de sua obra
tinha de fazer era se preparar para algum como uma espécie de “revelação literária”,
evento traumático – e aqui encontramos o Taleb resolveu lançar um pequeno livro de
germe do conceito de Black Swan – e deixar aforismos, The bed of Procrustes (2010, ainda
que o acaso o fortalecesse, apesar de todas as não traduzido no Brasil). Se ele não chega aos
previsões feitas ao contrário (seja no aspecto pés de um Blaise Pascal (1623-1662) ou de um
positivo como no negativo)6. Joseph Joubert (1754-1824), ainda assim não
Taleb levaria esta concepção da incerteza fica a dever a um Karl Kraus (1874-1936) ou
ao limite em seu segundo livro, The Black a um Nicolás Goméz Dávila (1913-1994) na
Swan – The impact of the highly improbable (2007, arte de dizer muito com poucas palavras.
tradução nacional: A lógica do Cisne Negro). É O leitor pode encontrar, ao acaso (e é óbvio
aqui que o conceito de “cisne negro” alcança que Taleb faz questão de escrever em uma
notoriedade internacional, chegando ao ponto forma literária que privilegia exatamente essa
de Taleb ser considerado como uma espécie de atitude), sentenças que nos deixam com um
guru (algo que ele não suporta) simplesmente sorriso, como esta: “É muito menos perigoso
porque previu, com um ano de antecedência, pensar como um homem de ação do que agir
que uma crise econômica sem precedentes como um homem que pensa”; ou então: “Um
atingiria o mundo, tal como aconteceu em profeta não é apenas alguém que tem visões
setembro de 2008. Mas o livro é muito mais do especiais; é apenas alguém que está cego para
que isso: ao contrário de Fooled by randomness, aquilo que a maioria das pessoas vêem”7.
que ainda parecia algo hesitante entre um Apesar da sua brevidade e da sua
trader com ambições diletantes e um scholar aparente despretensão, The bed of Procrustes é
que queria escapar das amarras do mercado importantíssimo para se entender a intenção
financeiro, The Black Swan é um longo ensaio primeira na obra de Taleb – e, pela primeira
sobre como podemos confrontar com os fatos vez em seus livros, ele deixa isso muito claro
que mudam completamente nossas vidas – e logo no parágrafo que abre o posfácio:
como temos a capacidade de nos reconstruir O tema geral do meu trabalho são as
e, até mesmo, de nos precaver contra eles, limitações do conhecimento humano, e
se assumirmos de que, neste mundo, não os erros e os preconceitos charmosos e
sabemos de nada. Em um estilo repleto de nem tão charmosos, quando lidamos com
assuntos que estão fora do nosso campo de
deliciosas digressões, Taleb passeia pela
observação, aquilo que não observamos e
literatura – a parte em que ele explica o que
aqueles que não observamos – aquilo que
é um Black Swan usando O deserto dos tártaros, nos é desconhecido e o que está no outro
de Dino Buzzati (1906-1972), é memorável lado do véu da opacidade.
–, nos faz descobrir os trabalhos científicos
de Daniel Kahneman e Benoit Mandelbrot Como nossas mentes precisam reduzir
(1924-2010) e eleva ao estado da arte uma das informação, somos propensos a querer
6
TALEB, Nassim Nicholas. Fooled by Randomness: 7
TALEB, Nassim Nicholas. The Bed of Procrustes
The Hidden Role of Chance in Life and Markets. – Philosophical and Pratical Aphorisms. Londres:
New York: Random House, 2005. Penguin Books, 2010.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Martim Vasques da Cunha 285
se revela, a longo prazo, como uma vitória ar- literária, repleta de metáforas, trocadilhos e
duamente conquistada. O problema não é de ditos populares, provam que há um impulso
técnica ou de uma mera disposição, e sim de orgânico de acrescentar algo empírico e
uma escolha de querer sobreviver e perseve- concreto a uma especulação que, se não for
rar em um ambiente onde a incerteza e o caos bem controlada, pode cair na mais perigosa
parecem ser as únicas constantes – como sem- das abstrações.
pre foi e como sempre será, independente das Por isso, ser um flaneur, para Taleb, não
nossas revoluções tecnológicas e dos nossos é um mero capricho, mas um meio de vida
progressos racionalistas. que protege a sua integridade intelectual. De
Neste ponto, é de se ressaltar que, mesmo certa forma, caminhar sem rumo definido é
defendendo a ciência como um método o melhor exercício que se pode fazer, tanto
empírico de correção dos fatos, Taleb emprega no aspecto físico como mental, para ajudar
muito mais outro tipo de método, retirado as pessoas a viverem em um mundo onde
não dos laboratórios experimentais ou dos parece surgir um Black Swan a cada canto e
gráficos de estatística, e sim da literatura e da sem nenhum aviso.
filosofia antigas. É um modo de ver as coisas
que ele autodenomina como “epistemocracia”
e que tem, entre seus cidadãos ilustres, além III
do próprio Taleb (é claro), pessoas do calibre
como o filósofo estoico Sêneca ou então Nesta caminhada, Taleb também
o pensador francês humanista Michel de se aproveita das descobertas de quem já
Montaigne (1533-1592). Na verdade, o seu trilhou pelos mesmos passos, muitas vezes
método é o do ensaísta – melhor dizendo, reconhecendo os acertos e corrigindo os
o do flaneur, do homem que caminha pelas erros, sem, contudo, deixar de ratificar
ruas de uma cidade ou de um vilarejo sem que o seu conceito de Black Swan possui
meta definida, aberto ao que o acaso pode uma originalidade que poucos conseguem
lhe dar, naquele estado de maravilhamento reconhecer nos nossos dias.
que o poeta espanhol Antonio Machado Um dos estudiosos com quem Taleb
descreveu com perfeição nos seguintes versos: dialoga o tempo todo, mesmo que não o
“Caminante, no hay caminho/, se hace camino al cite diretamente, é Ludwig von Mises (1881-
andar” (Caminhante, não há caminho, / faz-se 1973), em especial o de Ação Humana (1949).
o caminho ao andar)9. Neste livro, considerado por muitos como
A atitude de flaneur é a ideal para fundamental para se entender os princípios
descrever o que Taleb pretende com sua que orientam a chamada Escola Austríaca
obra. As suas digressões não são aleatórias; a de economia – aquilo que o próprio Mises
criação de personagens, como Fat Tony (um chamaria de “praxeologia” – há um capítulo
sujeito que repassa a quem quiser a sabedoria intitulado justamente “A incerteza” e que
de ter sido “AntiFrágil” desde o nascimento) lida com os mesmos temas que depois Taleb
ou Yevgenia Krasnova (uma escritora russa desenvolveria em sua obra.
que conseguiu ser um Black Swan em um dos Ambos os autores discorrem a respeito
mercados mais difíceis para isso acontecer, o da ação humana em um ambiente de constante
editorial), deixam de ser ilustrações das suas (e extrema) incerteza. Agir é criar a própria
teorias sofisticadas e passam a ser estudos incerteza de sua ação que se dirige para um
de caso retirados da própria experiência do futuro indeterminado, uma vez que eles não
autor; e o uso elaborado de uma linguagem constituem duas realidades independentes.
Mesmo que se rejeite completamente a noção
9
MACHADO, Antonio. Poesia. Madrid: Alianza de acaso e coloque as ações humanas sob a
Editorial, 2005, p. 114 perspectiva das leis eternas e imutáveis, ainda
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Martim Vasques da Cunha 287
assim permanece claro para todos nós que, fazer quando nos deparamos com “eventos
para o homem que também age, o futuro é singulares específicos” – uma terminologia
desconhecido, sob qualquer prisma. Como o bem ampla que Mises criou para classificar o
próprio Mises escreve, isso tem a ver com a que seria depois denominado por Taleb como
própria noção de liberdade, um dos pilares da um Black Swan.
sua obra: “Se o homem pudesse conhecer o futuro, Já no segundo tipo – a “probabilidade de
não teria que escolher e, portanto, não agiria. Seria caso” –, mexe diretamente com a “deficiência
um autômato, reagindo aos estímulos, sem vontade do nosso conhecimento” a respeito do que
própria”10. se apresenta como a realidade diante da
Assim, a noção de incerteza em cada nossa percepção. Porém, mesmo assim, essa
ação humana está intimamente relacionada deficiência nos força a escolher de qualquer
ao problema da liberdade como possibilidade maneira. A ação humana, aqui, deve ter um
do homem conhecer o que pode fazer e o que telos, uma meta final, ainda que ela não se
não pode fazer. E aqui se encontra o ponto apresente claramente. Podemos apenas tatear
de contato oculto entre Mises e Taleb: ambos no escuro e correr no perigo de não encontrar
querem dissipar um pouco o que fazemos em um único interruptor para acender a luz do
momentos de ignorância, mas, apesar de todo quarto; se quisermos um exemplo mais grave,
o conhecimento científico disponível, esta é o famoso caso do diagnóstico médico de
última continua agarrada em cada nuance das uma doença rara. Um médico pode dizer que
nossas ações. A certeza, se houver, é apenas existe 70% de cura; outro dirá que existe 30%.
uma probabilidade entre tantas – e ela pode Quem está certo? Como podemos encontrar
ter um aspecto tanto negativo como positivo. uma probabilidade razoável? De qualquer
Para Mises, a praxeologia não é uma forma, exceto se o paciente deliberadamente
ciência que descobre teoremas científicos não quiser se tratar, alguma profilaxia terá
auto-evidentes e que existe com a intenção de ser realizada. Mas como podemos medir
de eliminar o véu da ignorância em nossas as chances de sucesso nisso? Novamente, a
decisões. Ela analisa o comportamento ignorância perante as nossas ações parecer ser,
humano em seus fundamentos, mas para como uma ironia cruel, o único “imperativo
redescobrir a probabilidade de ser livre em categórico”.
um ambiente onde tudo nos leva a acreditar A diferença essencial entre as reflexões
que é fugaz. A diferença, para Mises, é que de Mises e Taleb sobre os efeitos da ação
uma probabilidade científica se refere à humana em um ambiente incerto, é que
frequência de como um evento imprevisível as observações do primeiro se dão no
pode acontecer, enquanto a probabilidade de domínio do Mediocristão, enquanto os do
uma ação humana tem a ver com a teleologia, segundo se preocupam principalmente
a meta final [telos] em que uma escolha com o que acontece no Extremistão. A visão
interfere na realidade e finalmente rompe a epistemológica de Mises ainda é moldada
incerteza que cercava a sua decisão. por um paradigma kantiano de formas
No primeiro tipo de probabilidade restritas no tempo e espaço e que se dão em
(também conhecido como “probabilidade um mundo onde a interdependência não era
de classe”), ela ajuda a identificar o um fato evidente, seja nas trocas econômicas,
comportamento de uma classe de eventos seja nas próprias relações humanas, com o
que são mensuráveis dentro de um padrão surgimento posterior de doutrinas como a
específico, mas este mesmo padrão nada pode globalização e de revoluções tecnológicas
como a da internet. Já Taleb incorpora essas
rupturas como algo inerente à própria
10
MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado de
Economia. Trad. Donald Stewart Jr. 3a ed. São Paulo:
percepção da realidade, acentuando, como
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 139. parte da originalidade do seu projeto, que só
288 A Importância de Ser um Flaneur: Uma Introdução ao Pensamento de Nassim Nicholas Taleb
podemos reagir a esses eventos imprevisíveis ferramenta que também está em função
se aceitarmos que a incerteza das nossas ações desta meta evolucionista11.
tem um impacto profundo, não só nas nossas Em um trecho de The Black Swan, Taleb
próprias vidas particulares como na sociedade afirma explicitamente a sua admiração pelo
onde tentamos encontrar alguma ordem. conceito de Hayek a respeito da “ordem
espontânea”. Para ele, o economista deveria
ser mais estudado por seus pares, porque
IV seus diagnósticos sobre o que tornava uma
sociedade minimamente decente para
Neste aspecto, a explicação do que seria qualquer cidadão que quisesse aproveitar a
“AntiFrágil” parece ser similar a um conceito sua liberdade eram baseados em um sistema
importantíssimo de outro economista orgânico, feito por intuições empíricas, jamais
essencial para a Escola Austríaca, o Prêmio por um raio de luz nascido em um escritório
Nobel Friedrich von Hayek (1899-1992) – o imaculado. Hayek teria percebido como
de “ordem espontânea”. poucos que a verdadeira sociedade onde
Tanto Hayek como Taleb são ferrenhos vivemos sempre pensará “fora da caixa”
opositores de uma ordem construída [outside the box] e muito além de qualquer
artificialmente, que tenha como base o planejamento central, com aparência
“racionalismo cartesiano” que fez fama racionalista. De acordo com Taleb, a vitória de
no Iluminismo francês e que depois Hayek foi a crítica aguda ao “cientificismo”
influenciou uma parte da modernidade constantemente aplicado não só em governos,
como modo de pensamento. Para Hayek, como também em instituições acadêmicas,
contudo, a ordem que deveria reger em grandes corporações e até mesmo nas
uma sociedade saudável é algo espontâneo redações da grande mídia – todos incapazes
não só porque isso seria interessante para de sofrerem riscos e de viverem a incerteza12.
um crescimento propício aos cidadãos, Contudo, já em AntiFrágil, Taleb se
mas principalmente porque isso tem a ver mostra mais receoso de citar Hayek como um
com a própria natureza humana, que lida exemplo intelectual a ser seguido. Um dos
apenas com informações fragmentadas e, aspectos de ser “AntiFrágil” é ter, antes de
ao mesmo tempo, é obrigada a reuni-las tudo, capacidade de escolher entre situações
em um organismo que, para ser coerente, em que você está ou pode ficar exposto
tem de ter uma meta que comprove uma a um Black Swan – o que é chamado de
determinada evolução natural. A “ordem “opcionalidade” (optionality). Por ser alguém
espontânea” de Hayek é, antes de tudo, que está disposto a tirar vantagem de uma
uma reformulação muito bem elaborada do situação caótica, o “AntiFrágil” tem de recorrer
evolucionismo de Charles Darwin (1809- a estratégias que lhe dão uma opção, já que,
1882) e Herbert Spencer (1820-1903), em que direta ou indiretamente, a sua principal meta
a organização da sociedade se fundamenta é sempre defender a sua própria liberdade.
num mecanismo de seleção natural, no qual Ora, de acordo com Taleb, apesar de Hayek
os fortes sobrevivem porque a competição
entre pares é algo absolutamente comum
para o homem em geral. A espontaneidade,
11
GRAY, Jonh. Hayek on Liberty. Londres: Routledge,
1998. p. 26-53; ver também: HAYEK, Friedrich von.
neste caso, se torna algo mais complexo Studies in Philosophy, Politics and Economics.
porque, além do aspecto da seleção natural, London: Routledge, 1967. p. 73, além de HAYEK,
Hayek vê também o modo como nós Friedrich von. Law, Legislation and Liberty, vol. III.
nos expressamos, isto é, a forma como a London: Routledge, 1979. p. 153-55.
sociedade consegue articular sua própria 12
TALEB. The Black Swan: The Impact of the Highly
linguagem representativa, igual a uma Improbable. p. 180-181.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Martim Vasques da Cunha 289
ter sido um pensador que era contra o individual. Tentar opor-se à sua dinâmica
planejamento central, defendendo a “ordem em nome da justiça social ou da reparação
espontânea” – e justamente por ter um caráter dos destroços deixados por onde passou é
evolucionista em seu pensamento (ou seja, largar a sombra providencial em troca de
uma presa inalcançável, visto que é ilusória.
a ação na sociedade é orgânica porque faz
Caso você faça a um hayekiano a objeção
parte, na verdade, de uma meta que funciona
de que o capitalismo fabricou a miséria
em função de uma seleção natural, retirada generalizando uma forma de pobreza
da cosmologia darwinista) –, falta-lhe a inconcebível nas sociedades tradicionais
capacidade de perceber que a opcionalidade é já que ela conjuga a pobreza material ao
algo importantíssimo para que o “AntiFrágil” abandono dos indivíduos à própria sorte
mantenha a sua situação. Isso retira qualquer – paradoxo inusitado, talvez o próprio
chance da própria sociedade de escolher Karl Marx (1818-1883) não terá conseguido
o seu próprio rumo, seja orgânico ou não, desembaraçar –, lhe será respondido que se
extirpando a “capacidade lúdica” que, para o capitalismo, de fato, multiplicou os pobres,
Taleb, é outro componente essencial de é que ele possibilitou que um número
muito maior deles pudesse viver, quer
um ambiente que deseja tirar vantagem do
dizer, sobreviver. Tudo se passa, escreve
surgimento de um Black Swan13.
Hayek, como se a evolução procedesse a um
Na verdade, a defesa de uma “ordem verdadeiro ‘cálculo vital’: ele sabe sacrificar
espontânea”, de acordo com os preceitos de determinadas vidas aqui e agora se isso a
Hayek, também nos leva a um impasse ético conduzir a aumentar o fluxo vital no seu
sutil, porém perigoso se for levado às últimas todo. Por outro lado, observe um indivíduo
consequências – e Taleb parece ter notado ao acaso e se pergunte em que sociedade
isso como poucos. Segundo o filósofo francês as chances de ele levar uma vida plena e
Jean-Pierre Dupuy, em seu livro O tempo das feliz estão maximizadas. Para Hayek não há
catástrofes: margem de dúvida que será na sociedade
O grande pensamento liberal de inspiração que soube dar à sua liberdade natural a
econômica, aquele que vai de Adam Smith ‘ordem espontânea’ do mercado14.
(1723-1790) a Friedrich von Hayek, não
hesitou em interpretar os males cometidos Dupuy faz questão de observar que a fi-
pelo mercado como sacrifícios que cumpre losofia moral de Hayek, se há alguma, não “é
saber aceitar em nome de um interesse propriamente utilitarista ou consequencialis-
superior. No mercado, segundo Hayek, ta”, mas o fato de haver um fundo difuso de
por exemplo, se sofre muito: as pessoas “utilidade geral” nos faz perceber que talvez
não encontram trabalho ou perdem o seu a “ordem espontânea” seja frágil no sentido
emprego, as empresas vão à falência, os
talebiano, pela simples razão de que, graças
fornecedores são abandonados pelos seus
clientes de longa data, os especuladores
ao seu caráter evolucionista que amputa um
apostam alto e perdem tudo, os produtos aspecto central da nossa liberdade – a escolha
novos não pegam, os pesquisadores, apesar do que fazer diante de um evento imprevisí-
de longos e penosos esforços, não chegam a vel –, ela também elimina a nossa possibilida-
nada, etc. Essas sanções caem como golpes de de encararmos a incerteza inerente à nossa
do destino, injustificadas, imprevisíveis, humana, demasiada humana condição.
incompreensíveis. A sabedoria, contudo, é
‘se entregar às forças obscuras do processo
social’. Este, com efeito, é movido por
uma espontaneidade benfazeja e dotado
de um saber inacessível a qualquer sujeito
14
DUPUY, Jean-Pierre. O Tempo das Catástrofes:
13
TALEB. AntiFragile: Things that Gain from Quando o Impossível é uma Certeza. Trad. Lília Ledon
Disorder. p. 258-259. da Silva. São Paulo: É Realizações, 2011. p. 61-62.
290 A Importância de Ser um Flaneur: Uma Introdução ao Pensamento de Nassim Nicholas Taleb
17
MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Trad. Rosa
Freire de Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 70-71. Grifos do autor.