Você está na página 1de 6

TORNAR-SE PROFESSOR: REFLEXÕES INICIAIS SOBRE UM PERCURSO

PARADOXAL

BECOMING TEACHER: INITIAL REFLECTIONS ABOUT A PARADOXAL PATHWAY

Ivan Fortunato1*

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCAr/ Sorocaba, do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Humanas e Sociais – UFABC e do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo (IFSP), câmpus de Itapetininga.

*
autor correspondente: ivanfrt@yahoo.com.br
Recebido: 25/02/2017; Aceito 03/05/2017

TORNAR-SE PROFESSOR… percurso formativo, também balizei minha


redação a partir das ideias sobre aluno-
É nesta caminhada vivida, sofrida, inquieta,
sorridente, reveladora que ele, o aluno- professor de Fanny Abramovich porque
professor, vai poder constatar aonde estão as
compreendo que esta dupla identidade melhor
suas dificuldades pessoais e particulares, os
empecilhos, os atritos, as impotências, o se descreve a jornada em busca de tornar-se
deparar com o não saber como resolver algo que
tinha se proposto, a frustração perante o docente [2]. Com essa ideia, a autora
realizado, a dificuldade com o grupo junto ao
consegue, ainda, capturar diversos predicados
qual está fazendo esta ou aquela atividade, a
perplexidade perante seu processo, a sua que servem para esclarecer os percalços dessa
dificuldade em se auto-avaliar, enfim, tudo o
que acontece quando um ato criativo está em jornada, tais como “sofrida”, “frustrante”,
andança [1].
“difícil”, “inquieta”; principalmente
inquieta...
Este texto foi motivado pela
Meu percurso formativo para o
necessidade de repensar minha trajetória
magistério, confesso, é muito paradoxal. A
profissional, como forma de refletir a respeito
primeira contradição evidente diz respeito a
das vicissitudes da carreira docente, seja para
escolha pela faculdade a cursar, no começo do
compreender melhor os desafios cotidianos
século, pois estudei e me graduei no curso de
deste ofício, seja para revelar aos estudantes
pedagogia, mesmo carregando profundas
de licenciatura alguns obstáculos que podem
mágoas dos anos vividos na escola. Não
emergir durante e após o curso universitário
obstante, somente perceberia tal
de formação de professor. Esta não é a
incongruência depois de formado, tendo
primeira vez que me vejo diante o desafio de
buscado emprego longe das salas de aula.
recuperar minha “caminhada vivida”. Em
Anos mais tarde, o desgosto sentido como
outro momento, ao escrever sobre meu
aluno voltaria e me atormentar, praticamente se a sineta; produzia-se imediatamente como
me convocando a assumir o ofício de que um vazio no nosso ser. A vida detinha-se
educador, sobre o qual havia dedicado quatro ali, a escola começava”.
anos de estudo sistemático na universidade. Há um lapso de memória que não me
Como resultado disso, hoje sou professor de permite (me) esclarecer porque, depois de
futuros professores, lecionando didática na anos de angústia e sedação vividos na escola,
licenciatura. O paradoxo persiste, pois o minha primeira e única opção foi a de
dissabor da sala de aula ainda é latente, mas é prosseguir os estudos formais no ensino
este meu lugar de trabalho. superior... no curso de formação de
Minha identidade docente, reconheço professores para a escola. A mesma escola
hoje, começou a ser pensada desde os que nada tinha a ver com a vida...
primeiros anos de escola e sua forma de Importante anotar que durante os
esterilizar a criatividade e a subjetividade, quatro anos em que vivi a universidade, a
fazendo com que nós, crianças, sentássemos escola foi tomando novas matizes e, dessa
calados diante uma grande lousa e fizéssemos vez, mais vivas, alegres, empolgantes... Isso
cópia em nossos caderninhos. Havia porque a escola apresentada a nós, futuros
momentos para expressar a criatividade nas pedagogos, não era a mesma por mim vivida:
aulas de artes, diriam, mas as tarefas de havia a possibilidade de construção de
desenhar, colorir, colar etc. eram sempre as conhecimento; os alunos eram colocados no
mesmas para todos – desde pintar o coelho da centro do processo educativo, nomeados
páscoa em março, o índio em abril, o presente como protagonistas; não havia amarras
da mamãe em maio... até a reprodução do burocráticas; não existia um currículo
Papai Noel rechonchudo e de roupão sedativo, mas sedutor; as crianças não
vermelho no final do ano. Havia momentos brigavam entre si e não praticavam bullying; o
em que não ficávamos sentados, diriam, mas ensino acontecia de forma livre e espontânea,
eram nas aulas de educação física, nas quais e não imposta pela apostila ou livro didático;
praticávamos o mesmo esporte, ou corríamos a avaliação não era utilizada para descobrir
e pulávamos ao mesmo tempo... Isso quem seria aprovado ou reprovado; os
acontecia na escola do final do século trabalhos e projetos eram desenvolvidos com
passado, mas descobri, lamentavelmente, que entusiasmo. Enfim, uma escola alegórica,
essa escola massificadora e frustrante ainda construída pelas teorias laboratoriais da
existe. Pior, sempre existiu. No começo do universidade, divulgadas sob a forma de
século passado, há mais de um centenário, rebuscados textos que se impõem sobre a
Célestin Freinet [3] já havia anotado seu prática escolar. No entanto, dizem os sábios,
desalento sentido quando escreveu: “...ouvia- se as escolas não operam conforme essa
expectativa é porque seu corpo docente e formal de trabalho e sendo habilitado para um
dirigentes se recusam a aceitar as mais belas único ofício que havia categoricamente
novidades apresentadas pela elite pensante... recusado a exercer, recorri à capital paulista
Assim, ao concluir a graduação e ser na tentativa de iniciar minha vida profissional.
diplomado como licenciado em pedagogia, Vivi um período tenso, ao mesmo tempo
habilitado ao exercício do magistério para os intenso, de buscar maneiras de encontrar
anos iniciais do ensino fundamental, optei por sustento, mas sempre recusando ofertas para
prestar concursos públicos para o cargo ser professor. Certo dia, depois de padecer
efetivo de mestre-escola. Fui aprovado, em algumas semanas, pranteado a escolha da
primeiro lugar. Essa aprovação, por sua vez, pedagogia como curso de formação, a única
tornou-se elemento fundante da minha oportunidade de trabalho que me foi oferecida
carreira docente, mas não foi início de uma foi a de vender cosméticos profissionais para
linda jornada repleta de casos de ensino cabelereiros. Não havia pagamento fixo e o
significativo e da assistência ao pleno único ganho seria a comissão conquistada
desenvolvimento de jovens críticos, capazes pelas vendas. Aceitei.
de reconhecerem seus direitos e de exercerem Jamais serão esquecidas as idas ao
seus deveres. Todas as cenas percorridas por depósito central para abastecer a pesada mala
mim, no dia em que fui à secretaria municipal com produtos para alisamento definitivo (sem
de educação entregar meus documentos e formol, deveria dizer aos estilistas),
assinar o termo posse, estão “entalhadas” em coloração, mechas, hidratação, recuperação de
minha mente, permitindo recordar, com danos, banho de queratina... também não me
nitidez, do momento em que desisti. Pensei olvidarei das dezenas de salões visitados, e a
nas dezenas de crianças que estariam em nulidade em vendas que me fizeram o pior
minha sala de aula e que eu seria o vendedor da equipe, por três semanas
responsável por ensiná-las português, seguidas... Concordamos que não fazia
matemática, ciências, história, geografia, artes sentido continuar tomando ônibus, metrô e
etc. Daí, lembrei que não havia tido uma caminhando por muitos estabelecimentos
única aula ou vivência na universidade que todos os dias. Depois dessa experiência
possibilitasse compreender que essas tarefas malsucedida, a ideia de não ser professor
são inerentes ao cargo de professor. Diante ainda persistia.
tudo isso, paralisei e recuei, acreditando que Surgiu, então, a possibilidade de
essa seria a última decepção provocada pelo entreter possíveis clientes na porta de uma
ambiente escolar... loja. Era necessário vestir uma fantasia de
Nessa época, com 23 anos, tendo palhaço, dançar axé, distribuir balas e
acumulado praticamente nenhuma experiência pirulitos e cantarolar as ofertas e as
promoções de cobertores e edredons. O formativa, mas era obrigado a aplicar provas
trabalho era divertido, mas sazonal e incerto. castradoras, limitadas em suas “múltiplas
O correto seria assumir a vaga de professor escolhas”. Com isso, optei por retornar às
efetivo, garantindo emprego estável para o aulas de recursos humanos.
resto da vida, diziam. Outra imprecisão na minha vida foi a
Na insistência de sobreviver em São opção por continuar meus estudos no
Paulo e longe de qualquer escola, consegui, programa de pós-graduação em geografia, na
praticamente ao acaso, um emprego em cidade de Rio Claro. Muitos impasses
escritório. Trabalhei como auxiliar de ocorreram no período de três anos em que fui
recursos humanos em uma grande aluno de doutorado, incluindo a necessidade
concessionária de veículos. De lá, fui de desligamento do escritório em São Paulo,
aprendendo mais sobre a área e logo fui por causa das longas viagens necessárias ao
convocado para assumir um posto de maior interior do estado. Com isso, foi compulsivo
responsabilidade em uma multinacional. assumir mais aulas, na pedagogia, no turismo,
Estava me desenvolvendo rápido na carreira e na biomedicina, no design de moda... enfim,
logo fora convidado para ocupar um cargo em qualquer curso que houvesse necessidade
importante em um belo escritório, em região de professor e seu horário fosse compatível
nobre da capital. com minha pesquisa de doutorado. Dessa
Se não é possível retratar as forma, todo meu esforço para me esquivar do
vicissitudes dessa jornada e seus caminhos trabalho na educação foi em vão, pois alguns
tortuosos, mais difícil ainda é conseguir (me) anos depois de formado, havia me tornado,
explicar como deixei o escritório e voltei ao exclusivamente, professor.
plano original de ser professor. Fato é que Nessa vereda para a docência,
houve um convite para que eu lecionasse praticamente prescrita pelas contingências da
sobre recursos humanos em uma faculdade vida, fui experimentando “os empecilhos, os
particular. Seriam algumas aulas pela noite, atritos, as impotências”, mencionados por
após o expediente na empresa. Foi assim que Fanny Abramovich, como inerentes ao
tudo (re)começou. Um semestre “dando caminho para a docência. Havia salas
aulas” foi o suficiente para que fosse chamado absurdamente apinhadas de estudantes.
a dar aulas no curso de pedagogia. Até ouso Faltavam materiais simples, como giz e
dizer que um semestre como professor nesse apagador, e equipamentos para impressão de
curso foi o suficiente para que sentisse, textos para aulas. Pior, havia o currículo
novamente, o amargo dissabor da educação imposto a ser seguido, as provas bimestrais,
formal. Por exemplo, nas aulas, explicava os os exames finais e globais, o excesso de
fundamentos da avaliação diagnóstica e disciplinas distintas, a falta de tempo e
incentivo para a pesquisa e para o preparo de livros de Neill me guiavam para “novas”
aulas. Também não havia espaço para novas leituras de textos muito antigos, jamais sequer
formas de ensinar, sendo necessário a mencionados nos anos em que cursava a
reprodução da secular escolástica, na qual o faculdade de pedagogia. Essas leituras me
aluno nada faz além de tentar reproduzir, nas demonstravam a possibilidade de uma
avaliações, o conteúdo que o professor espera. educação formal livre, na qual cada um
Dessa maneira, quanto mais aprofundava a aprende conforme deseja e pode aprender.
pesquisa em geografia sobre o relacionamento Conhecia uma escolarização na qual o
afetivo com um lugar, mais a ideia de que eu professor não tem mais o currículo como
não servia à educação formal ia se cabresto, atuando como investigador e
cristalizando. orientador de estudos, colaborando com o
Certo dia, quando flanava pelo centro protagonismo de cada estudante. Nessa
velho da capital paulista, encontrei em um educação, as aulas não são mais inibidoras da
sebo alguns livros velhos, surrados, criatividade e indutoras do sono e do tédio,
anunciados a preço de poucas moedas, mas mas lugares de movimento e da busca pela
que me chamaram muito a atenção, pois, na solução de problemas, concretização de ideias
capa estava escrito “liberdade sem medo”. ou a livre expressão do aprendido e até
Havia comprado, porventura, o mais célebre mesmo sentido.
livro de Alexander S. Neill [4], o mestre- Essas novas leituras serenaram meu
escola que criou, em 1921, no interior da olhar para a escola e, de certa forma,
Inglaterra, uma escola livre na qual seus esclareceram minha escolha pelo curso de
princípios basilares são a liberdade, o pedagogia e parte das idas e vindas da escola
autogoverno e a felicidade. Em Summerhill, como lugar de aprender e ensinar. Havia
os estudantes somente frequentam as aulas encontrado a escola que não tive, mas
quando desejam. Há uma assembleia semanal desejava ter frequentado. Assim, quando
para decisões coletivas sobre a vida coletiva, havia concluído o doutorado e estava prestes a
na qual todos os membros da comunidade têm reingressar no mercado corporativo, coloquei
voz e direito de voto. Em Summerhill, as minha vida profissional em perspectiva e
pessoas da escola – estudantes, corpo docente optei por rumar de volta à educação formal,
e administração – são livres, ao mesmo tempo assumindo a responsabilidade de transformá-
em que aprendem a responder pelos seus la em algo que ela não é, mas pode ser. Da
próprios atos, demonstrando que é possível mesma maneira que Neill, anseio por uma
ensinar, aprender e praticar a cidadania. escolarização mais livre, motivadora e até
Summerhill apareceu como uma mesmo mais desafiadora, capaz de mobilizar
espécie de “luz no fim do túnel”, pois os os estudantes para a ação e para a cooperação.
Essa bandeira foi erguida a pouco
tempo e logo veio a represália: “educação se
faz com conteúdo e provas”; “aula é controle,
silêncio e disciplina”; “os alunos devem
estudar e se dedicar para aprender o que nós,
sábios professores, prescrevemos como
melhor conteúdo”; “a avaliação é a única
maneira de provar que alguém aprendeu o
conteúdo”. Estas, e muitas outras frases e
ações vem tentando arruinar a educação livre,
que defende o bom-senso, a cooperação e a
disposição para o trabalho. Espero, assim
como Neill, que tenha forças para continuar...
e que no próximo texto, tenha somente
alegrias na escola e conquistas pedagógicas a
compartilhar.

REFERÊNCIAS
[1] ABRAMOVICH, Fanny. Quem educa
quem? 3ª. ed. São Paulo: Summus editorial,
1985.

[2] FORTUNATO, Ivan. Caminhos da


formação na licenciatura: de estudante a
docente. 2017. [mimeo].

[3] FREINET, Célestin. As técnicas de


Freinet da Escola Moderna. 4a. ed. Lisboa,
Portugal: Editorial Estampa, 1975.

[4] NEILL, Alexander Sutherland. Liberdade


sem medo (Summerhill: radical
transformação na teoria e na prática da
educação). 23ª ed. São Paulo: IBRASA, 1984.

Você também pode gostar