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PALESTRA 1: TOQUE E SENSIBILIDADE 
CLARA TAKARABE 
 
 
Eu gostaria de dar as boas vindas e agradecer a todos por estarem aqui.  

Introdução 

O  caminho  da  música  é  magnifico,  mas  repleto de lutas. Eu desenvolvi esta lição a 


partir da compaixão pelas lutas por que passam alunos de música. 

Seu  caminho  pode  incluir  batalhas  com  seus  colegas,  seus  professores,  seus 
familiares  e  com  a  sociedade  e  a  cultura  —  sem  falar  em  suas  lutas pessoais com 
seus corpos e mentes na solidão de suas próprias práticas. 

Eu  gostaria  de  ajudá-los  a  considerar  formas  alternativas  de  olhar  para  a  vocação 
da  música,  as  quais  podem  aliviar  seu  sofrimento.  Eu  usarei  um  vocabulário  que 
vocês  podem  considerar  incomum,  retirado  da  linguagem  filosófica.  Eu  acredito 
que  a  vida  musical  deva  ser  adubada  ​de  forma  generosa  com  filosofia,  a  qual  nos 
provê  com  novas intuições, consolos e, talvez o mais importante, um caminho para 
fora dos impasses em que você pode se encontrar. 

Neste  seminário,  vou  focar  particularmente  em  ideias  sobre  incorporação  e  toque, 
que  podem  nos  reviver  quando  estivermos  bloqueados  pela  competição  brutal, 
pelos  medos  de  falhar  e  pelo  perfeccionismo  implacável.  Também  vou  falar  sobre 
usar  ​insights  da  filosofia  para  transformar  nossos  conceitos  danosos de sucesso e 
fracasso  para  que  possamos  enxergar  nossa  jornada  musical  em  termos  de  um 
florescimento multivalente, em vez de uma série rígida de marcos para se alcançar. 

Vocação 

Ao  falar  sobre  a  vida  musical  como  uma  "vocação"  estou  me  referindo  à  raiz  em 
latim  da  palavra  —  ​vocare  ​—,  verbo  que  significa  "chamar"  ou  invocar,  e  esse 
sentido  de  vocação  implica  um  chamado  que  você  não  deve  ignorar.  Como  as 
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Sereias  em  ​Odisseia​,  as  invocações  para  a vida musical são repletas de sedução e 


perigo. 

Durante  seu  tortuoso  caminho  que  durou  vinte  anos  de  volta  para  a  casa,  vindos 
da Guerra de Troia, Odisseu e sua horda encontraram as perigosas e belas Sereias, 
que  atraíram  os  homens  para  a  morte  com  suas  promessas  sedutoras  de 
conhecimento  —  por  meio  da  extraordinária  melodia  de  sua  canção. Odisseu, que 
não  resistiu  a  seu  desejo de ouvir essa música, amarrou-se a um mastro e ordenou 
sua  equipe,  cujos  ouvidos  fossem  vedados  com  cera  de  abelha,  para  que 
navegassem por onde estavam as Sereias. 

Nós  podemos  desconstruir  a  palavra  "Sereia"  tanto  para  observar  a  magnitude  de 
seu  perigo  quanto  para  encontrar  uma  pista  de  autopreservação.  No  nome, 
encontramos  as  palavras  ​seira  e  ​eiro​,  que  significam  "corda"  e  "atar  ou  enredar 
uma música completa", o que nos dá um duplo sentido de perigo e proteção.  

Elas cantam para Odisseu: 

"Pois  nós  sabemos  tudo  o  que  sofreram  os gregos e troianos na ampla planície de 


Troia  pela  vontade  dos  deuses,  e nós sabemos de tudo o que acontece nesta terra 
frutífera".  Paradoxalmente,  as  Sereias  também  "trazem  o  esquecimento  do  lar  e 
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dos entes queridos" . 

Como  músicos,  nós  também  perdemos  nossos  lares  de  vista.  Muitas  vezes,  é  na 
música  em  si  que  encontramos  um  lar  —  um  laço  que  pode  ameaçar  todas  as 
ligações  tradicionais  que  nos  guiam.  Esse  laço  intenso  pode  também  resultar  em 
uma  certa  separação  do  mundo.  Para  famílias  que  não  conhecem  o  meio musical, 
ele  pode  parecer  alheio  e  repleto  de  perigos.  Sem dúvidas, elas imaginam que nos 
tornamos  vítimas  da  canção  das  Sereias.  Mas  nós  somos  mais  parecidos  com 
Odisseu,  ouvindo  às  Sereias,  mas  procurando  entender  a  canção  que  conversa 
conosco  direta  e  profundamente  sobre  quem  nós  somos.  Através  da  música 
entramos  em  um  novo  lar,  o  qual  nos  conhece  intimamente,  bem  como  a  nossos 
atos. É nesse lugar que está sua incrível capacidade de sedução. 

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  ​Segal, Charles. ​Singers, Heroes, and Gods in the “Odyssey​.” Cornell University
Press, 1994.
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Eu  jamais vou dissuadir alguém de sua trajetória musical, pois esta é de um imenso 
valor  inato,  além  do  valor  para  a  comunidade  que  cerca  o  músico,  esteja  ele 
tocando  ou  descansando.  Eu  já  ouvi  professores  de música dizerem a seus alunos 
que  eles  não  são  bons,  que  não  têm  futuro e que não há nenhuma esperança para 
eles.  Como  um  tripulante  no  navio  de  Odisseu,  eu  quero  amarrar  vocês  ao  mastro 
para que possam ouvir as Sereias e sobreviver. 

Obstáculos pelo caminho 

Em  minhas  conversas  com  alunos  tenho  notado  alguns equívocos recorrentes que 


gostaria  de  abordar.  Também  gostaria  de  apontar  algumas  ansiedades  comuns 
que ocorrem entre músicos. 

O  músico  em  desenvolvimento pode ser atormentado, crônica ou agudamente, por 


certas  ideias  que  ameaçam  frustrá-lo.  Eu  irei  discutir  áreas  que  representam 
grande  perigo  e  causam  vários  problemas:  Primeiro)  ideias  de  sucesso;  Segundo) 
competição;  Terceiro)  ideias  de  fracasso;  e  Quarto)  perfeccionismo  e  humilhação. 
Irei  dar  sequência  com  ideias  sobre  como  seguir  adiante  quando  todos  os 
caminhos parecerem bloqueados. 

Ideias de sucesso 

Quando  pergunto  aos  alunos  sobre  como  eles  concebem  suas  vidas  na  música  e 
como  seria  seu  florescimento,  muitas  das  vezes  a  resposta  imediata  é  que  eles 
desejam  ser  um  "sucesso".  E  quando  questiono  como  isso  ocorreria,  de  maneira 
concreta  e  abstrata,  a  resposta  é,  frequentemente, que eles gostariam de trabalhar 
na  Filarmônica  de  Berlim,  na  Sinfônica  de  Chicago,  ou  de  ser  professor  em  uma 
faculdade renomada. 

"Sucesso"  é  uma  palavra  da qual eu geralmente não gosto. Debates acerca de seu 


significado  muito  rapidamente  se  tornam  confusos  e  desagradáveis  —  mas  é 
normalmente  aceito  que  significa ter uma identidade social de prestígio, bem como 
dinheiro  o bastante para bancar a pompa e os símbolos de um conforto material de 
nível burguês. 
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Muitas  pessoas  acreditam  que  o  sucesso  pode  ser  incorporado  em  um  trabalho 
em  particular,  e  que  alcançar  esse  trabalho  responde  às  questões  ou  lutas 
essenciais  da  vida  humana.  Sucesso,  nesse  sentido,  implica  um  estado  de 
realização.  Se  o  indivíduo  conquista  um  certo  trabalho  ou  vence  uma  competição 
ou  é  capaz  de  tocar  o concerto para violino de Tchaikovsky, de alguma forma seus 
temores  sobre  amor  e  morte  e  felicidade  são  respondidos  —  ​alguma  coisa  é 
respondida,  o  que  parece  acalmar  a  ansiedade  de  nossa  natureza 
fundamentalmente transitória como músicos. 

Eu  estou  mais  interessada  na  ideia  de  florescimento  em  oposição  à  ideia  de 
sucesso,  então,  eu  pergunto:  o  que  as  definições  convencionais  de sucesso têm a 
ver  com  florescimento  humano?  As  ideias  não  são,  necessariamente,  mutuamente 
excludentes.  Mas  se  o  sucesso  significa  ser  contratado  para  um  trabalho  em 
particular,  posso  dizer  por  experiência  própria  que  ter  o  trabalho  "certo"  não 
significa  necessariamente  que  a  pessoa  está  florescendo  profundamente,  ou  seja, 
que  encontrou  amor,  um  relacionamento  contínuo  com  a  beleza  e  a  verdade,  ou 
uma  vida  entre  seus  amigos  mais  queridos  ou  uma vida dedicada a buscar justiça. 
Ter  um  trabalho  significa  que  um  indivíduo  vai  a  um  determinado  lugar  por  um 
determinado período de tempo e recebe dinheiro em troca.  

Eu  sei  que  as  coisas  não  são  tão  secas  quanto  essa  transação  monetária.  Por 
exemplo,  meu  trabalho  como  uma  orquestra  histórica,  icônica,  é  recompensado 
com  benefícios  sociais  na  forma  de  respeito  e  admiração,  mas  muito  desse status 
social  está  fundamentado  em  uma  grande  fantasia.  Esse  capital  social  não  diz 
respeito  intrinsecamente  a  mim  como  ser  humano,  mas à fantasia de outra pessoa 
sobre como minha vida deve ser. 

Eu  raramente  uso  a  palavra  "sucesso",  mas  quando  o  faço,  é  de  maneira 
cautelosa,  sempre  atenta  à  sua  raiz  latina,  ​succedere​,  "vir  depois".  Alguma  coisa 
continua  e  o  amanhã  existe,  da  mesma  forma  que  esse  processo  de  mudança  e 
esse  caminho  musical.  Contanto  que  a  palavra  mantenha  um  senso  de 
possibilidade e potencialidade, eu posso aceitar o significado de sucesso. 

Competição 
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A  competição permeia a música. Por um lado, a competição pode ser um elemento 
importante  em  nosso  senso  de  descoberta,  abrindo  nossas  mentes  para  novos 
critérios  e  nos  incitando  a  desenvolver  e  refinar  nossas  sensibilidades  e  nossa 
técnica.  A  competição  pode  levar  ao  isolamento,  à  alienação  do  senso  de  valor 
humano, e à perda da busca pela vida filosófica da música e da verdade. 

A  competição  pode  ser  formal  e  informal.  Seleções  de  conservatórios  e  trabalhos, 


exames  de  nivelamento,  bancas  e  competições  por  prêmios  representam  meios 
formais  de  competição,  os  quais  inevitavelmente  deixam  pessoas  na  posição  de 
alguém  que  perdeu.  A  competição  informal toma a forma de comparação social ou 
rivalidade.  Apesar  de  a  comparação  social  ser  uma  ferramenta  importante  para  o 
aprendizado,  seu  lado  obscuro  pode  levar  a  pessoa  a  perder  de  vista  seu  próprio 
valor, deixando um indivíduo devastadoramente vulnerável. Sem dúvida, a luta para 
se  criar  beleza  é  uma  competição  da  pessoa  contra  si  mesma,  e  essa  busca, 
empreendida  por  horas  no  isolamento  da  disciplina  técnica,  pode  realmente 
descarrilhar  a  habilidade  para  se  lidar  com  as  coisas.  Algumas  pessoas  são 
consideravelmente  imunes  aos  efeitos  da  comparação,  enquanto  outras  são 
debilitadas por eles. 

Muitos  estudantes  de  música  se  forçam  a  praticar  e  a  exercitar  por  horas  a fim de 
obter  uma  vantagem  em  uma situação competitiva. Embora eu tenha praticado por 
horas a fio na solidão, eu nao aconselho a fazer isso nesse espírito de competição. 

Esse  tipo  de  prática  pode,  muitas  vezes,  levar  a  ferimentos,  impedindo,  assim,  a 
possibilidade  de  uma  vida  na  música  a  longo  prazo.  Eu  fico  espantada  por  ver 
músicos  cada  vez  mais  jovens  desenvolvendo  ferimentos.  Nós  nos  esquecemos 
que nossos corpos têm limites humanos e sensibilidades que precisamos respeitar. 
Há  muitas  formas  de  se  abordar  a  prática  e  a  aprendizagem,  e  o  corpo  tenta  nos 
comunicar  aquilo  que  é  melhor  para  nós  mesmos.  Na  parte  final  deste  seminário, 
eu irei falar sobre como nutrir uma ​prática incorporada​. 

Ideias de fracasso 

Conforme  escalamos  adiante  nos  círculos  do  inferno,  eu  pergunto:  o  que  é 
fracasso?  Eu  ouvi  muitos  alunos  falando  sobre  seus  fracassos,  e  eu  vi  as 
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expressões  de  medo  e  angústia  em  seus  rostos.  Fracasso,  em  suas  mentes,  vem 
de  não  praticar  o  suficiente,  de  uma  transição  falha,  de  uma entonação imperfeita, 
de  não  ser  capaz de tocar uma certa parte do repertório, de uma performance ruim 
devido  ao  pânico  de  estar  no  palco,  de  lapsos  de  memória,  de  não  vencer  uma 
competição,  de  não  ganhar  um  certo assento em uma orquestra, de não conseguir 
um  trabalho,  de  não  obter  aprovação  do  professor  ou  de  não satisfazer aquilo que 
percebe  como  demanda  naquela  lição.  Falta  de  percepção  de  como  dar  o 
"próximo  passo"  ou  "próxima  etapa"  assoma  pesadamente  em  muitas  mentes. Eu 
acho  que  uma  coisa  é  que  o  estudante  tenha  um  entendimento  fundamentado  de 
que  há  muito  para  se  aprender  e  que  a  evolução  contínua  é  necessária,  mas  uma 
condenação  implacável  do  fracasso  —  vindo  o  julgamento  severo  de  seus 
professores, seus pares ou você mesmo — é devastadora. 

Essa  crença  em  que  você  está  falhando  frequentemente  leva  a  uma  crise  em  que 
você  questiona  tudo.  Quando  os  desafios  parecem  intransponível,  quando  não 
parece  haver  nenhum  passo  a  se  dar,  ou  quando  seus  passos  parecem  levar  ao 
fracasso  —  é  aqui  que  músicos  comumente pensam em desistir. Na verdade, esse 
tipo  de  crise  existencial  é  bem  normal,  mas  as  feridas  dela podem durar por muito 
tempo. 

Eu  vou  falar  mais  tarde  sobre  como  se  recuperar desse tipo de crise, mas primeiro 


eu  gostaria de falar sobre as falhas mais comuns com as quais me deparo, que são 
falhas no ensino. 

Falhas na pedagogia 

Professores  têm  uma  responsabilidade  moral,  musical,  intelectual  e  psicológica 


para  com  seus  alunos,  e  muitos  deles  falham  em  atender  a  seus  alunos  no  ponto 
da  necessidade  de  desenvolvimento.  Eu  vi  professores  perspicazes,  cheios  de 
ideias  e  criativos  encontrarem  caminhos  que  permitiram  a  um  aluno  de  música 
evoluir  analiticamente,  musicalmente,  tecnicamente  e  socialmente  —  mas  não 
considero isso como a norma. 

Eu  fico  surpresa  com  o  número  de  professores  egoístas,  cruéis  e  narcisistas  que 
usam  e  abusam  de  seus  estudantes.  Eu  testemunhei  professores  dizerem  a  seus 
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alunos  que,  para  que  melhorassem  —  e  esta  é  uma  citação  real  —,  eles 
precisariam  "se  colocar  dentro  de  uma  jaula  e  tocar  escalas  o  dia  todo".  Isso  foi 
dito  sem  qualquer  instrução  sobre  as  diversas  formas  por  meio  das  quais  uma 
pessoa  pode  explorar  uma  escala  e  sobre  como  praticar  pode  trazer  um  certo 
entendimento,  refinamento  ou  funcionalidade  musical ao ato de tocar. É como se o 
professor  acreditasse  que  a  simples,  habitual  repetição  de  escalas  por horas traria 
automaticamente  o  aprimoramento  em  vez  de  um  possível  dano  físico  e  provável 
desmoralização. 

Dizem  a  alunos  que  eles  fracassam  em  melhorar  porque  lhes  falta disciplina e eles 
falham  em  praticar  o  suficiente,  mas  não  tem  havido  qualquer  tipo  de 
direcionamento sobre como praticar de alguma forma pragmática. 

Por  exemplo,  professores  castigam  seus  alunos  por  estarem  horrivelmente fora de 


sintonia  sem  apresentar  a  eles  uma  estrutura  para  entonação,  que  deveria  incluir 
como  calibrar  a  direção  da  frequência,  como  conceber  saltos  interválicos 
específicos,  como  construir  acordes  harmonicamente  por  meio  da  entonação,  as 
nuances da frequência e as variações de significados atreladas a essas nuances. 

Isso  em  especial  me  dói,  pois  a  entonação  é  uma  matéria  complexa,  e  a 
exploração de seus mistérios pode ser profundamente agradável. 

Outros  professores  tratam  seus  alunos  como  propriedade,  acreditando  que  eles 
têm  a  posse  de  tudo  aquilo  que  o  estudante  precisa  para  aprender.  Qualquer 
tentativa  de  buscar  orientação  por  parte  de  outras  pessoas  de  fora  do  estúdio  é 
considerada  um  ato  de  traição.  Alunos  não  são  propriedades;  eles  não  pertencem 
a  um  professor  e  deveriam  tomar  quaisquer  medidas  que  precisarem  para  se 
ajudar em seu próprio desenvolvimento. 

A  crença  de  um  professor  em  um  aluno,  juntamente a uma presença estável, pode 


transformar  a  compreensão  de  ambos,  aluno  e  professor,  daquilo  que  é  possível. 
Um  professor  que  respeita  a  realidade  e  a  potencialidade  do  aluno  e  que  também 
permite  a  si  mesmo  ser  mudado,  como  professor,  através  daquele relacionamento 
evolutivo, faz com que muito mais se torne possível. 
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Perfeccionismo e humilhação 

Eu  venho  tocando  em  uma  orquestra  renomada,  muito  estabelecida,  por  18  anos, 
desde  que  eu  tinha  23.  Muitos  membros  alcançaram  seu  padrão  desejado  para 
tocar,  mas  muitos  ainda  trabalham  duro  diariamente  para  manter  seus  níveis  de 
atuação,  e  muitos  sentem  que  ainda  não  atingiram  seu  nível  mais  alto,  apesar  do 
tamanho  de  suas  vidas  musicais  —  incluindo  o  estudo,  o  ensino  e  a  performance 
de  um  vasto  repertório.  O  domínio  de  um  instrumento  é  um  objetivo  que  está 
sempre  desaparecendo  ao  longe  —  mas  a  inabilidade  de  obter  aquele  último 
desejo  não  é  algo  de  que  você  precise  se  arrepender.  Em  vez  disso,  você  pode 
apreciar o fato de que a luta irá lhe alimentar por toda sua vida. 

Uma  das  alegrias  de  se  tocar  com  uma  grande  orquestra  é  o  senso  de 
tranquilidade  e  conforto  e  felicidade,  bem  como  o  espírito  com  o  qual  cometemos 
erros.  ​Todos  cometem  erros.  Obviamente,  nem  todos  os erros são encarados com 
satisfação,  e  alguns  desencadeiam  uma  resposta  obscura.  Mas  quando  nós 
comunalmente  zombamos  de  nós mesmos ou transformamos nossos erros em luz, 
é  realmente  motivo  de  alegria.  É  engraçado,  é  hilário.  Com  esse  tipo  de  resposta, 
nós  admitimos  que  há  um  amanhã,  que  nós  somos  humanos,  que  nossas  vidas 
como  músicos  irá  continuar  sem  ameaças.  Com  humor,  nós  admitimos  que nossa 
realidade não é nossa realidade, e que nossa realidade não é nossa potencialidade. 

Contudo,  há  ocasiões  para  todos  os  músicos,  talvez  muitas  ocasiões,  em que não 
apenas  você  tocou  mal,  mas  que  você  sentiu  que  humilhou  a  si  mesmo.  Com 
frequência  você  se  culpa,  e  você  pode,  na  verdade,  perder  a  consideração  dos 
outros.  Isso  pode  resultar  em  exclusão social, o que pode significar ser deixado de 
fora  de  uma  performance  musical  em  particular  ou  ser  rejeitado  de  um  grupo 
musical  em  particular.  Essa  experiência  humilhante  pode  levar  ao  isolamento  e  ao 
afastamento  de  seu  contexto  social  musical  rico  — e até de si mesmo. Você perde 
um  senso  de  possibilidade  e  de  potencialidade,  suas  esperanças  são  substituídas 
com a memória de uma experiência que foi atormentadora e traumática. 

A  situação  terrível,  mas  trivial  em  que  você  sente  que  humilhou  a  si  mesmo  pode 
se  tornar  uma  posição  existencial  prejudicial.  Na  maioria  das  vezes,  se  não  todas 
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as  vezes,  você  fez  tudo  o  que  podia  para  se  preparar  e  praticar  e  analisar,  para 
fazer  justiça  à  música.  Você  se  sente  degradado  e  despedaçado.  Você  perde  seu 
senso  de  dignidade,  de  confiança  e  de  respeito  por  si  mesmo.  Capturado  pelo 
terror,  você  se  encontra  sentindo desamparado, emboscado por seu próprio corpo 
e por sua mente. 

Agora,  eu  gostaria  aqui  de  reconhecer  as  crises  de  sentimento  e  de  entendimento 
do  valor  intrínseco  de alguém ​como músico​. Nós lutamos para compreender nosso 
lugar no mundo e tememos que possa não haver um lugar para nós como músicos. 
Para  sentir  que  podemos  seguir  adiante,  que  podemos  ter  sucesso  no  sentido  de 
fazer  a  próxima  coisa  acontecer,  nós  precisamos  de  um  senso  de  validação 
daquilo  que  nós  somos,  em  qualquer  estágio  de  desenvolvimento  musical  que 
estejamos. 

O  primeiro  passo  para  sair  desse  estado  de  medo  ou  desmoralização  trazido  por 
sentimentos  de  humilhação  é  reconhecer  seu  caminho  musical  como 
intrinsecamente  valioso,  independentemente  de  sua  proficiência.  Muitos  músicos 
estão  comprometidos  em  uma  luta  dolorosa  para  alcançar  o  próximo  estágio  de 
desenvolvimento,  mas  eu  os  incito  a  apreciar  qualquer  estágio  em  que  estejam 
agora e a explorá-lo com o coração aberto. 

Incorporação 

Se  tornar  um  músico  é  formar  nosso  próprio  corpo  a  partir  de  um  estado  nao 
formado,  o  que é um processo difícil. Comece reconhecendo a si mesmo como um 
ser  humano  incorporado  —  com  isso  quero  dizer:  Respeite  as  vulnerabilidades  e 
sensibilidades  que  você  tem  como  um  corpo  físico.  Porque  é  realmente seu corpo 
que  está  criando  música,  você deve aprender a ouvir esse corpo e a ser gentil com 
ele, para se poupar tanto de danos físicos quanto de sofrimento psíquico. 

Em  seu  ensaio,  ​Uses  of  the  Erotic​,  a  feminista  e  ativista  pelos  direitos  civis  Audre 
Lorde  fala  sobre  uma  forma  de  vida  que  é  inteira  e  humana.  Ela  usa  uma  ideia  de 
"erótico"  com  a  qual  vocês  podem  não  estar  familiarizados,  uma  ideia  que  não  é 
sexual nem pornográfica. Ela define o erótico como 
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um  lugar  entre  a  incipiente  consciência  de  nosso  próprio  ser  e  o  caos  de  nossos 
sentimentos  mais  fortes.  É  um  senso  íntimo  de  satisfação  ao  qual,  uma  vez  que  o 
tenhamos  vivido,  sabemos  que  podemos  almejar.  Porque  uma  vez  tendo  vivido  a 
completude  dessa  profundidade  de  sentimento  e  reconhecido  seu  poder,  não 
podemos,  por  nossa  honra  e  respeito  próprio,  exigir  menos  que  isso  de  nós 
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mesmas.  
Com  essa  ideia  do  erótico  em  mente,  podemos  começar  a  navegar  pelos 
paradoxos da realidade e possibilidade. Lorde diz: 

Mas  a  demanda  íntima  pela  excelência  que  aprendemos  do  erótico  não  pode  ser 
mal-entendida  como  exigir  o  impossível  nem  de  nós  mesmas  nem  das  outras.  Tal 
exigência  incapacita  todo  mundo  no  processo.  Porque  o  erótico não é sobre o que 
fazemos;  é  sobre  quão  penetrante  e  inteiramente  nós  podemos  sentir  durante  o 
fazer.  E  uma  vez  que  saibamos  o  tamanho  de  nossa  capacidade  de  sentir  esse 
senso  de  satisfação  e  realização,  podemos  então  observar  qual  de  nossos 
empenhos vitais nos coloca mais perto dessa plenitude. 
Essa  é  uma  passagem  enigmática  —  o  que  Audre  Lorde  quer  dizer  é  que  nós 
precisamos  tratar  a  nós  mesmos  com  gentileza  a  fim  de  não  ficarmos  assustadas 
por demandar o impossível de nós mesmos. 

Quando  eu  digo  que  você  não  deveria  causar  dor  a  si  mesmo  esperando  e 
demandando  aquilo  que  é  impossível  —  "a  demanda  íntima  pela  excelência"  de 
Lorde,  eu  não  quero  dizer  que  você  não  deveria  tentar  expandir  seus  limites  ou 
colocar  o  máximo  de energia que puder em crescer e evoluir. Mas você deve voltar 
seu  olhar  crítico  para  seu  próprio  senso  de  impossibilidade.  Não  se  permita  ser 
intimidado  pelo  que  parecem  dificuldades  intransponíveis.  Pare  por  um  momento 
para  avaliar  quais  elementos  estão  criando  o  seu  senso de impossibilidade em vez 
de  julgar  toda  a  situação  como sem esperança. Esse processo de análise pode ser 
uma  forma  de  arte  por  si  só,  e  suas  descobertas  podem  ser  bastante  imaginarias 
ou incomuns. 

Incorporação como um caminho a seguir adiante 

As  respostas  para  destravar  o  caminho  a  seguir  não  são  sempre  cognitivas,  mas 
profundas,  sentidas  emocionalmente  e  é  daí  que  vem  o  progresso.  Minha 

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  ​Lorde, Audre. “Uses of the Erotic: The Erotic as Power.” Paper delivered at the Fourth
Berkshire Conference on the History of Women. Mount Holyoke College, August 25,
1978.​  
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libertação  do  senso  de  impossibilidade  veio  na  forma  de  um  alegre,  estimulante 
professor,  cuja  crença  em  mim  e  o  apoio  para  minha  trajetória  diretamente 
contribuíram  para  que  eu  entrasse  na  orquestra  com  a  qual  toco  atualmente,  a 
Sinfônica  de  Chicago.  As  aulas  com  ele  eram  como  fazer uma caminhada em uma 
bela  montanha  florestada  —  não  uma  caminhada  fácil,  mas  uma árdua caminhada 
repleta  de  fascinação  e  beleza.  Uma  aprendizagem  alegre  é  como  uma  conversa 
víva,  que  prende,  não  um  abatimento  alienante  que  muitos  de  nós  suportamos.  O 
ensino  estimulante  torna  tantas  coisas  possíveis,  as  quais  não  eram  antes 
aparentemente visiveis. 

Aprender  é  o  processo  de  se  tornar  algo  que  você  não  é,  e  começa  com  nossos 
corpos.  Tornar-se  um  músico  é  ir  da  falta  de  forma  à  forma,  através  de  um 
processo  de  adaptação.  Nossa  potencialidade  humana  é  um  mistério,  um 
desconhecido  que  nós  podemos,  no  entanto,  intuir.  Tanto a potencialidade quanto 
a  realidade  se  aprofundam  em um relacionamento comprometido uma com a outra 
— um enigma metafísico que eu considero eletrizante. 

O  que  amo  sobre  o  ensaio  de  Lorde  é  sua  invocação  de  um  senso  de  totalidade 
como  uma  forma  de  proceder  com  a  tarefa  de  ser.  Como  ela  diz,  "é  sobre  quão 
penetrante  e  inteiramente  nós  podemos  sentir  durante  o  fazer".  O  que  ela  está  se 
referindo  aqui  é  o  conceito  de  "sensação  sentida",  definido  pelo  filósofo  Eugene 
Gendlin  como  pessoas  funcionando  através  de  uma  combinação  de  incorporação 
física,  intuição,  consciência  e  emoção.  O  filósofo  francês  Maurice  Merleau-Ponty 
fala  da  "carne  do  mundo"  sendo  uma  forma  de  conhecimento  e  de  percepção. Eu 
insisto  para  que  vocês  usem  seus  corpos  como  uma  forma  de  vir  a  conhecer  e 
aprender música. 

Quando  embasamos  nossa  aprendizagem  em  uma  fundação  física,  podemos 


encontrar  conforto  na  consciência  que  essa  orientação  traz.  Para  permitir  aquilo 
que  ainda  não  está  formado  emergir,  os  professores  precisam  tratar  seus  alunos 
com  respeito  onde  eles  estão  se  desenvolvendo  e  entender  porque  eles  estão 
naquele  ponto  de  desenvolvimento.  Eu  espero  que  vocês  todos  tenham  um 
ambiente  de  aprendizagem  no  qual  vocês  estejam  absorvidos  em  um  momento 
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intemporal  de  estar  vivo  e  ser  incorporado,  em  vez  de  um  ambiente  de  medo  e 
contração. 

Aprendizagem e toque 

Ser  um  músico  diz  respeito  a  tocar;  quando  eu  falo  sobre  toque,  quero  dizer  real 
percepção  sensorial  —  estar  ciente  de  como  o  instrumento  se  posiciona  em  suas 
mãos,  de  como  as  pontas  dos  dedos  se  sentem  na  transição  e  de  ouvir  com 
curiosidade  o  formato  da  transição, por exemplo. Cinestesia, a habilidade de saber 
onde  seu  corpo  está  no  espaço,  é  um  dos  elementos-chave  para  se  aprender 
como tocar fisicamente seu instrumento. 

Deixe-me  apresentar  um  exemplo  de aprendizagem e ensino que ilustra problemas 


comuns e oferece uma solução. 

Escalas 

Eu  pergunto  aos  alunos:  como  vocês  normalmente  abordam  seus  estudos  ​e  seu 
repertório  com  seu  professor?  Na  maioria  das  vezes, os alunos irão responder que 
têm uma escala, alguns estudos e seu repertório para apresentar.  

Eu  pergunto  aos  alunos:  qual  o  objetivo  de  praticar  uma  escala?  E  obtenho 
respostas  sobre  entonação,  transições,  tom,  padrão  dos  dedos  e  técnica  de 
curvatura.  Tudo isso é crítico e importante para se adquirir a técnica que finalmente 
permite  nossa  expressividade.  Mas  eu  gostaria  de  enfatizar  a  condição  sob  a qual 
o  músico  explora  esses  elementos  de  técnica.  Essa  condição  deveria  ser  uma  de 
sintonização sensível e vivacidade. 

Em  vez  de  um  exercício  seco  ou  mecânico,  a  escala  pode  ser  uma  experiência 
total  de  incorporação  física  e  emocional.  É  como  o  nascer  do  sol,  a  abertura  do 
dia.  Começar  a  escala  é  um  tipo  de  centramento, de descoberta do próprio corpo, 
uma  prática  de  respiração,  de  ser, de sentir a pele em sua mão e o movimento que 
a escala traz à tona em seu corpo.  

Quantas  vezes  eu  toquei  uma  escala  para  me  deparar  com  lugares congelados ou 
insensíveis,  lugares  que  eu  não  sentia  em  meus  braços,  minhas  pernas,  minhas 
mãos?  Lugares  que  estavam  congelados  ou  adormecidos  e  que  precisavam  ser 
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flexíveis  em  movimento  e  mais  vívidos?  Eu não aprendi sobre a beleza das escalas 


até  chegar  aos  trinta,  depois  de  me  machucar  devido  a  muitos  hábitos  ruins  e 
estresse  e  ansiedade  em meu próprio tocar. Quantas vezes eu toquei uma escala e 
me senti divorciada de meus pés ou minhas pernas ou meus pulmões? 

Começar  aqui,  com  sintonização  e  reconhecimento  de  seu  corpo  sensível,  irá 
ajudar  para  que  a  escala,  o  estudo  e  o  repertório sejam infinitamente fascinantes e 
de  alguma  forma  vivos  para  você.  Sem  esse  tipo  de  incorporação,  essa 
consciência  sensual,  estudantes,  sem  saber,  seguem  o  caminho  perigoso  da 
prática rotineira que com frequência leva a machucados a longo prazo. 

Não deixe os bastardos te derrubarem 

Eu  fui  requisitada  a  praticar  escalar  duas  horas  por  dia,  por  professores  que  me 
deram  bastante  orientação  sobre  como  posicionar  meus  dedos,  e  como  executar 
corretamente mudanças do arco. 

Mas  eu  ansiava  por  um  entendimento  mais  profundamente  sensual  e  filosófico  do 
que  uma  escala  poderia  ser.  Meus  professores  poderiam  ter  explicado  a  natureza 
filosófica  da  escala  para  mim,  poderiam  ter  me  despertado  para  os  ​insights  que 
poderiam ser aprendidos por se viver todos os dias com escalas. 

O  elemento  de  se  estar  inteiramente  desperto  para  seu  próprio  corpo enquanto se 
faz  uma  escala  é  a  fundação  a  partir  da  qual  se  inicia  o  estudo  disciplinado.  Esse 
tipo  de  prática  transforma  a  escala  de  uma  prática  rotineira  de  exercícios 
desincorporados  para  um  total  engajamento  de  um  ser  por  completo  com  a 
produção do som, revelando novas camadas de significado e conexão. 

Em  grande  parte  do  tempo,  alunos se atolam no aspecto técnico de aprender seus 


ofícios;  essencial  e  inescapável  como  o  é,  eu  gostaria  de  lembrá-los  que  a 
perfeição  da  técnica  não  é  arte  e  não  necessariamente  leva  à  expressividade,  à 
verdade ou à beleza. 

Eu  acredito  fortemente  que  o  profundo  engajamento  corporal  e  o  profundo 


compromisso  intelectual  são  rotas  mais  diretas  para  a  experiência  criativa  de  se 
agarrar e revelar verdade e beleza do que exercícios técnicos impensados, e insisto 
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a  você  que  tragam  seu  ser  inteiramente  incorporado  para  todo  encontro  musical, 
inclusive o de tocar escalas. 

A  história  das  Sereias  em  ​Odisseia  é  uma  metáfora  rica,  paradoxal,  para  o  que 
procuramos,  o que encontramos, e os perigos que podem nos acontecer em nossa 
jornada  musical.  A  enormidade  do  repertório,  a  avassaladora  experiência  sensual 
da  música,  a  vasta  quantidade  de  trabalho  requerida  para  criarmos  os  sons  que 
desejamos,  tudo  isso  pode  ser  esmagador,  pode  nos  deixar  com  medo  de 
perdermos  a  nós  mesmos,  de sermos engolidos e devorados pelo encantador som 
da sereia. 

Ate-se  ao  mastro  da  incorporação,  do  aqui  e  do  agora,  e  seu  caminho  estará 
sempre  aberto  para  o  sucesso:  O  que  quer  que  venha  depois,  a  próxima  coisa,  o 
próximo dia. 

Então,  eu  insisto  que  sigam  adiante  na  música,  com  um  senso  de  filosofia  e  de 
incorporação.  Eu  desejo  que vocês possam ser abastecidos de uma forma positiva 
pela  ansiedade  em  vez  de  aprisionados  por  ela.  E  eu  desejo  a  vocês  muitas 
amizades  profundas,  preenchidas com beleza e com o sublime que a música tem a 
oferecer. 

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